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G. S. KIRK e J.E.RAVEN e M. SCHOFIELD 0 FILOSOROS PRESOCRATICOS Historia Critica com Seleccéo de Textos 4.° Edigaéo Tradugdo de CARLOS ALBERTO LOURO FONSECA SERVICO DE EDUCACAO FUNDACAO CALOUSTE GULBENKIAN | LISBOA CAPITULO VI HERACLITO DE EFESO ‘BATA E VIDA @88 Diogenes Laércio 1x, 1 (DK 22 A 1) HodxAewos Badowvos if, dc sees, “Hoduortos *Eyéows. obtoc Fupate wey nad viv évdeny nal &qnoo- Se Slopmdda. peyaldpowr 8& yéyove nag drtwaciy wal Sneodatns, ds 2 rob avyyodupatos abtob difhov, év & qnov (Ft. 40) Todvpadin véov Exe 0b biddoxer “Hotlodov ya dv édldake xai TTvdaydony adcls te Zevo- eared te ual “Exatatov .... (3) ... zat téhos juoarPowmioas xal éxnarioas Ze role égeon Suytato, das avtobpevos xai Bordvas. xal pércor nal bud todco xeortoumeie cig Bdegov varper eic doww xai rév iargdv aimyparodds Exovddveto et dbvauto & éxoupolac abypdr moujoo roy 68 pth ovriévtor eizéy cig Bobotasw xarogbéac th tév Bodlcwv déa Hamoey eatwodh}- ceca. obdér 68 dvbov 063° obras éxchebra Prods by EEjnorra. 190 Heraclito de Efeso, filho de Bléson (ou, no dizer de alguns, de Héracon). Atingiu a sua plenitude na 69.* Olimpiada. Foi excepcio- nalmente altivo e arrogante, como claramente se vé também pelo seu livro, onde diz: «O muito aprender no ensina a ter intelig&ncia; se assim fosse, teria ensinado Hesfodo e Pitagoras, ¢ ainda Xenofanes Hecatew» ... Acabou por se converter num misantropo, retirou-se do mundo e foi viver para as montanhas, e ai se alimentava de ervas € plantas. Contudo, tendo por este modo adoecido de hidropisia, desceu & cidade e perguntou aos médicos, por forma enigmatica, se eram capa- zes de converter em estiagem o tempo chuvoso. Como eles nao enten- dessem, enterrou-se num estabulo de bois, na esperanga de que a hidropisia se evaporasse com o calor do estrume; mas nem assim ele conseguiu alguma coisa, e findou os seus dias coma idade de sessenta anos. A informagao de que Heraclito se encontrava na sua acme, i.e., com a idade de quarenta anos, na Ol. 69 (504-501 a.C.) foi obtida, sem divida, no cronégrafo Apolodoro: a meia-idade de Heraclito é situada cerca de quarenta anos depois da suposta acme de Anaximenes e da partida de 188 Xenofanes de Célofon. Nao ha motivos sérios para por em diivida a data aqui proposta por Apolodoro, porquanto Heraclito, conforme nos diz Dis- genes, mencionou Pitagoras ¢ Hecateu, bem como Xendfanes 1, e talvez Parménides se Ihe tenha referido indirectamente (293; também o fr. 8, wv. 55 e ss., 302). No entanto, tém-se feito tentativas para situar a actividade filo- sfica de Heraclito em época posterior 4 que a data fornecida por Apolodoro podia razoavelmente sugerir, i.e., depois de 478 a.C. (e mesmo, o que é de todo improvavel, depois de Parménides); mas tais tentativas néo ganharam aceitacHo, e apoiam-se em hipdteses improvaveis, como a de qualquer indicio de governo auténomo, sugerido pela informagio do fr. 121, de que os Efésios tinham exilado o amigo de Heraclito, Hermodoro, so seria possivel em Fifeso depois da sua libertagio do dominio persa, por volta de 478. E pos- sivel que Heraclito tenha vivido mais do que os sessenta anos que lhe atri- buiu Apolodoro (idade com que tinham morrido também Anaximenes ¢ Empédocles, segundo a opinido de Aristételes), mas, mesmo assim, podemos aceitar provisoriamente que ele era de meia-idade pelos finais do século sexto © que a sua actividade filosdfica principal terminou por volta de 480. 1 Qaoristo no fr. 40 (citado em 190) «teria ensinado», nio significa necessaria- mente que todos os filésofos mencionados estavam mortos (em todo o caso, Xen6- fanes viveu até depois de 478), mas implica que todos eles eram amplamente conhe- cidos na altura em que Heraclito escrevia. Um outro fragmento, 129 (256; € pos- sivel que ele apresente até certo ponto uma nova redacc&o, mas nfo € espurio, yeja-se p. 226 n. 1), da a entender que Pitagoras ja tinha morrido. Segundo se diz, Pitdgoras «florescew» em 532/1 a.C. (p. 233), & talvez tenha morrido entre 510 e 505. ‘A Suda situa o nascimento de Hecateu numa data tio tardia como 520-516 a.C. Segundo o autor de sucess6es, Sdcion (Didg. L. 1x, 5, DK 22 4 1), havia quem con- siderasse Heraclito como discipulo de Xenéfanes. Sem contar com outros factores, esta opinido dificilmente pode ser sugerida pelo tom critico do fr. 40. A restante parte de 190 é citada como exemplo do género de ficgio biogrdfica que proliferou em redor do nome de Heraclito. Didgenes informa- -nos também de que Heraclito se recusou a fazer leis para os Efésios, prefe- rindo brincar com as criangas no templo de Artemis. A maioria destas historias baseia-se em bem conhecidos ditos de Heraclito; muitas delas tinham por fim ridicularizi-lo, e foram inventadas com intuitos malicio- sos por pendantes autores helenisticos, ressentidos com o seu tom de supe- rioridade. Por exemplo, a sua extrema misantropia é deduzida das cri- ticas que dirigiu contra a maioria dos homens (e.g, 194), o seu vegeteria- nismo, de uma referéncia 4 poluigao do sangue em 241, e a hidropisia que © vitimou, da sua assercéo «para as almas, a morte é transformarem-se em Agua», em 229. Heraclito foi conhecido como um obscuro proponente de enigmas, o que Ihe teria custado a vida, j4 que os médicos, que parece criticar no fr. 58 (p. 195, nada fizeram para o salvar. Diz-se que se enterrou 189 em estrume, porque afirmara, no fr. 96, que os caddveres sio mais despre- ziveis do que estrume; e a expresso «que se exala» refere-se 4 sua teoria das exalacgdes provenientes do mar (pp. 208 e s. e n.). Os tinicos porme- nores sobre a vida de Heraclito, que talvez possamos aceitar com seguranga, so: que ele viveu em Efeso, que descendia de uma antiga familia aristocré- tica 1, e que ndo manteve boas relagdes com os seus concidadaos. 1 Cf. 191 Didg. L. 1x, 6 onuciov & adrod rig usyahopgoatonc * Avro Péyns gnoiv &v Aiadozais: éxyagioa pag tabehpe ris Buotlelas. (Antistenes, nas Sucessbes, refere, como indicio da sua [de Heraclito] arrogéncia, que ele abdicou da «realeza» hereditéria em favor do irmio.) Nao hé razio aparente para que esta informac&o deva ser ficticia, Estrabao, 14, p. 633 Cas (DK 22 A 2), disse que os descendentes de Androclo, fundador de Efeso, continuavam a chamar-se «reis», e que tinham certos privilégios, como 0 de poderem ocupar os lugares da frente nos jogos. «QO OBSCURO» Timon de Fliunte, autor satirico do século terceiro a.C., apelidou Heraclito de aivxtijc, «aquele que se exprime por enigmas» (Didgenes L. 1x, 6). Esta critica, legitima, ao seu estilo deu origem, mais tarde, ao epiteto quase invaridvel de oxotewds, obscurus em latim (Cicero de _fini- bus u, 5, 15, etc.). Outra caricatura sua, comum no periodo romano, foi a de «fildsofo chorao». Este ultimo juizo é absolutamente trivial e baseia-se, em parte, nas referéncias humoristicas 4 ideia de que todas as coisas correm como rios (cf. e.g. Platéo Crdt. 440 C, os que acreditam no devir sao como pessoas com catarro), e em parte, no facto bem conhecido de Teo- frasto ter considerado Heraclito afectado de uedayzodla (Didg. L. 1x, 6), com o que, todavia, ele pretendia dizer «impulsividade» (veja-se a descrigéo de Aristételes em Eth. Nic. H 8, 1150 b 25), e nao «melancolia», no sentido posterior e moderno do termo. O LIVRO DE HERACLITO 192 Didgenes Laércio 1x, 5 16 62 pegdpevov adrod PrBAlov govt péy dnd t08 avvézxovtoc Hei pboewc, dujontas dé eis toes Adyous, eis te tov megi tod navtds xal xodutindy nai Deohoyixdy. (6) avédnue & ato sic tO tis *Aoréuidos teodr, de usr twec, émrydeboue doapéotepor yodpar Smeg of Svrduevor mgocioer abt nat po) &x tod dyuddove sdxatagedyntor Ff... rooudeyy 88 ddéav Zoye 16 obyyoapua de nat aigetiotis dx’ adtob yeréoPar tobe xdnBévrac “Hoaxlerretove. 190 192 O livro a ele atribuido chama-se «Sobre a Natureza», com base no seu contetido principal, e divide-se em trés discursos: Do Universo, Da Politica e Da Teologia. Dedicou-o ¢ colocou-o no templo de Artemis, segundo a opiniao de alguns, tendo propositadamente escrito de maneira bastante obscura, a fim de que s6 as pessoas de prestigio ¢ influéncia tivessem. acesso a ele, € nao fosse facilmente menosprezado pela populaca ... A obra teve uma tal reputacio, que dela surgiram discipulos chamados Heracliticos. Os antigos bidgrafos e historiadores da filosofia supuseram que todos os Pré-Socraticos escreveram um ou mais livros (embora houvesse dividas acerca de Tales, veja-se pp. 83 € ss.). Admitiram, evidentemente, que Heraclito escreveu uma obra, e Didgenes diz-nos que o seu titulo era «Sobre a Natu- reza». Este titulo foi regularmente atribuido as obras dos pensadores que Aristételes e os Peripatéticos designaram por «filésofos da natureza», e nao pode ser considerado como necessariamente auténtico em todos os casos: veja-se n. 1 na p. 102. ‘A divisio em trés secgdes nao era provavel- mente original e sugere que Didgenes, ou a sua fonte, estava a pensar numa edicio ou colectinea de méximas, provavelmente organizada em Alexandria, no seguimento de uma analise estdica das partes da filosofia Diels sustentou que Heraclito néo escreveu um livro propriamente dito. mas apenas deu expressiio reiterada a uma série de opinides cuidadosamente formuladas, ou yr@uou. Esta opiniaio tem encontrado poucos adeptos, mas & possivel que contenha algo de verdade. Os fragmentos que chegaram até és tém todo o aspecto de afirmagées orais, expostas de forma concisa < atraente, e por esse motivo facilmente memorizaveis; € nfo se parecem com excertos de uma obra redigida de forma continua. Contra esta opiniao se Jevanta o fr. 1 (194), uma frase estruturalmente complicada que muito se asse- melha a uma introdugio escrita de um livro. E possivel que, quando Heraclito alcangou fama de sabio, se tenha feito uma colecgfo das suas sentengas mais famosas, para a qual foi composto um prologo especial. Seja como for, os fragmentos que possuimos (e nem todos os de DK sao completamente auténticos) foram, na maior parte, obviamente estruturados como apotegmas orais, e ndio como partes de um tratado discursivo, facto que estava de har monia com as intengdes oraculares de Heraclito (veja-se p. 218)!. Tam- bém isto estava em concordancia com as suas opinides sobre 0 conhecimente divino (205 e 206) e sobre a incapacidade da maioria dos homens para serem sensiveis & verdadeira natureza das coisas, mesmo quando auxiliados por um logos ou explicagao (revelaco) como o do proprio Heraclito. O alvitre for- mulado em 192, de que os «Heracliticos», também mencionados por Pla- to e Aristételes, foram entusiastas do livro, é quase certamente uma con jectura; a sua importancia reside na ilagio de que nao houve nenhuma 191 sescolay de discipulos directos em Efeso?. Nenhum discipulo de nomeada se conhece antes de Cratilo, contemporfneo mais velho (segundo parece) de Platdo, que desenvolveu uma forma adulterada de heraclitismo, ao exa- gerar, e combinar simultaneamente, a crencga do Efésio na inevitabilidade da mudanga e a sua crenca (bem comum no seu tempo) no significado dos nomes. 1 Para uma interessante discussdo de todo este topico, sob um ponto de vista ligeiramente diferente, veja-se Kahn, The Art and Thought of Heraclitus (Cambridge, 1979), 3-9. 2 Apesar de 193 Platdo Teeteto 179 D xoddod xal Sei paddy elvar (sc. 4 udzy), GAdd neg pev thy "Joviar vad émdiSwor néuxodv. of yao tot ‘Hoaxhetrou éraigor yoonyota: todrov tof Adyou dia éogwpévac (CE. ibid. 179 x, ...adcoic ev toI¢ aegh vi» “Epecov.) ([O conflito] estd longe de ser ligeiro, mas na regitio da Jénia esté mesmo a aumentar grandemente. E que os companheiros de Heraclito apoiam esta discussdo com todo o.calor. (Cf. ... os dos arredores de Efeso.)) Todo este passo € intencionalmente humoristico, como certamente o 6 a maior parte das observacdes de Platao sobre Heraclito, ¢ as referéncias a localidades n&o carecem de ser tomadas & letra; qualquer um que empregasse aquilo que Platéo considerava como sendo um tipo de argumento, ao estilo de Heraclito, podia ser ironicamente associado com Efeso. Em todo o caso, Cratilo, 0 mais radical dos seguidores de Heraclito que Plato conheceu, n&o era nem de Efeso, nem sequer da Jonia. DIFICULDADES ESPECIAIS DE INTERPRETACAO Como se viu, Heraclito foi célebre na Antiguidade pela sua obscuri- dade. N&o raro, as suas afirmagdes eram incontestavelmente cripticas, talvez intencionalmente, e, segundo parece, nado foram grandes nem importantes os esforgos feitos por Plat&o e Aristételes para descobrirem o seu verdadeiro significado. Infelizmente, Teofrasto, de quem depende a tradigdo doxogrAfica tardia, baseou a sua interpretagio na de Aristételes. Nao parece que tenha tido acesso ao livro completo de Heraclito, ou mesmo (a avaliar, por exem- plo, pela omissio da mais simples referéncia a Heraclito no seu de sensu) a uma colecténea, verdadeiramente representativa, de m4ximas isoladas; de facto, ele queixou-se de que as afirmagées de Heraclito ou estavam incom- pletas ou eram inconsistentes. Os Estdicos alteraram ainda mais a tradi¢ao, ao adoptarem Heraclito como antiga autoridade sua sobre questdes de ordem fisica. Em alguns aspectos, desenvolveram com precisdo as suas ideias, como, por exemplo, no seu ideal de duodoyoupérms Civ, viver de acordo com a Natureza (cf. e.g. 195); em outros aspectos, contudo, fizeram uma readapta- cdo radical das opinides de Heraclito, a fim de satisfazerem as exigéncias particulares das suas préprias posigdes — por exemplo, ao atribuirem-lhe a ideia de ecpyrosis, a destruig3o periédica do mundo inteiro pelo fogo. As “ 192 nossas fontes posteriores ao fundador do Estoicismo, Zen&o de Cicio, aceita- ram esta interpretacao particular de Heraclito, que pode ser reconciliada com algumas das maximas que dele nos restam, e talvez tenha sido favorecida por Teofrasto, mas é incompativel com outras, e estd em total desacordo com a concepedo basica de Heraclito acerca da medida no processo.da mudanca natural: vejam-se, mais adiante, pp. 200-201 e n. na p. 207. No tocante a Platao e Aristételes, poucas sio as citagées verbatim de Heraclito que se encontram em ambos, nem estavam eles realmente interessados numa cuidadosa apreciagao objectiva dos seus predecessores mais antigos. Ocasionalmente, Plat&o menciona-o, principalmente num tom humoristico ou irénico e com insisténcia numa opiniado que, nos didlogos, Ihe é atribuida sem reservas, a saber, que «todas as coisas esto a fluim —advta det ou adyta yoget. Segundo Aristételes, em Met. A 6, 987 a 32, Plat&o foi influenciado na juventude pela importancia dada por Cratilo a este parecer. Mas todos os pensadores pré-socraticos foram impressionados pelo predo- minio da mudan¢a no mundo da nossa experiéncia. Heraclito, é claro, nado constituiu uma excepcao: de facto, talvez tenha expresso a universalidade da mudanga com mais clareza e mais dramatismo do que os seus predecessores; mas, para ele, o que tinha importancia vital era a ideia complementar de medida inerente & mudanga, a estabilidade que persiste através delae a governa. E possivel que Plato tenha sido simplesmente induzido em erro, especialmente pelos exageros sofisticos do século quinto, ao distorcer a importancia dada por Heraclito a este aspecto; quanto a Aristételes, aceitou a interpretagao pla- tonica do devir e exagerou-a ainda mais. Outras referéncias a Heraclito, em Aristételes, atacam-no pelo facto de negar o principio da contradicao, quando afirma que os contrarios sio «os mesmos». Trata-se, uma vez mais, de uma interpretagao errada de Aristételes, ao julg4-lo, anacronicamente, em fungaio dos. seus prdéprios padrées predominantemente Idgicos: com a expressio «os mesmos» Heraclito queria evidentemente dizer, ndo tanto «idénticos», como «nao essencialmente. distintos». Em face destas deficiéncias dos autores na valoracdo dos seus prede- cessores, € mais seguro tentar a reconstituig&o do pensamento de Heraclito, em primeiro lugar, com base nos fragmentos auténticos que chegaram até nés. Mesmo assim, nfio podemos esperar mais do que uma compreensio muito limitada, em parte porque Heraclito, conforme observou Aristételes, nao usou as categorias da Idgica formal, e teve tendéncia para descrever a mesma coisa (ou aproximadamente a mesma coisa) ora como um deus, ora como uma forma de matéria, ora como uma regra de conduta ou prin- cipio que era, ndo obstante, um constituinte fisico das coisas. Ele tinha, certamente, mais de metafisico que os seus predecessores jdnios, estes menos preocupados com a mecdnica do desenvolvimento e da mudanga, que com a realidade unificante a ela subjacente. 193 O PENSAMENTO DE HERACLITO (1) Os homens deviam tentar compreender a coeréncia subjacente das coisas: ela esté expressa no Logos, formula ou elemento de ordena- ¢do comum a todas elas 194 Fr. 1, Sexto adv. math, vu, 132 tod 68 Adyov T0688’ edvtog del Géd- vetot yivorta dvOgwmor xai ngdcdev i} Guotoo xai dxotoartes tO mgdtov" ywouéror yag ndvtov xatd tov Adyov tévde dxelgoww Folzact, mergdpevor zal éxéov xal Egyov tovodtwv dxolwov éyd dunyetpae xara pbow diaigéor Exactov xai godtwr dug Eyer tods 68 ddovs dvbgdnovs Lavbdver dxdoa éyegdévtes movodow Sxwoneg dxdoa ebdovtes émdayPdvortat. 195 Fr. 2, Sexto adv. math. vil, 133 dd det Exeoda tH <évvG>* tod Adpov & edvtog Evvos Cchovaw of xoddol ds ilar Exovres yodryow 1. 1 61d dei éxsoba TH xows Evvdg pag 6 uowds’ Tov... mss. Erdg e xowds sfio palavras diferentes para a mésma ideia, sendo a primeira a forma épica e jénica normal e a usada por Heraclito. © segundo vocdbulo foi evidentemente fornecido por uma glosa, e, por conseguinte, essa glosa substituiu a palavra original, embora se conservasse a explicagdo apensa. 196 Fr. 50, Hipdlito Ref. 1x, 9, 1 08% éuod dAdd Tob Adyou adxoboavtas Spoloyet copy éoww &y xdyra elvar. 194 Os homens dao sempre mostras de nado compreenderem que o Logos é como eu o descrevo, tanto antes de o terem ouvido como depois. E que, embora todas as coisas acontecam segundo este Logos, os homens sio como as pessoas sem experiéncia, mesmo quando experimentam palavras e accdes tal como eu as exponho, ao distinguir cada coisa segundo a sua constituigéo e ao explicar como ela é; mas os demais homens sao incapazes de se aperceberem do que fazem, quando estao acordados, precisamente como esquecem o que fazem quando a dormir. 195 Por isso, é necessario seguir 0 comum; mas, se bem que o Logos seja comum, a maioria vive como se tivesse uma compreensao particular. 196 Dando ouvidos, nio a mim, mas ao Logos, é avisado concordar em que todas as coisas sio uma. Estas maximas mostram claramente que Heraclito se considerava com acesso a uma verdade de suma importancia, acerca da constituigio do mundo de que os homens sio uma parte, e que tentava em vao propagar tal verdade. A grande maioria é incapaz de reconhecer esta verdade 1, que 194 é «comum» — isto 6, ndo sé valida para todas as coisas, como ainda aces- sivel a todos os homens, bastando para isso que fagam uso da observagao e do entendimento2 e nao forjem uma inteligéncia pessoal e falaz. O que eles deviam reconhecer é o Logos, que talvez deva ser interpretado como formula unificadora ou método proporcionado de disposig&o das coisas, 0 que podia ser quase classificado de plano estrutural das coisas, tanto indi- yiduais como em conjunto. O significado técnico de Adyog em Heraclito esté provavelmente relacionado com o sentido geral de «medida», «calculo» ou «proporgéo»; no é possivel que seja simplesmente a propria «explica- co» de Heraclito que esteja em causa (de outro modo, a distingdo feita em 196 entre guot e tod Adyov nio teria significado), embora o Logos fosse revelado nessa explicag&o e, por assim dizer, coincidisse com ela. O resultado da disposig¢&o segundo um plano ou medida comuns consiste no facto de todas as coisas, apesar de aparentemente miltiplas e totalmente distintas, estarem realmente unidas num complexo coerente (196), de que os préprios homens s&o uma parte, ¢ cuja compreensio é por isso logicamente necessaria para a actuacdo adequada de suas préprias vidas. Contudo, «férmula», «arranjo proporcionado» e assim por diante sio termos enganadoramente abstractos para traduzirem este sentido técnico de Adyog. Por vezes, Logos foi, provavelmente, concebido por Heraclito como um verdadeiro constituinte das coisas, e, em muitos aspectos, € coextensivo com o constituinte césmico primario, 0 fogo (vejam-se pp. 206-207). 1 Qs homens sto atacados por causa desta sua incapacidade em muitos outros dos fragmentos que chegaram até nés: vejam-se frr. 17, 19, 28, 34, 56, 72. Mas nada de substancial se acrescenta neles ao conteiido de 194, 195, 196. Andlogas censuras sio igualmente dirigidas contra pessoas em particular — Homero, Hesfodo, Xenéfanes, Hecateu, Arquiloco e Pitégoras: veja-se ¢.g. 190 ¢ 255, onde a base da ctitica reside no facto de tais homens (dentre eles, Pitigoras surge, noutros passos, para ser especialmente atacado, cf. e.g, 256) andarem em busca do falso tipo de conhe- cimento, a xoAvuad/y ou a mera colecgio de factos dispares e sem relagdo entre si. 2 Cf, 197 Fr. 55, Hipdlito Ref. 1x, 9, 5 daw dyes dxor) pddnowc, tadra syd moots, (As coisas que se podem ver, ouvir e conhecer, so as que eu prefiro.) Mas a observagio deve ser verificada pelo entendimento, vos ou godryjats: € 0 que nos mostrado nao apenas em 250 como ainda em 198 fr. 107, Sexto adv. math. vit, 126 xaxo pdgtvges dvOgczoow épBalyol wat Gra pagPigovs puyds ézdvewv. (Mas testemunhas sio os olhos e ouvidos para os homens, se tiverem almas que niio entendam a sua linguagem.) Neste passo, «almas birbaras» so aquelas que, no sendo capa- zes de compreender a linguagem dos sentidos, ou de os interpretar correctamente, sio induzidas em erro por aparéncias superficiais. Uma distingdo andloga entre a mera sensagdo e a interpretagdo inteligente dos dados sensoriais foi feita mais tarde por Demécrito (p. 436). 195 (2) Diferentes tipos de exemplo da unidade essencial dos contrarios 199 Fr, 61, Hipélito Ref. 1x, 10, 5 Pddaooa bmg xadagdhrator vad pa gdraror, iPtot nev xdcypov zai corrro.or, dvDodbnorc 58 daorov nai 6LBo.or. 200 Fr. 60, Hipélito Ref. 1x, 10, 4 63d¢ dow xdto la xal dvr. 201 Fr. 111, Estobeu Anth. ut, 1, 177 voisos Speiyy enolqaer od nad dyaddy, hipds xdoov, xduaros drdaavow, 202 Fr. 88, Pseudoplutarco Cons. ad. Apoll. 10, 106 £ taité ? én Cov zai tedyqxds nal rd éyenyogds xal td xadeddov nal véor xat ynoaudr tdde yag petaneodyra éueind dot xdxetva [nddw] yeraxeodyta taita. 199 A agua do mar é a mais pura e a mais poluida; para os peixes sac potavel e salutar, mas para os homens é impotayel e deletéria. 200 O caminho a subir e a descer é um e o mesmo. FS 201 A doenga torna a satide agradavel e boa, como a fome, a saciedade, a fadiga, o descanso. 202 E como uma mesma coisa, existem em nds a vida e a morte, a Vigilia e 0 sono, a juventude e a velhice: pois estas coisas, quando mudam, sao aquelas, e aquelas, quando mudam, sio estas. Estes fragmentos exemplificam quatro espécies diferentes de conexado entre contrarios evidentes: (i) Em 199, a mesma coisa produz efeitos contrarios sobre diferentes classes de seres; assim também fr. 13 (os porcos gostam de lama ) e fr. 9 (os burros preferem os desperdicios ao ouro, ). (ii) Em 200, diferentes aspectos da mesma coisa podem justificar des- crigdes. contrarias 1; assim também fr..58 (o cortar e o queimar reclamam uma recompensa, quando executados por um cirurgiao) e fr. 59 (0 acto de escrever combina o recto, no total da linha, © 0 curvo, na forma de cada letra). (ili) Em_201, coisas boas e desejaveis, como a satide ou 0 repouso, sd sao possiveis, se se reconhecem os seus contrarios, a doenca e a fadiga; assim, provavelmente, fr. 23 (nado haveria justica sem injustica). (iy) Em 202, diz-se que certos contrarios estado essencialmente ligados (a letra: sdio «a mesma coisa», uma expressiio pregnante), porque se sucedem 196 uns aos outros e nada mais. Assim, no fr. 126, a substancia quente e a fria formam o que poderfamos chamar um continuo quente-frio, uma entidade tnica (i.e. a temperatura). Assim, também, fr. 57: a noite e o dia, de que Hesiodo fizera mae ¢ filho, esto, e devem ter estado sempre, essen- cialmente ligados e interdependentes. Estas quatro espécies de ligagdo entre contrrios podem ser ainda reduzidas a duas epigrafes principais: (a) i-iii, contrarios que so inerentes a, ou sdo simultaneamente produzidos por um s6 sujeito; (® iv, contrarios que estéo ligados, devido a serem diferentes fases de um processo invaridvel e nico. 1 Parece ser esta a interpretagdo mais provavel de «o caminho a subir e a descer», Teofrasto © alguns dos seus seguidores aplicaram a expressiio as permutas entre as massas do mundo no processo césmico, ¢ grande parte dos estudiosos moder- nos tém procedido do mesmo modo. Mas as mesmas palavras «um © 0 mesmo» sio usadas a propésito de contrarios evidentes no fr. 59, que é formalmente seme- Ihante; ¢ Hipélito, fonte segura de citagdes verbatim de Heraclito, que, segundo parece, se serviu de um bom manual, em que as maximas deste pensador estavam agrupadas por assuntos, tomou certamente «o caminho a subir e a descer» como mais uma exemplificagéo da unidade dos contrérios, ¢ nfo como uma metéfora cos- mologica, fungiio a que nao é, na verdade, inteiramente adequada. Deverlamos, antes, pensar num caminho ou vereda reais, denominados «o caminho a subin> por aqueles que vivem em baixo, ¢ «o caminho a descer» pelos que moram no topo. Viastos, AJP 76 (1955), 349 n. 26, opde-se a esta interpretacdo com base na sua «bana- lidade»; mas o fr. 59, por exemplo, sobre a escrita, tem, sem diivida, precisamente a mesma caracteristica. Reflexes como estas (cf. também frs. 103, 48, 126, 99), sobre objectos convencionalmente tratados como inteiramente separados uns dos outros e contrdrios entre si, persuadiram, sem divida, Heraclito de que nao ha nunca uma divisio realmente absoluta de contrario para contrario. (Para uma outra e mais clara exposigdo deste ponto de vista por parte de Anaxé- goras, vejam-se pp. 390 e ss.). (3) Cada par de contrérios forma, por conseguinte, ndo apenas uma’ unidade como uma pluralidade. Verifica-se, também, que pares diferentes estéo inter- ligados 203. Fr. 10, [Aristételes] de mundo 5, 396 b 20 avdddpes dha xai ody Bia, coppensevor dtapepspevor, avvGSor bGdor de xdvtww by xa & évds advea}. 1 guaddyuec sob 0 ponto de vista textual, ligeiramente preferivel a ovrdiptes, que significaria «coisas em contacto». Uma questio mais importante consiste em saber se a palavra € sujeito ou nome predicativo do sujeito. Snell demonstrou que € 197 sujeito, contrariamente & opiniao geral; nem «o todo» e «o nao-todo», nem «em con- sonancia» ¢ «em dissonancia» sio pares tipicos de contrarios heracliticos, nem entram, de facto, nas categorias delineadas a pp. 195-196. ‘DM Fr. 67, Hipdlito Ref. 1x, 10, 8 6 Peds Huéon edged, xeudy Bégoc, saizuos eign, 6906 hupds (ravartia dxavra, obtos 6 vois} GAdovobra dé Hemoxeg dxdrav ovary Ovdpacw dvopdlera zal Hdoviy éxdotov. See suppl. Diels.] 203 As coisas tomadas em conjunto s&o o todo e 0 nao-todo, algo que se retine € se separa, que esté em consondncia e em dissonancia; de todas as coisas provém uma unidade, e de uma unidade, todas as coisas. 204 O deus é dia-noite, Inverno-Veraio, guerra-paz, saciedade-fome [todos os contrarios, é 0 que isto significa]; passa por mudangas, do mesmo modo que o fogo, quando misturado com especiarias, é designado segundo o aroma de cada uma delas. Em 203, «as coisas tomadas em conjunto» devem ser, em primeiro lugar, es contrarios: 0 que consideramos a par da noite é, por exemplo, o dia. (Neste ponto, podemos observar que Heraclito exprime aquilo que nds signariamos por «qualidade» em termos de simples extremos, que ele code, portanto, classificar como contrarios; pelo que toda a mudanga pode, assim, ser considerada como a que se verifica entre contrarios). Tais «coisas tomadas em conjunto» sao verdadeiramente descritas, num sentido, como «o todo», isto é, formando um todo continuo, noutro sentido, como «nio-todo», isto é, como simples componentes. Aplicando estas andlises alter- sativas A conglomeragio das «coisas tomadas em conjunto», podemos ver que «de todas as coisas se forma uma unidade», e também que a partir dessa unidade (2& évdc) & possivel separar-se 0 aspecto superficial, distinto ¢ mul- tiplo das coisas (zdvta). O fragmento 204 estabelece uma relagiio entre o deus e um certo numero de pares de contrarios, encontrando-se cada um deles separadamente ligado por uma sucessaio automitica; estes, como viu o autor da glosa, representam provayelmente todos os pares de contrarios, de qualquer modo interligados. A relacio em causa é vagamente predicativa; e Heraclito, ampliando, tal- vez, as ideias de Xendfanes, parece ter considerado «o deus» como ima- nente ds coisas, de uma maneira provavelmente indefinida, ou como soma total das coisas}. Vem-nos & lembranga a opinido milésia, de que a maté- ria originadora, que ainda pode estar representada no mundo, € divina. Heraclito, apesar de ndo ser tio explicitamente corporalista na sua con- cepcio de divindade, era pouco mais convencionalmente religioso do que os Milésios, dado que n&o associou «o deus» & necessidade de culto ¢ 198 adoracdo se bem que ele nfo tenha rejeitado completamente toda a espécie de culto; veja-se p. 217¢.). A intencionalidade especifica de 204 esta em que cada contraério pode ser expresso em termos de deus: pelo facto de a paz ser divina, ndo se segue que a guerra nao seja igualmente divina, e nao esteja igualmente penetrada do constituinte directivo e unificador, que € por vezes identificado com a totalidade do cosmos ordenado (pp. 193 es., 206 € s.). Odeus nao pode ser aqui essencialmente diferente do Logos; ¢ o Logos é, entre outras coisas, 0 constituinte das coisas que as torna contrdrias, e que garante que a mudanga entre os contrarios seja, a todos os titulos, proporcional e equilibrada. Afirma-se, pois, que deus € o elemento comum de ligac&o entre todos os extremos, precisamente como o fogo é o elemento comum dos diferentes vapores (visto serem estes concebidos como um composto de fogo com dife- rentes espécies de incenso). A mudanca de um em outro ocasiona uma total mudanca de nome, o que é enganador, porquanto sé um componente super- ficial se alterou e o constituinte mais importante se mantém. Esta dificil maxima significa que, enquanto cada par separado de contrarios forma um Yinico continuo, os varios continuos esto, também, ligados entre si, embora de maneira diferente. Por conseguinte, a pluralidade total das coisas forma um complexo tinico, coerente e determinavel—a que Heraclito chamou «unidade». 1 A superioridade do deus em relago ao homem, ¢ da visio sintética das coi- sas por parte da divindade relativamente & visio caética dos homens, é profundamente sublinhada por Heraclito: e.g. 205 Fr. 78, Origenes c, Celsum vi, 12 ijPos pag dvPgdneioy nev odx exer yrcbuds, Betov 58 Exes. (A condiciio humana ndo € capaz de juizos verdadeiros, mas a divina, essa sim.) Vejam-se também frs. 79, 82-3, ¢ compa- rem-se com 0 conceito hebraico: «Assim como os céus s4o mais altos do que a terra, assim 0s meus caminhos sfio mais.elevados do que 0s vossos caminhos, ¢ os meus pensamentos, mais elevados do que os vossos pensamentos» — Isaias Iv. 8es. Uma sentenga afirma especificamente que para 0 deus ndo existe a separacio implicita nos contrérios: 206 Fr. 102, Porfirio in Iliadem ww, 4 t uev Be@ xald ndvra nal dyad zal Sixaua, EvOgoroe 62 & nev Ediza Socevtipacw A 58 Stee. (Para deus, é tudo belo ¢ bom e justo, mas os homens supuseram umas coisas injustas, outras justas.) (4) A unidade das coisas encontra-se sob a superficie; ela depende de uma reacgao equilibrada entre os contrarios 207 Fr. 54, Hipdlito Ref. 1x, 9,5 dopovin dpam)s paveofis xelrtmy. 208 Er. 123, Temistio Or. 5, p. 69 D.. ptors xptareadae pudei. 209 Fr. 51, Hipélito Ref. 1x, 9, 1 08 Eomdow Bung diapegdsuevor sot a Evuptoetar madivcovos douovly Sxaane téE0v xal Aons }. ‘ 1 Hipdlito, a fonte mais completa neste ponto, e usualmente fidedigna, tem Suoloyéew (em vez de Suokoyée1) e zalivegonos. Eyupégera é uma emenda provavel 199 feita a partir da versio de Plato, Symp. 187 a, e evita um emprego dificil de Spohoyeiv — verbo que podia facilmente ter sido repetido por acaso, visto Hipélito © ter usado duas vezes no infinitive precisamente antes de ter citado o fragmento. aajivrovos tem tanta defesa como 7adltgo7og nas versdes (s6 da segunda parte) de Plutarco e de Porfirio, ¢ é preferido, porque da um sentido completamente inteligivel. G. Vlastos, AJP 76 (1955), 348 € ss., defende aad/vtgozos com base no facto de Didg. L. 1x, 7, uma versio de Teoftasto, abreviada e frequentemente imprecisa, apre- sentar a expressio did tij¢ évavtiotgomijc yjoudcda. E certo que, a primeira vista, cla parece baseada em xuAlrrgonos dguovin; nao obstante, a évavtiotgom) (que teria de ser évavtiotgonia, se fosse derivada de uma forma adjectiva em -rg07702) talvez se refira as toowal de 218, combinadas (como certamente o foram por Teo- frasto, cf. uma versio mais completa das suas ideias em Didg. L. 1x, 8) com © «caminho a subir e a descer», interpretado como mudanga entre contrarios. © xadivrgozos xéAevPog em Parménides fr. 6 (293) & com certeza, perfeitamente inteligivel, e no contém necessariamente uma referéncia a Heraclito (cf. pp. 257 €s.), ou pelo menos a este fragmento, Para uma mais desenvolvida discussio da correcta leitura, veja-se Guthrie, HGP I, n. 3 a pp. 439s. 207 Uma conexao invisivel é mais poderosa que uma visivel. 208 A verdadeira constituig&o das coisas gosta de se ocultar. 209 Eles no compreendem como é que o que esta em desacordo con- corda consigo mesmo [4 /etra: como o que estando separado se retine consigo mesmo]: ha uma conexao de tensdes opostas, como no caso do arco e da lira. Em 207 enuncia-se uma regra geral; a comparagiio com 208 (onde bois talvez signifique, nado «Natureza», mas «uma verdadeira constituigio das coisas»), e também com 209, sugere que a regra se destina a ser apli- cada ao funcionamento do mundo como um todo, como um somatdério de partes constitutivas, cuja conexdo nao se manifesta & primeira vista. A conexao invisivel dos contrarios é, de facto, mais forte do que outros tipos de conex&o mais evidentes 1. 209, um dos ditos mais conhecidos de Heraclito, contém uma imprecis&o caracteristica na forma como esta enun- ciado: 0 sujeito de Eoupégeta &, provavelmente, nao duapeodsueror, i.e. outro exemplo de um contrario especifico, mas um diapegduerdy gene- ralizador, em que «qualquer coisa que esté separada» significa algo como «qualquer par distinto de contrarios», Assim, 0 sentido dado é semelhante ao implicito em ovupegduevoy dtapegduevoy em 203: qualquer par, ou soma de pares, pode ser considerado ou (a) como heterogéneo e analisavel em termos de polos separados ou extremos, ou (b) como tendente a formar con- sigo mesmo uma unidade. Surge agora um importante aditamento: ha (sc. nisso, i.e., isso exemplifica) uma conex&o ou modo de unifio (sentido literal de douoriy) através de tensdes opostas 2, que garante esta coeréncia — pre- cisamente como a tensao da corda do arco ou da lira, exactamente equilibrada pela tensio para fora exercida pelos bragos do instrumento, produz um complexo coerente, unificado, estavel e eficiente. Podemos inferir que, se 0 equilibrio entre contrarios nao fosse mantido, por exemplo, se «o calor» (i.e. © total de substancias quentes) comegasse a prevalecer perigosamente sobre © frio, ou a noite sobre o dia, entao a unidade e coeréncia do mundo ces- sariam, tal como, se a tensdo na corda do arco exceder a tensdo dos bragos, todo o complexo é destruido. 1 Umcerto nimero de fragmentos da a entender que é necessario ter ndo sé f6, como persisténcia, para encontrar a verdade subjacente. Assim, e.g. 210 Fr. 18, Clemente Strom. 11, 17, 4 éav a) Eamras dvédmoror odx aBevgriaet, dveegedvytor gov zai dxogor. (Se ndo esperarmos 0 inesperado, no 0 encontraremos, porquanto ele & inescrutdvel e dificil de abarcar.) Veja-se também 244, e firs. 22, 86; compare-se com Xenéfanes fr. 18 (188). 2 aafivrovos = «retesado em sentido opostor, ic. que tende igualmente para direcodes opostas, Uma tensio numa direcgdo produz automaticamente uma tensdo equivalente na outra; caso contririo, o sistema desmantela-se. (5) O equilibrio total do cosmos sé pode ser mantido, se a mudanga numa direcgGo conduzir eventualmente @ mudanca na outra, isto é, se houver uma adiscérdiay infinddvel entre contrdrios 21 Er, 80, Origenes c. Celsum vi, 42 eidérae yor) roy adhepor evra Eovdy, nal bhoqy tow, wai ywdpeva daca nar? tou nal ygedy'. 1 zgedy Diels, zoedjreva ms, A emenda nao é segura, mas ¢ dificil melhorar © texto; as trés letras adicionais podem estar relacionadas com a omissao de trés letras precisamente antes, no lugar onde o tnico ms. Vaticano tem ei dé, em vez da evidente forma original efdévar 22 Fr. 53, Hipdlito Ref. 1x, 9, 4 addepos mdvtov ev mariig boty névrwy 88 Baskets, zat tobe nav Deods Berke Tove d2 dvDgdmovs, robs ey Sobdovg éxolyae todz dé éhevdégovs. 211 E necessario saber que a guerra é comum e que a justica € diseér- dia e que tudo acontece mediante discérdia e necessidade. 212 A guerra é a origem de todas as coisas e de todas ela é soberana. ¢ a uns ela apresenta-os como deuses, a outros, como homens; de uns cla faz escravos, de outros, homens livres. A discordia ou guerra é a metéfora favorita de Heraclito para 0 pre- dominio da. mudanga no mundo. Esta obviamente relacionada com 4 201 neaccao entre contrarios; e pode inferir-se que a maioria das espécies de mmudanga (excepto no que toca e.g. ao crescimento, que é a acrescéncia de == semelhante ao seu semelhante) podia ser convertida em mudanga entre contrérios. Em qualquer caso, a mudanca de um extremo para o outro pode afigurar-se-nos como a mais radical possivel. A «guerra», que esta na Sese de todos os acontecimentos, é «comum» em 211, num sentido particular Homero havia empregado o termo, mas para significar ‘imparcial’): ela = universal ¢ responsdvel por condigdes diferentes, e evidentemente oposta: éo homem — mesmo para o seu destino apés a morte, visto a morte em combate (212) poder fazer deuses de alguns deles, cf. 237 e 239. E também chamada déxn, a «via indicada» (da mesma raiz de de(xvvut), ou regra nor- mal de comportamento. Deve tratar-se de uma correc¢io deliberada da maxima de Anaximandro (110), segundo a qual as coisas pagam retribuicado =mas 4s outras pela injusti¢a dos seus abusos alternados nos processos da mudanga natural. Heraclito mostra que, se a discérdia — isto é, a accdo = reaccdo entre substancias contrarias — viesse a cessar, entéo o vencedor é< cada competigao entre extremos estabeleceria um dominio permanente, =o mundo como tal seria destruido !. Coatudo, assim como numa batalha &4 interrupgdes locais tempordrias, ou pontos mortos ocasionados pelo exacto equilibrio das forgas que se opdem, assim também Heraclito deve ter 2dmitido que a estabilidade temporaria pode ser encontrada aqui e além mo campo de batalha césmico, desde que seja apenas temporaria e esteja equilibrada por um estado correspondente noutro lugar. Esse facto nao diminuiria a validade do dominio da discérdia (que, como para Anaximan- dro, fornece uma razao metaférica para a mudanga), mas permite que o Principio seja aplicado ao mundo da nossa experiéncia real, no qual todas 2s coisas devem eventualmente mudar, se bem que algumas sejam, por ora, obviamente estaveis. 1 Cf. 213 Aristoteles Eth. Eudem. H 1, 1235 a 25 xai “Hodudevros éurya 1H moujoarr. “Qe Sous x te Deby wal dvOgdnov dndiorto (= Il. 18, 107): ob yag dy elvar domoviav wh byt0g dog ai Bagéos obdé ta La dvev Bijheos xai degevos évartiov Sytwy. (Heraclito censura o autor do verso «Quem dera que a discérdia desa- arecesse de entre os deuses e os homens»: pois nao haveria escala musical, se nao exis- tissem os sons agudo e grave, nem seres vivos sem fémea e macho, que séo opostos.) Neste passo, dgovia tem o seu sentido particular de «escala musical». (5) A imagem do rio esclarece 0 género de unidade que depende da conser- vacdo da medida e do equilibrio na mudanca 214 Fr. 12, Ario Didimo ap. Eusebium P.\E. xv, 20, + fr. 91, Plutarco de E18, 392 B motapoio. rotow abroiow éufatrovaw érega xal Ereoa Bara 202 Emopet (= fr. 12). 1... oxidemot ai... oovdyer ... ovmiatatat zai dztoheia ... xodceiot vai devo (= fr. 91). 214 Para os que entrarem nos mesmos rios, outras ¢ outras sio as Aguas que por eles correm ... Dispersam-se ¢ ... retinem-se ... juntas vém e para longe fluem ... aproximam-se € afastam-se. 1 As palavras xai yozal 68 dxd tov dyody dvabvjudreat, que se seguem @ dara éeigget em Ario, so consideradas, pela maioria dos editores, como parte inte- grante do fr. 12; contudo, é quase certo fazerem parte de uma tentativa de Cleantes para encontrar uma exalagdo da alma tanto em Heraclito como em Zendo: veja-se Kirk, Heraclitus, the Cosmic Fragments, 367 € ss. Os pares de verbos que formam co fr. 91 ocorrem em Plutarco imediatamente apés um resumo que fez (em termos platénicos) da principal exposigao a respeito do rio; veja-se, ainda, p. 204. Segundo a interpretagao platonica, aceite ¢ desenvolvida por Arist6- teles, Teofrasto ¢ os doxégrafos, esta imagem do rio foi empregada por Heraclito para sublinhar a absoluta continuidade da mudanga em cada uma das coisas: tudo esté num perpétuo fluir como um rio. Assim 215 Platao Cratilo 402 A Aéyer ov “Hodudercos bu xdvea yorgst zal obdév pévet, xai xotapod Goff dxendtov a dvta Aéyer ds dig & tov abrov morapor obx dv aupains. (Heraclito diz algures que tudo estd em mudanca e nada permanece imével, e, ao comparar 0 que existe com a corrente de um rio, diz que se no pode- ria penetrar duas vezes no mesmo rio.) E a esta interpretagdo que Aristéte- les se refere em 216 Aristoteles Fis. O 3; 253 b9 xal pat tues xwvetadon THY Brrr ob ta wer ta 8 8, G2Ad advea nat del, adda Aavddvery to8to Tir jerégar aisdyow.. (E afirmam alguns, nao que algumas coisas que existem estdo em movimento, e outras nao, mas que tudo esté em constante movimento, se bem que tal facto escape a nossa percepgiio.) Neste passo, Aristdteles expli- cita o que esta implicito em Plato, a saber, que muitas coisas (as que pare- cem estaveis) devem estar a-passar por transformagdes invisiveis ou desper- cebidas. Sera possivel que Heraclito tenha realmente pensado que. uma rocha ou um caldeirao de bronze, por exemplo, estivessem invariavelmente a passar por transformag6es invisiveis de matéria? Talvez; mas nada, nos fragmentos que nos restam, sugere que ele assim pensasse, e a sua confianga. claramente expressa, nos séntidos, contanto que eles sejam interpretados inteligentemente, talvez sugira 0 contrario 1. Antes de Parménides e da sua prova manifesta de que os sentidos eram completamente falazes — prova que, evidentemente, chocou -os seus contemporineos —, os desvios totais do senso comum sé devem ser aceitos, estamos em crer, quando. as provas em seu abono forem extremamente fortes. No caso presente, € de conceber que Platio. tenha sido induzido cm erro pelos exageros ¢ distorgdes. pés-heracliticos a respeito da importincia dada por Heraclito 203 4 eventual mudanga; e em particular, talvez, por Cratilo, que, no dizer de Aristoteles, influenciou Platéo, quando este era jovem (Met. A 6, 987 a 32). 1 Veja-se 197, 198. E yerdade que Melisso, no fr. 8 (537), chamou a atencdo para 0 facto de algumas coisas aparentemente «estaveis» realmente se transformarem 0 ferro € desgastado pela fricgao do dedo, e assim por diante. Esta observacdio ocorre num contexto que talvez tenha referéncias verbais a Heraclito (e.g. td te Peoucr pozgdr yiverbar xal cd yozodr Begudy, cf. fr. 126). Contudo, nao ha qualquer motivo para pensar que Melisso quisesse dizer que a mudanga devesse, neste caso, ser continua, mesmo quando pudesse ser invisivel. Todas as vezes que o dedo fricciona 0 ferro, tira dele uma porgdo invisivel; no entanto, quando ele nao o fricciona, que razo ha para pensar que o ferro esté ainda assim a transformar-se? O ponto de vista de Melisso € antes 0 de que as aparéncias mostram que todas as coisas, mesmo as aparentemente estaveis, estdo sujeitas a mudanga, ¥. isto precisamente 0 que Heraclito deve ter pensado; poderd ter ou nao mencionado mudancas infravisiveis, mas em qualquer caso s6 as aceitaria, quando fossem deduziveis—e a mudanga continua ndo € deduzivel em muitos objectos aparentemente estaveis. O argumento de Melisso consistia, certamente, em que os sentidos devem ser falazes; pois entre Heraclito e ele proprio, tinha surgido Parménides. Com a teoria dos efftivios de Empédocles (pp. 323 ¢ ss.) a situagio muda uma vez mais. Contudo, a maioria dos estudiosos nao aceita este parecer, por sentir que Platao deve ter razaio — devido nao apenas A sua importancia, como a época em que wiveu (que é relativamente recuada, se a compararmos com a de Ario Didimo, fonte do fr. 12), como ainda pelo facto de Aristételes acreditar nele e ainda porque a emenda de Cratilo («nao se pode entrar no mesmo rio wma vez sequer», Aristételes Met. I” 5, 1010a 13) depende, segundo parece, da forma platénica do que Heraclito afirmou, ou de algo semelhante. Mas nio raro se vé Plat&o fazer Sécrates distorcer os seus predecessores por obediéncia as razdes que lhe sfo préprias, ou as de Platdo; e a emenda de Cratilo nado depende necessariamente da versio platénica, mas podia ser facilmente uma reformulagao como comentario a versdo de Ario. Talvez, neste caso, se devesse admitir 0 desenvolvimento geral de ideias acerca da percepcdo e da mudanga de calculo, e também a implicagio de outros fragmentos de Heraclito. Mas subsiste também a questio do aparente modo de expressdo heraclitico do fr. 12, com os seus dativos do plural idnicos e as suas arcaicas «outras ¢ ovtras 4guas». Guthrie (tal como Vlastos em AJP 76, 1955, 338 ss.) objecta que tal forma de expressio é menos concisa e paradoxal, e consequentemente menos heraclitica, do que a versio platdnica, mas, em suma, 0 nosso sentir = que o fr. 12 tem toda a aparéncia de pertencer a Heraclito, por estar em dialecto idnico, natural e nao forgado, e por apresentar o ritmo caracteris- tico da prosa arcaica; ao passo que a tiltima verso se afigura platénica podia mais facilmente ser uma reformulacdo do fr. 12 do que vice-versa. Uma certeza sobre esta questao é dificil de se obter; uma das interpretagdes aqui apresentadas tem: muito de forgado, a“outra & discutida, e.g., por Guthrie, 204 HGP 1, 449-54. Uma futura reflexdo sobre as implicagdes subjacentes as versdes alternativas podera reforcar a questao aqui avangada. A formulac&o platénica implica que o rio nunca & 0 mesmo em momentos sucessivos (e, deste modo, Cratilo tinha realmente razio), e ¢ acompanhada pela afir- macio categérica de que tudo na natureza se assemelha ao rio neste aspecto — obdéy pévet, wnada permanece imével». A formulagao de Ario, a do fr. 12, é menos drastica; ha tal coisa como 0 mesmo rio, mas € também, de certo modo, diferente. Isto traga um contraste entre ‘mesmo’ e ‘diferente’ numa situacdo especifica e, por conseguinte, pertence & lista dos exemplos concretos heracliticos sobre a coincidéncia dos contrarios. Mas se a sua intengo vai mais longe (como, pelo menos, da a entender Platao), ent&o o significado nao é que cada simples objecto deve ser como um rio, mas antes que um. todo complexo, como o mundo, deve permanecer ‘o mesmo’, ao passo que as suas partes constituintes estio sempre a mudar—o que teria uma animadora semelhanga com as opinides de Heraclito sobre fisica, infra dis- cutidas no § 7. Visto a esta luz, o aditamento ao fr. 12 (em 214), dos verbos que compéem o fr. 91 (que pelo contexto e pela sua propria natureza parecem indicar uma descrigao do fluxo da 4gua, com atengéo especial para a regula- tidade da sua substituigio) esclarece 0 que esta implicito no fr. 12: que a unidade do rio como um todo esti dependente da regularidade (também sugerida pela repetic¢do érega zal Exega) do fluxo das Aguas que o consti- tuem. O rio, pois, pode fornecer uma imagem do equilibrio dos constituin- tes do mundo, Como é dbvio, uma rocha ou uma montanha ou uma mesa sio temporariamente estaticas, ¢ assim permanecerao, talvez, durante muito tempo: o que importa a teoria de Heraclito sobre a reacgao equilibrada e a discérdia é que eventualmente se ha-de transformar e, deste modo, auxiliar a manter o processo dos elementos constitutivos do mundo. Entretanto, 2 estabilidade de uma montanha, por exemplo, € equilibrada por uma corres- pondente estabilidade, noutro local, de massas correspondentes de mar ¢ de fogo ou de aither (visto a montanha ser, principalmente, terra); sobre este assunto, veja-se a préxima secc&o. (7) O mundo é um fogo sempre a arder ; algumas das suas partes estdo se extintas para formar as duas outras principais massas do mundo, 0 mar e a terra As mudangas entre o fogo, 0 mar e a terra equilibram-se mutuamente; 0 fe puro, ou etéreo, tem capacidade directiva 217 Fr. 30, Clemente Strom. v, 104, 1 xdapov révde [rdv adtér zor] obte ug Dedv obre dvDgdaor ércolgaer, G22 iv del wat Eorer zai aio deltwor, éntsuevor uéroa ual dnooBervduevor uérga.

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