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3. Responsabilidade A corporeidade de nosso corpo significa, como a propria sensibilidade, um 1n6 ou desenlace do ser [..] um nd que néo pode ser desfeito. Lévinas, Otherwise than Being Entéio, de acordo com a teoria que tenho defendido neste texto, como serd a responsabilidade? Ao insistir em algo ndo narravel, sera que n&o limitamos 0 grau de responsabllidade que poderiamos atribuir a nos mesmos e aos outros por suas respectivas agdes? Acredito que o préprio significado de responsabilidade tenha de ser repensado tendo como base essa limitago; ela ndo pode estar ligada ao conceito de um si-mesmo totalmente transparente para si mesmo.® Com efeito, responsabiliza por si mesmo € reconhecer os limites de toda compreenséo de si e estabelecer esses limites ndo so como condicao do sujeito, mas também ‘como precondigao da comunidade humana. Nao estarei totalmente fora do circulo do Esclarecimento se disser. como digo, que o limite da razao ¢ 0 signo de nossa humanidade. Talvez seja legado de Kant dizer isso. O relato que dou de mim mesma se desintegra, e certamente por uma raz0, ‘mas isso no significa que eu possa dar todas as raz6es que fariam dele um relato completo. Sou atravessada por razbes que nao consigo recuperar totalmente, que permanecem enigmaticas, que me acompanham como se fossem minha alteridade familiar, minha propria opacidade privada, ou talvez no 140 privada assim. Eu falo como um ‘eu’, mas nao cometo o erro de pensar que sei exatamente tudo que estou fazendo quando falo dessa maneira. Descubro que minha propria formagao implica © outro em mim, que minha estranheza para comigo mesma 6, paradoxalmente, a fonte de minha conexao ética com os outros. Preciso conhecer a mim mesma para poder agit com responsabilidade nas telagées sociais? Em certa medida, com certeza sim. Mas ha algum valor ético no meu desconhecimento? Se estou magoada, descubro que a magoa atesta o fato de que sou impressionavel, entregue a0 outro de ‘maneiras que no posso prever ou controlar totalmente. Nao posso pensar hha questo da responsabilidade sozinha, isolada do outro, Se faco isso, quer dizer que me retirei do modo de interpelagao (ser interpelada e interpelar outro) no qual o problema da responsabilidade aparece pela primeira vez. Isso no significa que néo possamos ser interpelados de maneira nociva, Ou que sermos interpelados ndo seja traumatico de vez em quando. Para Laplanche, a interpelaco priméria oprime: ela no pode ser interpretada ou compreendida. E a experiéncia primaria do trauma. Ser interpelado carrega consigo um trauma, ressoa com 0 traumatico; no entanto, esse trauma s6 pode ser experimentado com atraso mediante uma segunda ocorréncia, Outra palavra se coloca em nosso caminho, um golpe, uma interpelagdo ou nomeacéo que, de maneira repentina e inexplicavel, assassina-nos ao mesmo tempo que, estranhamente, continuamos vivendo como esse ser assassinado, sem parar de falar. Laplanche e Lévinas: a primazia do Outro Lévinas diz da subjetividade do sujeito, Se quisermos usar essa palavra ~ Por qué? Por que nao? -, talvez devamos dizer de uma subjetividade sem ‘sujeito: 0 espaco da ferida, a dor do moribundo, o corpo jé morto que Ml O < 02:55 Gat + «| 80% @ inexplicével, assassina-nos ao mesmo tempo que, estranhamente, continuamos vivendo como esse ser assassinado, sem parar de falar Laplanche e Lévinas: a primazia do Outro Lévinas diz da subjetividade do sujeto. Se quisermos user essa palavra - Por qué? Por que néo? -, talvez devamos dizer de uma subjetividade sem ‘sujet: 0 espago da ferida, @ dor do moribundo, o corpo jé morto que ninguém pode possuir e nem dele dizer: Eu, meu corpo. Maurice Blanchot, The Whiting of the Disaster Dado que somos vulneravels @ interpelago dos outros de manelras que no podemos controlar totalmente, nao mais do que controlamos a esfera da linguagem, isso significa que carecemos de capacidade de agir e de responsabilidade? Para Levinas, que faz uma separagdo entre a protensdo de responsabllidade © a possibilidade de aco, a Fesponsabilidade surge como consequéncia de estarmos sujeitos a interpelacdo ndo desejada do outro. Isso faz parte do que ele quer dizer quando afirma, exasperado, que a perseguicao gera uma responsabilidade para o perseguido. A maioria das pessoas se horroriza quando escuta ‘essa declaracao pela primeira vez, mas consideremos com culdado o que ela significa € 0 que ndo significa. Ngo significa que eu posso relacionar atos de perseguigdo que sofri a acdes que realizel; que possamos conciuir, portanto, que eu mesma causei em mim a persequigAo, e que agora é apenas uma questo de descobrir os atos que realizel, mas nao reconhec! t8-los realizado. No, a persegui¢do € justamente 0 que acontece sem a garantia de qualquer feito meu. E ela nos devolve nao aos nossos atos @ escolhas, mas a uma regio da existéncia que @ radicalmente nao desejada, a invasdo priméria e inaugural do Outro em relagdo a mim, uma intrusdo que me acontece, paradoxalmente, antes da minha formacao ‘como um “eu, ou melhor, como instrumento da primeira formagao de mim ‘mesma no caso acusativo Levinas considera a inauguragao acusativa do moi ~ 0 “eu mesmo" ~ tanto no sentido gramatical quanto no sentido ético. E somente por meio de uma acusagdo que o “eu mesmo” surge. Paradoxalmente, nesse ‘sentido, ele concorda com Nietzsche, para quem a acusacdo da culpa produz @ possibilidade de um sujeito, Para Nietzsche, o sujeito surge pela ‘compreensdo retroativa do si-mesmo como causa de uma injiria e comeca se punir, gerando assim uma reflexividade nia qual o “eu” primeiro trata a si mesmo como um objeto, um “eu mesmo”, Para Levinas, no entanto, a Tesponsablidade ndo surge como preocupagdo de si ou censura de si e exige que se recorra a um entendimento da relagdo ética para com 0 Outro ‘sem se basear em elos causais entre ator e ato Em Otherwise than Being, Lévinas deixa claro que antes de podermos falar de um simesmo capaz de escolher, devemos primeiro considerar ‘como 0 simesmo se forma, Essa formagao se da, nas palavras dele, “fora do ser [essence]’. Na verdade, a esfera em que 0 sujetto supostamente ‘surge & “pré-ontologica’, no sentido de que o mundo fenomenal das pessoas e coisas sé se tora disponivel depois que um simesmo se formou como efeite de uma invasao primaria. N4o podemos perguntar pelo “onde” ou “quando’ dessa cena primar, pois ela precede e até condiciona ‘as coordenadas espacotemporais que circunscrevem 0 dominio ontoldgico. Descrever essa cena é€ o mesmo que abandonar o campo descrtivo em que um “simesmo” & formado e delimitado em um espago e um tempo @ considera seus “objetos" e ‘outros’ como situados em outro lugar. A possiblidade desse encontro epistemolagico assume que o simesmo & Seu mundo objetal ja foram constituldos, mas um encontro desse tipo néo indaga 0 mecanismo dessa constituigdo. O intuilo do conceito levinasiano Ml O < 02:55 Gd a + + BAS.) 80% formou como efeito de uma invasdo primaria, N&o podemos perguntar pelo “onde” ou “quando” dessa cena primaria, pois ela precede e até condiciona as coordenadas espagotemporais que circunscrevem 0 dominio ontologico. Descrever essa cena é 0 mesmo que abandonar o campo descritivo em que um “si:mesmo” ¢ formado e delimitado em um espago e um tempo & considera seus “objetos” e “outros" como situados em outro lugar. A possibiidade desse encontro epistemolégico assume que o st mesmo € Seu mundo objetal ja foram constituidos, mas um encontro desse tipo nao indaga o mecanismo dessa constituicdo. O intuilo do conceito levinasiano do pré-ontolégico ¢ tratar desse problema Para Lévinas, meus atos nao inauguram um “Eu ou moi, ou seja, ele vai totalmente contra a explicagdo existencial defendida por Sartre: “anterior ao Eu que toma uma deciséo, ¢ necessaria a exterioridade do ser, ‘em que o Eu surge ou ¢ acusado". O sentido de “acusagdo" logo ficard claro, mas consideremos como Levinas explica esse movimento ou cena primaria, Ele nos diz que o Eu surge por uma susceptibilidade ilimitada, anarquica e sem suposicéo, que, a despeito da susceptibiidade da matéria determinada por uma causa, @ sobredeterminada por uma valorizagao. O nascimento’ do Eu é um remorso atormentador, mais Precisamente um recuo para dentro de si mesmo; essa é a recorréncia absoluta da substituigdo. A condig2o ou nado condigao do S-mesmo ndo é originaimente uma autoafeigo que pressupde 0 Eu, mas precisamente uma afeigao pelo Outro, um trauma anarquico [an-arquico, sem principio, e por isso com. seguranga enigmatico, aquele ao qual ndo se pode atrib nenhuma causal, esse lado da autoafeicdo e da autoidentificagdo, um trauma da responsabilidade, néo da causalidade.:! Poderiamos aceitar a afirmacao de Lévinas de que o trauma primério surge por meio de uma invasdo inicial por parte do Outro - esta é, sem divida, a viséo de Laplanche — sem projetar essa invasao como acusagao, Por que esse trauma, essa afeic¢do pelo Outro, surge, pra Lévinas, na forma de acusagéo e perseguicdo? Quando ele escreve que “perseguicao @ 0 momento preciso em que o sujeito @ alcangado ou tocado sem a mediacdo do ldgos" (S, p. 83), ele se refere mais uma vez a essa cena “pré-ontoldgica® em que o sujeito @ inaugurado, por assim dizer, por meio de um ‘alcance” ou “toque” persecutério que funciona sem a consciéncia, sem uma causa @ sem consonéncia com nenhum principio. Precisamos Perguntar por que isso é entendido como perseguicdo, ou melhor, o que Lévinas esta tentando nos dizer sobre o que é perseguico. Uma relagdo passive com outros seres precede a formagao do Eu ou moi, ou ainda, em ‘utras palavras, torna-se o instrumento por meio do qual essa formagdo se produz. Uma formacao em passividade, portanto, constitui a pré-nistéria do sujeito, que instaura um Eu como objeto sobre © qual os outros atuam antes de qualquer possibilidade de sua propria atuagao. Essa cena é Persecutoria porque n&o desejada nem escolhida. E um modo de sermos ‘objeto da atuagéo do outro anterior & possibilidade de atuarmos nos mesmos ou em nosso nome. ‘Assim como Laplanche nos alerta que a historia que conta sobre a repressio primaria, a formagSo das pulsées © 0 “eu’, tem de ser especulativa, Lévinas cuidadosamente nos adverte que ndo devemos Pensar que encontraremos uma forma narrativa para esse comeco pré- ‘ontoldgico. Escreve Levinas: “A irrupgao de si mesmo na perseguigao, a passividade andrquica da substiluicdo, ndo ¢ um evento cuja historia nademos recantar mas uma conis Il 02:55 Gaal t + @QAS 80% 8 objeto da atuagéo do outro anterior @ possibilidade de atuarmos nés ‘mesmos ou em nosso nome. Assim como Laplanche nos alerta que a historia que conta sobre a Tepressdo primaria, a formagéo das pulsses ¢ 0 ‘eu’. tem de ser especulativa, Lévinas cuidadosamente nos adverte que no deverios pensar que encontraremos uma forma narrativa para esse comego pré- ‘ontoldgico. Escreve Lévinas: “A irup¢do de si mesmo na perseguicgo, a passividade andrquica da substituicéo, no um evento cuja historia podemos recontar, mas uma conjungao que descreve o Eu [..] sujeito a0 ser, sujeito a cada ser’ (S, p. 90). Essa passividade, que Lévinas chama de “passividade diante da passividade", tem de ser compreendida néo como 0 ‘oposto de atividade, mas como a precondigao da distin¢do entre ative € passivo feita pela gramatica e nas descricées cotidianas das interacBes dentro do campo estabelecido da ontologia. O que atravessa de maneira sinerdnica esse campo da ontologia ¢ a condicéo pré-ontolégica de uma passividade para a qual é impossivel converter-se em seu oposto. Para ‘entender sso, precisamos pensar numa susceptibilidade aos outros que seja nao desejada e nao escolhida, que seja uma condicéo de nossa responsividade aos outros, até mesmo uma condigao de nossa responsabilidade pelos outros. Entre outras coisas, isso quer dizer que ‘essa susceptibilidade designa uma ndo liberdade, e, de maneira paradoxal, € com base nessa susceptibilidade em relagdo a qual ndo temos escolha ‘que nos tomamos responsdveis pelos outros. E claro, no é facil entender como Lévinas passa da afirmagao de que ‘5 seres humanos tém uma susceptibilidade “pr nao escolhida em relagdo aos outros para a afirmacdo de que essa susceptibilidade @ @ base da nossa responsabilidade para com os outros. Ele reconhece de maneira bem clara que essa susceptibilidade primaria é uma “persegui¢do” justamente por néo ser desejada, porque estamos radicalmente sujetos a a¢do do outro sobre nos e porque ndo ha possibiidade de substituir essa susceptibildade com um ato de vontade ou um exercicio de liberdade, Estamos acostumados a pensar que so podemos nos responsabilizar por aquilo que fizemos. por aquilo cuja ‘origem pode ser atribuida a nossas intengdes. nossos feitos. Lévinas rejeita explicitamente essa visto, _afirmando que associar. a tesponsabilidade 4 liberdade é um erro. Torno-me responsavel em virtude do que é feito para mim, mas ndo me toro responsavel pelo que é feito para mim se por “responsabilidad” entendermos o fato de eu me culpar pelos ultrajes cometidos a mim. Ao contrario, eu no sou primeiramente Tesponsavel em virude de minhas agdes, mas sim em virtude da relacao com 0 Outro que € estabelecida no nivel da minha susceptibildade primdna e irreversivel, minha passividade anterior a qualquer possibilidade de ago ou escoiha Lévinas explica que a responsabilidade, nesse caso, no ¢ nem um tipo de autocensura nem uma concep¢do pomposa de minhas agdes como 0 unico efeito causal sobre 0s outros. Antes, minha capacidade de permitir a ‘aco dos outros sobre mim coloca-me numa relacao de responsabilidade, Isso acontece por melo do que Lévinas chama de “substituicéo", sendo 0 “eu" entendido como acossado por um Outro, uma alteridade, desde 0 inicio. Escreve ele no se trata aqui de uma questo de se humilhar, como se 0 sofimento fosse em si [..] um poder magico de expiacSo. A questo é que, no sofrimento, no trauma original e retomo a si yesmo, quando sou responsavel por aquilo que no quis absolutamente responsdvel pela perseguigdo que sofro, é-me cometido um ultraje (S, p. 90). Il O < 02:55 Gla + + QS | 80% inicio. Escreve ele: fndo se trata aqui de uma quesiéo de se humihar, como se 0 soffimento fosse em si [..] um poder magico de expiaco. A questo & que. no sofrimento, no trauma original e retomo a si mesmo, quando sou responsavel por aquilo que ndo quis, absolutamente responsavel pela perseguicéo que sofro, é-me cometido um ultraje (S, p. 90). Ele prossegue e afirma que 0 si-mesmo que softe o ultra ¢ respaldado “a ponto de substituir tudo aquilo que nos impulsiona para esse no lugar” (S, p. 90). Algo que no sou eu me impulsiona, e o “eu mesmo” surge Precisamente na experiéncia de ser impulsionada dessa maneira e como efeito dela. A passividade absolula de “ser impulsionada’ & um tipo de Perseguigdo e ultraje, no porque sou mattratada. mas porque sou tratada tnilateralmente, 0 “eu” pré-emergente que sou nao é nada mais nesse Ponto do que uma susceptibilidade radical sujeita a invasdo do Outro. Se me torno responsavel somente pelo fato de 0 Outro agit sobre mim. é porque 0 “eu” primeiro existe como um “eu mesmo" pela aco do Outro sobre mim, € essa invasdo primaria j4 ¢ desde o inicio uma interpelacdo etica Como essa substituigdo entra no quadro? Pareceria que 0 que me berseque passa a subst o eu" © que me perseque dé cngem a mim sobre mim e me incita, dé-me vida na ontologia no momento da Perseguigdo. Isso sugere no sO que se age sobre mim unialeralmente a partir de fora, mas também que esse “agir sobre” inaugura um sentido meu ‘que. desde 0 inicio, € sentido do Outro. Age-se sobre mim como objeto ‘acusativo da a¢80 do Outro, e meu si-mesmo toma forma primeiro dentro dessa acusa¢o. A forma que a perseguicdo toma & a propria substituicdo: falguma coisa se coloca em meu lugar, € surge um ‘eu que s6 pode ‘compreender seu lugar como um lugar j@ ocupado pelo outro. No inicio, ento, no sou apenas perseguida, mas também cercada, ocupada Se algo me substitui ou toma meu lugar, isso ndo significa nem que ‘esse algo passa a existir onde outrora eu exist, tampouco que eu deixo de existir, muito menos que me dissolvi no nada em virtude de ser substituida de alguma maneira, Em vez disso, a substituigao indica que uma transitvidade iredutivel, uma substituic2o que ndo é um ato nico, acontece o tempo todo (OB, p. 117). Enquanto a “perseguido" sugere que ‘algo age sobre mim a partir de fora, a “substituico" sugere que algo toma meu lugar, ou melhor, esta sempre no processo de tomar meu lugar. “Ser mantido retém” significa que algo me envolve, invade-me de modo que nao ‘consigo me libertar. indica inclusive @ possibilidade de que, em algum lugar, deve haver um resgate a ser pago por mim (mas infelizmente, em sentido kafkaesco, essa pessoa nao existe mais ou a moeda disponivel tomou-se obsoleta), E importante notar aqui que Levinas ndo diz que as relagdes primérias so abusivas ou terriveis; ele diz apenas que, no nivel mais primario, os ‘outros agem sobre nés de maneiras sobre as quais ndo temos nada a dizer, € que essa passividade, susceptibilidade e condigao de ser invadido inaugura quem sou. AS referéncias de Lévinas a formagao do sujeito no se referem a inféncia (Laplanche parece correto quando diz que a infancia nao era um fator para Lévinas) € no recebem explicag&o diacrénica, a ‘condigAo, antes, ¢ entendida como sincrbnica e infinitamente recorrente. De maneira mais importante, a condigdo de ser invadido também é um tipo de “interpelagdo”. Pode-se argumentar que é a voz de ninguém, a voz de um Deus, entendido como infinito € pré-ontoldgico, que se faz conhecida no “rosto” do Outro. Isso certamente estaria de acordo com muitas afimagdes de Lévinas sobre a invasdo primania. Para nossos Rennacitne na 'antanta trataramne n Ait am | avinae cama nertancenta 2 Il O < < 02:55 Gaal t + QA) 80% m inaugura quem sou. As referéncias de Levinas & formago do sujeito nao se reterem a infancia (Laplanche parece correto quando diz que a infancia nndo era um fator para Lévinas) e nao recebem explicagdo diacrénica, ccondicdo, antes, 6 entendida como sincr6nica e infintamente recorrente. De maneira mais importante, a condigao de ser invadido tambem @ um tipo de “interpelacdo”. Pode-se argumentar que é a voz de ninguém, a voz de um Deus, entendido como infinito e pré-ontolégico, que se faz ‘conhecida no “rosto" do Outro. Isso certamente estaria de acordo com Muitas afirmagdes de Levinas sobre a invasdo primaria, Para nossos propésitos, no entanto, trataremos o Outro em Lévinas como pertencente a uma idealizada estrutura diadica da vida social, As agées do outro me “interpelam’ no sentido de pertencerem a um Outro irredutivel, cujo “rosto" me faz uma exigéncia ética. Poderiamos dizer que “até mesmo 0 Outro que me brutaliza tem um rosto", @ isso capturana a difculdade de continuarmos eticamente responsivos para com as pessoas que nos Provocam qualquer tipo de injuria. Para Lévinas, no entanto, a exigncia ainda maior: ‘precisamente 0 Outro que me persegue tem um rosto’. Além disso, 0 rosto est4 voltado para mim, individuando-me por meio de sua interpelacdo. Enquanto a a¢o do Outro sobre mim (re)inaugura-me pela substituiblidade, 0 rosto do Outro, digamos, interpela-me de uma maneira singular, irredutivel e insubstituivel. Desse modo, a responsabilidad nao surge com 0 “eu”, mas com 0 “eu mesmo" acusativo: “Quem finaimente ‘assume 0 sofrimento dos outros sendo aquele que diz: ‘eu mesmo" (Mol) 2 Faz sentido supor que essa susceptibilidade primaria a aco e a0 rosto do outro, a completa ambivaléncia de uma interpelaco no desejada, seja ‘© que constitui nossa exposicdo 2 injiria e nossa responsabilidade pelo Outro. Tal susceptibilidade @ um recurso ético precisamente porque estabelece nossa vuinerabilidade ou exposi¢ao a0 que Lévinas chama di “feridas @ ultrajes’. Esses sentimentos, na visdo dele, sdo “peculiares @ responsabilidade”. E importante destacar que a condicao de substituico que nos da origem nos estabelece, contudo, como singulares e insubstituiveis em relago a exigéncia ética que os outros nos impdem: “o simesmo origina-se como insubstituivel, devotado aos outros, incapaz de se ceder, e portanto encamado para se oferecer, sofrer e doar” (OB, 15). Se no fosse por essa exposi¢do ao ultraje, no poderiamos responder @ demanda de assumir a responsabilidade pelo Outro, E importante nos lembrarmos de que nossa forma comum de pensar a responsabiidade é alterada na formulagéo de Lévinas. Néo assumimos a responsabilidade pelos atos do Outro como se fOssemos autores desses atos, Ao contratio, afirmamos a falta de liberdade no ceme de nossas relagées. Nao posso renegar minha relagao com 0 Outro nao obstante 0 que o Outro faca, ndo ‘obstante 0 que eu possa querer. Na verdade, a responsabilidade nao uma questo de cultivar uma vontade, mas de usar uma susceptibilidade nao desejada como recurso para se tornar capaz de responder ao Outro. Independentemente do que o Outro tenha feito, ele continuaré impondo sobre mim uma exigéncia ética, continuaré tendo um ‘rosto" ao qual sou ‘obrigado a responder — ou seja, eu sou, por assim dizer, impedida da vinganga em virude de uma relacdo que jamais escotho. De certa maneira, & um uitraje ser eticamente responsavel por alguem que n&o escolhemos. Nesse ponto, no entanto, Lévinas chama a atengao para linhas de responsabilidade que precedem e subtendem qualquer escolha possivel. Hé situag5es em que responder ao “rosto” do outro & horrivel, impossivel, e 0 desejo por vinganga assassina fem um peso opressor. Mas a relagdo primaria @ no desejada com 0 Outro exige que desistamos tanto de um voluntarismo quanto de uma agressao impulsiva fundamentada em objetivos egoistas e autopreservadores. O “rosto" Portanto, comunica uma enorme proibigao contra a agressdo direcionad 20 perseguidor. Em “Ethics and Spirit", Levinas escreve Il O < 02:55 Gd G+ QAS 80% m ‘que no escolnemos. Nesse ponto, no entanto, Levinas chama a atencao para linhas de responsabiidade que precedem © subtendem quaiquer escolha possivel. Ha situagdes em que responder ao ‘rosto’ do outro é horrivel, impossivel, @ © desejo por vinganga assassina tem um peso opressor. Mas a relagdo primaria endo desejada com 0 Outro exige que desistamos tanto de um voluntarismo quanto de uma agressdo impulsiva fundamentada em objetivos egoistas e autopreservadores. O ‘rosto’ Portanto, comunica uma enorme proibigdo contra a agressao direcionada a0 perseguidor, Em “Ethics and Spirit”, Levinas escreve: © ‘rosto, por sua pare, ¢ inviolével; aqueles oihos, absolutamente sem protegdo, a parle mais nua do corpo humano, oferece-me, no entanto, uma resisténcia absoluta posse, uma resisténcia absoluta em que se inscreve a tentagao 20 assassinio. [.] O Outro 6 0 Unico ser pelo qual é possivel se sentir tentado a matar. A tentaglo ao assassinio e a impossibilidade de matar constituem a propria visdo do rosto. Ver lum rosto ja é ouvir “Nao matards’, e ouvir “Nao mataras" ouvir ‘justiga social” (OF, p. 8) Se a “persegui¢do" pelo Outro se refere a variedade de agdes impostas Unilateraimente sobre nés sem a nossa vontade, o termo assume um sentido mais literal para Lévinas quando ele fala de injurias e, por fim, do genocidio nazista. De maneira impressionante, Lévinas escr trauma da perseguicdo", a ética consiste em ‘pasar do ultraje sotrido para a responsabilidade pelo perseguidor |... do sofrimento para a expiacdo do outro” (OB, p. 111). A responsabilidade, portanto, surge como demanda sobre 0 perseguido, e seu dilema central ¢ se deve-se ou ndo matar em resposta & perseguicéo. Trata-se, diriamos, do caso-limite da proibiggo contra a matanga, a condi¢do em que sua justficativa pareceria a mais razoavel. Em 1971, Lévinas refletiu sobre o significado do Holocausto para suas feflexdes sobre a perseguicdo e a responsabilidade. Ele certamente sabe que deduzir 2 segunda da primeira pode refletir perigosamente as ideias de quem culpa judeus € outras vitimas do genocidio nazista por seus préprios destinos. Lévinas claramente rejeita essa visdo, No entanto, ele estabelece a perseguicdo como certo tipo de exigéncia dtica oportunidade. Situa o nexo especifico da perseguigéo e da responsabilidade no niicleo do judaismo, até mesmo como esséncia de Israel. Por “Israel”, Lévinas refere-se ambiguamente aos dois sentidos da palavra: 0 povo judew e a terra da Palestina, De maneira controversa, ele sustenta que a esséncia central de Israel deriva de sua predisposicao inata linnée] para 0 sacrificio involuntario, sua exposigo ersequicao, Nao que precisemos pensar na expiagao mistica ‘que cumpriria como um héspede. Ser perseguido, ser culpado ‘sem ter cometido nenhum crime, nao é um pecado original, mas © anverso de uma responsabilidade universal - | uma responsabilidade pelo Outro [Autre] ~ mais antiga que qualquer pecado. E uma universalidade invisivell E 0 reverso de uma escolha que pde em evidéncia 0 eu mesmo [moi] antes mesmo que ele seja livre para acettar ser escolhido, Cabe aos outros decidir se querem se aproveitar dele [abuser]. Cabe ao e mesmo livie (moi libre] estabelecer os limites dessa responsabilidade ou reivindicar total responsabilidade. Mas ele 80 pode fazé-lo em nome daquela responsabilidade original, em nome desse judaismo (DF, p. 225). Il O < 02:56 Gd aa + + BAS.) 80% pecado. uma universalidade invisivell E 0 reverso de uma escola que pée em evidéncia o eu mesmo [mol] antes mesmo que ele seja livre para aceitar ser escolhido. Cabe aos outros decidir se querem se aproveitar dele [abuser]. Cabe ao a mesmo livre [moi fibre] estabelecer os limites de: responsabllidade ou reivindicar total responsabilidade. Mas el 30 pode fazé-lo em nome daquela responsabilidade original, em nome desse judaismo (DF, p. 225). Esse pardgrafo ¢ complexo © problematico por muilas razées, sobretudo pela ligacdo direta que Lévinas estabelece entre o sofimento dos judeus sob 0 regime nazista e o sofrimento de Israel, entendido como terra e povo, de 1948 a 1971, época em que escreveu essas linhas. A ‘equiparaco do destino de Israel com 0 destino dos judeus 6 controversa por si 50, pois rejeita tanto a tradigao diaspérica quanto a tradi¢ao nao sionista do judaismo. De maneira mais enfatica, é claramente errado dizer que 0 Estado de Israel sd sofreu persegui¢do durante esses anos, dado 0 deslocamento macico e forcado de mais de 800 mil palestinos de suas casas e vilarejos so em 1948, sem mencionar as privacdes provocadas pela guerra e ocupacdo continuas. E curioso que nesse aspecto Levinas derive “perseguicdo” de suas aparéncias historias concretas, estabelecendo-a como uma esséncia aparentemente atemporal do judaismo. Se isso fosse verdade, entéo qualquer argumento hist6rico ‘contrério poderia ser refutado apenas por razdes de definic&o: “Os judeus, néo podem ser persecutérios porque, por definicéo, s8o perseguidos" Essa atibuigdo da perseguirdo ao que “Israel sof € consoante sua visto strulura pré-ontolégica do sujelto. Se os judeus so considerado: leitos” por carregarem uma mensagem de universalidade, e se, para Levinas, “universal” é a estrutura inauguradora do sujeito pela perseguicao @ pela exigéncia ética, entdo 0 judeu torna-se modelo e exemplo dessa perseguic&o pré-ontoligica. O problema, obviamente, € que “o judeu’ é luma categoria que pertence a uma ontoiogia constituida culturalmente (a indo ser que seja 0 nome para acessar o préprio infnito); desse modo, se 0 judeu mantém uma condigdo “eletiva’ em relacdo a responsividade ética, entéo Lévinas confunde tolalmente 0 pré-ontolégico com 0 ontoldgico. © Judeu nao faz parte da ontologia ou da histéria; contudo, Lévinas usa essa isengo para fazer declaragées sobre 0 papel de Israel, considerado historicamente, como objeto de perseguicdo etema e exclusiva. A mesma confusdo entre os dois dominios ¢ esclarecida em outros contextos em que, com um racismo descarado, Levinas afirma que o judaismo e 0 cristianismo s&o as. precondigdes culturais e religiosas da propria relacionalidade ética e faz um alerta contra 0 “advento de incontaveis multid®es de asidticos [des masses innombrables des peuples asiatiques} © povos subdesenvolvidos [que] ameaga a recém-fundada autenticidade” (OF. p. 185) do universalismo judaico. 1860, por sua vez. 6 um eco de sua adverténcia de que a ética nao pode ser baseada em “cuituras exdticas” Nao vou expor aqui toda minha discordancia dessa argumentacéo (que ¢ complexa e tenaz), mas gostaria de destacar que, para Levinas, hd uma vacilagao entre o sentido pré-ontolégico de perseguiro — associado @ uma invasdo que acontece antes da minha ontologia e 0 sentido plenamente ontologico que define a “esséncia’ de um povo. De maneira semeinante, por meio de uma aposicao no final do paragrafo, “o nome da responsabilidade original” alinna-se ao “nome desse judaismo", e nesse ponto parece claro que essa responsabilidade original, e por isso pré- ontologica, & igual a esséncia do judaismo. Para que seja uma caracteristica distintiva do judaismo em particular, ela ndo pode caracteristica distintiva de todas as religiées, ixa iso claro quando faz um alerta contra tod: » 02:56 Gaal t + 80% @ invasdo que acontece antes da minha ontologia ~ o sentido plenamente ‘ontolégico que define a “esséncia’ de um povo De maneira semelhante, or meio de uma aposicAo no final do pardgrafo, “o nome da responsabilidade original" alinha-se ao “nome desse judaismo’, e nesse Ponto parece claro que essa responsabilidade original, e por isso pré- ‘ontoldgica, ¢ igual a esséncia do judaismo, Para’ que seja uma caracteristica distiniva do judaismo em particular, ela n&o pode ser caracteristica distintva de todas as religides, e Levinas deixa isso claro ‘quando faz um alerta contra todas as tradicdes religiosas que ndo se referem a historia dos santos e a Abrado, Isaac e Jaco (OF. p. 165). Ainda ‘que sua versdo seja um relato implausivel e ultrajante do povo judeu, identificado problematicamente com Israel e concebido apenas como ‘objeto de perseguic8o e nunca como perseguidor, @ possivel interpretar sua exposig8o contra o préprio Lévinas, por assim dizer, e chegar a uma conclusdo diferente. Na verdade, as palavras de Lévinas nesse aspecto carregam feridas e ultrajes, e representam um dilema ético para quem se prope a interpreta-las. Embora ele circunscreva determinada tradicao Teligiosa como a precondigdo da responsabilidade ética, colocando outras tradigdes como ameagas a ética, para nds faz sentido insist’. por assim dizer, em um encontro cara a cara justamente aqui, quando Levinas diz {que tal encontro no pode ser feito. Além disso, por mais que ele nos fira, 0u talvez justamente porque nos fere, somos responsaveis por ele, mesmo ‘quando a relacdo se prova dolorosa em sua falta de reciprocidad. Outro. Os dois sao fundamentalmente ligados, e vemos 0 correlato objetivo disso no valor duplo do rosto: “A tentaco de matar e a impossit fazé-lo constituem a propria visao do rosto’. Ser perseguido pode levar a0 assassinato como resposta, até mesmo 0 deslocamento da agressdo assassina para aqueles que de modo nenhum foram autores das injdrias elas quais se busca vinganga, Para Levinas, no entanto, a exigéncia ética Surge precisamente da humanizacéo do rosto: este que estou tentado a matar por autodefesa é “aquele” que me faz uma reivindicagao, impedindo- me de me transformar, inversamente, em perseguidora. Uma coisa é ~argumentar que a responsabilidade surge da situacdo de ser perseguido - trata-se de uma afirmagéo convincente e nada intuitiva, principaimente se @ responsabilidade nao significa identificar-se como causa da ado injuriosa do outro. Mas argumentar que qualquer grupo constituido historicamente sempre ocupa, por definigao, a posigdo de perseguido e nunca de perseguidor parece ndo $6 perturbar 0s niveis ontolégicos e pré- ‘ontolégicos como também permitir uma irresponsabilidade inaceitavel e recurso ilimitado @ agressdo em nome da “autodefesa™. Com efeito, os judeus tém uma historia culturalmente complexa que inclui 0 sofrimento ‘com antissemitismo, pogroms @ campos de concentragao onde mais de seis milhdes de pessoas foram assassinadas. Mas também existe a historia de tradic6es religiosas e culturais, muitas delas pré-sionistas, e a historia, mais debatida do que se costuma reconhecer, de uma relacao ‘com Israel como um ideal complexo, Dizer que a persequicao a essancia do judaismo nao s6 sobrepuja a agdo e a agressao realizadas em nome do judaismo, mas também inviabiliza uma analise cultural e historica que teria de ser complexa e especitica feta pelo recurso a uma unica condigao pré- ‘ontolégica, uma condigdo que, entendida como universal, ¢ identificada ‘como a verdade trans-histérica e definidora do povo judeu E dificil evocar 0 dominio “pré-ontolégico’ a que se refere Levinas (do qual ele diz que qualquer representacdo seria uma “traico7), pois ele parece insurgir no ontolégico, onde deixa sua marca. Qualquer representacdo finita trai a infnidade representada, mas as representacoes caregam 4 marca do infinite. A “inaugura¢ao" do sujeito acontece através da invasao pela qual se comunica uma exigéncia ética infinita. Mas essa HH O < 02:56 Gd G+ QANS) 80% m de ser complexa e especifica, feita pelo recurso a uma tnica condigao pré- ‘ontoldgica, uma condi¢do que, entendida como universal, é identificada como a verdade trans-histdrica e definidora do povo judeu E dificil evocar 0 dominio “pré-ontol6gico" a que se refere Lévinas (do qual ele diz que qualquer representacdo seria uma ‘traico’), pois ele parece insurgir no onloldgico, onde deixa sua marca, Qualquer Tepresentagdo finta trai a infinidade representada, mas as representacoes ‘carregam a marca do infinito. A “inauguracao” do sujeito acontece atravas da invasdo pela qual se comunica uma exigéncia ética infinita. Mas essa ‘cena nao pode ser narrada no tempo; ela se repete ao longo do tempo e Pertence a uma ordem que no a do tempo. E interessante, nesse ponto, fecordarmos a breve critica de Laplanche a Levinas, centrada na incapacidade da posicao levinasiana de explicar a formagéo diacrénica do sujeito humano. Enquanto Lévinas explica a inauguracdo do “eu mesmo" por meio de uma cena priméria da invasdo pré-ontoldgica, cena esta ‘concebida sincronicamente, Laplanche considera o infante, a repressdo Primaria e a formagao dos objetos-fontes que se tommam 0 gerador interno ddas pulsdes e sua recorrente opacidade. Para ambos, no entanto, 0 primat ‘ou @ impressao do Outro é primaria, inauguradora, endo ha formagao de um “eu mesmo" fora dessa invasdo originaimente passiva e da responsividade formada no crisol dessa passividade © Infante de Laplanche € “oprimido” por uma seduc8o generalizada imposta pelo mundo adulto sexualizado, incapaz de receber “mensagens* sexuais que, em sua forma enigmatica e incompreensivel, tomam-se interiorizadas como um dinamismo opaco em seus impulsos mais primarios. A demanda sexual enigmatica do mundo adulto ressurge como demanda sexual enigmatica de meus préprios impulsos @ pulsOes. As Pulsées s&o formadas como consequéncia dessa invasdo por parte do mundo, portanto nao existe um Eu ja pronto e dotado de suas proprias puls6es internas’ existe apenas uma interioridade e um Eu produzido como feito de uma interiorizago dos significantes enigmaticos que surgem no mundo cultural mals amplo. O “eu mesmo” de Levinas surge ndo pela sedugdo, mas pela acusagdo € perseguigdo, e ainda que em resposta a esse cendrio se constitua uma possibildade de agressdo assassina, esta se iguala a uma responsividade ética que parece existir desde o principio, uma caracteristica constitutiva de uma susceptibilidade humana primaria em relago ao Outro No fundo, @ posigao levinasiana n&o & compativel com a posi¢ao psicanalitica, ainda que pareca que essa perseguigdo primaria seja paralela @ nogdo laplanchiana de uma interpelacao priméria que oprime, Laplanche sustenta que 0 inconsciente ndo pode ser compreendido como “meu” inconsciente, como algo baseado num eu jé existente, algo que pode se converter em consciéncia ou, na verdade, 0 Eu. Isso ndo parece Se enquadrar na caricatura da psicandlise oferecida por Lévinas, principalmente quando ele afirma que a postulacéo do inconsciente & incl Caberia esperar que o que ele diz lidasse com o tipo de posigao que temos lido em Laplanche. O “lado de la” da consciéncia nao é o inconsciente, dizLévinas; “o inconsciente, em sua clandestinidade, repete 0 jogo feito na consciéncia, a saber, a busca de sentido e verdade como busca do si mesmo" (S, p. 83). Para Laplanche, nao existe restabelecimento da consciéncia-de-si, bem como decerto nao ha conversdo do Isso ou do inconsciente em Eu ou em consciéncia, e isso continua sendo o nucleo de sua luta com as formas de psicologia do Eu que buscam justamente esses objetivos. A consciéncia de si é sempre motivada, de maneira bem literal, Por uma alteridade que se torna intema, um conjunto de significantes enigmaticos que pulsam através de nos de maneiras que nos tornam permanente e parcialmente estranhos para nos mesmos. Embora tanto Laplanche como Lévinas endossem nogdes de Il O < 02:56 fd @ + BAS.) 80% mesmo” (S, p. 83). Para Laplanche, nao existe restabelecimento da ‘consciéncia-de-si, bem como decerto no ha conversao do Isso ou do inconsciente em Eu ou em consciéncia, e isso continua sendo 0 nucleo de sua luta com as formas de psicologia do Eu que buscam justamente esses objetivos. A consciéncia de si é sempre motivada, de maneira bem literal por uma alteridade que se tora intema, um conjunto de significantes enigmaticos que pulsam através de nés de maneiras que nos tomam permanente e parcialmente estranhos para nos mesmos. Embora tanto Laplanche como Lévinas endossem nogées de passividade primaria e identifiquem 0 Outro nos primordios do “eu mesmo", as diferencas entre os dois sdo significativas. Se analisarmos Profundamente a explicagdo que Laplanche da para a pulsdo, por exemplo, descobriremos que ela é iniciada e estruturada pelo significante ‘enigmatico. N&o somos capazes de determinar com clareza se a pulsdo ja est em jogo quando 0 trauma primério acontece. Mas o deslocamento parece ocorrer apenas em virtude do trauma, e esse desiocamento inicia a pulséo e a separa de sua condigao biolégica minima, entendida como “instinto” 2 Se, para Laplanche, ha uma impoténcia primaria no rosto de mensagens sexuais enigmaticas transmitidas pelo mundo adult, e se isso precipita uma regressdo. primaria e a interiorizagao do significante enigmatic, pareceria, ent&o, que essa impressionabilidade primaria n&o é apenas “passiva’. Antes, ela ¢ impotente, ansiosa, assustada, oprimida por fim, desejosa. Em outras palavras, uma série de respostas afetivas acontece no momento em que se da uma invasao, Levinas nao defende a nogao de um conjunto primario de necessidades ou pulsdes, embora faga alusdo a uma nogdo elementar de agressao ou impulso assassino quando afirma que a ética deve atuar contra a tentagao ‘que ¢ matar 0 Outro, Para Laplanche e Lévinas, no entanto, esses afetos Primarios, seja agresséo ou pulsdo, s40 consequéncias de uma invasdo anterior por parte do Outro, e por isso s8o sempre “secundarios” nesse sentido. Enquanto Laplanche sustenta uma passividade priméria indissoluvelmente associada a uma responsividade ética, Laplanche sustenta que existe uma indissolubilidade primaria da impressdo e da pulsdo. Para Laplanche, 0 mundo aduto transmite para as criangas mensagens predominantemente enigmaticas que produzem uma sensagéo de impoténcia e instigam 0 desejo de controle. Mas essas mensagens nao provocam apenas uma impresséo. Elas so registradas, tomadas pela pulsdo e adentram nas formas que a pulséo assume posteriormente, Trata- se de um terrtério ardiloso, pois seria um erro responsabilizar as criangas pelas mensagens que recebem. Essas mensagens sempre chegam, em primeiro lugar. sem serem solicitadas pelos infantes ou pelas criancas. No fentanto, a luta @ a tarefa dessa pessoa em formacao passam a ser sentido para essas mensagens, encontrar para elas um lugar e, ni ‘adulta, lidar com 0 fato de que foram registradas em nivels que a consciéncia ndo consegue recuperar totalmente Podemos dizer que a experiéncia de sofrer uma imposico desde o inicio, contra a propria vontade, aumenta o senso de responsabilidade? Sera que destruimos sem saber a possibilidade de agdo com todo esse discurso sobre sermos entregues, estruturados, interpelados? Na experiéncia adulta, nao ha dlividas de que sofremos todos os tipos de injuria, inclusive violagSes. Estas expdem algo de uma vulnerablidade impressionabilidade primarias e podem bem lembrar_ experiéncias primarias de maneiras mais ou menos traumdticas. Essas experiéncias formam a base de um senso de responsabilidade? Em que sentido podemos entender que um elevado senso de responsabilidade surge da experiéncia de ter sofrido injurias ou violagSes? ‘Consideremos por um momento que por “responsabilidade” n3o me refs a um senso moral elevada que consiste simolesmenia na Il O < 02:56 Gd G+ QA. 80%H experiéncia adulta, no ha duvidas de que sofremos todos os tipos de injuria, inclusive violagdes. Estas expdem algo de uma vuinerablidade & impressionabilidade primarias e podem bem lembrar experiéncias primarias de maneiras mais ou menos traumdticas. Essas experiéncias formam a base de um senso de responsabilidade? Em que sentido podemos entender que um elevado senso de responsabilidade surge da ‘experiéncia de ter sofrido injirias ou violagées? Consideremos por um momento que por “responsabilidade" nao me fefiro a um senso moral elevado que consiste simplesmente na inteniorizagao da raiva e na sustentacao do Supereu. Tampouco me refiro a um senso de culpa que busca encontrar uma causa para o que sofremos fem nos mesmos. Certamente, essas sSo respostas possiveis e predominantes a injiria e a violéncia, mas so respostas que elevam a feffexividade, sustentando 0 sujet, suas pretensoes de autossuficiencia sua centralidade @ indispensabilidade para 0 campo de sua experiéncia. A ‘ma consciéncia uma forma de narcisismo negativo, como tanto Freud quanto Nietzsche nos mostraram de diferentes maneiras. , sendo uma forma de narcisismo, ela se afasta do outro, da impressionabilidade, da susceptibilidade e da vulnerabildade, As inumeras formas de ma consciéncia analisadas por Freud e Nietzsche nos mostram que as formas moralizantes de subjetividade usam e exploram os impulsos que buscam cercear. Além disso, mostram que o préprio instrumento de repress8o se forja nesses impulsos, criando um circuito tautologico em que o impulso alimenta a lei que 0 proibe. Mas existe uma teorizacao da responsabilidade por rds da ma conscincia? Na medida em que a ma consciéncia provoca 0 retraimento do sujeito no narcisismo, até que ponto ela no age contra a responsabilidade, precisamente porque forciui a relago primaria com a alteridade que ‘nos anima, e da qual surge a possibildade da responsividade ética? ‘© que poderia significar softer uma violagao, insistir em ndo superar a dor e no estancar 2 vulnerabllidade to rapidamente votando-se @ violencia, e praticar, como experiéncia em outro modo de vida, a nao violencia em uma’ resposta enfaticamente n&o reciproca? © que signcaria, frente @ violencia, recusar-se a retom la? Talvez tenhamos de pensar, consoante Levinas, que a autopreservagao nao é o maior objetivo, € que a defesa de um ponto de vista narcisista ndo 6 a necessidade psiquica mais urgente. O fato de sofrermos uma invas8o primaria contra nossa vontade ¢ sinal de uma vulnerabilidade e de um estado de obrigagao que nao podemos ignorar, por mais que queiramos. S6 podemos nos defender disso colocando a insociabilidade do sujeito ‘acima e contra uma relacionalidade ificl, intratavel e muitas vezes insuportavel. © que poderia significar criar uma ética partindo da regido do do desejado? Significana que nao forclulmos essa exposicSo primaria ao Outro, que ndo tentamos transformar 0 ndo desejado em desejado, mai sim tomar o proprio carter insuportavel da exposico como signo, como lembrete, de uma vulnerabilidade comum, uma fisicalidade e um risco (mesmo que “comum” nao signifique “simétrico" para Lévinas) E sempre possivel dizer “Ah, sofri um tipo de violéncia e isso me dé permissdo para agir de acordo com o signo da ‘autodefesa”. Muitas atrocidades s4o cometidas sob o signo da “autodefesa’, que, justamente Por obter uma justificativa moral permanente para a retaliagdo, nao conhece um fim e nao pode ter fim. Tal estratégia desenvolveu uma maneira infinita de renomear sua agressdo como sofrimento, e assim fornece uma justificativa infinita para sua agresso. Ou é possivel dizer que “eu” ou “nds” provocamos em nos mesmos essa violéncia, e desse modo explicé-la por meio de nossos feitos, como se acreditassemos na ‘onipotencia desses feitos e que eles fossem a causa de todos os efeitos possiveis. Com efeito, esse tipo de culpa exacerba nosso senso de Wl O < » 02:56 Gd aa + + BAS.) 80% atrocidades s80 cometidas sob 0 signo da “autodefesa’, que, justamente Por obter uma justificativa moral permanente para a retaliagao, nao conhece um fim e nao pode ter fim. Tal estratégia desenvolveu uma maneira infinita de renomear sua agress8o como sofrimento, e assim fomece uma justiicativa infinita para sua agressdo. Ou & possivel dizer ‘que “eu ou "nds" provocamos em nos mesmos essa violencia, e desse modo explica-la por meio de nossos feitos, como se acreditassemos na onipoténcia desses feitos ¢ que eles fossem a causa de todos 0s efeitos possiveis. Com efeito, esse tipo de culpa exacerba nosso senso de ‘onipoténcia, 8 vezes Sob 0 signo de sua critica. A violencia néo é uma Punigdo justa que sofremos, tampouco uma vinganca justa pelo que sofremos. Ela delineia uma vuinerabilidade fisica da qual no podemos escapar, que nao podemos finalmente resolver em nome do sujeito, mas que pode ajudar a compreender que nenhum de nés est delimitado por completo, separado de todo, mas sim que estamos todos em nossa propria pele, entregues nas maos dos outros, a merce dos outros. Essa @ uma situagdo que nao escolhemos. Ela forma o horizonte de escohha e fundamenta nossa responsabilidade. Nesse sentido, somos responsaveis, por ela, pois ela cria as condigées em que assumimos a responsabilidade. Nao a criamos, e por isso devemos estar atentos a ela Adorno sobre tornar-se humano © mistério da justica no amor é a ab-rogaco do direito que o amor reclama nos seus gestos sem palavras. ‘Adorno, Minima Moralia © modo como respondemos a injuria pode oferecer uma chance de elaborarmos uma perspectiva ética e até de nos tomarmos humanos. ‘Adomo trata dese ponto de diversas maneiras. Ele parece estar falando sobre a ética privada na seguinte passagem de Minima Moralia, mas ha Jmplicag6es polticas mais amplas para o que escreve: © humilhado @ rejeitado apercebe-se de algo, tao cruamente quanto a luz que dores intensas langam sobre 0 proprio corpo. Ele se da conta de que no mais intimo do amor cego, que nada sabe disso nem pode saber, vive @ exigéncia do no cegado. Fizeram-Ihe injustiga; disso ele deriva a demanda do direito e no mesmo passo € obrigado a abrir mao dela, pois o que deseja sé pode provir da liberdade. Nesse infortiinio o rejeitado torna-se humano A afirmagao de que “nesse infortinio o rejeitado toma-se humano” parece racionalizar a injiria ou elogiar suas virtudes, Mas acredito que nem Adorno nem Lévinas fagam um elogio assim.: Em vez disso, ambos acettam a inevitabilidade da injiria, junto com uma complexa situacdo ‘moral que surge como consequéncia da injuria sofrida, Contra aqueles que afirmariam que a ética ¢ a prerrogativa dos poderosos, podemos dizer que 36 6 possivel compreender determinada concepgo de responsabilidade a partir do ponto de vista do injuriado, Qual sera a resposta a injuria? E, na linguagem de um admonitorio slogan politico de esquerda, nds “nos tomamos 0 mal que deploramos"? Se, como observa Adomo, “no mais intimo do amor cego |... vive a exig&ncia do ndo cegado", entéo o amor @ corresponder & primazia do encantamento, ao faio de que, desde 0 inicio, estamos encerrados em um modo de reiacionalidade que ndo pode ser totalmente tematizado, sujeito a reflexo e cognitivamente conhecido. Esse modo de relacionalidade, cego por definicao, toma-nos fOssemos seres < 02:57 Gla t + @QAS | 80% mH partir do ponto de vista do injuriado. Qual sera a resposta a injuria? E, na linguagem de um admonitério siogan politico de esquerda, nds “nos tomamos © mal que deploramos"? Se, como observa Adomo, “no mais intimo do amor cego [..] vive a exigéncia do ndo cegado", entdo o amor ego parece corresponder a primazia do encantamento, ao fato de que, desde 0 inicio, estamos encerrados em um modo de relacionalidade que nao pode ser totalmente tematizado, sujeito a reflexdo e cogntivamente ‘conhecido. Esse modo de relacionalidade, cego por definicao, torna-nos ‘wuinerdveis 4 traigdo @ ao erro. Podemos até desejar que fossemos seres totalmente perspicazes. Mas isso equivaleria a renegar a infancia, a dependéncia, a relacionalidade, a impressionabildade primatia; seria desejar erradicar todos os tragos ativos e estruturadores das nossas formagées psicoldgicas e viver na ficcdo de sermos adultos totalmente instruidos e conhecedores de si. Na verdade, seriamos 0 tipo de seres ‘que. por definig&o, no poderiam se apaixonar, seriam cegos é fenceguecidos, vulneraveis @ devastacdo, sujeitos a0 encantamento. Se Fespondéssemos a injiria dizendo que temos o “direito” de nao ser tratados de tal maneira, estariamos tratando 0 amor do outro como uma legitimagéo, endo como dadiva, Sendo dadiva, ele carrega a qualidade insuperdvel da gratuidade. E, na linguagem de Adorno, uma dadiva dada ‘em liberdade, Mas a atternativa é contrato ou liberdade? Ou, como nenhum contrato pode nos garantir 0 amor, seria igualmente errado concluir que o amor é dado em um sentido radicalmente livre? Com efeito, a falta de liberdade {que existe no ceme do amor ndo pertence ao contrato. Afinal de contas, 0 amor do outro sera inevitavelmente cego mesmo em seu saber. O fato de estamos obrigados no amor significa que. em parte, no sabemos por que amamos como amamos e por que exercemos invariavelmente mal nosso juizo. Com bastante frequéncia, 0 que chamamos de “amor" envolve sermos forgados por nossa propria opacidade, nossos proprios lugares de desconhecimento e, com efeito, nossa propria injuria (€ por isso que, por ‘exemplo, Melanie Kiein insiste que as fantasias de reparacSo estruturam 0 amor). Na passagem supracitada, no entanto, Adorno faz um movimento ‘em que 0 sujeito € obrigado a reclamar um direito para nao ser rechacado €, ao mesmo tempo, resiste a reclamar © direito. E possivel interpretar ‘esse movimento como uma contradicao paralisante, mas nao acho que ele quisesse cizer isso. Ao contrério, trata-se de um modelo de amplitude ética, que entende a forga alrativa da reciamagao ¢ ao mesmo tempo resiste a ela, apresentando um gesto ambivalente como aco da propria ética, Buscamos preservar a nés mesmos contra o cardter injurioso do ‘outro, mas se conseguissemos nos solar da injiria atrés de um muro, nbs ‘nos tomariamos inumanos. Nesse sentido, cometemos um erro quando tomamos a “autopreservago" como esséncia do humano, a n&o ser que afirmemos igualmente que 0 “inumano” constitui 0 humano. Um dos Probiemas em afirmar a autopreservacao como base da ética € que esta se torna a pura ética do si-mesmo, talvez até uma forma de narcisismo moral. Ao persistir na indecisdo entre 0 desejo de reciamar um direito ante tal injuria @ a resisténcia a reclamacao, torna-se humano” Como vemos. “tornar-se humano" nao é tarefa simples, e nem sempre & claro quando nos tornamos humanos ou se o conseguimos. Ser humano Parece sero mesmo que estar em uma situagdo impossivel de ser resolvida Na verdade, Adorno deixa claro que n&o pode definir o que ¢ 0 humano. Se o humano for alguma coisa, parece ser um movimento duplo, ‘em que afirmamos as normas morais 40 mesmo tempo que questionamos: nossa autoridade para fazer tal afirmacdo. Em sua ultima conferéncia sobre moral, escreve: “Precisamos nos agarrar as normas morais, & autocritica, a questao do certo e do errado, e ao mesmo tempo a um senso de falibiidade [Fehibarkeif| da autoridade que tem a seguranca para Il O < > 02:57 Gla t + @AES | 80% ¢ claro quando nos tornamos humanos ou sé 0 conseguimos. Ser humano parece ser 0 mesmo que estar em uma situagdo impossivel de ser resolvida. Na verdade, Adorno deixa claro que n&o pode definir o que € 0 humano. Se 0 humano for alguma coisa, parece ser um movimento duplo, em que afirmamos as normas morais ao mesmo tempo que questionamos nossa autoridade para fazer tal afirmacao, Em sua ultima conferéncia sobre moral, escreve: “Precisamos nos agarrar as normas morais, & autocritica, @ questo do certo e do errado, e ao mesmo tempo a um senso de falibiidade [Fehibarkeit] da autoridade que tem a seguranca para realizar essa autocritica’ (PMP, p. 169). Imediatamente depois, deciara que, embora parega estar falando sobre moral, também estd articulando significado do humano Reluto usar o termo *humanidade” nessa conjuntura pois 6 termo das expresses que reificam e falsificam quest6es cruciais ‘simplesmente por tocar nelas. Quando os fundadores da Unio Humanista convidaram-me para fillagdo, respondi que “talvez eu ‘me sentisse propenso a entrar para Seu clube caso se chamasse Unido Desumana, mas ndo poderia me juntar a um que se ‘autoproclama ‘humanista”. Se hei ento de usar o termo aqui, logo um aspecto indispensavel de uma humanidade que reflete sobre si mesma & no permitir que se distraia. Tem de haver um elemento de persisténcia permanente [Unbeirrbarkeil|, de nos prendermos ao que pensamos ter aprendido com a experiéncia, ©, por outro lado, precisamos de um elemento n&o so da autocritica, mas da critica daquele algo irredutivel © inexoravel {an jenem Starren und Unerbittlichen) que se estabelece em nds. Em outras palavras, @ necessério, acima de tudo, essa consciéncia da nossa propria falibiidade (PMP, p. 169) Existe algo iredutivel que se estabelece em nds, que se instala dentro de nés, que constitui o que ndo conhecemos @ nos toma faliveis. Por outro lado, podemos dizer que, na realidade, cada ser humano deve se haver com a prépria falbilidade. Mas Adomo parece sugerir que alguma coisa a respeito dessa faliblidade dificuta falar sobre o humano, reivindica-io, que talvez seja melhor entendé-io como "o inumano". Quando escreve, algumas linhas depois, que ‘a verdadeia injustica é sempre se encontrar no ponto preciso em que nos colocamos no lado correto € colocamos os outros no lado incorreto" (PMP, p. 169), ele situa a moralidade ao lado da restrigéo, da “ndo adesdo", opondo-se a Enfschlossenheit ou decisio heideggeriana com a sugestéo de que a moral consiste em se abster da afirmagdo de si, O Odradek de Katka representa essa refutagdo do primeiro Heidegger. Essa ‘criatura” ou “coisa” ~ que lembra um carretel de linha, mas parece ser 0 filho do narrador, mal se equilibra em duas de suas pontas e desce rolando as escadas em perpetuidade - 6 certamente uma figura para o ser desumanizado que ¢ estranhamente animado por sua desumanizacao, cuja risada parece 0 “cochicho de folhas caidas" e cuja condigéo humana @ radicalmente incerta. Adorno entende esse personagem de Katka como condicionado por certo fetichismo da mercadoria, em que as pessoas se tornaram objetos, e 05 objetos se tomaram animados de maneiras macabras. Para Adomo, Odradek modifica efetivamente 2 doutrina de Heidegger, lembrando entéo 0 que Marx fez com Hegel, uma vez que Odradek toma-se a figura desse gest que descarta a propria nogdo de vontade ou Entschlossenheit pela qual se define o humano. Se o humano, em sua formulagdo existencialista inicial, € definido como definidor de sie afirmador de si, entéo o controle de si destitui efetivamente 0 humano. A afirmacao de si, para Adomo, esta ligada ao Hl O < 02:57 Gd Ga + + QA.) 80% mercadoria, em que as pessoas se tornaram objetos, © os objetos se tomaram animados de maneiras macabras. Para Adorno. Odradek modifica efetivamente @ doutrina de Heidegger, lembrando entéio o que Marx fez com Hegel, uma vez que Odradek toma-se a figura desse gesto ‘que descarta a propria nogdo de vontade ou Entschiossenheit pela qual se define o humano. Se 0 humano, em sua formulagdo existencialista inicial, ¢ definido como definidor de sie afirmador de si, entéo o controle de si destitul efetivamente 0 humano. A afirmacao de si, para Adorno, esta ligada ao principio da preservacdo de si que, consoante Lévinas, ele questiona como valor moral supremo. Afinal, se a afirmiaco de si torna-se a afirmagao do si:mesmo a custa de qualquer consideracao do mundo, das consequéncias € inclusive dos outros, ela alimenta um “narcisismo’ moral” cujo prazer reside em sua capacidade de transcender o mundo concreto que condiciona suas agbes e ¢ afetado por elas, Embora Adomo diga que poderia se juntar a uma sociedade que se define como grupo para 0 “inumano" e aponte para a figura inumana de ‘Odradek para formuiar uma concepcao de sobrevivéncia esperanca, ele acaba no defendendo 0 inumano como um ideal © inumano, ao contrério, estabelece um ponto critico de afastamento para uma andlise das condigdes sociais sob aS quais 0 humano & constituido e desconstituido. Adomo mostra que, em Kafka, 0 inumano torna-se uma maneira de sobreviver @ organizaggo corrente da sociedade ‘humana’ uma persisténcia animada daquilo que, em grande medida, foi devastado; esse sentido, “o inumano” facilta uma critica imanente do humano € toma-se 0 traco ou 2 ruina pela qual o humano continua a viver (fortieben), © “inumano” também é uma forma de mostrar como as forgas sociais se instalam dentro de nés, impossibilitando a defnicdo de nds mesmos em termos de livre-arbitrio, Por fim, o “inumano designa como 0 mundo social se impde sobre nés de maneiras que nos tomam invariavelmente desconhecedores de nés mesmos. Obviamente, temos de lidar com 0 “inumano” enquanto passamos pela vida moral, mas isso ndo significa que 9 “inumano” se tome, para Adomo, uma nova norma. Ao contrario, ele no celebra 0 “inumano’ e inclusive recomenda condend-lo em definitivo. Posicionando-se contra o que ele diz ser o pseudoprobiema do relativismo moral, escreve ele: Talvez no saibamos o que é 0 bem absoluto ou a norma absoluta, talvez tampouco saibamos 0 que ¢ 0 homem ou 0 humano [das Menschliche] ou a humanidade [aie Humanitet) — mas 0 que € 0 inumano [das Unmenschiiche] sabemos muito bem. Diria que 0 lugar da filosofia moral hoje esta mais na condenagdo concreta do inumano do que nas tentativas vagas [Unverbindlichen] abstratas de situar o homem em sua existéncia (PMP. p. 175). ‘Adorno, portanto, convoca a acusa¢éo do inumano. Deixa claro, no entanto, que © inumano é exatamente do que precisamos para nos tomarmos humanos. Afinal, se estarmos expostos 4 rejeicéo do outro nos ‘obriga a afirmar um direito que ao mesmo tempo devemos nos abster de afirmar, colocando em questo a legtimidade dessa afimacao, entéo esse ditimo gesto, caracterizado pela restrico e pelo questionamento, 16s incorporamos 0 “inumano” oferecendo uma critica da vontade, da afirmacdo e da resolugdo como pré-requisitos do humano. Nesse sentido, (© “inumano” ndo ¢ 0 Oposto do humano, mas um meio essencial de nos tomarmos humanos na destituigdo de nossa condigdo humana e através dela. Podemos concluir que Adomo nos ofereceu aqui uma outra visdo do humano, uma visto em que a restrigéo da vontade @ 0 que define 0 Wl O < 02:57 Gd le QAES 0) 80% ‘obriga a afirmar um direito que ao mesmo tempo devemos nos abster de afirmar, colocando em questéo a legtimidade dessa afirmagao, entéo esse ultimo gesto, caracterizado pela restrigSo © pelo questionamento, 16s incorporamos 0 “inumano™ oferecendo uma critica da vontade, da afirmagao @ da resolugao como pré-requisitos do humano. Nesse sentido, ‘0 “inumano” ndo @ 0 oposto do humano, mas um meio essencial de nos tomarmos humanos na destituico de nossa condigéo humana e através dela. Podemos concluir que Adomo nos ofereceu aqui uma outra visao do humano, uma vis8o em que a restric&o da vontade ¢ 0 que define o humano’ como tal. Poderiamos inclusive dizer que, para ele, quando o humano 6 definido pela vontade e recusa 0 modo como é invadido pelo mundo, deixa de ser humano. Com efeito, a nica maneira de entender ‘Adorno nesse aspecto @ aceitando que nenhuma concepgaio do humano ‘que 0 defina pela vontade ou, alternativamente, destitua-o de toda vontade Pode ser valida. Na verdade. 0 ‘inumano” surge para Adorno tanto como figura da pura vontade (eviscerada da vulnerabilidade) quanto como figura de nenhuma vontade (reduzida 4 destituigéo). Se ele se opde a desumanizacdo, entendida como subjugag4o dos seres humanos privando-os da vontade, néo porque quer que sejam definidos pela Vontade. A solugdo individualista que identiicaria a vontade com a norma definidora da condigao humana nao 6 retira o individual do mundo como também destroi a base do envolvimento moral com o mundo. Fica dificil condenar aqui a invasao violenta sobre a vontade sem adotar a vontade Como condicao definidora do humano. Com efeito, a invasao ¢ inevitavel: do ha “direito” que possamos afirmar contra essa condigdo fundamental ‘Ao mesmo tempo, decerto podemos, e devemos, criar normas para julgar diferentes formas de invasdo, fazendo uma distingdo entre sua dimenso inevitavel @ insuperavel, de um lado, e suas condigdes socialmente contingentes e reversiveis, de outro. Até mesmo a “condenagdo" feita por Adomo do inumano mostra-se equivoca, uma ver que também ele requer esse termo para sua Concepgao do humano. Quando pede por sua condenacdo, ele ocupa a posigéio moraimente correta de quem sabe precisamente o que rechagar. No momento em que condena o “inumano’, ele 0 associa aos tipos de desumanizacdo a que se opde. Mas claramente ele favorece outras forma: de desumanizagdo, principalmente quando envolvem uma critica da vontade © 0 reconhecimento de uma sociabilidade constituida historicamente. Com efeito, a acusacdo parece ser um ato deliberado caracteristico da ética da convicc8o, uma ética individualista, quiga totalmente narcisista. Adomo, portanto, no ato de acusacéo, ocupa essa Posigéo para nos, mostrando, com efeito, que tal posicdo serd inevitavelmente ocupada de alguma maneira. Em suas reflexdes sobre a moralidade, no entanto, a acusacdo ndo € 0 Unico modelo de juizo moral Na verdade, ela também pertence a ética da conviegdo, e ndo a ética da responsabilidade, e esta ultima caracteriza 0 projelo que Adorno leva adiante em suas conferéncias sobre a moral. A convicgao parece pertencer a uma ética que entende o si-mesmo como fundamento e medida do juizo moral, Para Adorno, na mesma linha de Max Weber, a responsablidade tem a ver com assumir uma acdo no contexto de um mundo social onde as consequéncias importam.? A caracterizagao que Adomo faz do kantismo como forma de narcisismo moral parece ter origem nessa convicgo, sugerindo da mesma maneira que toda posicéo deontolégica que recusa o consequencialismo corre 0 risco de retomar ao narcisismo e, nesse sentido, ralificar a organizacio Social do individualismo. Segundo a versao do kantismo que endossa “um. ideal da razéo abstrata’, a propria capacidade de errar, de estar enceguecido, de cegar ou cometer uma “mentira vital’ é excluida da concepgo de humano. Ser verdadeiro, de acordo com esse modelo de i} < 02:57 Gamat + @QAS 80% contexto de um mundo social onde as consequéncias importam = A caracterizagao que Adomo faz do kantismo como forma de narcisismo ‘moral parece ter origem nessa convic¢do, sugerindo da mesma maneira ‘que toda posigo deontoldgica que recusa 0 consequencialismo corre 0 fisco de retomar ao narcisismo e, nesse sentido, ratificar a organizagao social do individualismo. Segundo a verséo do kantismo que endossa ‘um ideal da razéo abstrata’, a propria capacidade de errar, de estar enceguecido, de cegar ou cometer uma “mentira vital’ @ excluida da concep¢do de humano. Ser verdadeiro, de acordo com esse modelo de kantismo proposto por Adorno, significa seguir a injungao “ser idéntico @ si mesmo. E nessa identidade, no que poderiamos chamar de redugdo da: ‘demandas morais a ser verdadeiro consigo e nada mais. @ natural que se evaporem todos 0s principios especificos sobre como’ deveriamos nos ‘comportar, a tal ponto que, segundo essa ética, pode-se acabar sendo um verdadeiro homem se se & um verdadeiro patife [Schurke], ou seja, consciente e transparente" (PMP, p. 61). Na verdade, Adorno defende esse argumento mais enfaticamente ‘quando diz, com Ibsen, que formas de pureza moral costumam ser ‘nutridas por um “egoismo oculto”. Kant também, argumenta ele, tem um olhar perspicaz para o fato de que os motives que consideramos puros, e por isso em conformidade com o lmperativo categérico [dle des kategorischen imperatives vorspiegein], na verdade so apenas motivos cujas fontes esto ‘no mundo empirico. Em ultima instancia, esto relacionados a nossa faculdade do desejo, e portanto com a gratificagdo do que eu chamaria de_nosso narcisismo moral. Podemos dizer em geral~ ¢ isso ¢ valido [wahr] sobre a critica — que ¢ correto sentir certo receio em relagao a pessoas de quem se diz que sé pura vontade [die sogenannte reinen Wiens] e que aprovetam cada oportunidade para se referir a sua propria pureza da vontade. A fealidade @ que essa pura vontade & quase sempre imma Iverschwistert] da propenséo de denunciar os outros e da necessidade de punir e perseguir 0s outros; em suma, de toda a natureza problematica do que sera mais que familiar para os leitores devido aos diversos expurgos [Reinigungsaltionen] corridos nos estados totalitarios (PMP. p. 163) Adorno quer mostrar a inversdo dialética que acontece entre a pureza moral € 0 narcisismo moral, entre uma ética da convic¢ao e a politica da Perseguic&o; seu aparato conceitual sempre assume que a forma logica assumida por essas relagbes sera binéria, inversa, pertencente a um dialética negativa, Esse modo de andlise funciona na medida em que aceitamos que as relagdes socials sdo estruturadas pela contradigao e que ‘a divergéncia entre, de um lado, o principio abstrato e, de outro, a agdo ratica constitui os tempos historicos, Diversas proposigdes feitas por Adomo convergem. de maneiras interessantes e importantes, com a problematica da ética tal como surge ro ultimo Foucault. Assim como Adorno, Foucault sustenta que a ética sé pode ser entendida em termos de um proceso de critica, em que a critica se ocupa, entre outras coisas, dos regimes de inteligiblidade que ordenam 4 ontologia e, especificamenie, a ontologia do sujeito. Quando Foucaut pergunta “O que, dado o regime contempordneo do ser, eu posso ser?", localiza a possibilidade da formacao do sujeto em uma ordem instituida historicamente da ontologia, sustentada por efeitos coercttivos. Nao me possivel ter uma relacdo pura e no mediada com minha vontade, ‘concebida como livre ou ndo, além da constituico de meu si-mesmo, e de seus modes de introspecgdo, dentro de| uma ontologia historica Il O < 02:57 Gat + @AES | 80% w pode ser entendida em termos de um processo de critica, em que a critica 5e ocupa, entre outras coisas, dos regimes de inteligibilidade que ordenam ‘a ontologia e, especificamente, a ontologia do sujeito. Quando Foucault Pergunta “O que, dado 0 regime contempordneo do ser. eu posso ser?” localiza a possibilidade da formacao do sujeito em uma ordem instituida historicamente da ontologia, sustentada por efeitos coercitivos. Ndo me é possivel ter uma relagdo pura e nao mediada com minha vontade, ‘concebida como livre ou néo, além da constituico de meu si-mesmo, e de seus modos de introspeccao, dentro de uma ontologia histérica determinada Adorno defende uma idela um pouco diferente, mas acredito que as ‘duas posigdes guardem ecos uma da outra. Afirma que nao faz sentido nenhum se referir de maneira abstrata aos principios que governam 0 ‘comportamento sem se referir as consequéncias de qualquer ago ‘autorizada por tais principios, Nossa responsabilidade no € apenas pela pureza de nossas almas, mas pela forma do mundo habitado coletivamente. Isso significa que a ago tem de ser compreendida como Cconsequencial. A ética, poderiamos dizer, da origem a critica, ou melhor, no procede sem ela, pois temos de saber como nossas acdes so recebidas pelo mundo social ja consttuldo e quais serdo as consequéncias se agirmos de determinadas maneiras. A deliberacao acontece em relacao ‘a um conjunto concreto de circunstancias historicas, mas, de maneira mais importante, em relacdo a uma compreensao de modos padronizados em ‘que a a¢do ¢ requlada dentro do horizonte social contemporaneo. ‘Assim como Foucault, que se posiciona contra formas de ética que entregam o sujeito a uma preocupagdo infinita e autorrecriminadora com a Psique, considerada como interna e unica, Adomo se opde & devolugdo da @tica a formas de narcisismo moral. Os dois tentam, de diferentes maneiras, desalojar 0 sujeito como fundamento da ética para reformulé-to ‘como problema para a ética. Em ambos 0s casos, no se trata da morte do sujeito, mas de uma investigacdo sobre como ele ¢ instituido e mantido, sobre como se institui @ se mantém @ sobre como as normas qué ‘governam os principios éticos devem ser compreendidas ndo so como ‘quias de conduta, mas também como férmula para resolver a questo de ‘quem € 0 que ¢ 0 sujeito humano. Quando Adomo nos diz que a possibilidade de nos tomarmos humanos 86 existe quando nos tornamos inumanos, ele enfatiza a desorientagdo no ceme da deliberagéo moral, 0 fato de que 0 “eu” que busca mapear seu curso ndo fez 0 mapa que 18, no tem a linguagem necessaria para Ié-lo € algumas vezes ndo consegue sequer encontré-lo. O “eu” s6 surge como sujeito. deliberante depois que 0 mundo aparece como um quadro equivalente, uma exterioridade a ser conhecida e negociada a uma distancia epistemologica. Isso significa que a possibilidade dessa divergéncia existe em funcao de algo histérico, bem como, igualmente, a Possibilidade da propria deliberagao moral. Também significa que nossas deliberacdes s6 fardo sentido se compreendermos, antes de tudo, as condig6es que as possibiltam Enquanto para Adorno existe sempre uma bifurcacdo, uma divisdo que produz essa possibiidade de um encontro epistemoidgico e ético com a alteridade, para Foucault, um regime ontoldgico dado estabelece 0 limite no qual continuamos restritos pelo pensamento binario. Para Adorno, Kant Tepresenta a cultura da raz8o abstrata, que se bifurca das consequéncias de suas agdes; para Foucaut, Kant anuncia a possibildade de critica ao se perguntar 0 que condiciona aquilo que conheco e como posso agit. Para o Primeiro, Kant oferece uma concepgdo restnta do humano que exclu de sua propria defii¢do seu erro e sua consequencialidade. Para 0 segundo, a abstragdo de Kant € bem diferente do “cuidado de si", mas na medida em ‘que Kant insiste em que nosso conhecimento tem limites, ele parece Il O < 02:58 Ga + + BAS 0 80% alteridade, para Foucault, um regime ontol6gico dado estabelece o limite ‘no qual continuamos restritos pelo pensamento binario. Para Adorno, Kant representa a cultura da raz8o abstrata, que se bifurca das consequéncias de suas ages; para Foucault, Kant anuncia a possibilidade de critica a0 se Perguntar 0 que condiciona aquilo que conheco @ como posso agir. Para o Primeiro, Kant oferece uma concepgao resinita do humano que exclui de sua propria definicdo seu erro e sua consequencialidade. Para 0 segundo, ‘a abstracdo de Kant é bem diferente do ‘cuidado de si", mas na medida em ‘que Kant insiste em que nosso conhecimento tem limites, ele parece reconhecer que certa cegueira e certo erro afetam desde 0 inicio o projeto do conhecimento. Embora Adorno acuse Kant de nao reconhecer 0 erro ‘como constitutivo do humano e Foucault o enalteca por aprender ‘exatamente isso, 08 dois concordam sobre a necessidade de se conceber ‘9 humano em sua falibiidade, Para agirmmos eticamente. tanto para um como para outro, devemos admitir 0 erro como constitutive de quem somos. Isso nao significa que somos apenas o erro, ou que tudo que dizemos é um equivoco ou esta incorreto. Mas significa que nosso fazer condicionado por um limite constitutivo do qual ndo podemos dar um relato completo, e essa condigéo @, paradoxalmente, a base de nossa responsabilizacao. Relato critico de Foucault sobre si Nao me pergunte quem sou @ néo me pega para continuar 0 mesmo. Mais de umm, sem divide como eu, escreve para néo ter rosto. Michel Foucault, A arqueologia do saber Em ‘How Much Does it Cost for Reason to Tell the Truth’, pede-se a Foucault para que faca um relato de si mesmo. Sua resposta nao ¢ facil Ele comeca e volta a comegar, apontando para diferentes influéncias, mas do dé nenhuma explicag4o causal sobre por que pensa e age como o faz No inicio da entrevista, ele tenta entender as implicagées pollticas de sua Propria teoria. Diz claramente que a politica nao tem origem direta na teoria, Observa, por exemplo, que existiu uma alianga entre o formalismo linguistico @ a politica antiautortaria, mas nao diz que uma coisa leva 4 outra. O relato que da nao identifica causas ou elabora consequéncias. E importante entender que se trata de uma conversa, e ele esta reagindo as suposigBes do interlocutor, articulando sua posigao no contexto dessa reaco. Em certo sentido, o relato que faz de simesmo ¢ dado a uma Pessoa especifica com perguntas especificas e ndo pode ser entendido fora da cena interlocutéria em que acontece, Foucault diz a verdade sobre si mesmo ou responde as demandas que seu interlocutor imp6e sobre ele? Como devemos entender sua pratica do dizer verdadeiro a luz de sua respectiva teoria desenvoivida por ele em seus ultimos anos? Em seus ultimos anos de vida, Foucault retornou a questdo da confissao,”* modificando sua critica anterior feita no primeiro volume de Historia da sexualidade, em que censura a confisso como uma extra¢éo forgosa da verdade sexual, uma pratica a servico de um poder regulador Que produz 0 sujeito como alguém obrigado a dizer a verdade sobre seu desejo. Ao considerar a pratica da confissdo no inicio da década de 1980, ele reescreveu sua posi¢ao anterior @ constatou que a confissao incita uma ‘manifestacao” do eu que nao tem de corresponder a alguma suposta verdade interna e cuja aparéncia constitutiva no deve ser interpretada como mera ilusa0. Ao contrario, em suas conferéncias sobre Tertuliano e Cassiano, Foucault entende a confissdo como um ato de fala em que o sujeito “torna-se publico”, entrega-se em palavras, envolve-se num ato estendido de autoverbalizacdo - exomologesis ~ como forma de fazer 0 sik mesmo aparecer para 0 outro. Nesse contexto, a confissdo pressupde que Wl 0 < 02:58 Gd G+ QANS) 80% m desejo, Ao considerar a pratica da confisso no inicio da década de 1980, ele reescreveu sua posigdo anterior e constatou que a confissao incita uma “manifestago" do eu que no tem de corresponder a alguma suposta verdade interna e cuja aparéncia constitutiva no deve ser interpretada ‘como mera ilusdo. Ao contrario, em suas conferéncias sobre Tertuliano e Cassiano, Foucault entende a confissdo como um ato de fala em que sujeito “toma-se piblico’, entrega-se em palavras, envolve-se num ato estendido de auloverbalizacao ~ exomologesis ~ como forma de fazer 0 sik mesmo aparecer para 0 outro. Nesse contexto, a confissdo pressupde que ‘9 s:mesmo tem de aparecer para se constiluir e que s6 pode se constituir dentro de uma dada cena de interpelagio, dentro de uma relacdo constituida sociaimente. A confissdo torna-se a cena verbal e corporal da demonstracéo de si mesmo. Ela se fala, mas na fala tora-se 0 que & Nese confexto, entdo, o exame de si é a pratica de se exteriorizar ou se tomar publico, 'e, por essa razdo, € distanciado das teorias, incluindo aquela do primeiro Foucault, que comparava a confissao a violencia do ‘exame de si e & imposicao forgosa de um discurso regulador. Além disso, a confissao nao devolve ao si-mesmo o equilibrio perdido; ela reconstitui a aima tendo como base 0 préprio ato de confissdo. O pecador nao tem de fazer um relato que corresponda aos eventos, mas apenas manifestar-se ‘como pecador. Assim, exige-se do sujeito que confessa certa produgdo performativa de si mesmo dentro de convengées piiblicas estabelecidas, ‘888a producdo constitui o objetivo da prépria confissao. Da mesma maneira que Foucault afima que ‘a genealogia do si- mesmo modemo [...] € um dos caminhos possiveis para nos livrarmos de uma filosofia tradicional do sujeito" (H, p. 169), ele também recorre & ‘confisséo para mostrar como, na e através da manifestacdo de si realizada por essa confissdo, 0 sujeito deve renunciar a si mesmo. Nesse sentido, a manifestago do si-mesmo dissolve sua interioridade e a reconstitul em sua exterioridade. Tal inverséo dialética 6 digna de Adorno e sem divida ecoa Hegel. Foucault escreve sobre uma confissio especifica em que um individuo confessa um roubo, observando que ‘o elemento decisivo ndo é, ‘obviamente, o fato de o mestre saber a verdade. Nao é sequer 0 fato de 0 jovem monge revelar seu ato e restituir 0 objeto do roubo. E a confissao, & © alo verbal da confissao que vem por ultimo e torna aparente, em certo sentido e por seus proprios mecanismos, a verdade, a realidade do que aconteceu. O ato verbal da confisséo ¢ a prova, a manifestaco da verdad" (H. p. 178). De certo modo, 0 roubo ndo é declarado roubo e 36 é socialmente constituido como fato quando se torna manifesto pelo ato da Confissdo. Depois, na mesma conferéncia, Foucault explica que a pessoa que confessa deve substituir o simesmo interior pela manifestaggo. Nesse sentido, a manifestagdo no “expressa’ um s-mesmo, mas toma seu lugar, @ tal substituigdo é' realizada pela inversdo do si-mesmo particular em aparéncia extema. Foucault conclui que temos de entender a propria manifestagao como um ato de sacrificio, que constitui uma mudanga na vida de acordo com a seguinte formula: “Tu te tornas sujeito de uma manifestagdo de verdade quando e somente quando desapareces ou te destréis como corpo real e existéncia real" (H. p. 179) No contexto desse modelo de confissdo, © exame de si nao consiste numa critica de si, ou, com efeito, na interiorizacdo de normas reguladoras, mas se torna uma maneira de se entregar a um modo pablico de aparigdo. Mesmo nesse caso, no entanto, ndo se revela um simesmo pré- constituido; em vez disso, a propria prética da constitigdo de si ¢ realizada. Na verdade. um modo de reflexividade & estlizado e mantido como pratica social e ética. Desse modo, Foucault leva a consideracdo da etica para além do problema da ma consciéncia, sugerindo que nem a explicagao freudiana, tampouco a nietzschiana, sobre a formagdo da consciéncia bastam para uma concepcao de ética. Além disso, ele insiste Il O < 02:58 Gal + + QS.) 80% ‘numa critica de si, ou, com efeito, na interiorizacao de normas reguladoras, mas se forna uma maneira de se entregar a um modo puilico de aparigso. Mesmo nesse caso, no entanto, n&o se revela um simesmo pré- constituldo; em vez disso, a propria pratica da constituicdo de si é realizada. Na verdade, um modo de reflexividade ¢ estlizado e mantido ‘como pratica social e ética, Desse modo, Foucault leva a consideracao da dtica para além do problema da ma consciéncia, sugerindo que nem a explicagao freudiana, tampouco a nietzschiana, sobre a formagdo da ‘consciéncia bastam para uma concepgao de ética. Além disso, ele insiste ‘em que a relagdo com o simesmo é uma relagdo social e publica, sustentada inevitavelmente no contexto de normas que regulam as Ses reflexivas: como poderiamos e deveriamos aparecer? Que rela¢o conosco deveriamos manifestar? ‘AS consequéncias para se repensar o sujeito na contemporaneidade 1ndo estdo longe. Se pergunto “Quem eu poderia ser para mim mesma’, devo também perguntar “Que lugar existe para um ‘eu’ no regime discursive em que vivo?" @ “Que modos de considerar 0 si-mesmo foram estabelecidos com 08 quais eu possa me envolver?". Nao sou obngada a adotar formas estabelecidas de formagéo do sujeito, tampouco a seguir ‘convengdes estabelecidas para me relacionar comigo mesma, mas estou Presa a sociabilidade de qualquer uma dessas relagdes possiveis. Posso Por em isco a inteligibidade e desafiar as convengbes, mas nesse caso estarei agindo dentro de um horizonte histérico-social ou sobre tentando rompé-lo ou transformé-lo. Mas s6 me tomo esse simesmo por meio de um movimento ex-tatico, que me retira de mim mesma e me ‘coloca uma esfera em que sou desapossada de mim mesma e constituida ‘como sujeito ao mesmo tempo, Em “How Much Does It Cost for Reason to Tell the Truth?", Foucault Pergunta sobre as maneiras especificamente modemas de colocar 0 sujeito em questo @ refere-se a0 proprio processo de como chegou ‘questo do sujelto. Percebe que nenhuma teoria existente 4 conta de colocar a questéo da maneifa como ele mesmo pretende. Nao que nenhuma teoria tenha uma resposta, embora sem divida ndo tenha. Em ‘vez disso, acontece que nenhuma teoria existente pode fornecer 0s termos necessarios para formular a questao que ele quer colocar. Eis a pergunta de Foucault! “Serd que um sujeito do tipo fenomenologico, trans-historico € capaz de dar conta da historicidade da raz8o?" (HM, p. 238; EP, p. 312). Nessa pergunta esta implicita a nocao de ‘que algo chamado “sujeito trans-nistérico" pode ser explicado. Isso ja é recusar a tese da fenomenclogia, a saber, que 0 sujeito trans-nistérico ‘explica toda experiéncia e todo conhecimento, ele é 0 fundamento do saber. Ao perguntar 0 que explica esse “fundamento”. Foucault argumenta implicitamente que n&o se trata de fundamento nenhum, mas que surge ‘como tal 56 depois que determinado proceso histbrico acontece, Mas ele tambem faz outra afimacdo que considera 0 historicismo de uma nova maneira. Foucault pergunta se pode existir uma historicidade da raz8o que explique 0 surgimento de um sujeito trans-histénco, Nesse sentido, ele esta tanto sugerindo que existe algo chamado historicidade da azo quanto rejeitando @ ideia da razdo fora da hist6ria, sem formas historicas particulares. Pode haver na fenomenologia uma historicidade da raz8o no sentido foucauitiano? (N&o podemos nos esquecer de que Husserl segue nessa dirego em A crise das ciéncias europeias, texto que Foucault ndo leva em consideraco aqui.) Quando Foucault diz que hd uma historia do sujeito e uma historia da razZo, ele também argumenta que a historia da razéo néo pode ser derivada do sujeito. No entanto, sustenta que certas formagdes do sujeito podem ser explicadas por intermédio da historia da razo. O fato de que 0 sujeito fem uma histéria desqualifica-o de ser 0 ato fundador que da < 02:58 Gd ml t + QA) 80% m historicas particulares. Pode haver na fenomenologia uma historicidade da azo no sentido foucaultiano? (N8o podemos nos esquecer de que Huser! segue nessa direcdo em A crise das ciéncias europeias, texto que Foucault ndo leva em considera¢o aqui.) Quando Foucault diz que na uma histéria do sujeito @ uma historia da razBo, ele também argumenta que a historia da razéo nao pode ser derivada do sujeito, No entanto, sustenta que certas formacées do sujeito podem ser explicadas por intermédio da histéria da razBo. O fato de que 0 Sujeito fem uma historia desquaifica-o de ser 0 ato fundador que da existéncia a historia da raz8o. Mas a historia que o sujeito tem aquela em que a razdo assume determinadas formas, em que a racionalidade foi estabelecida e instituida com certas condigdes e certos limites. Entéo quando Foucault afirma, por exemplo, que um sujeito pode reconhecer a si mesmo @ aos outros apenas em um regime especifico de verdade,® ele esta indicando uma dessas formas de racionalidade. Percebemios que sujeito, de certo modo, 56 pode ser dentro de certas formas de racionalidade. Quando ele pergunta como um sujeito trans-histérico passa a existir, est4 refutando implictamente a possibliidade de um sujeito trans- histérico, pois a pergunta o expde como uma construgao historica e Varidvel. Mas ele também enaltece a ideia, pois um conceito como esse chega a existir e se afirmar em relagdo a nds justamente porque chega a fazer sentido dentro de um modo de racionalidade estabelecido historicamente, modo associado por Foucault & fenomenologia. © entrevistador quer saber se a procura por Nietzsche foi um sinal da insatisfagéo de Foucaut com a fenomenologia — se, em particular, Nietzsche “representou uma experiéncia determinante para abolir o ato fundador do sujeito [pour couper court 4 acte fondateur du sujet} (HM, p. 239: EP, p. 313). E se, nessa época, houve um desejo de articular um teoria do sujeito que ine daria poderes majestosos e avassaladores para fundar sua prépria experiéncia, mas que entenderia que o sujeito sempre surge com limtagdes, sempre tem uma parte de si criada por algo que n&o @ le mesmo — seja a histéria, o inconsciente, uma série de estruturas, a histéria da razo - que desmente suas pretensdes de ser fundador de si Vale notar que quando Foucault tenta explicar por que leu Nietzsche & diz que nao sabe, ele esta nos mostrando, por sua propria confissdo de ignorancia, que 0 sujeito ndo pode fornecer plenamente os fundamentos de seu proprio surgimento. O relato que faz de si mesmo revela que ele 1ndo conhece todos os motivas que agiram sobre ele e nele naquela época Ao tentar responder por que leu Nietzsche, ele diz que outros pensadores © leram ~ Bataille e Blanchot ~, mas no diz por que isso representa um motivo, ou seja, que 0 motivo de ler Nietzsche foi a necessidade de se atualizar ou a influéncia que sofreu. L€ um por causa dos outros, mas ndo Sabemos que tipo de explicacdo 6 essa O que ele leu em um que 0 motivou a procurar 0 outro? Foucault esta dando um relato de si e explicando como ele e outros se afastaram da fenomenologia dedicada a “uma espécie de ato fundador [une sorte dacte fondateur)’ (SP, p. 441: EP, p_ 317), um sujeito que Confere sentido por seus atos de consciéncia. Desse’ modo, ele esta fazendo um relato de si como alguém que, de maneira bem clara, nfo ¢ um sujeito fundador, mas um sujeito com histéria, incapacitado de constituir © ato fundador pelo qual surge a historia da raz&o. Ao fazer um relato de si, ele nos mostra oS limites da concepgdo fenomenolégica do sujeito. Aqui, tanto como em outros textos, a questo colocada por Foucault expe 05 limites das nossas formas convencionais de explicar 0 sujeito. Ele sustenta, por exemplo, que no século XIX a pergunta "O que é 0 Esclarecimento?” surge depois que a histiria da razdo estabelece os fundamentos para sua autonomia, Isso, por sua vez, da origem a uma Fliferanta niacin: 9 nite einnifiea 2 hietfria na raz8n @ nial a vain ania 5 UI O < 02:58 Gd aa + + BAS.) 80% lum sujeito fundador, mas um sujeito com historia, incapacitado de cconstituir 0 ato fundador pelo qual surge a histéria da razo. Ao fazer um felato de si, ele nos mostra os limites da concepedo fenomenoldgica do sujeito ‘Aqui, tanto como em outros textos, a questo colocada por Foucaull expe os limites das nossas formas convencionais de explicar 0 sujeito Ele sustenta, por exemplo, que no século XIX a pergunta "O que ¢ 0 Esclarecimento?” surge depois que a historia da razdo estabelece os fundamentos para sua autonomia. Isso, por sua vez, d4 ongem a uma diferente questo: o que significa a historia da razdo e qual o valor que ¢ preciso dar ao predominio da razdo no mundo modemo" (SP, p. 438; EP, p. 314) Enlo, a mera questo “O que é 0 Esciarecimento?” introduz “uma ‘questo inquietante” no campo da razdo, mesmo que seu objetivo fosse Nos devolver @ centralidade da razdo e sua fungdo critica, a autonomia € sua condiggo fundacional. Uma forma primeira e inadequada dessa ‘questao inguietante acontece quando os académicos perguntaram *O que 6 a histénia da ciéncia?” Que a ciéncia admitisse ter uma historia era uma idela escandalosa para quem defendia que a ciéncia, em sua racionalidade. tinha uma verdade trans-historica. Na Alemanha, a historia da razdo — nogdo talvez introduzida em sua forma moderna pela pergunta sobre @ histéria da ciéncia - voltou-se para a histéria das formas de racionalidade. Nessa conjuntura, Foucault afirma sua alianga com a Escola de Frankfurt, arrependendo-se um pouco do atraso do encontro: “Se eu tivesse conhecido a Escola de Frankfurt nessa época, muito trabaino me teria sido poupado, muitas bobagens eu ndo teria dito e muitos desafios eu ‘do teria feito na minha tentativa de seguir calmamente no meu caminho, pois as vias ja tinham sido abertas pela Escola de Frankfurt" (SP, p. 439; EP. p. 315) Entretanto, ele se opbe a0 que define como uma forma de chantagem ‘que busca igualar toda a critica da razdo & negagao da prépria razdo, ou ameaca castigar a critica como uma forma de irracionalismo. Todo regime de verdade recorreu a essa chantagem, ou seja, @ chantagem nao pertence a um regime particular e, com efeito, pode funcionar em qualquer lum deles. Isso quer dizer que a propria operagdo da chantagem contraria a tese para a qual fol concebida. A tese & que existe um tnico regime, mas a repeti¢do da tese em relagdo a diferentes regimes estabelece a pluralidade destes e revela que a chantagem busca forcar 0 reconhecimento de um unico regime de verdade, que, em sua repeticéo, demonstra néo ser 0 Linico em absolute Portanto, Foucault diz que existe uma “chantagem que muito frequentemente se exerceu em relagdo a qualquer critica da razao, ou ‘qualquer interrogacao critica sobre a histeria da racionalidade (ou voce aceita a razdo, ou cai no itracionalismo)" (HM. p. 242: EP. p. 316). Ele também se recusa a aceitar a ideia de que a razao seja simplesmente dividida, embora sua divisdo tenha, mesmo para Adomo, servido de base para a critica (HM, p. 243; EP, p. 317), O entrevistador tenta descrever essa possibilidade de reflexividade como condicionada por uma distingao entre a razdo técnica e a razdo pratica (ou moral), De certo modo, pode-se ver a diferenca que separa Foucault de Adorno @ Habermas quando ele recusa a nogdo de anica bifurcagdo da razdo, rejeitando a ideia de que existe simplesmente uma Unica raz&o com duas faces, por assim dizer. Essa concepcdo de razdo bifurcada surge como parte da historia da razdo, propria de um modo especifico de racionalidade. Nessa visdo, ha uma diferenca entre explicar como a razao se tomou técnica e como os homens, a vida e 0 simesmo se tornaram objetos de certa quantidade de technai. A resposta para a primeira ndo pode fornecer uma resposta para a segunda. Nesse sentido, né uma Il O < 02:58 Gla t + QA) 80% De certo modo, pode-se ver a diferenca que separa Foucault de Adomo e Habermas quando ele recusa a nocdo de tnica bifurcacdo da razdo, fejeitando a idela de que existe simplesmente uma unica razBo com duas faces, por assim dizer, Essa concepodo de razdo bifurcada surge como parte da histéria da razéo, propria de um modo especifico de racionalidade. Nessa visdo, ha uma diferenga entre explicar como a razao se tomou técnica e como 0s homens, a vida e 0 skmesmo se tornaram ‘objetos de certa quantidade de technal. A resposta para a primeira ndo pode fornecer uma resposta para a segunda. Nesse sentido, na uma distingdo entre histéria da razdo (modos de racionalidade) e historia da subjetivago, pois qualquer conceito adequado de racionalidade tem de ‘explicar 08 tipos de sujeito que promove e produz. Dizer que a raz8o passa por uma bifurcagao é assumir que ela ja fol intacta e completa antes de dividir a si mesma e que existe um ato fundador ou determinado “momento” histérico que mobilza a razdo e sua bifurcagdo. Mas por que fariamos essa suposi¢o? Precisamos recorrer uma forma original da razo, ou melhor, ideal, para comecar a explicar @ historia da raz4o? Se nosso interesse ¢ analisar formas de racionalidade, ‘entdo talvez sejamos obrigados apenas a tomar a ocorréncia historica da racionalidade em sua especificidade, “sem que, no entanto, se possa assinalar um momento em que se teria passado da racionalidade @ irracionalidade” (HM, p. 243: EP, p. 318). Nao existe uma’ racionalidade que seja forma exemplar da propria razao. Como resultado, no podemos falar de uma época dourada em que havia a razdo e depois uma série de eventos ou mudancas historicas que nos langaram na irracionalidade. Foucault observa que esse é um segundo modelo do qual tentou se libertar, mas que parece intimamente ligado ao Primeiro. "No velo por que motivo se poderia dizer que as formas de Tacionalidade [...] esto ameacadas de sucumbir desaparecer. NAo vejo desaparecimentos desse tipo. Observo miitiplas transformacdes, mas no veJo por que chamar essa transformacao de uma derrocada [effondrement] da raz8o" (HM, p. 251: EP. p. 324) Foucault concentra-se nao apenas nas formas de racionalidade, mas também em como o sujeito humano aplica essas formas a si mesmo, suscitando com isso as questdes relativas a certa reflexividade do sujeito, 4 forma particular assumida pela reflexividade e como ela ¢ ativada pela ‘operacdo de um modo historicamente especitico de racionalidade © jeito como ele coloca a questo € marcante: “Como ocorre que sujeito humano se torne ele proprio um objeto de saber possivel, através de que formas de racionalidade, de que condigées histéricas e, finalmente, ‘a que preco?" (SP, p. 442; EP, p. 318, grifo meu). Esse modo de colocar a ‘questo representa sua metodologia’ haveré uma aco reflexiva de um sujeito @ essa aco sera ocasionada pela mesma racionalidade a qual el tenta coresponder, ou, pelo menos, com @ qual negocia, Essa forma de racionalidade forcluira outras, de modo que o sujeito s6 sera conhecivel para si mesmo nos lermos de uma dada racionalidade, historicamente condicionada, deixando aberta e sem analise a questdo de que outros ‘caminhos poderiam ter existido ou poderdo ainda existir no decorrer da historia Vemos aqui dois desenvolvimentos separados na obra de Foucault Primeiro, essa nog&o do sujeito, mais especificamente 0 surgimento do sujeito reflexivo, & distintamente diferente das idelas apresentadas no primeiro volume de Histéria da sexualidade. Segundo, Foucault altera a teoria da construgo discursiva. O sujeito ndo ¢ uma funcdo ou um efeito simples de uma forma prévia de racionalidade, mas tampouco a reflexividade assume uma estrutura unica. Ademais, quando o sueito toma-se objeto para si mesmo, ele também perde algo de si mesmo; essa ‘oclusdo constitul o processo da reflexividade. Il O < 02:59 Galt + QS | 80% w Vemos aqui dois desenvolvimentos separados na obra de Foucault Primeiro, essa nogo do sujeito, mais especificamente o surgimento do sujeito reflexivo, € distintamente diferente das ideias apresentadas no primeiro volume de Histéria da sexualidade, Segundo, Foucault altera a teoria da construgéo discursiva. O sujeito ndo é uma fungdo ou um efeito simples de uma forma prévia de racionalidade, mas tampouco a reflexividade assume uma estrutura Unica, Ademais, quando 0 sujeito toma-se objeto para si mesmo, ele também perde algo de si mesmo: essa ‘oclusdo constitui o proceso da reflexividade Por um breve momento, Foucault compartiha uma tese com a psicandlise. Algo é sacrificado, perdido, ou pelo menos despendido ou cedido no momento em que o sujeito se transforma em objeto de possivel ‘conhecimento. Ele no pode “conhecer” por meios cognitivos 0 que se perdeu, mas pode perguntar o que se perdeu exercitando a fun¢ao critica do pensamento. Desse modo, Foucault pde sua questo: “A que preco 0 sujeito pode dizer a verdade sobre si mesmo?", Em certo sentido, essa ‘questo ¢ um salto em relagdo aos questionamentos anteriores; vejamos, entdo, como ele se da. O sujeito humano aplica formas de racionalidade @ si mesmo, mas essa autoaplicagdo tem um prego. Qual a natureza dessa autoaplicagao para que exija algo do sujeito? © que na para se exigir? O ‘que ha para se despender? Aqui ele ndo diré que existe uma derrocada da razio, mas também est se distanciando de uma forma presungosa de construtivismo. Est deixando claro que ndo somos apenas efeitos de discursos, mas que qualquer discurso, qualquer regime de inteligibiidade, ‘constitui-nos a um prego. Nossa capacidade de refietir sobre nos mesmos, de dizer a verdade sobre nos mesmos, ¢ iguaimente limitada por aquild ‘que 0 discurso, o regime, ndo pode conceder ao ambito do pronunciavel. Como resultado, quando Foucault comega a falar de maneira clara e objetiva sobre si mesmo, 0 que sempre pensou e quem ele finalmente ¢, temos todas as razdes para ser cautelosos. Vejamos uma de suas declaragées grandiosas: “Meu problema 6 a relagao do si consigo e do dizer verdadelro" (HM, p. 248; EP, p. 321). Por mais que anteriormente © tenhamos ouvido falar bastante de questdes relacionadas a poder, sexualidade, corpo e desejo, agora ele nos diz, como se revisasse a si mesmo de uma maneira que abarca retroativamente todo seu passado “Meu problema nunca deixou de ser a verdade, o dizer verdadeiro [le dire vrai), wahr-sagen ~ 0 que & dizer verdadeiro — e a rela¢o [le rapport entre © dizer verdadeiro e as formas de reflexividade, refiexividade de si sobre Ule soi sur sof (SP, p. 445; EP. p. 322). Isso parece significar que as formas de racionalidade pelas quals nos tornamos inteligiveis, pelas quais. nos conhecemos e nos oferecemos aos outros, estabelecem-se historicamente e a um prego. Se se tomam naturalizadas, se so dadas ‘como certas, consideradas como fundacionais e necessérias, se se tornam ‘95 termos que devem guiar o que fazemos @ como viverios, entdo nossa Propria vida depende de uma negacdo de sua historicidade, uma renegacdo do preco que pagamos. Em Foucault, parece, né um prego por se dizer a verdade sobre si mesmo, precisamente porque 0 que Constitul a verdade sera enquadrado Por normas e modos especificos de racionalidade que surgem historicamente e so, em certo sentido, contingentes, Na medida em que dizemos a verdade, obedecemos a um critério de verdade aceitamos ‘esse critério como abrigatério, Aceité-lo como obrigatorio ¢ assumir que a forma de racionalidade na qual se vive primdria ou inquestiondvel Portanto, dizer a verdade sobre si tem um prego, e 0 preco desse dizer é a suspensao de uma relagdo critica com o regime de verdade em que se vive. Isso significa que quando Foucault nos diz a verdade sobre si mesmo saber, que dizer verdadeiro sempre foi sua preocupacéo, que ele semonre s@ imnorion cam a rafievividade do simesma — temas da nos Il O < 02:59 Gamat + QS 80% historicamente € so, em certo sentido, contingentes. Na medida em que dizemos a verdade, obedecemos a um critério de verdade e aceitamos ‘esse ctitério como obrigatério. Aceité-lo como obrigatério é assumir que a forma de racionalidade na qual se vive € primaria ou inquestionavel; portanto, dizer a verdade sobre si tem um prego, e o prego desse dizer @ a suspensao de uma relagao critica com o regime de verdade em que se vive. Isso significa que quando Foucault nos diz a verdade sobre si mesmo = a saber, que 0 dizer verdadeiro sempre foi sua preocupacdo, que ele sempre se importou com a reflexividade do simesmo -, temos de nos pperguntar se, desta vez, ele colocou em suspenso uma capacidade critica para obedecer a uma exigéncia do sujeto relacionada ao dizer verdadeiro. ‘Quando afirma que sempre deu maior importancia ao problema do dizer verdadeiro, ele pode cu nfo eslar dizendo a verdade. Afinal, esté reconhecendo que dizer a verdade ¢ um tipo de problema, © que o problema é central para seu pensamento. Ndo podemos resolver a questéo sobre se ele esté ou ndo dizendo a verdade sem negar 0 problema que ele nos faria ver Esse tipo de deciarac&o torna-se ainda mais inquietante quando Foucault diz que esse interesse pela verdade e pela reflexividade ¢ ainda mais importante que suas considerag6es sobre 0 poder. Por um lado, ele estabelece uma continuidade hist6rica para si mesmo. Por outro, diz-nos de maneira bem clara que a descrigao da atualidade “deve sempre ser feita de acordo com essa espécie de fratura virtual” (HM, p. 252, EP, p. 325). Segundo ele, essa fratura abre o espago de liberdade, inaugura uma transformagao possivel, interroga os limites condicionantes de uma época € coloca o si-mesmo em risco nesse limite. “Fratura’ parece ser uma figura do ato de critica que pe em questo a fixidez de um dado modo de racionalidade, mas aqui Foucault comega a narrar a si mesmo de uma ‘maneira que 0 apresenta como se fosse idéntico a si mesmo no decorrer do tempo Quando considera as formas de racionalidade que fomecem os moios pelos quais acorre a subjetivagdo, ele diz: “essas formas de racionalidade, que 30 as que aluam nos processos de dominacao, mereceriam ser analisadas em si mesmas, sabendo-se que essas formas de racionalidade nao sdo alheias @ outras formas de poder colocadas em agdo, por ‘exemplo, no conhecimento [connaissance] ou na técnica [la technique]” (SP, p. 449; EP, p. 326). Portanto, essas formas de racionalidade nao sao alneias umas a5 outras, mas nao sabemos exatamente que relagdo mantém entre si Antes, ele afirma que a racionalidade produz a subjetivagéo ao regular como 0 reconhecimento acontece. Aqui ele se refere a connaissance e nao a reconnaissance, por isso n&o fica claro se nos ¢ licito entender o primelro nos termos do segundo. Talvez essa ‘questo possa ser esclarecida por uma passagem de “The Subject and Power’, em que ele se refere “forma de poder [..] que categoriza, marca [um sujeito] por sua propria individualidade, vincula-o a sua propria identidade, impde sobre ele uma lei de verdade que ele precisa reconhecer © que os outros tém de reconhecer nele. E uma forma de poder que faz dos individuos sujeltos"®: No primeiro capitulo de O uso dos prazeres, ele associa a efetividade das praticas discursivas @ normas subjetivadoras por meio da categoria do reconhecimento. Lé ele se prope a “analisar as Préticas pelas quais os individuos foram levados a prestar atencdo a eles Proprios, @ se decifrar, a se reconhecer e se confessar como sujeitos de desejo, estabelecendo de si para consigo uma ceria relagdo que Ihes permite descobrir. no desejo, a verdade de seu ser, seja ele natural ou decaido® (UP, p. 11-12) Em cada uma dessas instancias, as formas de racionalidade esto ligadas a praticas discursivas ou as formas de subjetivaco que Foucault considera alnures. Se as formas de racionalidade pelas quais ele se Il O < > 02:59 Hd mal + « @AES | 80% meio da categoria do reconhecimento. LA ele se propée a “analisar as Praticas pelas quais 0s individuos foram levados a prestar atenco a eles Proprios, a se decifrar, a se reconhecer e se confessar como sujeitos de desejo, estabelecendo de si para consigo uma certa relacdo que ihes permite descobrir, no desejo, a verdade de seu ser, seja ele natural ou decaido® (UP, p. 11-12) Em cada uma dessas instancias, as formas de racionalidade esto ligadas a praticas discursivas ou as formas de subjetivagdo que Foucaut considera alhures. Se as formas de racionalidade pelas quais ele se interessa em 1983 ndo séo alheias a outras formas de poder, como 0 Feconhecimento, ent&o Foucault entende que 0 reconhecimento é uma forma de poder, mesmo que sustente ser distinta das formas de racionalidade — entendidas como parte da historia da raz8o — descritas por ‘ele aqui. Enquanto tenta entender como essas varias formas de poder se inter-relacionam, ele reprova a concep¢ao de uma unica teoria do poder {que identiicaria'o denominador comum de todas as formas de poder de qualquer maneira que fosse satisfatdria. Foucault explica sua propria Pratica teorica quando afirma, por exemplo, em mero modo declarative: “no fago de forma alguma a teoria do poder [Ye ne fait pas une théone du pouvoir)”, ou "n8o sou de forma alguma um tedrico do poder. Eu diria que o oder, em ultima instancia, no me interessa como questdo autnoma [Je ne suis pas done aucunement un théoricien du pouvotr. A la limite, je dirais {que le pouvoir ne minteresse pas comme une question autonome|” (HM. p. 254; EP, p. 327). Até certo ponto ele esta certo, se por “teoria’ do poder ‘estiver se referindo a uma explicagao analitica plena do poder separado de suas operagdes concretas, como se fosse autdnomo. Ele ja tinha nos dito isso durante algum tempo; em ‘The Subject and Power’, por exemplo, ‘escreve: “Dirla que comegar a andlise com um ‘como € sugerir que 0 Poder como tal ndo existe" Em varias ocasiGes, ele nos aconselna sermos “nominalistas” em relag8o ao poder. No podemos fazer a Pergunta teérica padro “O que é 0 poder?". Podemos apenas perguntar “Como funciona poder, ou que forma assume o poder neste ou naquele ‘exercicio, e 0 que faz 0 poder” Aqui, 0 que permite a Foucault dizer a verdade sobre si mesmo, mas tambem restringe sua fala a0 dizéla? Sobre a insanidade, Foucault escreve: “E através de um certo modo de dominagao exercido por alguns sobre outros que 0 sujeito pode tentar dizer a verdade sobre sua loucura apresentada sob as espécies do outro" (HM, p. 254: EP, p. 327). Que Prego € pago aqui, quando 0 relato que ele € capaz de fazer de si mesmo ‘estd em divida com @ denominaco dada pelos outros e seu discurso? A verdade que diz de si mesmo pode dizer a verdade sobre a dominacao? ‘Ou serd que a esfera ética, quando considerada separadamente da ‘operagdo do poder, est sempre envolvida na negagao do poder e, nesse sentido, em uma forma de encobrimento? Uma das maneiras de interpretar a insisténcia de Foucault de que agora esta interessado, como sempre steve, no dizer verdadeiro ¢ ver que S6 @ possivel suscitar a questo do Poder por causa da exigéncia de se dizer a verdade sobre si mesmo. ‘Quem pede isso de mim? O que espera? Minha resposta sera satistatoria ‘em que linguagem? Quais as consequéncias de dizer e nao dizer a verdade sobre mim para esse interlocutor? Se a questo do poder e a necessidade de dizer a verdade sobre si estdo interligadas, entdo a necessidade de fazer um relato de si requer que se recorra ao poder, de modo que poderiamos dizer que a exigéncia ética da origem ao relato politico, € que a ética destréi sua propria crecibilidade quando néo se toma uma critica. Por isso Foucault incorpora 0 di verdadeiro na explicagdo de como funciona o poder: “Se ‘digo a verdat sobre mim mesmo como eu o fago, é porque, em parte, me constituo como sujeito através de um certo numero de relacSes de poder que sio exercidas sobre mim € que exerco sobre os outros" (HM. p. 254; EP. p. Il oO < 02:59 Gm t + 80% @ verdade sobre mim para esse interlocutor? Se a questo do poder e a necessidade de dizer a verdade sobre si esto interligadas, ento a necessidade de fazer um relato de si requer que se recorra ao poder, de modo que poderiamos dizer que a exigéncia ética da origem ao relato politico, e que a ética destr6i sua propria credibilidade quando néo se toma uma critica. Por isso Foucault incorpora o dizer verdadeiro na explicagéo de como funciona 0 poder: “Se ‘digo a verda sobre mim mesmo como eu o fago, ¢ porque, em parte, me constituo como sujeito através de um certo nimero de ‘relacSes de poder que so ‘exercidas sobre mim @ que exergo sobre os outros” (HM. p. 254; EP. p. 327) Aqui ele coloca “digo a verdade” entre aspas, pondo em questo se dizer @ verdade ¢ uma iniciativa t80 verdadeira quanto parece. Se as relagées de poder pesam sobre mim enquanto digo a verdade, @ se, a0 dizé-la, exergo 0 peso do poder sobre 05 outros, entdo ndo estou apenas ‘comunicando a verdade quando digo a verdade. Tambem estou exercendo © poder no discurso, usando-o, distribuindo-o, tornando-me o lugar de sua transmisséo e replicagao, Estou falando, e minha fala transmite o que tomo ‘como verdadeiro. Mas minha fala também € um tipo de fazer, uma ago ‘que acontece no campo de poder e que também constitui um ato de poder. Nas conferéncias ministradas por Foucault em Berkeley, em 1983, ele ‘examinou a prética do dizer verdadeiro sobre si em relagdo ao cldéssico conceito grego da parresia, falar com franqueza ou dizer a verdade em publico. Essas conferéncias, publicadas em inglés e alemdo.#! reveem a Pratica de dar um relato de si nos didlogos de Plato e no ensaio De ra, de Séneca, De certo modo, essas conferéncias s4o uma versdo final dos temas que consideramos aqui. A reflexividade do si-mesmo é incitada por lum outro, de modo que o discurso de uma pessoa leva a outra a refiexdo de si, O siemesmo no comega simplesmente a se examinar pelas formas de racionalidade 4 mao. Essas formas de racionalidade so transmitidas pelo discurso, na forma de interpelacdo, e chegam como uma instigagao, uma forma de sedug&o, uma imposicdo ou exigéncia de fora a qual o sujeito se entrega Meus alunos sempre se opuseram & passividade do interlocutor socrético nos didlogos de Platdo, Foucault nos mostra um caminho para revistar a questdo dessa passividade, pois a persuasdo nao é possivel sem a entrega as palavras do outro. Com efeito, no hé como perdoar 0 ‘outro ou ser perdoado sem a possibilidade de se entregar as palavras do ‘outro. Por isso Foucault fala de uma entrega que anima o discurso no didlogo Laques: “o ouvinte ¢ levado pelo Sgos socratico a ‘dar um relato' ~ didonai logon - de si mesmo, do modo como atuaimente passa seus dias € do tipo de vida que levara até entdo" (PuaTAo, Laques, 187e-188c: FS, p. 96). © ouvinte @ conduzido e assim se entrega & condigdo do outro. Essa passividade torna-se a condigdo de certa pratica de relatar a si mesmo, sugerindo que s6 ¢ possivel fazer um relato de si mesmo entregando-se a: palavras do outro, a exigéncia do outro. Segundo Foucault, trata-se de “uma prética na qual aquele que ¢ conduzido pelo discurso de Sécrates deve dar um relato autobiogratico de sua vida, ou uma confissdo de suas fainas" (FS, p. 96). Foucault no demora em dizer que esse relato que se da de si mesmo ndo equivale @ autoacusa¢ao: © que est4 envolvido ndo uma confissdo autobiografica. Nos retratos que Plato ou Xenofonte fazem de Sécrates, nunca 0 vemos pedindo um exame de consciéncia ou uma confissao dos pecados. Aqui, dar um relato da propria vida, seu bios, também ‘do € dar uma narrativa dos eventos histéricos que acontecerem na sua vida, mas sim demonstrar se se € capaz de mostrar que ha uma relagdo entre, de um lado, 0 discurso racional - 0 logos ~ HH O < > 02:59 Gaal t « QUES) 80% m da de si mesmo no equivale @ autoacusacao: (© que esta envolvido no ¢ uma confissdo autobiografica. Nos relratos que Plat8o ou Xenofonte fazem de Sécrates, nunca o vemos pedindo um exame de consciéncla ou uma confisséo dos pecados. Aqui, dar um relato da propria vida, seu bios, também ‘no 6 dar uma narrativa dos eventos histéricos que acontecerem sua vida, mas sim demonstrar se se ¢ capaz de mostrar que hha uma relagao entre, de um lado, 0 discurso racional - 0 ldgos ~ que se ¢ capaz de usar e, de outro, seu modo de vida Sécrates esté investigando como 0 légos dé forma ao estilo de vida de uma pessoa (FS, p. 97) Quando se fala em dar um relato de si mesmo, também se esta ‘exibindo, na propria fala, 0 6gos pelo qual se vive. A questo nao é apenas harmonizar a fala com a a¢éo, embora seja essa a éniase dada or Foucault; a questéo também é reconhecer que @ fala ja é um tipo de fazer, uma forma de ago que ja é uma pratica moral e um modo de vida ‘Alem disso, ela pressupde uma troca social. Ao falar dos cinicos, Foucault Cita a luta entre Alexandre e Diégenes em um texto de Dion Crisostomos, no século ll dC., no qual se diz que Didgenes “expde-se ao poder de Alexandre do comego ao fim do Discurso. E 0 principal efeito dessa luta Parresista com 0 poder nao ¢ levar o interlocutor a uma nova verdade ou a lum novo nivel de autopercep¢do; ¢ levar o interlocutor a interiorizar essa luta parresista a batalnar dentro de si mesmo contra suas proprias falnas ‘@ ser consigo mesmo do mesmo modo que Didgenes fora consigo* (FS, p. 139), Podemos ser tentados a encontrar aqui um tipo de relagao transferencial avant /a lettre, que possa restabelecer a psicandlise como parte da historia do “cuidado de si Embora Foucault geraimente identinique a psicandlise com a hipétese repressora (a anterioridade do desejo em relagdo a lel ou a producdo do desejo como consequéncia da lei), ou a veja como instrumento das mutilagdes internas da “consciéncia’, Podemos discemir algumas semeinancas entre as duas posicdes que Sugeririam outra diregdo para a investigacao sobre o s-mesmo. Afinal, em suas uitimas conferéncias, Foucault passa a considerar a passividade da recepgdo e a transilividade da instrucdo. Essas duas ideias, junto com suas observagbes sobre a interiorizagdo do outro, formam a base para um

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