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is na Galia Merovingia na visio de Gregério de Tours Bella Civilia: as guetras ci Bella Civilia: the civil wars in the Merovingian Gaul by Gregory of Tours vision Edmar Checon de Freitas Resumo: Este artigo discute a utilizacio nos Libri Histoiarum de Gregério de Tours (€.538-573) da expressio “guerras civis” (bella avid), buscando identificar as concepgdes do autor com relagio ao tema da guerra e do ordenamento eristio da Gilia de seu tempo. Palavras-chave: Gregério de Tours— Galia Merovingia~ Guerras civis, Abstract: This paper discusses the use of “civil wars" (Helaum civilia) in the Gregory of Tours’ (¢.538-573) Libri Historianum, secking to identify the author's ideas regarding the theme of war and the Christian order in the Gaul of his time Keywords: Gregory of Tours — Merovingian Gaul — Civil Wars. © periodo em que a Gélia franca esteve sob 0 dominio dos merovingios costuma ser associado a uma época de instabilidade, guerras fratricidas ¢ destruigao. Veja-se, por exemplo, o que diz Jacques Heers (1999: 21): A histéria dos filhos ¢ dos netos de Clovis, a partir de entio, foi apenas a de uma seqiiéncia inextricivel de conilitos familiares, intrigas, assassinatos e guerras civis. Fnsangtientaram e enfraqueceram todas as regides franeas [.] Palavras semelhantes as de Jean Favier (2004: 20) que, a0 falar dos merovingios, se refere as “peripécias que cobrem de sangue, periodicamente, © reino franco e a descendéncia de Clovis.” Exemplos dessa natureza se multiplicam em nossos livros didéticos, contribuindo para a fixagio de uma imagem do mundo merovingio violento ¢ desordenado. 1 inegavel que as guerras entre os merovingios foram bastante danosas para os homens ¢ mulheres que sofreram seus efeitos no século VI, como © so * Professor de Histéria Medieval da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisador do Serptorium — Laboratério de Estudos Medievais e Ibéricos, E-maié cedmarcfreitas@gmail.com RUIZ-DOMENEG, José Borique e COSTA, Ricardo da (coords). Minaita ‘La caballeri yc ate de Is guerra en el mundo antiguo y medieval. Diciembre 2008/1SSN 1676-5818 todas as guerras, Também é verdade que se tratava de tempos violentos, mesmo quando em épocas de paz. Mas 0 que merece set discutido aqui € 0 quio espeeffico seria tal fato do mundo merovingio. Em outras palavras, seria a Galia merovingia nesse particular muito diferente da carolingia ou dos demais reinos germénicos dos primeiros tempos medievais? Nosso propésito aqui é langar alguma luz sobre esse ponto, buscando identificar na principal fonte que nos permite acessar tal mundo elementos que contribufram decisivamente para a fixago dessa imagem distorcida da Gélia merovingia. Referimo-nos aos Libri Histeriarwm, de Gregério de Tours. I. A Gilia franca e a ascensio merovingia De piratas ¢ saqueadores, os francos converteram-se, a0 longo do século IV, em figis aliados do Império Romano. Francos como Arbogasto, Merobaudes, Banto ¢ Ricomer foram importantes comandantes militares no final desse século, os tés iltimos figurando nas listas consulares romanas (AMIANO MARCELINO, XXX,10; ZOSIMO, IV 19,1; 33,1-2). Mas, j& no final do século IV, tribos francas vindas do interior da Germania iniciaram uma série de ataques ao norte da Gilia, fato que se repetiria nas primeiras décadas do século seguinte.” ‘Também francos de um niicleo ha muito assentado em territério romano mostraram-se agressivos por essa época: em meados do século V os francos sdlios, outrora instalados por Juliano na Toxandria, pilharam o interior da Gilia (LH 11,9)2 A repressio ¢ diplomacia romanas reconduziram os francos (ow ao menos uma boa parte deles) & condigao de aliados fiéis ¢ € assim que os encontramos na batalha dos Campos Catalatinicos, na qual tropas imperiais, em sua maior parte constituidas por legides germénicas, bateram os hunos de Atila e os demais povos que lutavam sob seu comando ((ORDANES, Gettica, 191-199). A identificagao com Roma ¢ seu mundo sao explicitadas de forma muito clara pela inserigao encontrada na tumba de um guerreiro franco, morto na Panénia: “Eu sou um cidac franco, um soldado romano pelas armas” (FLETCHER, 1998: 101; JAMES, 1988: 42). Seguiremos aqui M. Rouche (1996) identificando tais grupos como fruncar renanas, A denominagio rpuiries € mais tardia, * Identificaremos assim os Libri Historiarum de Gregorio de Touss. *“Prancus ego cives, miles romanus in armis”. 21 RUIZ-DOMENEG, José Borique e COSTA, Ricardo da (coords). Minaita ‘La caballeri yc ate de Is guerra en el mundo antiguo y medieval. Diciembre 2008/1SSN 1676-5818 Na segunda metade do século V os francos consolidaram sua posigio na Gilia, a0 passo que © Império Romano do Ocidente se desintegrou: os renanos estabeleceram um reino em Colénia ¢ os salios ampliaram scus dominios mais ao sul, liderados pelos descendentes de Clédio, mais tarde identificados como merovingios, sobretudo Childerico (m.481) ¢ seu filho Clovis (481-511). Este tiltimo, convertendo-se a0 cristianismo catélico em 496, granjeou 0 apoio do clero galo-romano ¢ de boa parte da aristocracia local. Isso permitiu que ele ampliasse seus dominios, tomando a regio ao sul do Loire dos visigodos, em 507 (batalha de Vouillé — LH II, 37) paulatinamente unificando os demais reinos francos sob scu controle (LH II, 40-42). Os filhos ¢ netos de Clévis mantiveram a politica paterna, ampliando os dominios francos, seja pela anexacio de territérios (Burgtindia, em 334) ou pela imposi¢io da tutela franca aos povos vizinhos. Mas depois da morte de Clovis raramente tais dominios francos estiveram reunidos sob a autoridade de um tinico rei. As partilhas sucessérias atribufam a cada herdeito um tetritério € a condigéo de tei dentro do mesmo, sendo a nosso ver mais apropriado falar na pluralidade de reinos francos nos séculos VI ¢ VII do que pensar num tinico regnum Francorum fragmentado por tais partilhas. Em boa parte como conseqtiéncia das mesmas é que as guerras entre os merovingios sc desenrolaram na Gélia, Mas é necessério aqui consideramos outros elementos. Em primeiro lugar, para os francos a guerra era também um negécio, uma forma de ampliar sua riqueza em terras, gado € tesouros diversos. Isso valia tanto para os reis quanto para os gucrreiros em geral, sobretudo os mais poderosos dentre eles e que figuravam como. fiéis companheiros dos monarcas merovingios, seus /endes ow antrustiées. A partilha do butim ampliava as fortunas particulares e permitia aos reis manter scus guerrciros ¢ recompensar alguns de mancira especial, com terras ¢ grandes riquezas. Assim formou-se uma aristocracia franca, que gradativamente fundiu-se A velha aristocracia galo-romana. As guerras merovingias agiam como um mecanismo de redistribuigio de riqueza no interior de cada reino. Por isso nao havia muita diferenga em fazé- a contra povos vizinhos ou contra outro reino franco. Além disso, como observa Ian Wood (1994: 99-101), 0s conflitos entre reis merovingios, derivados da competicio pelos territérios advindos das partilhas sucessérias, absorviam a competicio entre faccdes aristocraticas rivais. Reconhecia-se 20s descendentes de Clovis dircito exclusivo ao titulo régio, mas a pluralidade de RUIZ-DOMENEG, José Borique e COSTA, Ricardo da (coords). Minaita ‘La caballeri yc ate de Is guerra en el mundo antiguo y medieval. Diciembre 2008/1SSN 1676-5818 reinos oferecia espaco para que as rivalidades aristocraticas se materializassem no apoio a este ou aquele rei (ou pretendente ao trono). A extingio de ramos da linhagem merovingia, em boa parte devido a tais guerras, abriu caminho para a definiclo dos contornos mais precisos de um reino franco na Galia. Ou seja, as chamadas guerras civis, por mais destrutivas que tenham sido em termos materiais, contribufram para a unidade franca: “As guerras civis merovingias, pelo menos no século VI, eram centrfpetas a0 invés de centrifugas” (WOOD, 1994: 100; tradugio nossa). IL. Gregério, bispo de Tours FE. digno de nota que, mesmo considerando a perspectiva delineada por Jan Wood ¢ indicada acima, os conflitos entre reis merovingios continuam a ser pensados como guerras civis. Isso pressupde uma unidade em torno de um Fstado, a qual € ameagada pelo confronto violento entre facgdes tivais. Tal no parece ser 0 caso dos reinos francos dos séculos VI e VII. A identifi das guerras entre merovingios como civis é no entanto, bastante antiga Deve-se a uma testemunha ocular de boa parte delas, Georgius Florentius Gregorius, bispo de Tours entre 573 ¢ 594, ano de sua morte. Nascido por volta de 538, em Clermont (Auvergne), Gregétio vinha de uma das familias senatoriais da Gélia, titulo do qual ele muito se orgulhava. Sua parentela, sobretudo do lado materno, comportava varios bispos. As sés episcopais de Langres, Lyon ¢ Tours foram governadas por parentes de sua © mais famoso dele: avd, 0 bispo Gregorio de Langres (m.539), jA entio venerado como santo. tendo sido seu Fm sua homenagem é que Georgius Florentius adotou o nome pelo qual seria conhecido.’ Tendo perdido o pai por volta dos oito anos de idade, Gregorio esteve em sua infincia bastante ligado a seus tios Galo (m.551) e Niceto (m.573), respectivamente bispos de Clermont ¢ Lyon. Essa forte tradigio familiar cclesiastica conduziu Gregétio rapidamente a0 seio do clero, inicialmente como auxiliar de seu tio Niceto, em Lyon, Por volta de a diécono dessa Igreja. O mesmo caminho fora seguido por seu irmio mais velho, Pedro, diacono em Langres junto ao bispo Tetricus, seu tio- avé.” A partir de 572 iniciou-se um dos mais movimentados perfodos para a familia de Gregério, no tocante a suas pretenses episcopais. Nesse ano 5 Georgius era 0 nome de seu avé paterno Florentius o de seu proprio pai ® Galo era irmao de seu pai e Niceto de sua mie, Armentéria. “Tetricus era filho do outro Gregério, que fora bispo de Langres entre 506 ¢ 539. 2B RUIZ-DOMENEG, José Borique e COSTA, Ricardo da (coords). Minaita ‘La caballeri yc ate de Is guerra en el mundo antiguo y medieval Diciembre 2008/1SSN 1676-5818 morreu Tétrico de Langres, ¢ no ano seguinte faleceram os bispos Niceto de Lyon ¢ Eufrénio de Tours, este tiltimo primo da mae de Gregorio. A tradigao familiar poderia ser mantida pelo acesso dos irmaos Pedro ¢ Gregério as fungdes episcopais. A sucessio em Langres nfo foi favorével a Pedro, que acabou assassinado dois anos depois por conta das rivalidades entao surgidas (LH V,5).* Em Lyon a oposigao a Niceto inviabilizou qualquer pretensio de Gregério em vir a sucedé-lo. Mas a morte de Eufrénio em Tours no mesmo ano criou uma nova oportunidade para Gregério. Contando com o favor do rei Sigiberto I (561- 575) ¢ de sua esposa Brunilda, bem como apoiado por Radegunda — asceta famosa que fundara um mosteiro feminino em Poitiers — Gregorio tornou-se bispo de Tours em 573 (VENANCIO FORTUNATO, Carmina I, 5,3). A frente da igreja de Tours ele tomou parte em varios eventos politicos que marcaram 0 século VI. Na sua época a Gélia era disputada pelos netos de Clovis, filhos do rei Clotério (511-561)."" Em 575 0 rei Sigeberto — que dominava a Tourraine — foi assassinado, passando a regiio para 0 controle de seu irmao Chilperico (561-584). Gregério, antigo aliado do falecido rei, teve de enfrentar a animosidade do novo senhor, tendo mesmo sido acusado de conspirar contra cle € por isso levado a julgamento (LH V, 49). Em 584 Chilperico foi assassinado ¢ a posigio de Gregério tornou-se mais estivel. Ele ganhou a confianga do rei Gontrao (561-392) ¢ atuou mesmo diplomaticamente nas negociagdes entre este ¢ Childeberto IT (575-595). Além de sua atuagio politica ¢ pastoral, Gregério de Tours dedicou-se difusdo do culto dos santos ¢ suas reliquias — especialmente $0 Martinho, patrono de Tours e Sio Juliano de Brioude, mértir cuja meméria era venerada * Pedro conseguira fazer sucessor de Tetricus um parente de ambos, Silvestre, que morreu pouco tempo depois de assumir a citedra episcopal. O filho de Silvestre responsabilizou Pedro pela morte de seu pai e por isso 0 matou. ° Sigeberto I (561-575) era filho de Clotitio I (511-561), este por sua vez filho de Clovis (481-511). Radegunda (m.587) fora casada com o rei Clotirio, mas conseguira permissio do matido para deixar a vida conjugal ¢ abragat a carreira monastica " Clotitio conseguira em 558 unificar os reinos francos, visto estarem extintas as descendéncias de seus irmios Teuderico, Clodomiro © Childeberto. Os quatro haviam herdado os dominios de Clévis, em 511. A morte de Clotario (561), uma nova partilha sucesséria fez reis seus filhos Sigeberto, Gonteio, Cariberto e Chilperico. Morrendo Cariberto, em 567, iniciou-se um conilito entre os demais. ™ Childeberto IT (575-595) era filho de Sigeberto T e disputou o poder com Gontrio © mais tarde com Clotitio II (584-629), filho de Chilperico. Ao lado da disputa entre os reis ficou famosa a guerra entre as rainhas Fredegonda (vitiva de Chilpetico ¢ mie de Clotatio I) ¢ Brunilda (mie de Childeberto Il). Apés anos de conflito, Clotitio II reunificou os reinos francos em 613. 24 RUIZ-DOMENEG, José Borique e COSTA, Ricardo da (coords). Minaita ‘La caballeri yc ate de Is guerra en el mundo antiguo y medieval Diciembre 2008/1SSN 1676-5818 em Clermont — trabalhando também na restauragio ¢ edificagio de igrejas em Tours, Foi igualmente um ativo escritor, como ele mesmo atesta ao final de sua obra mais conhecida: “Fu escrevi dez livros de histérias, sete de milagres, um sobre a vida dos Padres e comentei o Saltério em um livros também escrevi um livro sobre os oficios eclesiisticos” (LH X,31).” As principais obras de Gregério que nos chegaram completas sic: = Decem Libri Historarum (enais conhecida como Historia Francoran). "Liberin Gloria Martyrum "Liber in Gloria Confssorum. = Liber de Passione et Virtutbus Sancti lliant Martyrs, = Libr de Virttibus Sancti Martini Episcopi (4 livros). "Liber Vitae Patrum (NP, "De cas stelaran ratio, Para nossos propésitos aqui nos interessa, sobretudo, a primeira dessas obras, da qual agora trataremos em particular. Como vimos na passagem reproduzida acima, Gregério identifica sua narrativa simplesmente como as “histérias”. Esse seria 0 titulo mais adequado que poderiamos Ihe atribuir: Historiae ou Libri Historiarum. A denominagio tardia Historia Francorum, contudo, tomnou-se de uso corrente, apés manipulagées do texto original gregoriano, ja no século VIL" Nao se trata aqui apenas de uma questio de identificagao. Ao se tomar o relato de Gregério como uma Histéria das Francos se esté atribuindo a0 autor uma intengio que ele nao demonstrou ter, pois a narrativa gregoriana nao se resume 4 histéria do povo franco, sua origem e ascensio na Gilia, como tal titulo faria supor."* Na verdade trata-se de um texto com ambigGes muito mais amplas. Inicia-se com a criagio do mundo ¢ chega até ao registro de acontecimentos dos tempos do proprio autor. Mas & medida que 0 relato avanca no tempo ele focaliza cada vez mais a Galia ¢ consegiientemente 0 povo que a dominou a partir do século VI, facilitando sua identificagio como Historia Francorum. Gregério de Tours compés os Libri Historiarum — assim como a maior parte de seus escritos — entre 580 ¢ 590. Trata-se de uma narrativa extensa, cujos livros foram organizados da seguinte form: © “Decem libros historiarum, septem miraculorum, unum de Vitis Patrum seripsi, in Psalter eractatum librum unum commentatus sum; de Cursibus etiam ecclesiastieis unum librum condicl”. Para uma discussio acerca do titulo e da hist6ria textual dos Libri Historiarum veja-se W. Goffart(1987), “A ‘history of the Franks’ had not been Gregory’s goal, but that is what his seventh- century public wished to read” (GOPFART, 1987, p.65). 25 RUIZ-DOMENEG, José Borique e COSTA, Ricardo da (coords). Minaita ‘La caballeri yc ate de Is guerra en el mundo antiguo y medieval Diciembre 2008/1SSN 1676-5818 + I:da criagio do mundo 4 morte de Sio Martinho (397). = Il: do episcopado de Bricio (sucessor de Martinho como bispo em Tours) 4 morte de Clévis (511). + Ikeda sucessio de Clévis & morte do rei Teudeberto, seu neto (548). + IV: do reinado de Clotitio I a0 assassinato do rei Sigiberto (575). " Vereinados de Childeberto II ¢ de Chilperico. + Vizos tltimos anos de Chilperico (assassinado em 584). + VIL-X: reinados de Childeberto Il e Gontrio (592).”" bastante significativa a diferenga existente entre os quatro primeiros livros ¢ og scis restantes, em termos de duragio do periodo abordado. No livro 1 virios milénios so condensados em algumas paginas. O livro II ocupa-se de cerca de uma centena de anos, enquanto nos demais esse periodo vai decrescendo. Essa concentragio permite uma apresentagio mais minuciosa dos eventos presenciados pelo proprio autor, ou que sobre cle tiveram grande reflexo. Essa mudanga de ritmo é acompanhada por uma modificagio na forma de composigio do relato, Os livros de I a IV estio calcados no modelo das cxénicas universais, remontando a Eusébio de Cesaréia, Jerdnimo, Paulo Ordsio © Sulpicio Severo, textos, aliés, indicados por Gregério como fontes por ele utilizadas para compor sua narrativa (LH 1, Prolggus; 1, 73 11, Prolegu) © livro Ve os seguintes apresentam-se sob um outro formato, Neles Gregério aparece como © cronista que acompanha, ano apés ano, os eventos que marcaram seu tempo. O pano de fundo é sempre a luta pelo poder real ¢ as relagdes deste com a Igreja, mais especificamente © cariter ortodoxo ou nao da £é dos soberanos, de acordo com a doutrina catélica professada por Gregério,'® ‘Trata-se de uma narrativa bastante variada, Ao lado das guerras ¢ dos tratados diplométicos, cle relata intrigas palacianas, revela segredos de aleova, nos da noticias sobre epidemias, incéndios, fome, cometas que cruzam os céus, divulga hist6rias de milagres, narra a vida de homens por ele considerados santos, registra diversas sucessdes episcopais ¢ nos poe em contato com a vida na cidade de Tours © Qs tltimos eventos mencionados por Gregério situam-se no ano 592. Ao final da narrativa ele acrescentou uma lista recapitulativa dos bispos de Tours, terminando com seu proprio episcopado. Isso traz.a data da conclusio definitiva da obra para 0 ano 594, meses, antes da morte de Gregério, ocorrida em 17 de novembro de 59% (ODO DE CLUNY, Vita Gregori, 26) " Empregamos aqui o adjetivo catélico no sentido que Ihe atsibui o proprio Gregorio, que assim se define para explicitar sua fidelidade ao credo niceno. (LH I, Prologus).. 26 RUIZ-DOMENEG, José Borique e COSTA, Ricardo da (coords). Minaita ‘La caballeri yc ate de Is guerra en el mundo antiguo y medieval. Diciembre 2008/1SSN 1676-5818 Fi provavel que os livros de I a IV constituissem quando de sua redagio uma obra completa, destinada a circular ainda durante a vida de Gregério. Eo que sugere Martin Heinzelmann (2001: 108-115), que leva em conta os seguintes fatores: a significativa diferenca entre o intervalo de tempo coberto por esses livros € © outro bloco (V-X); os indicios da existéncia de um fecho da narrativa ao final do livro TV, devido a presenca de uma recapitulagio do cémputo dos anos transcorridos desde a criacio do mundo até a data de encerramento desse livro, 0 que nio ocorre nos demais; a existéncia de dois prologos antes do inicio da narrativa, um geral ¢ outro especffico para o livro I, esse iiltimo servindo na verdade como introdugio para a narrativa em quatro livros; a omissio do nome de um monge ao qual Gregério atribui um milagre, pois estando © mesmo ainda vivo poderia ser tentado pela vangléria (LHIV, 34) Por outro lado, os livros V a X seriam destinados 4 publicagio péstuma, Nao por acaso é justamente neles que a critica do bispo de Tours aos reis de seu tempo € mais aguda, por vezes bastante mordaz. A discérdia ¢ a guerra figuram nesse contexto como temas fundamentais. I, hora de examinarmos mais de perto o tratamento dispensado por cle a tais temas, IIL. Bella Civilia: guetta, pecado e castigo na visio de Gregério de Tours De certo modo, a guerra surge como um dos clementos ordenadores das Historiae de Gregério de ‘Tours como um todo. Ao anunciar seus propésitos 0 autor assim se expressa: “Ao escrever as guerras dos reis com os povos inimigos, dos martires com os pagios, das igrejas com os hereges, descjo primeiramente professar a minha fé, para que aquele venha a ler nao duvide ser cu catélico”.” Mas notemos que dos tipos de guerras mencionados dois remetem 20s conflitos religiosos, dentro dos quais o autor se insere a0 professar sua f@. Assim, ja na abertura de sua narrativa, Gregério sinaliza seu foco principal: a ordem cristi. Considerando essa perspectiva, o material relativo ao rei Clovis assume um papel de especial importincia dentro da narrativa. O caréter guerreiro desse rei € anunciado por Gregério de Tours ja ao registrar scu nascimento: “Ele foi grande ¢ cminente guerreiro” (LH 11,12)."" Aliés uma passagem anterior j4 destaca as vitérias de Clévis, como confirmacio da nobreza de sua linhagem (LH I1,9). Toda a narrativa do reinado de Clovis se di num ambiente de Scripturus bella regum cum gentibus adversis, martyrum cum paganis, eclesiaram cum hereticis, pius fidem meam proferze cupio, ut quiligiit me non dubitet esse catholicum”, "Hic fait magnus et pugnatur egregius” RUIZ-DOMENEG, José Borique e COSTA, Ricardo da (coords). Minaita ‘La caballeri yc ate de Is guerra en el mundo antiguo y medieval Diciembre 2008/1SSN 1676-5818 guerra, Na verdade, esse cendrio figura na maioria dos episddios que compéem o segundo dos Libri Historiarum. Invasbes ¢ perseguigses religiosas ocupam boa parte dos capftulos iniciais desse livro, compondo um quadro caético para a Gala, Os francos se inserem nese contexto, dispersos sob a lideranga de varios reges ariniti (LHI, 9) € vivendo no paganismo (LH H, 10). A ascensio de Clovis nio muda significativamente 0 quadto, pois ele € descrito como um chefe pagio de tropas que saqueavam igrejas (LH I, 27)."” Uma mudanga qualitativa verifica-se somente quando da conversio de Clévis, cujo lance decisivo se d4, na versio gregoriana, no campo de batalha: na iminéncia de uma derrota frente aos alamanos, o rei franco decide apelar a Jesus Cristo, seguindo 0 exemplo de sua esposa Clotilde (m.548), uma princesa burgiindia catélica (LH i, 30)." Convertido, Clovis ¢ batizado (c.496), tornando-se para Gregério de Tours comparavel ao imperador Constantino, cuja conversio trouxera a Ipreja para 0 interior da ordem imperial romana: “Como um novo Constantino ele se aproxima da pia batismal, para se curar da doenca de uma velha lepra e se purificar com gua fresca das manchas s6rdidas dos feitos passados.” (LH Il, 3121 O significado dessa mudanga se toma claro na seqtiéncia do relato gregoriano sobre o reinado de Clévis, sobretudo no tratamento dado 4 campanha dos francos contra os visigodos. No ano 507, em Vouillé, nas proximidades de Poitiers, 0 rei dos visigodos Alarico II é vencido € morto pelos francos. No relato gregoriano essa contenda é posta sob o signo de uma verdadcita guerra santa, decidindo-se o rei franco pela luta com o intuito de debelar o arianismo da Galia, cuja porgio ao sul do Loire era dominada pelos visigodos: “Suporto com muito pesar que esses arianos detenham uma parte das Gélias. Marchemos com a ajuda de Deus, e quando os tivermos vencido submeteremos essa terra 4 nossa dominagio” (LH 11,37). “Eo tempore multae aeclesiae a Chlodovecho exercitu depracdatae sunt, quia erat ille adhuc fanaticis erroribus involutus”. ® A conversio eo batismo de Clévis suscitaram inimeras controvérsias e uma ampla bibliografia, Para uma sintese das princpais questdes vejam-se Geary (1988), Rouche (1996), Wood (1994) * “Procedit novos Constantinus ad lavacrum, deleturus leprae veteris morbum sordentesque maculas gestas antiquitus recent latice deleturus”. # “Valde molestum fero, quod hi Arriani partem teneant Galliarum. Eamus cum Dei adiutorio, et superatis redegamus terram in ditione nostra”. Desde 418 os visigodos detinham o controle sobre terras na Galia. Etam cristios, mas com muitos outros povos geeminicos seguiam uma orientacio douttinisia subordinacionista (0 Filho — Cristo — seria inferior ao Pai), cuja formulagio original é atribuida a Ario (m.336), padee de Alexandria 28 RUIZ-DOMENEG, José Borique e COSTA, Ricardo da (coords). Minaita ‘La caballeri yc ate de Is guerra en el mundo antiguo y medieval. Diciembre 2008/1SSN 1676-5818 © conflito, segundo Gregério, se dé em meio a varias manifestagdes da protecio divina concedida aos francos, sobretudo por intermédio dos santos locais Hilério de Poitiers ¢ Martinho de Tours, outrora campedes na luta contra o arianismo. O ponto de partida é um trecho do Salmo 18, cuja leitura € ouvida na igreja de Sao Martinho, em ‘Tours, por emissérios de Clévis que para ld seguicam em busca de um sinal. A antifona cantada recorda a vitéria de Davi sobre Saul: “Tu me cinges de vigor para o combate, dobras sob mim meus agressores. Entregas-me a cabeca de meus inimigos, ¢ eu extermino os que me odeiam” ($1 18,40-41).” Cuidadosamente Gregério de Tours introduz elementos desse mesmo salmo a0 narrar a guerra entre francos € visigodos: Gregério de Tours - LHI, 37 Passagens do Salmo 18 Transposigao de um sio cujo nivel se| “La do alto ele manda apanhar-me, cle clevara; apés oragées de Clévis a | me retira das aguas imensas” (v.17) passagem € indicada por uma cerva que entra na agua, Em Poitiers, uma bola de fogo saida da | “Tazes luzir minha limpada. O Senhor igreja de Santo Hildcio brilha acima da | meu Deus ilumina minhas trevas” (v.29) tenda de Clovis. “Persigo meus inimigos, ea os aleango, Clovis mata Alatico no retorno antes de dertoté-los. Eu 08 massacro, Ao conseguem erguer se, tombam a meus pés”(v.38-39). Dois godos tentam ferir Clovis, que | “Tu me libertas dos meus inimigos; mals cescapa gracas velocidade do seu cavalo | ainda: fizes-me tsiunfar sobre meus agressores € me livras de homens violentos” (49) Em Angouléme, os muros da cidade |E contigo que wanspanho fosso, € desabam —mitaculosamente quando | com meu Deus que atravesso. a Clovis. e seu filho Teuderico se | muralha” (v.20). aproximam, sendo possivel assim a tomada da cidade. Apés a vitéria, Clovis ditige-se novamente a Tours ¢ na igreja de Sao Martinho saudado como consul ¢ Augusto, depois de desfilar pelas ruas em trajes e postura imperiais (LH I1,38).* Desse modo, num mesmo texto ® Utilizamos aqui a versio em portugués da Tradugio Ecuménica Biblica. O texto citado por Gregério &: “Praccinxisti me, Domine, vitutem ad bellum, subplantast insurgentes in me subtus me et inimicorum meorum dedisti mihi dorsum et odientes me disperdedisti” Nas citagGes seguintes utilizaremos o mesmo procedimento. % Ainda segundo Gregério de Tours, o titulo de cénsul tetia sido conferido pelo imperador bizantino Anasticio I (491-518), Para M. Rouche (1996: 315) seria, provavelmente, um consulado honorifico. Quanto a0 reconhecimento como Augusto, nao ha outra evidéncia que Ihe dé suport. 29 RUIZ-DOMENEG, José Borique e COSTA, Ricardo da (coords). Minaita ‘La caballeri yc ate de Is guerra en el mundo antiguo y medieval Diciembre 2008/1SSN 1676-5818 encontramos associadas a Clévis as figuras de Davi ¢ Constantino, 0 rei- guerreiro protegido por Deus e o imperador cristo. Sinaliza-se a associacio entre o ordenamento cristio da Gilia e a prosperidade do rei, que prossegue no texto gregoriano com o relato da consolidacio do poder de Clovis sobre todos os francos. Os demais reis, alguns deles parente proximos de Clovis, sio por ele mortos ou encontram a morte apés alguma intriga por cle tramada, Mas, na visio de Gregorio, tratava-se da ago divina: “Dia a dia Deus colocava seus inimigos sob sua mio ¢ aumentava o seu reino, porque ele caminhava diante dele com um coracio reto € fazia o que era agradavel a seus olhos” (LH I1,40).° Agradar a Deus, nesse caso, incluia fazer a guerra e estabelecer a unidade em torno do rei cristo. Exterminando scus inimigos Clovis “dilatava seu reino por toda a Gélia” (LH 1142). A mesma idéia repete-se no prélogo do livro II, numa comparacio entre a sorte de catélicos ¢ heréticos na qual sio contrapostos, entre outros, 0s reis Clévis ¢ Alatico: Aco, © primeito € infquo inventor dessa infqua seita, foi langado 20 Fogo do inferno, apés ter expelido seus intestinos numa latrina, O bem-aventurado Hilisio, defensor da Trindade indivisivel, por causa da qual foi exilado, foi restaurado em sua patria © no Paraiso. © rei Clovis, que a confessou, submeteu os mesmos hereges com a ajuda dele [Hilirio], estendendo seu reino por toda a Gilia. Alarieo, que a rejeitou, foi privado de scu rcino, de scu povo ¢, 0 que é mais importante, da vida cerna (LH IL, prologus)” O resultado desse atranjo narrativo é o estabelecimento de um paralelismo entre duas trajetérias, 2 da Gélia como um todo e a dos francos no seu interior. No primeiro caso, passa-se do caos 4 ordem e no segundo da dispersdo unidade. O que conecta ambas as trajet6rias é 0 cristianismo % «Prosternebat enim cotidiae Deus hostes eius sub manu ipsius et augebat regnum eius, €0 quod ambularet recto corde coram eo et facerit quae placita erant in oculs eius”. # «(4 regnum suum per totas Gallias dilatavit”. Nesse ponto Gregétio faz. uma curiosa observagio: Clévis lamentava nio ter mais parentes, mas pretendia na verdade eliminar possiveis concorrentes (*'Vae mihi, qui tamquam peregrinus inter extraneus remansi et non habeo de parentibus, qui mihi, si venerit adversitas, possit aliquid adiuvare’. Sed hoc non de morte horum condolens, sed dolo dicebat, si forte potuisset adhue aliquem repperire, ut interficeret” ~ LH 11,42). P“Agsius enim, qui huius iniquae sectae primus iniquosque inventur fait, interiora in secessum deposita, infernalibus ignebus subditur, Hilasius vero beatus individuae Trinitatis defensor, propter hanc in exilium deditus, et patriae et paradiso restauratur. Hanc Chlodovechus rex confessus, ipsus hereticos adiuturium eius oppraesset regnumque suum per totas Gallias dilatavit; Alaricus hane denegans, a regno et populo atque ab ipsa, quod magis est, vita multacur aetema”. 30 RUIZ-DOMENEG, José Borique e COSTA, Ricardo da (coords). Minaita ‘La caballeri yc ate de Is guerra en el mundo antiguo y medieval. Diciembre 2008/1SSN 1676-5818 catélico, triunfante na Galia mediante a aio do rei franco Clovis. A idéia de um reino franco unificado vincula-se assim 4 vigéncia de um ordenamento cristiio do mesmo, Assim o bispo de Tours faz coineidir o fim do livzo I com a morte de Clovis, sepultado em Paris na igreja dos Santos Apéstolos. O livro I fora concluido com a morte de Si0 Martinho (LH 1,48), 0 qual nas palavras de Gregério fora espalhara na Gilia a luminosidade crista (LH 1,39). Desse modo, dois marcos temporais se complementam no texto gregoriano, projetando sobre o século VI, o século de Gregorio, a imagem de um mundo ordenado, unido em torno do rei ¢ em torno da fé. a luz que Note-se que as guetras de Clovis sfo produtoras dessa unidade, 0 que no texto gregoriano se justifica por seu caréter de luta contra a heresia, Mas outro tipo de conflito era retratado por Gregério em cores bem mais carregadas. Referimo-nos aqui aos embates periddicos entre os sucessores de Clévis, sobretudo os da segunda geracio, com os quais o bispo de Tours conviveu e lidou ao longo de sua carreira. Tais conflitos nos sio apresentados como profundamente danosos 4 Gélia, ameacando-a novamente com o caos ¢ a dispersio, Fscrevendo para as geragdes futuras, Gregorio contrastava as desgracas de seu presente com as glorias dos tempos passados, oferecendo a seus leitores dois conjuntos de exemplos: 0 primeiro corresponde justamente ao relato dos feitos de Clévis; 0 segundo remete a natrativa dos sucessos e dissabores dos filhos deste, sobretudo 0 que se refere a0 rei Clotétio Em 511, apés a morte de Clovis, tornaram-se reis seus filhos Teuderico (511- 535), Clodomiro (511-524), Childeberto (511-558) ¢ Clotirio (511-561). Nos cingiienta anos que separam as mortes de Clévis € Clotirio os dominios francos foram ampliados, sendo conquistados 0 reino burgiindio ¢ a Provenga, bem como consolidado o controle sobre a antiga Aquitania visigética. Ao lado das campanhas que permitiram tal expansio também ocorreram conflitos entre os reis merovingios, mas sem grandes conseq As alteragdes nos limites de cada reino se deram por outras razées. Em 524 Clodomiro morreu no campo de batalha, combatendo os burgiindios (LH 1116). ‘ida assassinados pelos tios Childeberto e Clotirio, tendo o terceito fugido € se tornado monge (LH UL18) clas, filhos foram em se 31 RUIZ-DOMENEG, José Borique e COSTA, Ricardo da (coords). Minaita ‘La caballeri yc ate de Is guerra en el mundo antiguo y medieval Diciembre 2008/1SSN 1676-5818 Na casa de Teuderico a sucesso estendeu-se a duas geragdes, tendo reinado seu filho Teudeberto (535-548) e o filho deste, Teudebaldo (548-555), 0 qual morreu sem deixar herdciros. Também sem herdeiros morrcu em 558 o rei Childeberto, reunindo-se entao sob 0 poder de Clotitio todos os reinos francos. B interessante analisar como tal periodo é retratado por Gregério de Tours em seus Libri Historiaum, nao simplesmente em termos do relato dos eventos, mas sim considerando a dimensio valorativa presente no mesmo. Cabe destacar, em primeiro lugar, a ampliago do conjunto de atributos necessétios ao tei cristo. Ao lado do valor como guerteito, sio destacados agora a promogao da justica e da paz, a caridade, a piedade ¢ respcito a Igrcja ¢ scus ministros. Esse conjunto de qualidades aparece de maneira nitida no retrato do rei Teudeberto (LH IL, 25), mas clementos dispersos podem ser detectados em algumas atitudes atribufdas a Clotétio. Nesse iilimo caso agrega-se a0 conjunto de atributos a atitude penitencial do rei, arrependido por ter ordenado a morte de um de seus filhos (LH TV, 20-21) De modo geral © foco narrativo oscila entre Teudeberto ¢ Clotirio, acabado por se concentrar nesse tiltimo, Rei tinico, a0 menos nos seus itltimos anos de vida, é sobre ele que Gregério de Tours projeta novamente a imagem de Davi, cujo apetite guerreiro agora vem moderado por uma preocupacio cm evitar a guerra desnecesséria. A idéia bésica continua ser a confianga depositada em Deus, mas a belicosidade é colocada num plano secunditio. Mesmo a guerra contra os burgiindios é vista sob um prisma negativo. Bla ¢ atribuida a uma vinganga pessoal da rainha Clotilde, disposta a acertar contas com a casa real burgindia na qual sew pai fora assassinado (LH Il, 28). Por conta disso, ela estimula os filhos 4 guerra, mas disso resulta a morte de seu préprio filho, Clodomiro (LH TIT, 6). = O cariter perturbador da guerra fica evidente no selato de uma malograda batalha que seria travada entre Clotario, Childeberto € ‘Teudeberto, os dois ® Ha aqui um intrincado jogo de culpas ¢ punicées. Clodomiro era o segundo filho do casal Clovis ¢ Clotilde, mas o primogénito, Ingomiro, adoccera ¢ morrera pouco tempo depois de ser batizado, Segundo Gregorio de Tours, Cladomiro quase teve mesmo destino, mas, fora salvo pelas oragGes da mie (LH II,29). Assim o desejo de vinganea de Clotilde levow & morte aquele a quem suas oragées haviam salvado. Clodomito também era castigado por uma falha pessoal, visto nfo ter poupado da morte o rei burgiindio Sigismundo e seus filhos, por ele capturados. © fato se tomnava mais grave por serem todos parentes € ter Clodomiro desconsiderado as adverténcias de um abade (LH 11,6). © préptio Sigismundo expiava também sua culpa na morte do priprio filho, cujo assassinato autorizara (LH 1,5). 32 RUIZ-DOMENEG, José Borique e COSTA, Ricardo da (coords). Minaita ‘La caballeri yc ate de Is guerra en el mundo antiguo y medieval. Diciembre 2008/1SSN 1676-5818 iiltimos entio aliados, Uma tempestade impediu que as agdcs militares se iniciassem. Gregorio de Tours vé no episédio uma ameaca 4 integridade do reino franco. Em seu relato, o mérito da obtencio da paz é attibuido a duas figuras que Ihe eram caras: a rainha Clotilde e Si0 Martinho: “...] a rainha Clotilde dirigiu-se ao tumulo do bem-aventurado Martinho ¢ ali se prostrou em oracio e manteve-se em vigilia por toda a noite, orando para que nio se iniciasse uma guerra civil entre seus filhos” (LH TII,28).” Tia segunda vez que Gregério utiliza a expresso bellum oivile no livro TIT, mas a primeira em que cle o faz se referindo aos francos. Antes rotulara dessa forma o conflito entre os reis turingios Baderico ¢ Hermanefredo, eles também irmios, o qual teria sido instigado pela rainha Amalaberga: “A mulher de Hermenefredo, de nome Amalaberga, iniqua e cruel, disseminou a guerra civil ente os irmios” (LH Il, 4).” A semelhanga entre as duas passagens é significativa. No caso turingio, a rainha provoca a guerra fratricida, a qual acabou por conduzir 0 reino A ruina. J4 no caso dos francos, a rainha Clotilde toma a atitude inversa, pedindo a interv de Sao Martinho para estancar a guerra nascente. A mensagem do bispo de Tours é clara: o prosseguimento das hostilidades atentava contra a integridade do reino, o qual poderia ter o mesmo destino que se abatera sobre os turingios. © recurso A intervengio de Sio Martinho tem também um significado especial. A imagem desse santo nos Libri Historiarum & associada & garantia da justia, da paz e da integridade da Gélia. Gregétio descreve uma acio fulminante da parte de Sio Martinho em resposta As preces de Clotilde. Uma violenta tempestade fustiga os exércitos de Childeberto e do sobrinho, dispersando seus cavalos. Clotitio, porém, nao é atingido por uma gota sequer de chuva. {.] Chrotechildis regina |. beati Martini sepaleram adilt, ibique in oratione prosternitur, et tota nocte vigilat, orans ne inter filios suos bellum civile consurgeret” % “Hermenefridi vero uxor iniqua atque crudelis, Amalaberga nomine, inter hos fratres bellum civile disseminat”. Na verdade o conflito fratricida ente os turingios ja comegara, como indica 0 mesmo texto de Gregério, o qual informa que Hermenefredo assassinara outro de seus irmios, Bertacitio, pai de Santa Radegunda. Segundo Gregério, certa vez Amalaberga preparou para seu marido apenas a metade da mesa para a refeicio, explicando-the que assim merecia ser tratado quem se deixava privar da metade do reino (LH III}. A figura da rainha perversa, instigadora de discérdias e crimes nos palicios é recorrente na obra de Gregétio. 33 RUIZ-DOMENEG, José Borique e COSTA, Ricardo da (coords). Minaita ‘La caballeri yc ate de Is guerra en el mundo antiguo y medieval. Diciembre 2008/1SSN 1676-5818 © bispo de Tours conclui o relato do episédio afirmando mais uma vez que tudo acontecera por meio da rirtus, do santo, a qual se manifestara gracas As oragées de Clotilde. O milagre martiniano sinaliza que Clotario passara a ser favorecido por Deus, em quem ele depositara toda sua confianga: (totmgue spem suam in Dei pietatem transfundens — LEA 11,28). A imagem davidica retornava desse modo 4 caracterizagio de um merovingjo. © campo de batalha também serviu a Gregério para mostrar a prudéncia € devosio de Clotério. O bispo de ‘Tours nos mostra o rei procurando evitar a todo custo um combate contra os saxdes, os quais apés uma revolta haviam pedido paz (LH IV,14). Clotério alerta seus guerreiros para nfo pecarem contra Deus (ne forte peecemus in Dewn), insistindo na guerra; no sendo atendido ele volta A carga, advertindo-lhes que poderiam provocar a ira divina (ne super nos Dei ira concitetw), finalmente, diante da persisténcia de seus guerreiros, o rei declara nio estar 0 direito do lado dos francos na questio (verbum enim directum non babemu:), afiemando que partitia para 0 combate, mas contra sua vontade. Os francos ameagam mesmo matar seu rei para forcé-lo A guerra, a qual redunda num desastre. A imagem positiva de Clotirio é assim reforgada, mediante sua caracterizagio como um rei que procurava cumprir a vontade divina e velava pela paz em seu reino, ponto culminante da trajetéria do rei Clovério nos Libri Historiarum sitaa-se também no relato de um episédio de guerra (LH IV,17; IV,20). Por volta de 555, Chram, filho de Clotério, revolta-se contra © pai. Inicialmente alia-se a0 tio, 0 rei Childeberto, mas apés a morte deste (558) une-se aos bretdes da Atmérica, regio nominalmente submetida aos francos mas que se conduzia de mancira bastante auténoma. Em 560 Clotirio liquida seus adversatios, exterminando Chram e sua familia, No texto gregoriano, quando Clotério se prepara para atacat Chram no ano 560, é inserida uma significativa comparacio: rei Clotitio avangava qual um novo Davi prestes a se bater conta Absalio seu filho, se lamentando ¢ dizendo: “Olha, Senhor, do céu ¢ julgue minha ‘causa, porque é injustamente que sofro os ultrajes da parte de meu filho, Olha € julgue justamente, e impte o mesmo juizo que outtora impuseste entre Absalio ¢ seu pai Davi” (LH TV, 20). * “batque Chlothatius rex tamquam novus David contra Absolonem filium pugnaturus, plangens atque dicens: 'Respice, Domine, de caelo et iudica causam meam, quia iniuste a filio iniurias patior. Respice, Domine, et iudica iuste, illudque inpone iudicium, quod quondam inter Absalonem et patrem cius David posuist ”. A revolta de Absalio contra 34 RUIZ-DOMENEG, José Borique e COSTA, Ricardo da (coords). Minaita ‘La caballeri yc ate de Is guerra en el mundo antiguo y medieval. Diciembre 2008/1SSN 1676-5818 Mais uma vez 0 que aparece em destaque é a questio da unidade do reino. Chram representava a sedigao, Clotario a ordem. Nesse contexto a imagem davidica ressurge com forca, tal como antes ocorrera no caso de Clévis. Ao mostrar o rei em oracio e comparé-lo explicitamente a Davi, Gregério projeta sobre cle tanto a imagem do rei hebreu quanto a de Clivis. Aos olhos do bispo de Tours, o rei procurava fazer a vontade de Deus, eliminando a ameaca da fragmentacio. Note-se que a guerra entre Chram € seu pai se dd apés a morte de Childeberto, cujo reino fora anexado por Clotério. Tratava-se, portanto, da primeira vez apés © reinado de Clivis em que a Gélia franca cra governada por um iinico rei, A sedigfio de Chram representava o retorno das tendéncias desintcgradoras, contra as quais o novo Davi sc batia. Essa idealizago de Clotario nao deve ser tomada em sentido absoluto. conteitio, em varios episédios o rei é visto sob uma luz bastante desfavoravel. Assim ocorre quando Gregério alude 4 taxacio dos rendimentos eclesiasticos tentada por Clotério, contra a qual se insurge 0 entao bispo de Tours, Injurioso (30-546; LH IV,2). O mesmo pode ser dito do episédio do lodomiro (LH _III,18), ¢ das referéncias ao comportamento lascivo do rei, criticado por desposar varias mulheres. assassinato dos filhos de Nesse caso, as criticas sio mais severas por ter Clotitio se unido a vitiva de seu itmio (Guntheuca, mulher de Clodomiro — LH Ill, 6), & vitiva de seu sobrinho (Vuldetrada, mulher de Teudebaldo — LH IV, 9) ¢ a Aregunda, irm& de sua esposa Ingunda (LH IV, 3)."* Finalmente, 0 préprio episédio da morte de Chram projetava sobre Clotario uma sombra cruel. Mas em boa parte desses episédios desfavoréveis manifesta-se no relato gregoriano o apelo 4 imagem de Davi, na sua faceta pecadora ¢ penitente.”* Pois Clotério, embora pretendesse taxar os rendimentos eclesifsticos, cede diante da resisténcia do bispo; eriticado por se unir 4 vitiva do. proprio sobrinho ele dela se afasta; finalmente, um ano apés mandar matar seu filho Chtam, ¢ pouco antes da sua préptia morte, o tei se ditige como peregtino a0 Davi é narrada em 25m de seu pai 25m 18,5; 19,1). © Clotirio uniu-se ainda a uma mulher de nome Chunsina, que foi mie de Chram (LH Iva) “Em 28m 11 - 12,24 0 rei Davi aparece como adiltero, ao possuir a mulher de um de seus guerreiros, €assassino, visto orquestrar a exposicao do mesmo @ um perigo mortal, do qual cle nio escapa. Censurado pelo profeta Natan, Davi se arrepende © é poupado da morte, sendo contudo castigado pela perda do filho adulterino. 18. Segundo o texto biblico, Absalio foi mosto a contragosto 35 RUIZ-DOMENEG, José Borique e COSTA, Ricardo da (coords). Minaita ‘La caballeri yc ate de Is guerra en el mundo antiguo y medieval. Diciembre 2008/1SSN 1676-5818 timulo de Sao Martinho, cm Tours, numa atitude penitencial que visava o perdio de todos os pecados cometidos em vida (LH IV, 21). Bo ultimo gesto de Clotatio que Gregério de Tours registra em sua narrativa, concluindo mais uma etapa da trajet6ria dos reis francos na Gélia com a presenga combinada de Davi e Sio Martinho, o santo protetor e o rei fiel. Note-se que os reis dos tempos de Gregério eram todos descendentes diretos de Clotario, Desse modo a apresentagao deste ¢ de Clovis como exemplos, ambos associados 4 tradigao davidica, pode ser tomada como uma habil manobra que permitia ao mesmo tempo criticar ¢ enaltecer tais principes. Mas © alcance da associagao vai mais além. Recorrendo-se ao modelo davidico ressaltava-se igualmente a reveréncia devida para com os que falavam em nome de Deus, papel esse reivindicado por Gregério para os bispos. Além disso, 0 castigo de Davi soava como uma ameaca a toda a descendéncia de Clovis ¢ Clotério: “a espada jamais se afastari de tua casa [...] Eis que vou fazer surgir de tua prdpria casa a tua desgraca” (28m 12,10-11). Apés a morte de Clotitio, em 561, novamente passaram a existit quatro reis na Gélia: Cariberto (561-567), Gontrio (561-593), Sigeberto (561-575) € Chilperico (561-584), todos filhos de Clotério.* Inicialmente Chilperico ocupa Paris, mas de 14 é expulso pelos inmaos, realizando-se entio a partilha dos reinos (LH IV,22). Nos anos seguintes multiplicaram-se os confflitos entre os reis merovingios, para o que certamente também contribuiu a morte de Cariberto, em 567, quando entdo seus dominios foram redistribuidos entre os irmaos. Em 575 Sigeberto foi assassinado, 0 mesmo ocorrendo com Chilpetico em 584, Nos anos seguintes Gontrio ¢ Childeberto II (575-595), filho de Sigeberto, dominaram a cena. As relacdes entre ambos sempre foram tensas, mas sem redundar em guerra aberta. justamente sobre esse pano de fundo que se desenvolve a narrativa de Gregorio de Tours, entre os livros V-X de suas historias. Aparece ent Gre; forga o tema da guerra civil. Segundo o bispo de Tours, o responsivel pelo inicio da mesma seria Chilperico, que se aproveitara de estar 0 irmio ocupado em combater uma invaso dos avaros — equivocadamente identificados por Gregério como hunos — para atacar Reims ¢ outras cidades pertencentes a * Os és primeiros eram filhos de Ingunda, enquanto Chilperico exa de Ategunda. Essa diferenca talvez explique a movimentacao inical de Chilpesico, tentando garantie um reino para si contra uma possivel aitude excludente da parte de seus meio-irmaos. Io que pensa Tan Wood (1994: 92), que considera provavel que a rebeliio de Chram tenba se dado por motivos semelhantes, sendo cle dos filhos de Clotario o tinico cuja mae era Chunsina 36 RUIZ-DOMENEG, José Borique e COSTA, Ricardo da (coords). Minaita ‘La caballeri yc ate de Is guerra en el mundo antiguo y medieval Diciembre 2008/1SSN 1676-5818 Sigeberto: “O que é pior é que por esse motivo iniciou-se entre cles uma guerra civil” (LH IV,23). Deve-se observar que © que Gregério identifica como a guerra civil nfo é 0 ataque de Chilperico propriamente dito, mas sim um estado permanente de conflito entre os irmfos. A expressio bellum civile havia sido usada duas outras vezes nos livros anteriores, mas desse ponto da narrativa (LH IV, 23) até o prélogo do livro V ela aparece numa freqiténcia bem maior. No livro IV ha trés ocorréncias, além daquela citada acima, todas relacionadas a0 conflito entre Sigeberto ¢ Chilperico, estando também envolvido o irmao de ambos, Gontrio, Cada uma delas contém elementos fundamentais para a compreensio da narrativa de Gregério, razio pela qual merecem ser examinadas a parte. A primeira de tais ocorréncias (LH IV, 48) aparece logo apés o registro de um desentendimento entre Gontrio ¢ Sigeberto, antes aliados. O primeiro convoca um coneflio para que os bispos apontem de que lado estava a ra2%0, mas segundo Gregério os principes nfio dio ouvidos aos sacerdotes, como resultado da agio do pecado (peccatis facientibus), 0 que faz com que a guerra civil se come mais intensa (bellum civile in majore pernicitate cresere). Teadeberto, filho de Chilperico, invade varias cidades do reino de Sigeberto, inclusive Tours e Poitiers. A regio é devastada, igrejas sto pilhadas, clérigos mortos, comunidades monésticas dispersadas ¢ monjas sofrem ultrajes. Gregério afirma que a lamentagao nas igrejas de tais lugares foi maior que nos tempos da persegui¢io de Diocleciano aos cristios. Ha aqui um elemento novo. A guerra nfo apenas traz desgragas, mas é sinal de uma punigio, Ao comparar a devastagao da Tourraine 4 perseguigio de Diocleciano, Gregério concentra todo o foco do relato na violéncia sofrida pela Igreja. Esse era o pior ultraje, maior que a destruicio das terras ¢ propricdades. Mas fora o pecado, a principio atribuido aos reis, que provocara tais sofrimentos. Isso é explicitado no capitulo seguinte (LH IV,49), no qual Gregério se pergunta por que tanto sofrimento afligira as pessoas dessa época, propondo que se busque a resposta numa comparagio entre o que era feito entio € 0 que fora praticado pelas geragies anteriores: F ainda nos perguntamos com estupor ¢ admiragZo por que tantas desgragas cairam sobre eles. Mas recorramos ao que seus pais praticaram e ao que eles fizeram, Aqueles, apés a pregacio dos bispos, deixaram os templos pelas igrejas; estes cotidianamente tiram seu butim das igrejas; aqueles veneravam de todo 0 coragio € escutavam os bispos do Senhor; estes nao $6 no os escutam, ° “Fx hoc enim inter eos, quod peius est, bellum civile surrexi” 37 RUIZ-DOMENEG, José Borique e COSTA, Ricardo da (coords). Minaita ‘La caballeri yc ate de Is guerra en el mundo antiguo y medieval. Diciembre 2008/1SSN 1676-5818 is também os perseguem; aqueles enriqueceram igrejas € monastério 8 dilapidam e os derrubam." estes O texto é significativamente ambiguo. As geragées em questio tanto podem ser dos reis, quanto dos francos, ou ainda da populagio da Gélia como um todo, O que fica em destaque € um movimento de retorno ao pecado, mas agora dentro de uma sociedade cristi. Por isso no importava distinguir francos ¢ galo-romanos, ou mesmo principes ¢ stiditos. Todos eram solidétios no pecado € no castigo. A expresso peccatis facientibus conecta-se As tantae plagae que se abateram sobre as cidades devastadas. Evidentemente os rcis tém aqui um papel central. Ficl 20 modelo vétero-testamentitio, Gregério vé os principes merovingios como 0 atores principais do drama que resultara em morte e destrui¢io. A histéria dos reis de Israel ¢ Jud fornecia numerosos exemplos de como a fidelidade do monarca aos preceitos divinos conduzia & felicidade do povo, 20 p: a atitude contréria produzia a ruina do reino, Mas, tanto no Israel biblico como na Gélia de Gregério, nio se tratava do reflexo de uma agio, mas da nogio de solidariedade entre rei ¢ reino, aqui entendido nfo sé no aspecto territorial, mas, sobretudo, englobando o conjunto de siiditos. ue © pecado do rei era o pecado do povo, ou antes, 0 pecado do rei sintetizava uma situagio de pecado do povo. A Galia pecava e seus reis a conduziam & guerra civil, eis a sintese da mensagem que Gregério procurava transmitir com 6 relato de tal episédio. © remédio para tal calamidade é indicado por Gregério no mesmo capitulo (LH IV,49), a0 telatar o ataque a0 monastério de Latta Dos soldados que atacaram o estabelecimento teligioso somente um sobreviveu, segundo Gregério aquele que demonstrou respeito por Si0 Martinho de Tours, em nome de quem a comunidade monfstica se reunia. Ao mesmo tempo em que falava das conseqiiéncias do pecado para a populagio da Glia, o bispo de Tours procurava mostrar que a devocio aos santos, em especial Sao Martinho, representava 0 caminho para o perdio. Os desdobramentos da luta entre os irmios € teis merovingios nos leva préxima ocorréncia de bellum civile no liveo IV. Sigeberto decide atacar Chilperico, conseguindo mediante ameagas a neutralidade de Gontrio. No % “Et adhuc obstupiscimus et admiramur, cur tantae super eos plagze inruerint. Sed recurramus ad illud quod parentes corum egerunt et isti perpetrant. Ili post praedicationem sacerdorum de finis ad ecclesias sunt convers;isticotidie de ecclesis praedas detrabunt. Illi sacerdotes Domini ex toto corde venerati sunt et audierunt; isti non solum non audiunt, sed etiam persecuntur. Illi monasteria et ecclesias ditaverunt; isti cas diruunt ac subvertunt”. 38 RUIZ-DOMENEG, José Borique e COSTA, Ricardo da (coords). Minaita ‘La caballeri yc ate de Is guerra en el mundo antiguo y medieval. Diciembre 2008/1SSN 1676-5818 dizer de Gregério de Tours, Sigeberto preparou uma guerra civil (bellum civile ordiens — LH TV, 49), mas o imo que setia alvo do ata cidades ocupadas ¢ esquivou-se do combate, 0 que nio evitou que Paris fosse atacada ¢ incendiada, A temida guerra civil foi, contudo, evitada. Para Gregorio, isso se deveu a mais um milagre de Sio Martinho, o que teria sido confirmado pela cura de trés paraliticos em ‘Tours, no mesmo dia em que os reis celebraram a paz (LH IV, 49). recuou, devolveu Na verdade, a cura propriamente dita niio é mencionada nessa passagem, a qual se limita a registrar que os trés doentes foram enviados a Tours. Ora, no seu De Virtutibus Sancti Martini Episeopi (115-7) Gregério descreve as mesmas curas, indicando procedéncia dos doentes (Auxerre, Orléans, Bouges). Trés paraliticos, trés reis, trés curas. Seria um sinal de reunificagio? A dificuldade aqui reside no fato de que as trés cidades mencionadas faziam parte do reino de Gontrio, Raymond Van Dam (1993: 232) sugere, plausivelmente, que esse fato indica o reconhecimento por parte de Sio Martinho do papel de Gontrio como mediador do conflito. De qualquer modo, a cura da paralisia, ou seja, a recuperagao da capacidade de movimentagio do corpo do doente, é associada 4 contengio da guerra civil, uma espécie de paralisia do rcino, Novamer io Martinho o responsavel pela manutengio da paz, o que Gregério, no livro dedicado 4 narrativa dos milagres do santo, considera uma vitéria do mesmo (quad nullus ambigat hane etiam beati Antistitis fuisse victoriam).” A guerra civil € associada 4 docnga, sua suspensfo equivalendo a uma verdadeira cura, na qual se manifestava mais uma vez a virtus do santo protetor da Galia. B com um lamento que Gregério prepara a conclusio do livro IV: “Narrar essas guerras civis causa dor em meu espirito”® Trata-se do relato da morte de Teudeberto (LH IV, 50), 0 filho de Chilperico, & qual se segue © assassinato de Sigeberto (LH IV, 51). Um ano apés o acordo de paz celebrado com 0 Shilperico scla um pacto com Gontrio ¢ ataca novamente as cidades de Sigeberto. Na guerra que se segue, Teudeberto é morto. Por ocasifio de um enfrentamento anterior, ele havia sido feito prisionciro por Sigeberto, sendo. libertado apés jurar no mais lutar contra o to. irmio, © combate acima mencionado representava, portanto, a qucbra de um juramento, coisa grave aos olhos de Gregorio. A morte do principe indica no esquema narrative do bispo de Tours mais um exemplo de como o perjiirio recebia castigo fulminante. “Que ninguém duvide ter sido também uma vitéria do bem-aventurado bispo”” »* “Dolorem enim ingerit animo ista civilia bella referze”, 39 RUIZ-DOMENEG, José Borique e COSTA, Ricardo da (coords). Minaita ‘La caballeri yc ate de Is guerra en el mundo antiguo y medieval. Diciembre 2008/1SSN 1676-5818 Sigeberto retoma a ofensiva, apés mais uma vez conseguir retirar 0 apoio de Gontrio a Chilperico, Desrespcitando os termos do acordo firmado por ocasiao da morte de Cariberto, Sigeberto entra em Paris, enquanto suas tropas cercam 0 irmio em Tournai. © bispo Germano de Paris tenta convencé-lo a nao prosseguir com as hostilidades, mas © rei nfo Ihe dé ouvidos, segundo Gregétio de Tours em razio do pecado (peccatis jacientibus). Dias depois, Sigeberto é assassinado em Vitry (LH IV, 51) Gregétio de Tours conclui quarto de seus Libri Historiarum com o relato do assassinato de Sigeberto, frisando que © mesmo ocorrera apenas dezoito dias apés a morte de Teudeberto. ‘Tio ¢ sobrinho partilharam 0 mesmo castigo. Ambos haviam quebrado juramentos, € no caso de Sigeberto os conselhos de um bispo nao haviam sido escutados. A falta de Teudeberto havia sido anunciada alguns capitulos antes por Gregério, dando como razio. para mesma a ago do pecado (peccatisfacientibus— LH IV, 23) ‘A mesma expressiio — peccatis facentibus — & usada para explicar a conduta de Sigeberto. O pecado aparece impulsionando o rei a se manter irredutivel quanto a seu propésito de matar o irmfo, € é isso que © conduz 4 ruina. Ha, portanto, na visio do bispo de Tours, uma situacio de pecado na qual 0 rei esta mergulhado, razo pela qual ele no consegue agit de acordo com a vontade de Germano de Paris. © resultado, como numa bola de neve, é mais pecado. A associagio entre peccatis facientibus ¢ bellum civile tem por efeito apresentar a Galia dos tempos de Gregétio como que presa num circulo vicioso. O pecado nela enraizado € visto como a causa das guerras que a devastavam, mutrindo- se, porém, dos ddios gerados nas mesmas guerras. O pecado colocava em agio as forgas desintegradoras, capazes de reconduzir a Galia da ordem a0 caos. Nao por acaso, a0 longo dos demais livros que compéem sua natrativa, © bispo de Tours leva o Icitor a circular entre os diversos segmentos da sociedade em que vivia, descrevendo crimes, tivalidades ¢ 0 triunfo da discérdia. Consolida-se assim a imagem da Gilia pecadora, por cuja salvacio deveria trabalhar a Igreja. As conseqiiéncias politicas de tal construgao remetem ao papel do rei perante a sociedade, jf discutido acima. O discurso gregoriano coloca o rei A testa do povo, mas visceralmente unido a ele, inclusive no pecado. O rei peca com o povo € pelo povo. Com 0 povo, porque sua decisio individual pelo pecado resulta de uma situacio coletiva de entrega ao mesmo; pelo povo, porque é a acio objetiva do rei que trax. sobre seus stiditos as desgracas, a punicao pelos RUIZ-DOMENEG, José Borique e COSTA, Ricardo da (coords). Minaita ‘La caballeri yc ate de Is guerra en el mundo antiguo y medieval Diciembre 2008/1SSN 1676-5818 pecados. Dito de outro modo, todos pecam, mas 0 pecado do rei ultrapassa os limites da agio individual, aleangando a extensio do reino. O prélogo do livro V anuncia a permanéncia do tema da guerra civil como centro da narrativa de Gregério de Tours: “Me causa repulsa recordar a diversidade de guerras civis que tanto afligiram 0 reino e © povo franco” (LH V, prolegu:).” Na seqiiéncia desse texto 0 bispo de Tours deseavolve uma minuciosa critica acerca do comportamento ganancioso ¢ belicoso dos reis, causa da ruina dos povos. Sua argumentagio sustenta-se em exemplos oriundos de diversas fontes: a Biblia, a histéria romana, o relato de Paulo Orésio sobre os cartagineses ¢ a histéria das vit6rias de Clovis. Somente nesse preficio a expressio bellum civile aparece cinco vezes, superando 0 nimero de ocorréncias tanto nos livros anteriores quanto nos posteriores. Nao se registra, contudo, a presenca de peteats facientibus, mas & desenvolvida uma associacio entre guerra civil (bellum

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