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SINAIS RAIZES DE UM PARADIGMA INDICIARIO ‘Deus estd no particular, A Wares Um objeto que fala da peda, da desi, do devaptecimento de objets, Nao fala des. Tala (Ge outs, Inced também a ele? I Joins [Nessas péginas tentarei mostrar como, por volta do final do sécalo 31x, emergiu silenciosamente no ambito das cincis bums has um modelo epistemolégico (caso se prefira, um paradigma') a0 qual até agora ndo se prestou sufiiente atengio, A andlise desse paradigma, amplamente operante de faro,sinda que no teorizado texplicitemente, talver possa ajudar a stit dos inebmodos da con: ‘aposicio entte “racionalismo” ¢ “irracioalismo”. L 1, Entre 1874 © 1876, apareceu na Zeitscbrift fir bildende Kunst uma série de artigos sobre 2 pintura italiana, Eles vinbam assinados por um desconhecido estudioso russo, Ivan Lermolieff, fora um igualmente desconhecido Johannes Schwarze que 08 13 traduzira pura 0 alemio. Os artigos propunham um novo método pra atribuigfo dos quadros antigos, que suscitou entre os his- toriadores da arte reagSes contrastantes e vivas discusses. Somen- te alguns anos depois, o autor trou a dupla méscara na qual se cexcondera. De fato, tratavase do italiano Giovanni Morell (sobre- nome do qual Schwarze & uma cépia e Lermolieff « anagrams, oo ‘quise). E do “método moreliano” os historiadores da arte falam correntemente ainda hoje? ejamos rapidamente em que consist ease métado, Os mu- scus, dizia Morelli, estdo cheios de quadtos atzibuidos de mancira incorreta, Mas devolver cada quadro 20 seu verdadeiro autor é sifcil: muitissimas vezes encontramonos frente a obres nfo-usi- rnadas, talvez repintadas ou sum mau estado de conservagio, Nes sas condigbes, € indispensivel poder distinguit os originais das 6pias. Para tanto, porém (dizia Morelli), € preciso nio se basear, ‘como normalmente se faz, em caracteristicas mais vistosss, portan: ‘0 mais facilmente imitéveis, dos quadros: os olbos erguidos pa © eu dos personagens de Perugino, © sorrso dos de Leonardo, © assim por diante. Pelo contritio, €necessitio examinar os porme ores mais negligencidveis, e menos influenciados pelas caractris teas da escola a que o pintor pertenci; os lébulos das orethas, 4s unas, as formas dos dedos das mios e dos pés. Dessa mancirs, ‘Morelli descobriu, © escrupulosamente eatalogou, a forma de ote. tha propria de Botticelli, a de Cosmé Tura e assim por diante: tacos presentes nos originas, mas nfo nas cdpias. Com esse méro- do, propés dezenas © dezenas de novas atribuigBes em alguns dos principais museus da Europa, Fregiientemente tratavase de atri- buigdes sensacionais: numa Vénus deitada conservads na galeria cde Dresden, que passava por una cdpia de uma pintura perdida de ‘Ticiano feta por Sassoferrato, Morelli idetifieou uma das pou- ‘guissimas obras seguramente aurdgrafas de Giorgione. Apesar desses resultados, © método de Morelli foi muito eri 'ieado, talvez também pela seguranga quase arrogance com que era proposto, Posteriormente foi julgado mecinico, grosseiramente po- sitivista, ¢ caiu em descrédito:' (Por outro lado, € poasvel que 46 muitos estudiosos que falavam dele com desdém continuassem & usilo tactamente pata as suas atribuigdes.) O renovado interesse pelos trabalhos de Morelli € mérito de Wind, que viu neles um exemple tipico da atitude moderna em relasio 4 obra de arte — titude que leva a apreciar os pormenores, de preferéncia i obra fem scu conjunto. Ei Morelli existria, segundo Wind, uma exa cetbacio do culto pela imediaticidade do génio, assimilado por cle nna juventude, no contato com os eirculos rominticos berlinenses* E uma interpretagio pouco convincente, visto que Morelli no se colocava problemas de ordem estética (que depois the fo censu- rado), mas sim problemas preliminares, de ordem filolégica Na realidade, as implicagBes do método proposto por Morelli eram foutras, e muito mais ricas. Veremos que o préprio Wind esteve muito préximo de intl. 2. “Op livros de Morelli” — escreve Wind — “tém um aspecto bastante insélito se comparedos aos de outros historiado~ res da arte, Eles esto salpicads de ilustragbes de dedos e ores, cuidadosos tepisttos das mindcias caraterfstcas que traem a pre senga de um determinado artista, como um criminoso € traido plas suas impressées digitais... qualquer museu de arte estu- dado por Morelli adquite imediatamente o aspecto de um museu criminal..." Essa comparagio foi brilhantemente desenvolvida por Castelnuove, que aproximou o método indicifrio de Morelli 0 que era atribuido, quase 90s mesmos anos, a Sherlock Holmes pelo seu criador, Arthur Conan Dosle? © conhecedor de arte € comparivel a0 detetive que descobre o autor do crime (do qu dro) baseado em indicio imperceptiveis pata a maioria. Os exem- plos da perspicicia de Holmes a0 interpretar pegadas na lama, cinzas de cigarro etc, s80, como se sabe, incontveis. Mas, para se convencer da exttidio da aproximagio proposta por Castelnuovo, vreiase um conto como "A ctixa de papelio” (1892), no qual Sherlock Holmes literalmente “di uma de Morelli”. © caso come fg exatamente com duas orelhas cortadas e enviadas pelo correio ‘2 uma inocente seaborita, Fis © conhecedor com mios 3 obra Holmes 145 se interrompen © eu [Watson] figuei surpreso, olhando-o, ao ver ‘que ele fixava com singular atengéo 0 perfil da senborta. Por um segundo foi pose! ler no seu roso ansouo surpresa sti fapio 20 mesmo tempo, ainds que, quando cla se virou para detcobrit 0 motivo do seu silénco, Holmes tvesse se tornado Inmpassive como sempre? Mais adiante, Holmes explica a Watson (¢ aos letores) 0 percurso do seu brilhante trabalho mental Na sua qualidade de mica o senor no ignored, Watson, que ro ease pete do corpo hunano gc ofeeya mores vate do que uma ora. Ca orlba posal caracterscs pop ‘mens suas ¢difere de todas otis Ne Revise Antopalgice do wo pasando senor encontad sabre ete asunto does bre ves menogrfies de minha Ive, Portanto, canine! reas Condes ma cata com aon Je coil © cbervel mcrae seme os soe coacteiicn seats, Inagine no 4 mine Surprese uindo, pousndo or olor cea veabortn, Cain fot tases cum tx ening ‘ur haviecxaminado pouco ants, Nao ern poste pensar ume sindinds, Nat doa ein 9 mesmo coeaamen deh, 2 tmeana ump cuvatrs do Kbulosuperin, mesa ean. logo da cerige interna im todos os ponte sence tt ‘ese da mea ortn. Navralnente pec de ime «ene 1 inorder: re une ue» wi leva ser una prete conning, provelmente mato sina Se sche. ne ee a 3 Veremes cm breve as implies dese parle.” Ames, pce srt bom stomar una ute press ini Wind: : ie A alguns dos crticn de More parca eta 0 diame de gue a penal deve sor prviraa one o esi pessoal Enos imenso™. Mas sire ete onto + pacing mode ssi eat old de Mal aon peor ster inconcemesrevelam o noo cater mais do que dualguet ate tude formal, cudadovrence peared por kt “Os nossos pequenos gestos inconscientes...”: a genérica ‘expressio “psicologin moderna” pode ser diretamente substituida pelo nome de Freud. As péginas de Wind sobre Morelli, de fato, 146 auairam a atensio ds esudionos" para uma passage, por muito tempo neligencada, do famoro stato de Freud O.Moiés de ‘Micbelanglo (1914)- No comeyo do segundo pariraf, Freud Muito tempo anes gue co pudee owt far de priate, tim sie? um espealra date rons, Ivan Lene, ‘Rs princi enon fram poblicados vm lemfo nt 1874 Cre tvia proved une fovea gain de Europe feclcando ce dias w aio de molten sues # cae ino, cindy dng cm spurns ene as init ee gi constndo sore insides artes « pent deur obras sc hal sido Heras dat sus at iiss anor, Ee hen a ene realado precinlindo da Inge ea ono unde sr, ro, contro ¢impurdnia cocci do deers sp ds parlance, como conforma ds ns, dv lor suite, da sola e oto lementon Sit Sormiente stam deaperdidis« que o copia deta e Tour, a ps, porém, rca ins ox exc de um fads She o dina Ta depos sto interesante pct im she ‘Re Sob pruddnimo ras ecole umn lao de ‘Tine Morel Tendosetomado senader do veioo da Til, Mo tal orca em 10), Co gue o seu modo et eaeimene Sparemtado 8 cia da anise min st abe tem por Ibo pnewarem cost conte ian av de lene tos poe nolan cu deperbidon, don detits ou “ref” A ses nea auc sen geht, geg gech- ten oder nicht Heabtenten igen, aus dam. Abhub — dem She" der Beobachung, Ceeines und Verbopenes crate) 0 enssio sobre © Mois de Michelangelo mum pimeiro mo mento sparecea anime Preud rconheceo sua paternidade + ‘Rent nu cssifo de incltTo em suas obras completa. SupSese Ge 2 tendéncia de Mol pars pagar oatando- seb peed Tinos, sua personaldade de autor seabnse de certo modo por Contr também a Freud; apresentaramse hipsteses mais ot tnenes actives sobre 0 sgafiead densa convegénca." O certo ue, coberto pelo véu do anoninat, Freud deciarou de mancia to mesmo tempo expla sctiente a considrivl inflvénia 17 inelectual que Morelli exerceu sobre ele, numa fase muito ante rior & descoberta da psicandlise (“lange bevor ich etwas von der Peychoanalyse horen konnte..."). Reduzir essa influéncia, como se fez, apenas ao ensaio sobre 0 Moisés de Michelangelo, ou em eral eos ensuios sobre temas ligados a histéria da restringit indevidamente o aleance das palavras de Freud: "Cre que 0 seu método (de Morelli) esté estreitamente aparentado & récnica da pricandlise médica", Na realidade, toda a declaracio de Freud que citamos garante a Morelli um lugar especial na his: tra da formagio da psicanlise. De fato, documentada, ¢ nio conjetural, como a maior parte dos “antece denies” ou “precursores” de Freud; além do mais, o encontro com fs textos de Morelli ocorreu, como ji dissemos, na fase “préana Itica" de Freud. Temos de trtar, portanto, com um elemento {que contribuiu diretamente para 4 cristalizago da psicandis rio (como no caso da pigina sobre © sonho de J. Popper “Lynkeus”, lembrada nas reedigdes da Traumdeutung) * com uma coincidéncia encontrada posteriormente, quando ji se dera a des: coberta 4 Antes de tentar entender o que Freud pode exttair da Teitura dos textos de Morelli sed oportuno determinar © momen to em que ocorreu essa leitura, O momento, ou melhor, 0s mo- rmentos, visto que Freud fale de dois encontros distintos: “muito tempo. antes que cu padesse ouvir falar de psicanlise, vim a saber que um especialista de arte russ, Ivan Lermolieff..."; "Foi depois muito interessante para mim saber que sob 0 pseudd- rime russo excondia-se um médico italiano de nome Morelli 'A primeira afirmagio é datével apenas hipoteticamente. Como terminus ante quem podemos colocar 1895 (ano da publicagio dos Estudos sobre a histeria de Freud e Brewer) ou 1896 (quando Freud usou pela primeira vez © termo “psicanlise")." Como ter: ‘minus post quem, 1883. Em dezembro daquele ano, de fat, Freud ‘contou numa longa carta i noiva a “descoberta da pintura” feita durante uma vista 4 galeria de Dresden, No passado, a pintura oo interesara; agora, escrevia, “viel de mim a barbie e come 18 cei a admirar”" £ dificil supor que, antes aessa data, Freud fosse atratdo pelos textor de um desconhecido historiador da arte; & perfeitamente plausivel, pelo contrfri, que se pusesse a lélos pouco depois da carta 4 noiva sobre a galeria de Dresden, visto ‘que os primeiros ensaios de Morelli rcunidos em livro (Leipzig, 1880) referiam-se as obras dos mesteesitaianos nas galerias de Munique, Dresden e Berlim® 0 segundo encontzo de Freud com of textos de Moreli & de vel com uma precisio talver maior. O verdadeiro nome de Ivan Lermolieff tornou-se pablico pele primeira vez no frontispicio da tradugdo inglesa, publicada em 1883, dos ensaios que acabames, de citar; nas reedigdes ¢ tradugies posteriores a 1891 (data da ‘morte de Morelli) aparecem sempre tanto 0 pome como 0 pseudd> nimo2® Nao & de se excluir que um desses volumes chegasse antes, fou depois as mios de Freud; mas provavelmente ele velo a co nhecer a identidade de Ivan Lermolieff por puro acaso, em setem bro de 1898, bisbilhotando numa livraria milanesa. Na bibliotecs de Freud conservada em Londres, de fato, aparece um exemplar do livro de Giovanni Morelli (Ivan Lermoliff), Da pintura ita- liana. Estudos bistbricos criticos. As galerias Borghese e Doria Pamphili em Roma, Milio, 1897. No frontispicio esté escita a data da aquisigio: Milio, 14 de setembro A tinica esteda mila- rnesa de Freud ocortey no outono de 1898." Naquele momento, por outro lado, ¢ livro de Morelli tinha para Freud mais um outro ‘motivo de interesse. Havia alguns meses, ele vinha se ocupando dos lapsos; pouco tempo antes, na Dalmicia, ocorreu o epis6dio, depois anaisado na Psicopatologia da vide cotidiana, em que ten: tara inutilmente lembrar 0 nome do autor dos aftescos de Orvie to, Ora, tanto o verdadeiro autor (Signore! fictcios que nam primeiro momento vieram i meméria de Freud (Botticelli, Boltraffio) eram mencionados 0 livro de Morell.” Mas 0 que péde representar para Freud — para o jovem Freud, ainda muito distante da psicandlise — a leitura dos enstios, de Morelli? E 0 préprio Freud a indicélo: a proposte de um mé. todo interpretativo centrado sobre os residues, sobre os dados ‘marginss, considerados reveladores, Desse modo, pormenores nor 149 ‘malmente considerados sem importinca, ou até trvisis, “baixos", forneciam a chave para aceder acs produtos mais clevados do esph ‘ito humano: “os meus adverséris", eserevia ironicamente Mo- relli (uma ironia talhada para agradar @ Freud), “comprazemse fem me julgar como alguém que no sabe ver o sentido espirtual de uma obra de arte © por isso dé uma importincia particular w ios exteriores, como as formas da mio, da orelha © até, borr- bile dictu, de um objeto to antipético como as unhas":* Morel também poderia se apropriar do lems virgliano caro a Freud, es colhido como epigrafe para A interpretagio de somber: “Flectere si mequeo Superos, Acheronta movebo” [Se niio posso dobrar os poderes superiores, moverei @ Aqueronte].® Além disso, esses dlados marginais, para Morelli, eram reveladores porque consti- tufam os momentos em que o controle do artista, ligado a tradi ‘fo cultural, istendia-se para dar lugar @ ragos puramente indi Vidoais, “que the escapam sem que cle se dé comta”® Ainda mais do que 4 alusio, nfo excepcional naquela época, a uma atividade inconsciente” impressiona a identificacéo do micleo {atimo dain. dividualidade arvistica com os elementos subtraidos 40 controle do 5. Vimos, portato, delinearse uma andlogia entre os méto- ddos de Morelli, Holmes ¢ Freud. Do nexo Morelli—Holmes e Mo- relliFreud jd falamos. Da singular convergéncia entre os proce-

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