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Robert Blanche SL es Dubucs isco) erny | LOGICA a ara O SABER DA FILOSONMA ~ edicé6es 70 (8) DA FILOSOFI Nesta coleccao publicam-se textos considerados representativos dos nomes importantes da Filosofia, assim como de investigadores de reconhecido mérito nos mais diversos campos do pensamento filoséfico. ORT FILOSOFTA | “A RPISTEMOLOGIA Gaston Bachotad IDTOLOGIA E RACIONALIDADE SAS CIENCIAS DA VDA, Geurge Canguthem 3~ A FILOSOFIA CRITICA DE KANT Gules Deleuze 4- O NOVO ESPIRITO CIENTIFICO Gaston Bacheland 5 AHLOSOFA CHIMES Mas Kalenmati 6 AFILOSOFIA DA MATEMATICA Smbmgie Craromy Man 7. PROLEGOMENOS & TODA.A METAFISICA FUTURA Kiomanue! Kant $ > ROUSSIALE MARX Galsane Bella \ope 9 - BREVE HISTOREA DO ATEISMO OCIDENTAL James Thrower 0 FILOSOFIA DA FISICA Mane Bunge UL-A TRADIGAO INTELECTUAL DO OCIDENTE J. Bronowski ¢ Bruce Madih 1 -ALOGICACOMO CIENCIA HISTORICA Galvago Della Voge 13 -HISTORIA DA LOGICA Rent Banchée Jacques Dubues TEA RAZKO. Giles.Ganon Granger LS HERMENEUTICA chard E Palmer b= AFILOSOFIA ASTIGA Emanuele Sevenao 17 -AFILOSOFIA MODERNA Emanuele Sevenno {8A FILOSOFLA CONTEMPORANEA Emanoele Severino 19— EXPOSICAO E INTERPRETACAO DA FILOSOFLA TEORICA DE KANT Fel Grsyelt 20—TEORIAS DA LINGUAGEM TEORIAS DA APRENDIZAGEN ‘Masimo Puatll - Paina (org ~AREVOLUCKO DA CIENCIA 300-170 A. Rupec Hall 22 INTRODUGAO A FILOSOFIA DA HISTORIA DE HEGEL ‘ean Hyppolie 23-ASFILOSOPIAS DACIENCIA Rom Hone 24 — EINSTEIN: UMA LEITURA DE GALILEU E NEWTON. Frangeuse Balibar 25 AS RAZOES DA CIENCIA Ludovico Coymonat e Gili Grorella 26 A FILOSOFTA DE DESCARTES ‘ohn Cottingham 27 -INTRODUCAO A HEIDEGGER Gianni Vato 28 - HERMENEUTICA £ SOCIOLOGIA D0 CONHECIMENTO Susan} Hekman 29 PISTEMOLOGIA CONTEMPORANEA Tgrathan Davey 30 HERMENEUTICA CONTEMPORANEA Josef Blecher 31 - CRETICA DA RAZAO CIENTIICA Kur Hubner ~ASFOLITICAS DA RAZAO Labelle Stenger: 33-0 NASCINIENTOO OA FILOSOFLA Giorwso Cell HISTORIA LOGICA Titulo original: La Logique et son Histoire © Armand Colin/Masson, Paris, 1970, 1996 Tradugdo: Caps. La XI: Anténio Pinto Ribeiro Cap. XL: Pedro Eléi Duarte Capa de Edigées 70 Depésito Legal n° 163761/01 ISBN 972-44- 1102-8 Direitos reservados para lingua portuguesa por Edigdes 70 - Lisboa — Portugal EDICOES 70, Lda. Rua Luciano Cordeiro, 123 ~ 2° Esq. - 1069-157 Lisboa / Portugal Telefs.: 213 190 240 Fax; 213 190 249 e-mail: edi.70@ mail.telepac.pt Esta obra esta protegida pela lei. Nao pede ser reproduzida, no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado, incluindo fotocépia e xerocépia, sem prévia autorizac’o do Editor. Qualquer iransgressio 4 lei dos Direitos de Autor sera passivel de procedimento judicial. Robert Blanché HISTORIA _ DA LOGICA SK Y.. 7 NOTA PREVIA Tem-se dito que toda a histdria é contemporanea. Consciente ou inconscientemente, projectamos sobre o passado, para o interpretarmos ou, simplesmente, para o descobrirmos, nfo sé os nossos novos conhe- cimentos, mas também e sobretudo os nossos interesses presentes e os nossos recursos conceptuais do momento. A histéria da idgica oferece- “N05, como veremos, um bom exempto disso. A renovagao desta disci- plina, no nosso tempo, modificou a nossa perspectiva e jd n@o é possivel ver hoje a idgica de Aristdteles, a dos estdicos, a dos medievais e mesmo @ dos modernos, de Leibniz a Boole inelusivé, do mesmo mado como eram encaradas ainda no inicio do nosso século. A histéria da ldgica estd por reescrever e em diversas lados hd quem a isso se dedique, de hd uns decénios a esta parte. Mas é igualmente verdade, também jd foi dito, que ndo hd historia contempordnea e tanto menos quanto é mais rico o pertodo contempora- neo no dominio estudado, como é 0 caso da ligica. Perdemo-nos na confuséo dos pormenores, temos dificuldade em estabelecer as linhas mestras ¢ as que detectamos misturam-se e entrecruzam-se incomoda- mente. Por isso, 2 medida que nos aproximamos do presente, a historia deve, pouco @ pouco, dar o lugar ao quadro. E a um quadro que sabe- mos provisdrio dado que a importéncia historica de um facto ou de uma ideia sé se reconhece posteriormente, pelas suas sequeias. Ninguém se espontard, pois, pelo facto de o ultimo capitulo deste livro ndo ter sido escrito segundo o mesmo estilo dos outros. O quadro que ai esbogamos da légica contempordnea néo poderd, de modo algum, substituir o estudo directo de um tratado. O leitor a quem, em pensamento, nos dirigimos é, pelo contrdrio, aquele que, tendo jd aprofundado suficien- semente um tal estudo, desejaria agora completar o seu conhecimento da légica de hoje por meio de um olhar para o seu passado, considerando, como dizia A. Comte, que sé se compreende bem uma ciéncia pela sua histéria, INTRODUCAO O estudo histérico da légica é uma coisa recente, que data pratica- mente de ha um séeulo — pelo menos se ai nio forem incluidas as simples recolhas bibliograficas como a de Keckcrmann (1598), ou as narrag6es altamente fantasistas come a de Ramus, que faz remontar a ldgica a Noé ¢ a Prometeu. A raz4o desta caréncia é bastante clara, Se nao se escreve a histéria da légica, é porque se supde que a logica nio tem historia, tendo sido levada, de uma assentada, a perfeigao pelo seu criador, Kant limitava-se a exprimir uma opiniao comum quando escre- via, numa férmula que ficou célebre, que a légica nao tinha podido dar um tnico passo em frente desde Aristdteles, e que estava, segundo tudo parecia, encerrada e acabada, geschlossen und vollendet'. Esta convic- g4o reinou quase sem contestacao até ao fim do século XIX, ¢ mesmo um pouco mais além. Na propria altura em que a logica despertava de um longo sono, Brochard, por exemplo, nao hesitava em assegurar ainda: «A ldgica é uma ciéncia ja feita. A era das descobertas, pode afirmar-se sem medo, esta encerrada para ela’.n Por isso, ha algo de paradoxat em ter de afirmar que os trabalhos sobre a histéria da légica comecam com a monumenta! Geschichte der Logik de Karl Prantl (4 vol., 1855-1870). Eis um homem que, como o sublinha, ndo sem humor, Bochenski’, dedicou toda a sua vida de traba- Tho a escrever uma histéria da légica formal, para provar que, ao fim e ao cabo, Kant tinha razfio e que a légica formal, em suma, ndo tem histéria. Este preconceito falseou a sua obra do principio ao fim. Se ela continua a ser preciosa como recolha de textos, as interpretagdes que deles so dadas e os juizos que sobre eles sfio feitos so sempre suspeitos e, por vezes, francamente errados. De facto, tudo af é interpretado ¢ ‘ Critica da Razto Pura, Preticio da segunda edigao, inicio. 2 aLa logique de J. S. Milbs, Revue philosophique, 1880; reproduzido em Erudes de phifosophie ancienne et de philosophie moderne, Paris, Alcan, 1912, p. 442. * Formale Logik, p.8. VW julgado em fungdo da légica aristotélica, ou antes, dessa Idgica de inspi- tac principa!mente aristotélica a que se chama Iégica classica. Donde, por exemplo, as apreciagdes nfo apenas erréneas, mas mesmo injurio- sas. sobre a légica dos estéicos: donde ainda, a ideia de que a [dade Média ndo fer mais do que retomar, diluindo-as por meio de falsas sub- ulezas, as teorias de Aristoteles, e que representa, portanto, para a ldgica. «um milénio de pura perdao, Perante tars aberragées, os historia- dores recentes da logica vio até ao ponto de declarar que a obra de Prantl. embora tenha iniciada a era dos trabalhos neste dominio, se tornou, no entanto, hoje, «sem valom ¢ «inutilizavel'; quando no levam © seu desprezo ao ponto de a ignorarem sistematicamente’. Foi a renovacae da ldgica de ha um século para ca que suscitou, pot via indirecta, um renascimento da sua histéria, Apos um periodo de desafeigdio em relagdo a légica antiga, olhada como ja caduca e total- mente ultrapassada pela logica nova, comegaram a manifestar-se senti- mentos diferentes e um recrudescimento do interesse pelas velhas dou- trinas, primeiro esporadicamente, mas, a breve trecho, de uma maneira generalizada. Espiritos disciplinados pela pratica da nova légica ¢ que adquiriram. por meio dela, conhecimentos tedricos e habitos de pensa mento que faltavam aos filésofos e aos historiadores que, até entdo, tinham editado os textos dos antigos ldgicos ¢ exposto as suas doutri- nas, apercebem-se, voltando as fontes para além das tradugGes, dos resurnas e dos comentirios, que essas vethas doutrinas, que se julgavam obscuras € antiquadas, ganham, de novo, sentido € interesse ¢ se organi- zam de maneira mais inteligivel no sé em si préprias, mas também nas suas relacdes mituas. Tinha havido, sem duvida, alguns precursores. JA em fins do século xx, autores empenhados na transformacao da ldgica, como C. S. Peirce e J. Venn, tinham Jangado um olhar atento sobre o passada da sua ciéncia. Mas é por volta de 1930, que comega verdadei- ramente uma nova era na histéria da légica. Enquanto J. Jorgensen consagrava o primeiro volume do seu grande Traité de logique formelle (1938) ao estudo do seu desenvolvimento histérico, J. Lukasiewicz ¢ H. Scholz davam o impulso decisivo a esta renova¢do dos estudos hist6- ricos. O primeiro, num artigo, de 1934-1935, sobre a historia da légica das proposigdes. e depois. em 1939, num outro sobre a silogistica de Aristoteles que prefigurava o seu livro sobre o mesmo tema, fazia apare- cer a uma nova luz toda a légica antiga. Por seu lado, Scholz, depois de um artigo, L'axiomatique des anciens (1930), publicava um trabalho breve mas substancial, Esquisse d'une histoire de ta logique (1931), que sobressaia nitidamente entre todos os anteriores. Multiplicam-se as monografias, livros ou artigos. E as obras de sintese de J. M. Bochenski (1956) ¢ de, W. & M, Kneale (1962) — aos quais nés proprios devemos muito’ — permitem hoje a todos uma boa abordagem de conjuato. Sendo a historicidade da légica doravante reconhecida, como con- ' Bochenski, Ancient farmal logic, p. 6; Lukasiewicz, Aristatle’s svllogiste. p. 36. * Scholz, Esquisse dune histoire de ta logique. ‘ Camo teremos de cité-los muitas vezes a0 loago deste trabalho, designi-los- -emos, para abreviar, sé pelas suas iniciais, respectivamente F. L., (Formale Logik) € D.L. (The Development of Logic). 12 repartir esse desenvolvimento para marcar os seus grandes perio- Parece impor-se uma primeira periodizagdo ¢ fot a que esponta- neamente foi adoptada. de maneira mais ou menos explicita, nos tempos em que a lgica simbolica moderna, ainda muito jovem, sentia a neces- sidade de se aftrmar opondo-se. © titulo de um opuscule de Carnap, Lanctenne et la nouvelle logigue, exprime-o claramente, e é eémodo, para o cnsine da ldgica, manter esta divisdo, como farem geratmente os (ratados, Q corte situava-se por volta de 1950, na altura em que a logica escapa aos filésofos e cai nas maos dos matematicos, alinhando-se, assim. pelas outras ciéncias. Cuntudo, quando se olhavam as coisas um pouco mais de pero, essa simplificagdo parecia um pouco grosseira. E assim que Schoiz, embora continuando a considerar como essencial a heterogeneidade das duas manetras de tratat a logica, ndo se julga autorizado a fazer coinci- dir exactamente esse corte com um corte temporal ¢ tem de admitir, entre ambos, uma certa coexisténcia: por um lado, a légica & moda antiga prolonga-se na era logistica, por outro, esta comega verdadeira~ mente com Leibniz, embora permanega como que eclipsada dvrante dois séculos Mesmo assim temperada. tal divisdo exige algumas reservas. Por- que. nesse caso, ndo deveriamos, inspirando-nos no préprio Scholz, faver remontar o espirito da idgica moderna mais -atras do que a Lei- bniz, ¢ identificd-lo ji em outros autores da Antiguidade? O gue teri como efeito retirar 4 dicotomia a sua dimensio histérica, a nZo ser no sentido mais fraco de uma simples predomindncia de uma ou de outra das suas duas secgdes, Sabe-se que o préprio Leibniz dava a maior importaneia a Aristoteles de quem, de bom grado, se considerava um continuador ¢ a quem felicitava por ter sido «o primeiro que, de facto, escreveu, matematicamente, fora das matematicas'». E, mesmo hoje, os artilices da légica nova nem sempre rejeitariam tal filiagdo. Lukasiewicz, por exemplo, diz dos Primeiros Analiticos que a silogistica que ai é apresentada «é um sistema cuja exactidio ultrapassa mesmo a de uma teoria matematica; um sistema «andlogo a uma teoria matematica da relago maior gue, como os estéicos jé o tinham justamente subli- nhado». Quanto aos proprios estdicos, a sua légica, diz ainda Luka- siewicz, ndo € apenas formal como a de Aristételes, mas, além disso, tal como a nossa, formalista’. De resto. hoje ¢ sabido que as tabelas de verdade, cuja descoberta se atribuira a Peirce ou a Wittgenstein, eram ja conhecidas dos megiricos. Outra dificuldade: a bipartigéo tal como ¢ feita por Scholz tem como efeito bloquear, num mesmo compartimento, tudo o que «vai de Aristételes A época actual ¢ que compreende tudo o que ndo € inspirado pela ideia leibniziana da togistica», porque «a distingZo habitual entre a Antiguidade, a Idade Média e os Tempos Modernos nao tem, para esta logica, qguase nenhum sentido»’, Ora, depois da época em que Scholz ‘ Carta a Gabriel Wagner. fins de 1696; em Gerhardt, Phit. Sehr, VIL, p. 5I9, 2 Aristotle's sultogion, pp 6, 131, 73, 15 * Esquisse, p a5. escreveu estas linhas. os progressos do estudo histérico, que ele proprio suscitou, levaram a uma séria revisio do juizo que se costumava fazer sobre 0 periodo da Idade Média. JA nao podem, hoje, menosprezar-se, nem a originalidade da logica medieval em relacdo 4 Antiguidade, nem as antecipagdes muito nitidas que ai se encontram de varias teses da logistica moderna. E também nio € justo por, de algum modo, em pé de pualdade os dois ou trés séculos de intense actividade légica na Idade Média, com os séculos de marasmo que se It=s seguiram, e que explicam a crenca de Kant e de muitos outros na estaznagao definitiva da légica. E por isso que Bochenski propde umz periodizagao diferente. £ preciso, em primeiro lugar, distinguir. na curva do desenvolvimento, alguns pontos culminantes, aqueles em que se situam os periodos verda- deiramente criadores: na Antiguidade, os séculos tv e Hi antes da nossa era; durante a Idade Média, os séculos Xi! e XIV; finalmente, na nossa época, a partir de meados do século xx. Pode juntar-se-lhes, de um lado e do outro, 0 que Os prepara e 0 que os prolonga imediatamente. E entre estes trés grandes blocos, dois vazios: a Alta Idade Média, e essa outra Idade Média légica que a época dita «classica» representa. Donde, a divisio da historia da ldégica ocidental em cinco periodos, trés dos quais verdadeiramente criadores, separados entre si por dois outros rela- tivamente estéreis: Antiguidade (até ao século vi da nossa era), Alta Idade Média (do século vil ao século x1), escolastica (do século xi ao século XV), ldgica «classic» moderna (do século xvi ao século XIX), légica matematica (a partir de meados do século x1x). Bochenski sublinha, por outro lado, que esta historia ndo é a de um progresso continuo, em que os periodos vazios marcassem apenas tem- pos de abrandamento ou de paragem. Em cada recomego parte-se de novo, sendo inteiramente do zero, pois que nao se ignora completamente © passado, pelo menos numa direcgio nova, Em vez de prosseguir sim- plesmente 0 movimento comegado, a ldgica é, de certa forma, reinven- tada: langa-se sobre ela um olhar novo, imprime-se & pesquisa um cunho original. Ela apresenta-se, portanto, ao historiador sob trés aspectos nitidamente diferenciados”, que convém delinear separadamente assina- lando para cada um 0 que constitui 0 seu caracter proprio. Essa origina- lidade fundamental nem por isso impede que se possa falar de uma his- toria de a ldgica, no singular. Porque, sob a diversidade dos angulos de ataque, é, de facto, sempre 0 mesmo objecto que se tem, finalmente, em vista, como o-atesta o facto de se reconhecerem variadissimas vezes, inseridos em contextos diferentes ¢ expressos num outro vocabulario, os mesmos problemas ¢ as mesmas dificuldades: é assim que, por exemplo, 0 calculo das proposi¢ées foi realmente inventado trés vezes e que trés vezes encontramos abundantes discussées sobre a natureza da implica- go e seus paradoxos. Notar-se-do facilmente estas grandes divisdes nos capitulos do nosso livro. A margem deste desenvolvimento histérico da légica ocidental. Bochenski reserva também um lugar a um quarto aspecto, o da Tégica indiana. No nos referire- mos a ele aqui. 14 Capitulo 1 OS PRECURSORES 1. Do implicito ao explicito Quando nos interrogamos sobre os inicios da ldgica, impde-se uma disting&o logo desde o inicio: a que separa os conhecimentos implicitos dos conhecimentos explicitos. Distingdo essa que funciona ja ao nivel da simples correccdo gramatical do discurso. Do iletrado ou da criancinha que conseguem falar mais ou menos correctamente, dir-se-4 que conhe- cem a gramitica da sua lingua? Se se quiser, no sentido de que aprende- ram, pela pratica quotidiana, a maneira de aplicar as suas regras; é ainda impropriamente que se falaré aqui de aplicaco e seria preferivel dizer, mais simplesmente, que eles aprenderam a maneira de usar a lin- gua. Eles seriam, de facto, incapazes de identificar essas regras ¢ de as elevar ao nivel da teoria. E mesmo um bom escritor pode ser um grama- ‘ tico mediocre. De igual modo, nao basta saber raciocinar correctamente para pretender ser um ldgico. E por isso que nao deve propriamente * atribuir-se o conhecimento de uma lei légica a um autor se ele se con- tenta em utiliza-la; é preciso ainda que ele a tenha expressamente formu- lado. A légica como ciéncia pressupde uma ldgica operatéria esponta- nea, tal como a gramatica pressupée 0 uso da lingua; mas, tanto num caso como no outro, a ciéncia sé comega quando a atencdo incide sobre - a pratica para, a partir dela, fazer a teoria. Esta grande divisio exige, no entanto, algumas cambiantes, que atenuarao a brutalidade do corte. Ao nivel do implicito, ha, em todo o caso, que reconhecer uma diferenca de progresso entre o que se mostra incapaz de raciocinar correctamente e de conduzir convenientemente uma refutagdo e o que raciocina sem cometer, ele proprio, paralogismos ao mesmo tempo que detecta os vicios de argumentacdo no outro. Entendendo «saber no sentido de «estar apto a», pode realmente dizer- 15 ~se deste Ultimo que ele sabe raciocinar, tal como se diz de um orador que sabe falar ou de um nadador que sabe nadar. E se acaba por empre- gar rodeios de raciocinio subtis, até entéo desconhecidos, e no entanto validos, ndo podera atribuir-se-lhe a honra de uma descoberta légica, no plano da logica operatéria? Ao nivel do explicito, é preciso também distinguir entre aquele que formula expressamente, em abstracto, uma lei légica e aquele que, sem a ter formulado assim, mostra pelo que diz que ja dela tomou nitidamente consciéncia. A formulacao pressupée a tomada de consciéncia, mas esta no implica, necessariamente, aquela. Ora, quando o homem de que falavamos ha pouco emprega uma modalidade de raciocinio nova e refi- nada, nao é improvavel que capte mais ou menos claramente a sua estrutura légica. A distinco dos niveis nao impede portanto uma certa continuidade. Ilustremos por meio de alguns exemplos estas consideragdes um pouco tedricas. A légica moderna conhece bem duas leis de calculo das Proposi¢Ges, que sio manifestamente aparentadas: po~p:2~P ~prp:>p O que significa, expresso na metalingua: 1.° se uma proposi¢io implica a sua prdpria negacdo, é falsa; 2.° se, para uma certa proposigéo, mesmo a suposi¢ao da sua falsidade implica a sua verdade, nesse caso ela é verdadeira. A primeira destas leis € uma forma da reducao ao absurdo; serve para refutar uma tese, mostrando que ela envolve uma contradi- ao. A segunda lei, pelo contrario, serve para estabelecer uma tese; conhecida primeiro sob o nome de consequentia mirabilis, ela &, hoje, correntemente chamada lei de Clavius', porque Clavius, um jesuita da segunda metade do século Xvi, chamou a atengdo para esta lei em vir- tude do uso que dela fez o geémetra Euclides numa das suas demonstra- gdes. Estas duas leis sfo bastante subtis e fora do uso comum: pode-se, Portanto, atribui-las j4 aos que as empregaram, ainda que as nao tenham formulado separadamente como leis de logica. Ora, encontra-se esse uso, antes de Euclides, no periodo que precede o nascimento da légica aristotélica. Para ilustrar a primeira destas leis, eis, em primeiro lugar, um argu- mento de Zendo de Eleia, tal como nos é relatado por Simplicio no seu comentario sobre a fisica de Aristoteles: «Se existe um lugar, ele esta em alguma coisa, porque tudo o que existe esta em alguma coisa; mas 0 que esta em alguma coisa esta também num lugar; portanto o lugar deveria estar, ele proprio, num lugar, ¢ assim até ao infinito; portanto, nao existe nenhum lugar.» Um outro exemplo, para o qual Vailati chamou a atengdo’, € forne- ' Esta denominagao deve-se a Lukasiewicz. Mas o mesmo Lukasiewicz mostrou, fazendo referéncia a Sexto, Adversus mathematicos, VIII, 292, que ela ja se encontrava nos estéicos, num texto que ndo figura na recotha de Arnim. — Eto} 14 mpdrov, 1d npGrov * 23 mpiizoy fox. * «Sur une classe remarcable de raisonnements’par réduction 4 labsurden, Revue de métaph, et de morale, 1904, p. 799-809, com referencia a Teeteto, 171 a.C. 16 cido por uma passagem do Teerero. O objectivo de Platdo é refutar a tese de Protagoras segundo a qual o homem, entendido ai no sentido individualista, é a medida de todas as coisas, e raciocina assim: se essa tese € verdadeira, o proprio Protagoras tem de admitir que os que a rejeitam, considerando-a falsa. tém razao no seu ponto de vista. Havera, Portanto, contestagac entre Protagoras e os seus adversirios: mas enquanto os seus adversdrios tem, do seu ponto de vista, o direito de considerar falsa a tes> de Protagoras, este pelo contrario nao tem, do seu ponto de vista, 0 direito de considerar falsa a tese dos seus advers: rios; em virtude da sua propria tese, deve ele proprio considerar verda- deira a tese dos seus adversdrios que a tém por falsa. Por outras pala- vras: se ela é verdadeira, é falsa, portanto, é falsa. Quanto a segunda dessas leis, a lei de Clavius, temos dela um exemplo célebre que Podemos realmente atribuir ao nosso periodo, embora seja de Aristoteles, pois sc encontra numa das suas obras de juventude, sensivelmente anterior aos seus primeiros escritos légicos. 0 Protréptico. Esta obra encontra-se. hoje, perdida, mas a argumenta¢do. que nos interessa é-nos relatada por trés diferentes autores, entre os quais Alexandre de Afrodisias, particularmente digno de fé: se ndv é preciso filosofar, entao é preciso filosofar (a saber: para provar que néo é preciso filosofar). portanto é preciso filosofar'. A propria formutagao de uma lei pode comportar diferentes graus de explicitag4o. Hustremo-los. ainda neste caso. com um exemplo: Numa passagem dos Tépicos’. Aristételes da o seguinte conselho para a pratica da argumentagao dialéctica: para estabelecer uma tese, Procurar uma proposi¢do cuja verdade implica a da tese: entdo, se se mostrar que essa proposigGo é verdadeira, ter-se-d, ao mesmo tempo, demonstrado a tese; para a refutar, procurar uma proposigdo que seja uma consequéncia da tese: entdo, se se mostrar que essa consequéncia é falsa, ter-se-d, do mesmo modo, refutado a tese. Assim, estamos, mani- festamente, perante um conhecimento que pertence, de facto, ao domi- nio da légica e que transparece bastante claramente na formulacao ver- bal. Em todo 0 caso, ele nao é apresentado como tal, isto é, como uma lei Idgica. A lei é suposta pelo conselho que Aristételes da, fica nele implicita. Um implicito que ultrapassa 0 nivel da simples utilizagdo pra- ica, que emerge 4 consciéncia, mas que permanece ainda envolto no snunciado de uma regra, tendo a ver com a deontologia da argumenta- 140: comparavel, se se quiser, 4 receita de um médico, a qual supde, sem luvida, conhecimentos teérigos, mas nao os enuncia. Havera um progresso com os Primeiros Analiticos onde se lé': «De emissas verdadeiras ndo se pode tirar uma conclusdo falsa. mas de xemissas falsas pode tirar-se uma conclusdo verdadeira.» A lei é, desta ¢z, directamente reconhecivel e ndo se hesitara em dizer que Aristoteles Ao se contenta em aplicd-la, que ele a conhece de maneira explicita. lotar-se-4, no entanto, que ela ndo € propriamente enunciada, mas implesmente descrita: Arist6teles apreende-a do exterior, exprime-se a Os trés exemplos supracitados so dados por Bochenski. F. /.. pp. 36-37. 14, Tb ess. . 2.53 bBess 17 seu respeito na metalingua. Uma distancia separa ainda a sua formula e a da lei, ou antes das duas leis conexas as quais ela se refere Para a primeira destas duas leis, comum aos textos dos Topicos e dos Analiticos, assim como para a segunda do texto dos Tépicos, o passo serd dado pelos estdicos. Os seus dois primeiros «indemonstra- dos», em que as varidveis numéricas designam proposigdes, enunciam-se, de facto, assim: «Se 0 primeiro o segundo, ora 0 primeiro, portanto o segundo», e: «Se o primeiro o segundo, ora nao o segundo, portanto no 0 primeiro.» Trata-se ainda, apenas, é certo, de esquemas de inferéncia, nao de leis ldgicas. Os estdicos conheciam, no entanto, as duas formas de expressdo, assim como a sua relagao ¢ sabiam fazer corresponder a cada esquema de inferéncia uma proposi¢gao implicativa. S6 que eles sé 0 fazem, tanto quanto podemos ajuizar pelos textos que chegaram até nés, usando exemplos concretos, que sé apresentam ilustragées da lei nao a propria lei. S6 o fazem — e nao podiam, alias, fazé-lo na lingua‘vulgar, a nica de que dispunham — por meio de uma formulagdo quase bar- bara. Por exemplo, para a primeira das duas leis: «Se é dia ha claridade e é dia, ha claridade». Para obter a lei em toda a sua generalidade, seria necessdrio, nesta forma implicativa, substituir as constantes concretas por variaveis, € escrever: «Se se o primeiro o segundo e o primeiro, o-segundo.» E para tornar mais inteligivel esta segunda formula, seria necessario utilizar parénteses 4 maneira dos matematicos, e escrever: «Se (se o primeiro, 0 segundo) e (o primeiro), o segundo»; ou, melhor ainda, subtituir a lingua habitual por uma linguagem inteiramente simbélica, quer, com varidveis proposicionais proximas das dos estdicos: ((1 > 2) + 1) D 2; quer, com as da logistica moderna: ((p D q) « p) D q. Para o segundo indemonstrado, © que corresponde 4 segunda metade do texto dos Tdpicos, escreve- fi : ((p D q) + ~ gq) D ~ p. Quanto A segunda das duas leis envolvi- das no texto dos Analiticos, poder-se-ia, seguindo as mesmas etapas na sua transformagdo, escrevé-la, finalmente, assim: ((p > g) - ~ p) D(qv~q). 2. Os dialécticos Se hoje ja nao é possivel defender, como fazia Kant, que a légica fica completa com Aristételes, deve, pelo menos, reter-se a outra metade da sua formula e admitir que é, de facto, com ele que ela comega. Temos, sobre este ponto, 0 testemunho do proprio Aristételes, 0 que nao permite, na verdade, invocar a eventualidade de ensinamentos puramente orais, ou de textos actualmente perdidos. E sabido que, quando aborda o estudo de uma questdo, Aristoteles tem 0 habito, como bom professor, de comecar por recordar 0 que outros disseram, antes dele, sobre o assunto. Ora, nao sé ele nao faz nada de semelhante em relacdo a légica, como explica porqué. No final da obra que servird de ponto de partida para os seus estudos de ldgica, afirma, efectiva- mente: «Sobre esta quest4o, ndo havia unfa parte j4 elaborada e outra nao: nfo havia absolutamente nada (oWdev mavteAdic).» E, um pouco 18 mais adiante: «Se havia, sobre a retérica, muitos trabalhos antigos, sobre o raciocinio, pelo contrario, ndo tinhamos rigorosamente nada a citar, e tivemos de dedicar-nos, nio sem dificuldade, a pesquisas que nos tomaram muito tempo!.» Estas declarages incidem, é certo, mais sobre a dialéctica do que sobre o que serd a légica propriamente dita. Mas se. mesmo a dialéctica, tal como se praticava antes de Aristételes, nunca constituira objecto de um estudo tedrico, com maioria de raz4o deve admitir-se isso mesmo para a logica, a qual € resultante de um estudo tedrico da dialéctica. Foram, de facto, os problemas sugeridos pela reflexdo sobre a arte do didlogo que conduziram Aristételes a lgica. Podem distinguir-se, pois, grosso modo, trés fases na formulagdo da légica: l.° a pratica da dialéctica, conduzida, por certo, de forma consciente, mas ainda nao teorizada, a&reyviss, € que fica a0 nivel de receitas empiricas, que s40 mais utilizadas do que estabelecidas expres- samente; 2.° a explicagdo € a organizagao sistematica destas regras da argumentagdo dialéctica, 0 que é a tarefa nova, ¢ reconhecida como tal, de Aristoteles nos seus Tdpicos; 3.° a passagem do estudo da argumen- tagdo dialéctica a teoria do raciocinio formal em geral, isto é, a logica: é © progresso que leva dos Tépicos a Interpretagao ¢ aos Analiticos. Mesmo na época que tratamos, e para nao falar dos desvios poste- riores, a palavra wdialéctica» esta longe de ser entendida de maneira per- feitamente univoca. Vem do verbo SiaréyecOat, que significa trocar impresses com alguém, conversar, debater. No principio tem, portanto, que ver com a pratica do didlogo. Mas, a breve trecho, ganhou um sentido mais preciso, 4 medida que tal pratica se tornava mais cons- ciente dos seus processos; designa, entao, uma discussdo de algum modo institucionalizada, organizando-se — habituaimente em presenga de um publico que acompanha o debate — como uma espécie de concurso entre dois interlocutores que defendem duas teses contraditérias*. A dia- léctica eleva-se, entao, ao nivel de uma arte Sixdextixy téyvy, aarte de triunfar sobre o adversario, de refutar as suas afirmagdes ou de o convencer. A palavra adquire, assim, um cambiante polémico, ou pelo menos agonistico. Encontra-se esse cambiante na argumentagcao do filé- sofo na medida em que ele visa elaborar e justificar a sua propria dou- trina pondo em discussdo as de outrem, mesmo se o didlogo acabou por se interiorizar para se reduzir a essa conversa silenciosa da alma consigo propria, pela qual Platao define o pensamento’. E como a pratica desta arte, em que a defesa de uma tese se encontra sempre mais ou ligada ao ataque de uma ou varias teses opostas, exige, para atingir o seu fim, que se ultrapasse o rival pela subtileza, o engenho, a argticia da argumentacao, acaba por provocar a tentacao de usar de habilidades mais ou menos fraudulentas: aparecem, entdo, a eristica que é a arte de embaragar o adversario, e a sofistica, que é a arte de enganar por meio de raciocinios capciosos. E pois num sentido um pouco incerto onde se combinam estas diversas acepgdes, e 4s quais vird juntar-se o sentido " Sofismas, 34: 183 b 34-36 © 184 a-b. * Cf. Jacques Brunschwig, na /nrroducdo da sua edigdo dos Tépicos. Paris, Belles: -Lettres (Budé), vol. 1. 1968, p. XXII e seguintes. " Teeteto, 189 ¢: Sofista, 263 ¢. 19 mais pessoal, também cle varidvel, que lhe dara Platdo, que aa palavra adialéctica» € empregue no meio intelectual em que Aristételes s¢ forma. Quando e através de quem se chegou a este requinte na pratica da idiscussdo, que a eleva a categoria de uma arte? E ainda Aristoteles quem no-lo diz. Sabemos, por meio de duas fontes independentes' , que ele considerava Zendo de Eleia «o inventor da dialéctica». Referia-se, sem diivida, ao uso que Zeno introduzira de aplicar, as discussées filoséfi- cas, 0 processo da reducio ao impossivel, dnzywyh els rd ddvvat0v, de que st serviam jé os matematicos, nomeadamente os pitagéricos, na sua célebre demonstracdo da incomensurabilidade da diagonal ao lado do quadrado. Plato diz-nos, com efeito,’ que Zendo, na sua juventude, tinha composto um escrito, para confirmar a tese parmenidiana da uni. dade do ser, mostrando as consequéncias absurdas que a sua antitese, a dos partidarios da pluralidade, arrastava consigo. E €, de facto, do mesmo processo que relevariam, no sentido em que geralmente foram entendidos, os seus famosos argumentos contra o movimento. Encon- trar-se-4 uma utilizacdo andloga em-Sécrates, sé com a diferenca de Sécrates se contentar, habitualmente, com uma reducao 4 falsidade sem ir até ao absurdo: por exemplo, quando critica a tese segundo a qual a virtude pode ensinar-se, tirando dai a consequéncia de que, entdo, o homem que possui a virtude nao deixaria de ensina-la a seus filhos, ¢ invocando contra-exemplos que desmentemt essa consequéncia’. Mas, quer consiga revelar um erro de facto ou uma contradigao ldgica, a verdade € que se exige o dominio do raciocinio apagégico como uma qualidade essencial para a aptiddo dialéctica. Um outro recurso da dialéctica para refutar o adversdrio é, em vez de atacar directamente a verdade da sua tese, denunciar erros légicos na argumentagdo com que ele a defende. Para tal, € preciso ser capaz de fazer uma distingdo exacta entre raciocinios correctos ¢ raciocinios incorrectos, 0 que supde um saber Iégico pelo menos implicito. Mas os paralogismos do adversario nem sempre s4o involuntarios ¢ inocentes. O segredo da questo é dar, nesse caso, a aparéncia exterior de uma forma 16; inatacavel, a raciocinios falaciosos: quer para justificar uma opinido paradoxal, quer para-obrigar 0 outro a acabar por defen- der uma assercao ridicula. Os sofistas tinham adquirido uma reputacdo de serem excelentes nessa arte e iam até ao ponto de se gabarem disso. E assim que Protagoras se gabava, diz-se, de poder «fazer conf que o pior argumento parecesse o melhom. Donde o nome de «sofismas» dado a esses paralogismos voluntariamente especiosos. Platéo achou bem consagrara um dialogo, Eutidemo, aos que fazem profissdo e semelhantes habilidades e sobre os quais ele faz recair a ironia de Sécrates. No mesmo espirito, Aristételes recusar-se-4 a integrar a sofistica na dialéc- tica, Mas tera, pelo menos, de instruir o dialéctico acerca dela para o acautelar contra as manhas do adversario. E por isso que os Tépicos gem © seu ponto mais alto com um livro dedicado a analise dos " Didgenes Laércio, Vidas, VII, $7 € IX, 25; Sexto Empirico, Ady. math. VII, 6-7. > Parménides, 128 4. 7 ‘ Menon, 93 b -- 94. 20 sofismas, fornecendo assim os meios para os desmascarar e, consequen- temente, os refutar. Analise essa que ja nos conduz ao limiar da légica. Dentro desta proliferagio de subtilezas. de armadithas légicas, a que se assiste.na época dos sofistas. seria preciso, alias, introduzir uma distingdo, ainda que a separagdo nem sempre seja muito nitida. Ao lado dos sofismas propriamente ditos. destinados a enganar 4 ouvinte, encon- tram-se algumas espécies de jogos de palavras que se =presentam como tais. mas que excitam a curiosidade e incitam a procurar a falha do argumento. Esses contribuiram. certamente, para 0 exzrcicio € a afina- Gao da reflexdo logica. Devémo-los sobretudo aos megaricos que consti- tuem, assim, ao lado dos eleatas € dos sofistas, uma terceira corrente no desenvolvimento da dialéctica. E verdade que também eles se compra- zem em provocar e embaracar outrem propondo-the espécies de eni- gmas. Didgenes Laércio informa-nos de que a escola de Mégara era considerada eristica e também dialéctica; e Zeller nota que. de facto, a eristica nado tarda a dominar os ensinamentos positivos'. Mas aiguns dos seus argumentos tém um inegavel interesse logico. O mais célebre deve-se a Eubulides: ¢ 0 do Mentiroso que, passados séculos, nao deixou ainda de embaracar os légicos e de lhes ;}roporcionar a ocasiao para exercitarem a sua sagacidade. Que desta forma se envereda pelo cami- nho-que conduz a légica é o que, de resto, nos ¢ provado pelo facto de ser aos dialécticos da escola de Mégara. principalmente a Diodoro e a Filon, que os estéicos irdo buscar 0 essencial da sua légica, cujas bases estdo, assim, lancadas desde a época de Aristoteles. Deste modo. a dialéctica. sob os seus diversos aspectos, prepara a légica. Para se tornar, verdadeiramente, uma arte, ela supde um estudo das articulagées légicas do discurso, das relagées de consecugao ou de incompatibilidade entre as proposigdes; € preciso reconhecer € analisar os diversos modos de argumentagao, saber distinguir entre os encadea- mentos legitimos € os encadeamentos incorrectos. Faltam-lhe, no entanto. ainda duas coisas que a distinguem da ldgica. Primeiro e sobre- tudo, o seu saber logico continua, em larga medida. em estado implicito. E uma arte. uma técnica’. Da regras, mas sem chegar a estabelecer e a formular sistematicamente as leis que as justificam. Além disso, 0 seu cardctef agonistico tem como efeito, nado apenas impedir-Ihe 0 acesso a independéncia cientifica, mas concentrar 0 seu interesse na argumenta- Gao de caricter eristico ou refutativo’. Ora, as leis e as régras que impéem, por exemplo, a redugo ao absurdo ov ainda a anilise dos sofismas, irao entrar, por certo, no dominio da légica, mas para nela ocuparem apenas, um lugar restrito, relacionando-se 0 essencial com o raciocinio directo e afirmativo. A légica implicada na argumentag&o dia- " Diogenes Laércio, Vidas, I. x. 106; Ed. Zeller, Ph, der Griechen, 3.4 ed.. 1875, 25 Aristételes, Tépicos, inicio: «O presente tratado propde-se encontrar um método que nos torne capazes de raciocinar dedutivamenter (segundo a traducao de J. Brunschwig). “Id.. ihidemt, I. 1, 109 a 9-10: «Sendo as teses que se poem em discussdo mais frequemtemente afirmativas do que negativas, 0s dialécticos tém, geralmente, como tarefa efectuar refutagdes» Wi. léctica é, sobretudo, uma légica negativa ou critica ¢ néo uma légica positiva e construtiva. 3. Platio Seria temerario pretender determinar, com alguma precisdo, que papel tiveram, na preparagao da légica, autores cujas obras «Zo temos em nosso poder e de que sé nos restam curtos fragmentos que os doxé- grafos nos transmitiram. No caso do préprio mestre de Aristételes, isto é, de Platéo, as condigdes sdo mais favordveis, embora a questao conti- nue a ser bastante complexa. Se os didlogos platénicos dio, muitas vezes, testemunho de uma grande agilidade ¢ finura na conduco da discussdo, a verdade é que os principios segundo os quais ela é orientada permanecem, de um modo geral, implicitos. E mais, Platéo chega a tirar conclusdes incorrectas. E certamente um pouco exagerado dizer, como faz Bochenski, que «a leitura dos seus didlogos é quase intoleravel para um légico, de tal modo eles contém erros elementares»'. E podemos, por vezes, perguntar-nos, com M. Kneale, até que ponto, ém presenga de um desses erros, se deve imputa-lo ao proprio Platdo e nao a personagem que ele pée a falar’. Mas, enfim, 0 facto € que a sua argumentago nem sempre é de uma légica irrepreensivel, Por exemplo, numa passagem do Gorgias’ encon- tra-se, na boca de Sécrates, a seguinte inferéncia: «Se uma alma sabia é uma alma boa, a que est4 numa condig&o contraria Aquela alma sabia € uma alma ma.» Concluir-se-ia de igual modo, e igualmente mal: se uma alma sabia esta viva, a que nfo é sAbia est4 morta. Plat&o admite aqui, implicitamente, que se todo o A é B, pode concluir-se de ndo-A a ndo-B, a0 passe que a conclusdo legitima, em virtude da lei da contraposig4o, vai em sentido inverso, de ndo-B a ndo-A. Noutro lado, a propésito da falsa conversdo de todo o A é Bcm todo o Bé A, Platéo nao comete tal erro, ¢ chama mesmo a ateng4o para ele numa das suas personagen: mas ficamos surpreendidos com a dificuldade que ele sente em demons- trar uma coisa que nos parece tio evidente*. Precisa de uma pagina inteira, com rodeios complicados, para fazer admitir que se os corajosos So ousados, dai nZo se segue que os ousados sejam todos corajosos. O que sugere que uma regra tao elementar como a da conversdo por acidente esta ainda pouco sdlida, se ndo porventura no préprio Platéo, em todo 0 caso entre aqueles que o rodeiam. Feitas estas reservas, nao podemos deixar de reconhecer o papel de Platdo na preparacdo da légica. E, desde logo, por uma descoberta capi- tal, que ele prdprio ndo explorou, mas que claramente enunciou. E, de Ancient formal logic, p. 7. * D.L., p. I. Rosamond Kent Sprague consagrou mesmo um livro (Plato's use of fallacy. a study of the Euthydemus and some other dialogues, Londres, 1962) a defender que Platao tinha perfeita consciéncia do caracter falacioso de alguns dos seus argumentos e que fazia um uso deliberado do sofisma como um meio indirecto para expor,alguns dos seus pontos de vista filoséficos. « 2 507 a; segundo a trad. de L. Robin, Paris, Gallimard (Pléiade), 1953-55. * Protdgoras, 350¢- 351 b. 22 facto, nele, ja no final da sua vida, que vemos pela primeira vez, estabele- cer-se a ideia daquilo que constituiré 0 préprio objecto da légica, ou seja, a ideia de lei légica. Tal como ha leis que regulam 0 curso dos astros, ha leis que regulam 0 curso dos raciocinios; sé que, enquanto os astros, que so divinos, respeitam sempre as ptimeiras, nés, homens, violamos constantemente as segundas no desenrolar dos nossos pensa- mentos, porque ndo temos delas uma visdo clara, e é essa a razo por que caimos no erro. Para o evitar, temos necessidade de aprender a conhecer essas leis, de maneira a podermos submeter-nos a elas com exactiddo. Eis 0 texto notabilissimo do Timeu em que esta tese € formu- ladai «Se um deus inventou, para nds, o dom da visdo, foi para que, contemplando no céu as revolugdes da inteligéncia [divina], © aplicas- semos aos Circuitos que em nés percorrem as operagées do pensamento;, estes tm a mesma natureza daquelas, mas elas sao imperturbaveis ¢ eles sempre perturbados; gracas a este estudo, temos acesso aos cémputos naturais na sua rectiddo e, 4 semelhanga dos movimentos divinos, abso- lutamente isentos de erro, podemos dar. uma solugdo a anomalia dos que esto em nés'. Ora, tal estudo é o proprio objectivo da légica. Por outro lado, a influéncia de um autor nio se limita 4 acg4o que ele exerce directamente; ela deve medir-se também pelas reacgdes que suscita. Ora, foi ao meditar sobre dificuldades que encontrou no seu mestre, Plato, que Aristételes chegou, como expressamente reconhe- ceu, a duas das suas mais importantes descobertas légicas. Essas duas dificuldades esto ligadas, tanto uma como a outra, & nogao da dialéc- tica, no sentido em que Platdo a entendia para fazer dela 0 método por exceléncia da filosofia. Esse sentido permanece, sem duivida, um pouco indeciso, até em virtude das miltiplas passagens em que fala dele, em termos um tanto diferentes; ¢ houve quem se perguntasse se ele proprio nao teria variado um pouco, durante a sua longa carreira, na maneira de o entender’. Pelo menos, ele sempre apresentou a pratica da dialéctica como comportando dois momentos sucessivos € inversos: uma posi¢ao ascendente, guvaywy7], pela qual remontamos regressivamente até que nos permite atingir a Ideia suprema, a do Bem ou do Uno; depois, uma posigdo descendente que nos faz percorrer, por meio de uma sucessado de divisdes, Statpecetc, convenientemente delineadas, a hierarquia das espécies até as espécies tiltimas’, Método este directamente inspirado no de Sécrates, que Aristoteles honra com duas inovagées importantes: a dos discursos indutivos e a das definicSes universais’, A definigio uni- versal é aquela pela qual se caracteriza um conceito como a coragem, ' Timeu, 47 b-c; segundo trad. de L. Robin. * Ver, nomeadamente, o artigo de G, Rodier, «Sur lévolution de la dialectique de Platon» (onde alids, contesta tal evolucia) em I’Année philsophique, 1905: repro- duzido em Etudes de philosophie grecque, Patis, Vrin, 1926, p. 49-73. " Por exemplo, Fedro. 265 d-e: «Dois processos... Um consiste em, tomando uma visio do conjunto daquilo que estd disseminado numa grande quantidade de lugares. leva-lo a uma esséncia Unica... © outro processo... consiste em. inversamente, dividir a esséncia nica em duas segundo as espécies, consoante as articulacdes naturais ¢ esforcando-se por ndo quebrar nenhuma parte, como faria um cozinheiro desajei- sadaw (segundo a trad. de L. Robin) + Metafisica, M4, 1078 b, 28-29 23 a virtude. a piedade, pela atribuigéo de uma propriedade coum a todos ‘os casos em que aplicamos esse conceito; ¢ € par meio de uma inducdo a partir de exemplos que ai se chega. Mas Plato nao pode contentar-se com essa simples generalidade empirica que satisfaz o seu mestre. Para passar da simples recta opiniao, assim obtida, a verdadeira ciéncia, ha que mudar de plano para atingir a esséncia, captar 0 vinculo necessario, 0 Scou6s, que assegura 2 coeréncia das propricdades reunidas na defi- nigdo'. £ assim se transforma a filosofia socritica do conceito, para se converter na filosofia platénica da [deia: filosofia em que as Ideias, como € sabido, sio olhadas como espécies de entidades, que existem separadamente dos objectos singulares, em relagdo aos quais elas desem- penham o papel de paradigmas. Ora, é exactamente isso que Aristételes néo pode aceitar. Porque nessas condigées, a possibilidade da proposicdo atributiva, do tipo S é P ou P pertence a S, se torna dificil de explicar. Cada Ideia, na medida em que ela propria é uma existéncia separada, isto é, uma espécie de sujeito, dificilmente pode desempenhar a funcdo de um atributo para um sujeito; e. na medida em que € um modelo € possui, assim, de algum modo, uma singularidade, nao se vé praticamente como se poderia atribui-la, em comum, a varios sujeitos. Aristoteles recusa-se, pois, a envolver-se em tais aporias. Para escapar a isso, trata 0 conceit nao como uma Ideia, mas simplesmente como um predicado, susceptivel de ser atribuido a um sujeito ¢ de ser atribuido em comum a varios sujeitos, que ele reine numa classe. «Nao deve aceitar-se que 0 predicado comum a todos os individuos seja uma substancia individual, mas deve dizer-se que ele sig- nifica quer uma qualidade, quer uma quantidade, quer qualquer outra categoria deste género”.» Assim se encontra fixado 0 estatuto e assegu- rada a legitimidade da proposigdo atributiva, base da légica aristotélica, comas suas duas interpretagées estreitamente conjugadas, a intensiva e a extensiva. E.ainda a correccao de uma teoria platonica, que se refere, desta vez, ao movimento descendente da dialéctica, que se deve uma outra descoberta légica fundamental de Atistételes, a do silogismo. O pro- cesso que Platao apresenta para fixar o sentido de um conceito, ou seja, para chegar a essa definicao universal que 0 ensino de Sdcrates visava, é a divisdo ou diérese. Sialpeats®. Para poder precisar quanto a um con- ceito S 0 que ele é, € preciso partir de um conceito muito mais amplo A e, descendo na hierarquia dos géneros e das espécies, dividi-lo de forma pertinente em dois conceitos mais restritos B e n3o-B, mutuamente exclusivos € colectivamente exaustivos. Pondo, entao, 0 conceito em questo S numa das duas divisées ¢ excluindo-v, por conseguinte, da outra, ter-se-4 assim melhor delimitado o seu sentido. Depois, na diviséo retida, operar-se-a uma nova dicotomia, e assim sucessivamente, até se ' Por exemplo, Ménon, 97d 9B a. Sofismas, 22 fim. Cf. Seg. Anal.. 1. U1. inicio: «Nao é necessirio admitir a existéncia das Ideias, ou de uma Unidade separada da Multiplicidade... O que é, toda- via, necessirio é€ que um atributo possa ser afirmado de varios sujeitos... E preciso, pois. que haja algama coisa de uno ¢ de idéntico que seja afirmado da multiplicidade dos individuos» (segundo trad. de Tricot, Vein, 1947). Sofista, 218 b e seg. 24 chegar 4 preciso desejada. Por exemplo, a pesca a linha é uma arte; mas ha artes da produgdo e artes da aquisi¢ao; entre estas, umas fazem- ~s€ por troca, outras por captura; destas dltimas, umas sao uma luta, outras uma caga, etc. Cont?nuando assim, delimita-se cada vez mais 0 conceito em questdo; diriamos que se enriquece progressivamente a Sua compreensdo restringindo progressivamente a sua extensdo. Depois de ter tomado, para se fazer compreender, o cxemiplo trivial da pesca & linha, Plato aplica tal método a definicdo de sofista. Ora, Aristoteles' censura um tal método pelo facto de ndo chegar a uma conclusdo necessaria. Em vez de forcar. de algum modo, o assenti- mento do outro, tem de pedir-lhe, em cada um dos seus passos, que Iho conceda. Um tal processo €, portanto, incapaz de estabelecer uma con- clusdo, é «asténico». Com efeito, depois de se ter dividido a classe A em duas subclasses.B e nao-B, o que é que nos permite dizer que S, que pertence a classe A, pertence A subclasse B e ndo 4 subclasse ndo-B? Para se poder avancar € preciso que o interlocutor queira, de facto, consentir nisso, e 0 mesmo acontece em cada nova fase. A tinica conclu- sfio que verdadeiramente se impée, quando se admitiu, ao mesmo tempo, que S é A e que A se divide em B e nao-B, é que S é B ou nao-B, mas isso no constitui praticamente nenhum avan¢o, porque o que nds desejariamos determinar é qual dos dois; e sobre este ponto o método da diérese nao nos traz qualquer ajuda. Foi ao reflectir sobre esta insufi- ciéncia da diérese platonica que Aristételes descobriu 0 silogismo, o qual nos proporciona uma conclusdo necessaria. O que permite a passagem da primeira ao segundo, é uma nova maneira de conceber a mediacado entre S e B; ela deve fazer-se ndo, como em Platdo, por intermédio do termo mais universal, mas pelo contrario por meio de um termo de extensdo intermédia, um termo que seja verdadeiramente um termo médio, nos dois sentidos da palavra. Trata-se, por outras palavras, de inverter a relacdo de extensdo entre A e B. Entdo, partindo do facto de que S € A, poder-se-a, conforme A € incluido em B ou dele é excluido, concluir necessariamente que S.é B, ou que nao é B. Sido esses os dois silogismos universais da primeira figura. Os dois diagramas seguintes ajudarao a compreender a diferenca entre os dois processos: 1. Digrese platonica: SEA A divide-se em Be nio-B Logos & "Prim, Anal. 1. Ms Seg. Anal. U.S. 25 2. Silogismo aristotético: . Sa eel ® ® AéB Aé nao-B i LogoSéB Logo S é ndo-B 26 Capitulo I ARISTOTELES 1. As obras ldgicas de Aristoteles As obras légicas de Aristételes chegaram-nos sob a forma de uma recotha, aparentemente sistematica, de tratados, reunidos sob o titulo comum de Organon, que quer dizer: instrumento. A escolha deste termo justifica-se pelo facto de que Aristételes via na légica, mais do que uma parte da filosofia, uma disciplina intelectual preparatéria. Na realidade, nem a ordem desses tratados, nem 0 titulo, séo do préprio Aristételes ¢ a composigio do Organon tem uma histéria que sé imperfeitamente conhecemos. No primeiro século antes de Cristo, Andronico de Rodes, décimo primeiro sucessor de Aristételes, edita as obras do mestre', classi- ficando-as segundo os temas tratados: as obras ldgicas encontram-se, assim, agrupadas num conjunto, Nesse conjunto, a ordem dos diferentes tratados parece ter sido, primeiro, um pouco flutuante, antes de se fixar naquilo a que se pode chamar 0 Organon ortodoxo’. Enfim, 0 proprio ' Sobre 0 modo como estas obras chegaram até ele, um relato tradicional e, sem duvida, um tanto lendario, baseia-se em indicagdes fornecidas por Estrabao ¢ por Plu- tarco. Poderd encontrar-se, por exemplo, em Hamelin, Le systéme d'Aristote, Pa Alcan, 1920, p. 60-61, ou em Aubenque, Le probleme de lire chez Aristote, Paris, PLU. F., p. 23-24. Praticamente s6 podem fixar-se duas datas extremas, entre as quais subsiste um interval de mais de dois séculos. Porfirio escreve a sua Eloayays por volta de 270. Ele nao a apresenta, tal como ela aparecerd seguidamente no Organon, como uma introdugdo ao conjunto da obra Idgica de Aristételes, mas como uma introdugio As Categorias; ¢ polemiza contra os que colocavam as Categorias imediatamente antes dos Tépicos, 0 que mostra suficientemente que a ordem ainda ndo estava fixada. Por outro lado. Boécio, que desabrochava no inicio do século VI, traduziu para latim as obras logicas de Aristoteles ¢ a ordem cronologica dessas traducées pode ser estabele- cida com uma grande verosimilhanca por dois autores (S. Brandt, 1903. ¢ A. P. 27 titulo Organon s6 teria sido dado mais tarde'. Eis como se compée 0 Organon ortodoxo, tal como ele se apresenta desde o fim da Antiguidade. Apés uma Introdugdo (cioxy wy) devida a Porfirio, que desempenha aqui o papel de uma introdug&o geral ao con- junto da légica, comega pelo tratado das Categorias (2x7 7yogtxt) onde se encontra enunciada, em ligagéo com uma. concepcao atributiva da proposi¢ao, a lista das dez categorias, isto é, das dez maneiras segundo as quais um atributo pode ser predicado de um sujeito; dessas categorias s6 as primeiras quatro sao, ai, objecto de uma analise aprofundada. Vem em seguida 0 tratado Da Interpretagdo(mepi|£ouevelxs)’, que contém uma teoria da oposigéo das proposi¢ées, com uma discussdo do caso em que as proposiges incidem sobre futuros contingentes, ¢ um desenvolvimento sobre a oposicao e a consecugo das proposigdes modais. Seguem-se os Analiticos (dvahutix4): Primeiros Analiticos, em dois livros, que expdem a teoria do silogismo, considerado unicamente do ponto de vista da sua validade formal: e Segundos Analiticos, igualmente em dois livros, que tratam da demonstrago, isto é, do silogismo fundado em premissas necessarias e apresentado, assim, como o instrumento da ciéncia. Final- mente os Tépicos (xo mx), em oito livros, consagrados a argumentacdo dialéctica, isto é, ao silogismo fundado em premissas apenas provaveis como as que fornecem os lugares comuns, toot. O tratado Das Refu- tacées Sofisticas (neg coguatimdy eadyywv), que encerra 0 Orga- non, pertence, na realidade, aos Topicos dos quais ele constitui o nono livro, com a sua concluséo gera: que se refere a0 conjunto dos Topicos. De todos estes tratados, dois sAo essenciais para a légica: a Interpretagdo (Da Interpretag&o) € os Prinieiros Analiticos*. -No seu conjunto, a autenticidade destes tratados nao ¢ duvidosa. Tem-se, por vezes, contestado a da /nterpretagao, alegando que Aristé- teles nunca Ihe faz qualquer alus4o nas suas outras obras.. Este argu- mento puramente negativo nao tem muito peso relativamente as miulti- plas raz6es, tanto de ordem interna como de ordem externa, que justifi- cam a atribuicdo deste tratado a Aristételes. As Categorias sao um pouco mais suspeitas, porque os cinco ultimos capitulos, que tratam dos pés-predicamentos, sdo estranhos ao tema anunciado, ao mesmo tempo que o capitulo que os antecede muda repentinamente, quando ainda faltavam varias categorias para estudar: como se a obra, .que tinha ficado inacabada, tivesse sido seguidamemte completada de maneira bas- Mckinsey, 1907) que, com métodos ¢ critérios diferentes, chegam quase aos mesmos resultados: ora essa ordem é, exactamente, a dos tratados no Organon ortodoxo, 0 que convida a crer que essa ordem estava bem estabelecida na época de Boécio. Parece provavel que tal apresentagdo ¢ devida a escola neoplatonica que tinha a seu cargo, naquele periodo, a tarefa de transmitir 0 ensino dos fildsofos classicos; € a incluso da tloaywyhido neoplaténico Porfirio no Organon aumenta a verosimilhanga desta hipd- tese (Cf. Fr. Solmsen, «Boethius and the history of the Organon» Amer. J. of philo~ logy, Janeiro 1944, p. 69-74), : " D. Rosa conjectura que é no século VI (Aristotle 3.4 ed., Londres, 1937, p. 20. nota 6). * Tgnora-se a quem se deve este titulo, pouco expressivo do contetdo do tratado. * Encontram-se também, naturalmente, notagdgs que retevam da \Sgica em autras obras de Aristoteles. Mencionemos sobretudo o livro Ida Merafisica, onde se trata do principio da contradigao. 28 tante inabil, No entanto, estes Ultimos capitulos ndo contém nada que seja contrario ao ensino de Aristételes, ¢ se sio de um discipulo, trata-se de um discipulo fiel. Que significado deve atribuir-se.4-ordem em que nos sao apresenta- dos estes tratados? A intencdo € manifestamente diddctica. E suposto estudar-se primeiro 0 conceito (Categorias), depois a proposi¢ao (/nrer- pretacdo) que resulta de uma-certa combinagao de dois conceitos, depois 0 silogismo (Primeiros Analiticos) que resulta de uma certa combinagao de trés propasicdes; chegados assim a teoria fundamental do raciocinio, estudamo-lo entao nas suas principais aplicagdes, seguindo uma ordem em que elas se vio degradando: silogismo demonstrativo. (Segundos Analiticos), silogismo dialéctico (Tépicos), silogismo eristico (Sofismas). Mas esta ordem, aparentemente sistematica, tem algo de artificial. Em primeiro lugar para os dois primeiros tratados. Aristételes nao apresen- tou, em lado nenhum, uma teoria algo aprofundada do conceito; em particular as Categorias tratam no a natureza do conccito, mas apenas desses conceitos muito gerais que sao as categorias. E alids, duvidoso que a ordem de exposigdo que faz preceder 0 estudo da proposigao pela do conceito tivesse recebido a concordancia de Aristételes. No inicio dos Primeiros Analiticos, ele apresenta as coisas pela seguinte ordem: a premissa, 0 termo, o silogismo. E a premissa que ele define em primeiro lugar, ¢ € com a sua ajuda que define, seguidamente, 0 termo, como aaquilo em que se resolve a premissa», cig by Siahvetar h medtaots'. Além disso, s6 relativamente tarde € que ele chegou a sua teoria do silogismo e é seguro que quando escrevia as Categorias, ¢ muito prova- velmente quando escrevia a /nterpretagdo, a nao possuia ainda; de modo que é dificil fazer, destes dois ‘tratados, capitulos introdutivos a uma teoria cujo nascimento é posterior. E assim como os tratados que prece- dem os Analiticos no sfo propriamente uma sua preparacdo, de igual modo os que se Ihes seguem nao sao propriamente aplicagdes. Porque se a palavra silogismo Id figura, ela é entendida apenas num sentido mais amplo e menos preciso do que 0 que assumird na teoria definitiva. Esta ultima observagdo basta para sugerir que a ordem dos tratados do Organon também nao corresponde a ordem cronoldgica da sua com- posigdo *. Como podera determinar-se essa ordem? Para faze-lo nao dis- pomos, infelizmente, de critérios externos, como seriam informagdes fornecidas pelo préprio Aristételes ou por outros autores antigos. facto de Aristételes, num dos seus tratados, remeter para um outro, ndo prova a anterioridade desse outro, porque tais referéncias podem ter sido — e algumas foram-no, com certeza — acrescentadas posterior- mente. Sucede, de facto, que elas se entrecruzam: por exemplo, os Topi- cos so muitas vezes citados nos Analiticos, mas os Analiticos s4o tam- bém varias vezes citados nos Tdpicos. Outros indicios mostram igualmente que, pelo menos alguns destes tratados, sob a forma em que nos chegaram, nao foram compostos assim de um sé jacto, mas foram modificados posteriormente, se nao por correcgGes, em todo 0 caso por ©), 24h, ? Sobre esta questo, ver Fr, Soimsen, Die Entwicklung Logik und Rhetorik, Berlim, 1939. 29 adi¢des, 0 que € manifesto, nomeadamente, nos Primeiros Analiticos; 0 que torna, naturalmente, ainda mais dificil uma datacdo mesmo relativa, que seria, no entanto, muito necessario conhecer para poder acompa- nhar o desenvolvimento da doutrina. Ha pois que cingit-se a critérios internos. Podem invocar-se varios’, podendo cada um deles isoladamente prestar-se 4 contestacdo, mas, quando convergem para uma mesma conclusio, tornam forgosa a con- viegdo, Uma das grandes descobertas de Aristételes como légico, éa do silogismo, no sentido técnico preciso que este termo assume nos Primei- ros Analiticos. Ora, em varios dos seus tratados, nada indica, ainda que a palavra silogismo la figure, que o autor possuia ja a teoria do silo- gismo analitico: temos, pois, razdes para supor que eles sdo anteriores aos Primeiros Analiticos. Uma outra grande descoberta de Aristételes é © uso das varidveis, mas tal uso sé se encontra em alguns tratados: admi- tir-se-, portanto, que estes so mais tardios. Eis agora um critério de manejo mais delicado, mas suficientemente instrutivo para um ldgico experimentado: os diversos tratados nao sdo todos, do ponto de vista da técnica légica, do mesmo nivel. Certos textos do Organon nao ultrapas- sam, sob este aspecto, o de Platdo ou de seus contemporaneos, ao passo que outros testemunham um dominio légico excepcional e marcam, por- tante, em relagdo aos primeiros, um incontestavel Progresso. Relevaria, Por exemplo, deste critério a intervengao dos matizes modais, tio essen. ciais 4 filosofia de Aristételes, e a maior ou menor seguranga com que eles s30 manejados. A aplicacao destes critérios leva a adoptar a seguinte cronologia. Primeiro as categorias e os Tépicos. com os Sofismas que sao, talvez, um pouco posteriores *, Nao se encontram aqui vestigios do silogismo analitico nem nocdes modais, nao se faz neles qualquer uso das varid- veis, € 0 nivel légico € ainda relativamente inferior, Razio por que, embora os Tépicos se coloquem, no Organon, a seguir aos Analiticos, como um estudo do raciocinio provavel que sucede ao do raciocinio demonstrativo, praticamente nao oferece duvidas que eles os tenham precedido no tempo. Pode mesmo conjecturar-se com alguma verosimi- thanga, como faz M. Kneale’, que Aristételes teria decidido fazer para a demonstragao um trabalho andlogo ao que acabava de levar a cabo com os seus Iépicos para a argumentacio dialéctica, e que teria sido ao longo dessa pesquisa que elaborara a sua teoria do silogismo analitico. Entre as duas obras, entretanto, convém, sem duvida, intercalar a Inter- pretacdo. A anatise légica é, aqui, mais aprofundada do que nas Calego- rias € nos Tépicos, e ja se encontra uma teoria das proposigdes modais. Certos autores como Solmsen, seguido durante algum tempo por Bochenski*, julgaram mesmo que este livro era posterior aos Primeiros " Inspiramo-nos aqui muito directamente em Bochenski, Ancient formal logic, p. 22.e F. L., p. 49-50. * E a opiniao de Solmsen: Scholz coloci-las-ia mesmo muito mais tarde, aps a aquisigao da silogistica (Esquisse, p. 124). * DL. p24. * “Na sua Logique de Théophraste, Librairie de Université, Friburgo, 1947. p. 42-43, E também a opiniao de Hamelin, op. cit., p. 28. nola 2.€ p. 108, 30 | | Analiticos, porque estes 86 conhecem as proposigées gerais — universais ou particulares — e ignoram as proposigées singulares as quais, pelo contratio, a Interpretagdo reserva um lugar. O argumento nao é¢ total- mente concludente, porque a razdo pela qual os Analiticos os negligen- ciarain é bem clara: a silogistica aristotélica exige que as proposicdes que pde em jogo sejam convertiveis, isto é, que 0 sujeito e o predicado sejam nelas permutaveis, 0 que s6 é possivel se 0 termo-sujeito designar, tal como o termo-predicado, um conceito, nao um individuo. Razdo por que os Primeiros Analiticos, que apresentam esta teoria, sio geralmente olhados como sendo posteriores. Mas dentro dos Anaiiticos, pée-se de novo o problema da ordem cronolégica de composi¢do. Os que so designados como primeiros devem, s6 por isso, considerar-se compostos primeiro do que os outros? Solmsen coloca em primeiro lugar os Segundos Analiticos, cujo pri- meiro livro ele faz mesmo remontar até ao meio da composi¢ao dos Tépicos. Ross combate essa opinido e pensa, pelo contrario, que’os dois livros dos Segundos Analiticos sio realmente posteriores aos dos Pri- meiros. Bochenski concorda com ele, contra Solmsen, no que se refere & posterioridade do livro I dos Segundos Analiticos, mas acha que o seu livro If &€ anterior ¢ segue-se imediatamente a Jnterpretacdo, que per- tence ao mesmo segundo periodo no desenvolvimento da légica aristoté- lica. Porque se é verdade que este livro conhece ao mesmo tempo o silogismo analitico e 0 uso das varidveis, Bochenski pensa, pela aplica- gao do critério de nivel de desenvolvimento, que ele néo chega ainda ao nivel dos Primeiros Analiticos. Se deixamos em suspenso esta questéo controvertida do livro II dos Segundos Analiticos, 0 resto praticamente nao levanta duvidas, a nao ser de pormenor. Distinguem-se, grosso modo, duas etapas. Primeiro, 0 livro | dos Primeiros Analiticos, excep- tuando os capitulos 8 a 22, seguido do livro I dos Segundos Analiticos. Seguidamente, os capitulos 8 a 22 do livro I dos Primeiros Analiticos, que apresenta a teoria dos silogismos modais, e 0 livro II destes Primei- ros Analiticos onde a teoria do silogismo € retomada com mais refina- mentos € que contém ja consideragSes metalégicas, representando estes textos a Ultima fase do desenvolvimento da légica de Aristételes. 2. A proposicaio Entre os sons dotados de sentido que a voz pode proferir, uns séo expressdes simples e elementares, no sentido de que nao se pode decom- p6-los sem fazer com que todo o significado se desvanega: s4o os nomes, por exemplo, homem; outros sio expressdes complexas, ndo entendidas como simples agregados de expressdes simples, mas como conjuntos unificados: sio as proposigées, por exemplo, o homem corre. Assegurat essa ligacdo unificadora, é propriamente a fun¢do do verbo. Platdo tinha ja reconhecido ' que todo o discurso requer no minimo um nome ou o verbo sozinho nao é mais do que uma simples enunciagio, @dats, que * Sofista, 262 a. 31 tem, sem diivida, um sentido, mas ndo constitui uma proposigao. Aris- toteles acrescenta apenas as seguintes precises: 1.° Certas expressoes complexas ndo comportam verbo, como, por exemplo, quando, para definir 0 homem, nos servimos da expressio animal-racional-mortal; mas 0 verbo € necessdrio para constituir uma verdadeira proposigao, isto é, um discurso declarativo, j6yoc xmopaveixdc, portador de uma assercdo e, portanto, susceptivel de ser verdadeiro ou falso'. 2." O verbo indica sempre que alguma coisa é afirmada (ou negada) de uma outra coisa, isto é, que ele relaciona um predicado a um sujeito, 3.° Devemos, pois, distinguir no verbo duas fungées diferentes, a de forne- cer um predicado ao sujeito, e a de assegurar a ligagdo entre esse predi- cado € esse sujeito; é a partir dai possivel, e mesmo preferivel para a clareza da analise, assinalar expressamente esta dualidade na linguagem dissociando o verbo para enunciar separadamente a copula e 0 predi- cado, e dizer, por exemplo, o homem é corredor em vez de 0 homem corre, 0 que ndo muda nada ao sentido’. Assim, todas as proposigées elementares com as quais a légica tem que ver se reduzem a uma forma esquematica. que os medievais e os modernos exprimirao por: Sé P. % Agora, esta forma geral diversifica-se de varias maneiras, Pri- meiro, conforme o atributo.releva de uma ou outra das categorias, que sdo as diversas maneiras de afirmar ou, mais geralmente, de predicar, xx7HyYOgetv. Aristételes enumera geralmente dez’: a subs- tancia, a quantidade, a qualidade, a relagdo, o lugar, 0 tempo, a posigdo, a posse, a accdo, a paixdo. Por exemplo, 0 homem corre releva da acco, ao passo que o homem é queimado releva da pai- x40, 0 homem estd no Liceu do lugar, 0 homem é gramdtico da qua- lidade, 0 homem estd deitado da posigao, etc. A formula S é P so é, portanto, aparenterrente monotona. Esta formula, e as que Aristote- les considera como equivalentes, «devem ser tomadas de tantas ma- Neiras quantas as diferentes categorias que existem»”: tantas catego- rias, quantas as espécies de atribuicdo. Embora Aristoteles no tire, praticamente, consequéncias, no plano da légica formal, desta mul. tiplicidade, e os seus atributos sejam, na maioria das vezes, concebi- dos como qualidades, convém, em todo o caso, ter em conta esta ' Aristoteles deixa de tado. como estranhos légica ¢ tendo a ver com a retérica ou a poesia, 0 discursos nio declarativos como sao os que exprimem uma ordem, um desejo, uma pergunta. Interpretacdo, 4, 17a, 2 € ss.: «Nem todo o discurso ¢ uma Proposigao, é-0 apenas o discurso no qual reside o verdadeiro ou 0 falso, 0 que néo acontece em todos os casos: assim a oragdo é um discurso, mas nao é nem verdadeira nem falsa» * Interpretacdo, 12, 21b 9: «ndo ha qualquer diferenga entre dizer 0 homem pas- seia ¢ 0 homem estd a passear.» Prim. Anal., 1. 46, 51B 13: Entre wele conhece o hem e ele é conhecedor do bem, nao ha qualquer diferenca» Note-se que a lingua grega se Presta muito melhor do que a francesa [e que a portuguesa... (N. do T.)] a semelhante decomposi¢ao. " Categ.. 4: Tépicos, |. 9. Para a substncia, 0 texto das Categorias apresenta otaia, o dos Tépicos si tort, que deve traduzir-se de preferéncia por esséncia. Hesita- so semelhante encontra-se nos outros textos, bastante numerosos, em que Aristoteles apresenta uma enumeragio mais ou menos completa das categorias. A sequéncia do texto dos Tépicos indica que por tal essencia «se dasigna quer uma substancia (icla), quer uma qualidade, quer ainda uma das outras predicagdes» * Prim. Anal., 1, 36, 48b 3-4; 37, 49 a 6-7. Cf. Metal, 4,7, 1017 a 22. 32 lese para atenuar a censura que, frequentemente, foi dirigida a sua logica de s6 conhecer uma tnica espécie de proposic¢ao. Em contrapartida, duas outras especies de diversificagao desempe- nham um papel capital na sua légica: segundo a qualidade e segundo a quantidade'. Do ponto de vista da qualidade, a proposigao ou declara- ragdo, %247275:2, divide-se em duas espécies, a afirmacéo, 7692044, a negagao, 427%32012; Ou, por outras palavras, afirmar e negar sio as duas maneiras de predicar, Posteriormente alguns légicos, que Kant acompanhard, introduzirao uma terceira espécie de proposigao, a pro- posi¢ao indefinida, como a alma ¢ ndo-mortal. Aristoteles, por seu turno, conhece, sem diivida, proposi¢des desse género, em que o predi- cado se exprime por um nome indefinido, 4é¢1070¥ 6vozx, por exem- plo: ele é um n@o-homem; mas nesse caso é sobre 0 predicado que incide propriamente a negacdo, nao sobre a proposi¢ao, que é realmente afir- mativa, e cuja negagao seria: ele ndo é um n@o-homem. Numa proposi- do é a copula que assegura a ligacdo, curr ox, entre os dois termos, € conforme a sua maneira de ligd-los, no sentido neutro da palavra, consiste em afirmar a sua unio ou, ao contrario, a sua separagio, a proposicao sera positiva ou negativa. Razdo por que Aristételes so admite, do ponto de vista da qualidade, estas duas espécies de proposi- gdes. Pode, sem duvida, fazer-se a distingdo entre o homem é justo ¢ 0 homem é ndo-justo, 0 que, com as suas negag6es, dard quatro espécies de proposi¢des: mas dessas quatro, duas serio afirmativas e duas ne- gativas~. Relativamente a qualidade, duas distingdes diferentes devem fazer- -se. A primeira é apresentada na Interpreracdo: «Dado que ha coisas universais e coisas singulares..., necessariamente a proposigao de que tal coisa pertence ou nao pertence a um sujeito aplicar-se-4 quer a um uni- versal. quer a um singular’.» Na linguagem, a distingdo entre as duas espécies de sujeitos exprime-se pela distingéo dos nomes comuns e dos nomes préprios. Ambos s40 aquilo a que nés chamamos substantivos, mas ha que distinguir entre as substancias primeiras como 0 sio 0 homem individual ou o cavalo individual, e as substancias segundas, que sdo as espécies nas quais estdo contidas as substancias primeiras, assim como os géneros nos quais esto contidas essas espécies: 0 homem ou o cavalo, o animal’. Sente-se alguma dificuldade pelo emprego que Aris- toteles assim faz da palavra universal para a aplicar as proposigdes que nao s4o singulares. Porque nas «universais» assim definidas — que seria ‘ Sabe-se que Kant distingue as proposigées segundo quatro pontos de vista: qualidade, quantidade, relagdo. modalidade. Aristételes nao fez a teoria das proposi- des consideradas do ponto de vista da relago, Em contrapartidz, estudou atenta- mente as proposigdes modais. mas esta teoria complexa sO interveio ulteriormente: encontri-las-emos mais adiante. A respeito da qualidade ¢ da quantidade, notar-se-4 que se a teoria remonta, de facto. a Aristételes, ele proprio ndo emprega estas duas denominagdes (lembremos que para ele a «qualidader designa uma categoria), que s6 mais tardiamente sero introduzidas. ¢ que nés utilizamos aqui pela sua comodidade. 2 Imerpretayao. 6 ¢ 10. * Ibidem., 7. inicio. * Categorias, 5, inicio. Notar-sea que o vocabuldrio de Aristételes permanece bastante indeciso sobre este ponto. Assim, em /nerpretacdo, 13, 23 a 24, ele chama substancias primeiras 05 seres que tm 0 acto sem a poténcia. isto é, os actos puros. como Deus. 33 preferivel, para evitar os equivocos, denominar «conceptuais» ou «gerais», pois que o seu sujeito designa um conceito ou um género — é preciso ainda distinguir dois casos, conforme elas proprias so enuncia- das universalmente ou nao, isto ¢, consoante o predicado € nelas enun- ciado da totalidade do universal ou ndo — entenda-se: da totalidade do género. E a diferenca, por exemplo, entre todo o homem é branco, ¢ simplesmente 0 hom-ni é branco. A distingao é retomada, com mais precisdo, nos Analitic«.s onde, em contrapartida, as proposi¢ées singula- tes séo deixadas de Ido. O conjunto das proposi¢Ges que a /nterpreta- ¢do denominava, para opd-las as singulares, universais, encontra-se agora subdividido em trés espécies: as universais — entendidas agora num sentido mais restrito da palavra, isto é, somente aquelas das antigas universais que sdo enunciadas universalmente — as particulares e as indefinidas. «Chamo universal, a atribuigéo ou a ndo-atribuigao a um sujeito tomado universalmente; particular, a atribui¢d0 ou a ndo-atribui- ¢4o a um sujeito tomado particularmente ou nao universalmente, inde- finida, a atribuigao ou a nio-atribuigdo feita sem indicagao de universa- lidade ou de particularidade'.» Se se combinarem ambas as exposigdes, chegar-se-d, portanto, do ponto de vista daquilo a que os légicos poste- riores denominarao a quantidade, a quatro espécies de proposigées: as singulares (Cdlias é homem), as universais (todo 0 homem é mortal), as particulares (algum homem é médico), as indefinidas (0 homem é& branco). Mas, na sua silogistica, Aristételes deixa de lado as singulares ¢ trata as indefinidas como particulares. Ja sabemos a razdo por que as singulares se prestam mat a ser ai integradas: as operagGes da silogistica exigem a possibilidade de converter as proposigées, isto é, de nelas per- mutar sujeito e predicado, ¢ isso supde que ambos sejam homogéneos e, mais precisamente, que o sujeito, para poder desempenhar o papel de predicado, seja também ele um conceito, e nao um individuo. Nao é, sem divida, impossivel que um termo singular seja tomado como predi cado, mas entdo ele so pode sé-lo por acidente, portanto, particular- mente, por exemplo, se dizemos: este branco é Séerates, ouo que vem é Calias*, Ora, a silogistica requer que 0 mesmo termo possa ser tomado. como sujeito ou como predicado sem nenhuma restrigdo. Além desta tazao de técnica logistica, pode também pensar-se, como o sugerira 0 comentador Pacius, que, dado que os Analiticos anunciam, désde a sua primeira frase, que o seu tema é a demonstra¢do e a ciéncia demonstra- tiva, nZo tém que ter em conta as proposigées singulares: porque, segundo Aristoteles, 0 individuo nao é objecto de ciéncia. Acrescente-se, finalmente, que com os singulares nao pode praticamente falar-se, a no ser de maneira bastante imprépria, de quantidade; porque sé uma classe, e ndo um individuo, tem uma extensio. — As indefinidas, por outro lado, devem ser tratadas como particulares, pois que a sua quan- tidade ndo é precisada. Ora, num raciocinio, se € verdade que € permi- tido dizer na concluséo menos do que o que dizem as premissas, ndo é permitido dizer mais: na incerteza, é preciso, pois, entender a proposigdo Primeiroy Analiticos, 1.1.24 17-20. * > Phidem, 1, 27, 43325 ¢ seg. no seu sentido minimo. Assim, seria imprudente tratar uma proposicdo do género o homem é branco como uma universal, pois que, de facto, ha homens que nao s4o brancos, como os Etiopes, ou entender o homem ndo & branco como sinénimo de nenhum homem é branco ' Assim. a silogistica sé se ocupar. do ponto de vista da quantidade, de duas espécies de proposigées: as universais e as particulares. Combi- nando esta dualidade com a da afirmagdo e da nega¢do, obtém-se, por- tanto, quatro tipos fundamentais de proposi¢ées, que Aristoteles tinha ja reconhecido desde os Tépicos onde, manifestamente, ele apresentava esta divisio como exaustiva: universais — todo o prazer é um bem, nenhum prazer é€ um bem; particulares — algum prazer é um bem, algurm prazer ndo é um bem’. Para falar verdade, o sentido em que devem entender-se a universa- lidade e a particularidade permanece um pouco flutuante. O préprio Aristételes distingue expressamente entre duas maneiras de conceber a universalidade, mesmo tomada nesta acep¢o restrita em que ela se ope A particularidade: uma universalidade essencial, xx8’ «576, € uma uni- versalidade extensiva, xatx Txvt65, conforme o conceito é olhado como exprimindo a necessidade de uma esséncia, ou simplesmente a totalidade dos individuos de uma espécie ou das espécies de um género °. Em portugués, pode bastante comodamente marcar-se a dife- renga, utilizande as expressdes todo o (todo o triangulo equildtero é equidngulo) ¢ todos os (todos os corvos sGo pretos). Que os dois senti- dos sdo bem distintos, atesta-o a ilegitimidade da indeferenga de um ao outro, em ambas as direccdes: porque de uma totalidade empirica nao pode concluir-se pela necessidade de uma esséncia, ainda que ela con- vide a conjecturd-la; e inversamente, de uma esséncia nao se pode con- cluir pela existéncia empirica de individuos em que ela se encontra reali- zada. Do ponto de vista da quantidade, é evidentemente a interpretagao extensiva que convém, ¢ a silogistica aristotélica, pelo menos na medida em que no introduz nogées modais, pode entender-se nesse sentido: diga-se sem julgar antecipadamente quanto a questdo, que encontrare- mos de novo adiante, de saber se esta interpretacdo unilateral se harmo- niza exactamente com o pensamento de Aristételes. Pode igualmente hesitar-se sobre o significado exacto da proposi- cao particular’. Deve ela ser entendida como uma proposi¢do parcial, que afirma ou nega o predicado de uma parte apenas do sujeito excluindo o resto, ou ver nela simplesmente uma proposi¢4o indetermi- nada, que nao exclui que aquilo que é dito de algum possa também aplicar-se a todos, mas deixa a quest4o em suspenso? Aristoteles chama- -Ihe efectivamente uma parcial, év wépet, 0 que sugere a primeira inter- ! Imerpretacdo, 7, 17 b 35 : ? Tépicos, U1, inicio. Cf. Prim. Anal., t, 23, 40 b 23-24; «Necessariamente, toda aatrago'e todo 6 silogismo provam uma atribuigdo ou uma ndo-atribuiglo a jeito, quer universalmente. quer particularmente.» Seg. Anal., 1,4. * Esta denominagdo particular, que se tornou classica, 36 muito tardiamente foi introduzida: encontramo-la em Apuleio: propositiones aliae universales, aliae parti- culares. 35 i\ pretacdo, que parece confirmada pelo modo como ele a define. O texto grego diz com efeito: év péper dé 76 zevi Hwy til A wh navel Ondpyety, onde a expressio uy mavtl parece indicar que exclui a totalidade. Contudo, ela pode também ser entendida como significando simplesmente que ela nao afirma nada da totalidade. E se se ajuizar pelo uso que dela é feito na silogistica, vé-se que ela é ai tratada realmente como uma proposic¢do indeterminada. Dizer que algum S é P, é negar que nenhum S$ é P, o que continua a ser verdadeiro no caso em que todo oS é P. A palavra no tem portanto aqui um sentido restritivo, 0 que teria alias como efeito tornar duplo um enunciado apresentado como simples, pois que nesse caso significaria ao mesmo tempo que alguns dos S so P ¢ que todos nao 0 sao. O seu sentido € portanto deixado relati- vamente indeterminado: um pelo menos, mas sem limitacao. E é de facto esta mesma palavra indeterminado (45\optot0¢), mais exacta, que Teofrasto escolher para designar tais proposig6es'. Subsistem outras questGes de interpretacdo, que sao mais delicadas. Fizemos alusdo mais atrds A distingdo entre duas maneiras de entender uma proposigdo dada, aquilo a que mais tarde chamaremos a interpre- tagéo em extensdo € a interpretagao em intensdo ou em compreensdo. Dizer que o homem é mortal pode com efeito significar, ou que a classe dos homens esta incluida na.dos mortais, ou que o conceito de homem compreende, entre as duas determinagdes, o de mortal. Do primeiro ponto de vista, homem entra em mortal, como a espécie do género; do segundo ponto de vista, é pelo contrario mortal que, como conceito, entra no conceito de homem. Destas duas interpretacées da proposi¢ao, qual tem o apoio de Aristételes? Sobre esta questdo, os intérpretes dividi. ram-se: uns s4o «extensivistas», outros «compreensivistas». O problema ultrapassa o Ambito da pura légica. Porque precisamente a sua solugdo esta ligada a ideia que se tem das relages da légica aristotélica ao con- junto da sua filosofia: deverd a sua légica ser nela integrada, ou pelo ' Aristételes hesitou, de facto. entre estas duas interpretagées. Nos Toipicos, parece ter distinguido expressamente. qualificando-as respectivamente de determinadas € indeterminadas, estas duas espécies de particulares (III. 6: 120 a 6 € ss.. com o comentario de J. Brunchwig na sua edicdo dos Tépicos, p. 163-164). Na silogistica ica dos Primeiros Analiticos, onde domina seguramente a interpretacdo da proposicdo particular como indeterminada, a interpretacdo restritiva. que € a mais, «naturals, também ndo esta ausente; dai resultam ambiguidades. & apenas na silogis- tica modal, isto ¢, ao fim da sua carreira, que Aristoteles chegou definitivamente a uma concepcdo unitaria. Ver sobre este ponto o estudo de J. Brunschwig. «La proposi- tion particuliere chez Aristote». Cahiers pour Vanalyse, 10. p.. 3-26, com esta conclu- so: «A particular ‘légica’ teve alguma dificuldade em matar a particular "natural; mas acabou por la chegar.» 36 contrario devera ser olhada como uma disciplina independente? Na sua leitura de Aristételes, os fildsofos terdo tendéncia para apertar esse elo, os légicos para desaperta-lo. L. Brunschvicg, por exemplo, acha que «a aparéncia puramente formal que se emprestou a logica de Aristoteles» vem do facto de «depois dele se ter apagado a inteligéncia da conexdo entre 2 silogismo e a ontologia... Julgou assim dar-se-lhe [4 légica] 0 valer de uma ciéncia autonoma e positiva, a0 passo que nao se fazia senio obscurecer a verdadeira ideia da ciéncia»'. Pelo contrario, Luka~ siewicz, julgando embora «desastrosa» a influéncia da filosofia de Aristé- teles, acha que esta ndo altera em nada o valor da sua silogistica, que ele considera «uma obra puramente légica, inteiramente isenta de toda a contaminagdo metafisica»’. Consequentemente, os filésofos inclinar-se- ~Ao de preferéncia, em geral, para uma interpreta¢do compreensivista, os logicos para uma interpretacdo extensivista. Porque para Aristoteles filésofo da substancia, a proposigdo interpreta-se normalmente em compreensio, equivalendo a atribuir uma qualidade a um sujeito. Ao passo que para Aristételes légico, a interpretagdo util é a da extensdo, que permite esta consideragdo do encaixe das classes sobre a qual assenta a silogistica. Sem insistir nestas discussdes’, ater-nos-emos aos pontos seguintes: 1° Recorde-se primeiro* que a distingao e a complementaridade entre 0 ponto de vista da compreensao (segundo o qual a proposi¢ao enuncia uma relacdo de implicagdo entre dois conceitos) e o da extensao {segundo o qual ela enuncia uma rela¢do de inclusdo entre duas classes) 2 uma consequéncia da dessacralizagdo das Ideias platonicas. Ao recusar-se a ver nelas entidades dotadas de uma existéncia «separada», Aristételes faz-lhes desempenhar o papel de simples predicados. Ora, um predicado nao tem propriamente existéncia, nao é um ser, mas pres- supGe existentes dos quais possa ser predicado e que, numa proposi¢ao, desempenhardo o papel de sujeitos, S noxeiweva. A proposicao atribu- tiva requere portanto, em virtude das duas fungées diferentes que nela se reconhece ao sujeito e ao predicado, que nela se juntem as duas signifi- cag6es, a extensiva e a intensiva. O sujeito deve com efeito ser nela entendido como uma substancia € estas — ao menos as substancias ' Les étapes de la philosophie mathématique, Paris, Alean. 1912, § 48. > Aristotle's syllogistic from the standpoint of modern formal logic, Oxford, Cla- rendon Press, 1951, p. 6(2.* ed, 1957). > Assinalemos apenas que a divergéncia das interpretacdes se manifesta mesmo. por vezes nas tradugdes, As duas tradugdes francesas (Barthélemy Saint-Hilaire ¢ Tri- cot) permanecem prudentes, mas certas tradugdes alemas do Organon estao nitida- mente orientadas: a de Karl Zell, Aristoveles Werke, Organon, Estugarda, 1836-40, francamente extensivista, ao passo que a de von Kirchmann, Das Organon des Aristo- eles, Philosophische Bibliothek, Bd. 9-13, € pelo contrario compreensivista. No final do século passado, na Franca, talvez em reacgdo contra a nova légica que, na esteira de Boole, se construia em extensdo, a logica compreensivista é preferida por Lachelier, Rabier, Rodier, Hamelin, que tém tendéncia para projectar a sua propria concepgao sobre Aristételes, reconhecendo ao mesmo tempo que nele a questdo no ¢ perfeita- mente nitida * Ver sobre este ponto a boa analise de V. Sainati, Storia dell’«Organonw aristo- tefico, vol. 1, Florenga, Le Monnier, 1968, p. 33-41. 37 segundas, que se distribuem em classes, as unicas que terao de intervir na silogistica — postularao que as consideremos do ponto de vista da extensdo; ao passo que o predicado devera ser entendido como um atri- buto, segundo uma ou outra das categorias da predicagéo, considerado portanto do ponto de vista da compreensio. Nao apenas a sua légica, mas 0 conjunto da sua filosofia, impediam-lhe o sacrificio de um ou do outro. Porque, por um lado, com uma interpretagio puramente exten- siva, estamos perante relacdes entre classes que se encaixam, que sc excluem, Ou que se recobrem parcial ou totalmente, e ja nao se trata de abributos: coisa a que se opée, em légica, a sua teoria da proposigao e, no plano filoséfico geral, a sua metafisica da qualidade. Por outro lado, com uma interpretagdo em pura compreensao, é 0 sujeito que desapa- rece, € a proposicdo categorica torna-se uma proposi¢ao hipotética (se x possui o atributo a, entdo ele possui 0 atributo 6), em que o sujeito aparente da proposi¢ao categérica deixou de ser um verdadeiro sujeito para tornar-se também ele um atributo: ora, para Aristoteles, 0 sujeito gramatical € de facto também 0 sujeito légico, € o suporte das qualida- des, aquilo a que 6 € atribuido, e é ao mesmo tempo 0 sujeito ontold- gico, a substancia. 2.° Entretanto Aristételes nem sempre se mantém equidistante entre as duas interpretagées. Na sua teoria da proposi¢ao, é 0 ponto de vista da compreensdo que leva a melhor, pelo préprio facto de esta ser tratada como uma atributiva. Ela interpreta-se portanto normalmente, quer, se é uma singular, como e wnciando a ineréncia de um atributo a um sujeito individual, quer, se o seu sujeito é um termo geral, como marcando uma relagdo de implicacao entre dois conceitos. O emprego do verbo ser como cépula deixa, é certo, planar alguma incerteza, por- que tolera uma interpretacdo extensiva, ainda que a forma de um adjec- tivo ou de um participio que o predicado habitualmente reveste sugira de facto que este é concebido como um atributo mais que como uma classe. Mas se Aristételes se serve geralmente desta copula, relativa- mente neutra, nos exemplos concretos, em contrapartida, quando se exprime de maneira mais técnica, e nomeadamente quando substitui os termos concretos por variaveis, serve-se de cépulas que impdem man festamente uma interpretagdo intensiva. Dizer que o predicado A per- tence (Srkpzet) ao sujeito B, é evidentemente exprimir-se intensiva- mente, porque em extensao é pelo contrario B, isto é, a espécie, que pertence a A, isto é, ao género, como estando nele incluida. E de igual modo, dizer que A é predicado(xatyyopettat) de B, é ainda sugerir a mesma interpretagdo, porque uma tal expresso seria muito estranha se pretendesse designar uma relagdo de inclusio entre classes. 3.° Mas a partir do momento em que a proposi¢ado entra como elemento num raciocinio e, mais geralmente, quando passa da anilise descritiva para as consideragGes de validade formal, € 0 ponto de vista extensivo que domina. E que, como os modernos o reconheceram cada vez melhor e como Aristételes teve o mérito de pressenti-lo, uma légica formal nao pode praticamente desenvajver-se a néo ser no campo da extensdo. A compreensdo de um termo faz apelo ao seu sentido, isto é, ao contetido do conceito, coisa de que uma logica que se pretende for- 38 mal deve fazer abstraccfo. Ao passo que em extenséo sé estamos perante uma relacdo entre classes, sem termos de ocupar-nos do que ha em cada uma: para raciocinar formalmente sobre as classes A e B, basta saber se A esta incluida em B ou inversamente, ou se ambas se excluem mutuamente, ou enfim se elas ndo tém uma parte comum. EF por isso que a silogistica aristotélica assenta inteiraments na consideragéo da inclusao das classes, portanto numa interpretagdc extensiva das propo- sig6es que compéem o silogismo. A coisa mostza-se claramente pelo papel essencial que ai desempenha a sua quantidade, nogdo extensiva por exceléncia, assim como pelas denominagées caracteristicas de termo grande (uziS0v), de termo pequeno (8?,4770¥) € de médio (uésov): denominagées de tal modo dominadoras, que a partir da primeira figura pela qual se fez, no espirito de Aristdteles, a descoberta do silogismo, elas manter-se-do para as segunda e terceira figuras, onde, tomadas a letra, deixarao de ser exactas. S6 quando se chegar a teoria dos silogis- mos modais, a pertinéncia de uma atitude estritamente extensiva se tor- nara mais contestavel. Os modernos reconheceram efectivamente que as nogdes modais sé dificilmente deixam integrar-se num calculo pura- mente extensional, e é a razdo pela qual alguns dentre eles as excluem do cAlculo légico propriamente dito, para remeté-las para a metalingua. 4.° Para acabar com esta questao, observemos que cada uma das interpretagées, inspirada por certos casos aos quais e!a se adapta exac- tamente, torna-se forcada e artificial quando se pretende transferi-la para Os outros, de modo que nenhuma delas permite a sua generalizagao de maneira plenamente satisfatria; 0 que se compreendera melhor mais tarde. A ineréncia de um atributo num sujeito sé convém propriamente aos singulares, os quais por isso mesmo, ndo toleram a conversio. A implicagéo de um atributo por um atributo limita-se aos universais, enunciando os particulares a conjungao de dois atzibutos; e em ambos OS casos, a proposi¢do tem apenas a aparéncia de uma proposic4o cate- gorica simples. Finalmente, a distingdo entre as duas particulares, a afirmativa e a negativa, quase nao tem de intervir nas relacdes entre as classes, as quais se resumem essencialmente a trés casos, correspon- dendo' respectivamente a universal afirmativa (incluso), 4 universal negativa (exclusdo) e a conjun¢do das duas particulares (intersecgdo). Pde-se uma outra questdo a respeito da proposi¢do e, tal como a anterior, ela domina a interpretagdo de conjunto da légica de Aristéte- les. Na proposigao, Aoyos, drogavetxds, como deve entender-se este 2.6052 Remetera ele para a linguagem ou para o pensamento? Sera ele © discurso exterior, a ligagdo das palavras, ou 0 discurso interior, 0 que a alma efectua em si propria? De inicio, Aristételes orientaenos para a primeira interpretagdo, quando define 0 A6y03, como, «um som vocal dotado de sentidon: X60 36 East PUVH GHUAVTLXH?, Uma vez que é dotado de sentido, nao se trata, por certo, de um simples flatus vocis. «Os sons emitidos pela voz so os simbolos dos estados da alma’.» Sem | Aproximativamente: ver mais a frente, a analise de Gergonne. Interpretacao, 4, inicio. Mesma definiggo para 0 nome, bvouz, ibidem, 2. * Ibidem, |, 16 a 3-4. 39 insistir na diferenca que seria preciso estabelecer entre o som da voz € as entidades gramaticais que lhes correspondem, isto é, as palavras, pode admitir-se que tais declaragdes remetem para a linguagem mais do que para o pensamento. Tal é, de facto, a atitude que parece ser exigida pelo propésito de uma t6gica formal. Porque, embora as palavras e os dis- cursos por elas compostos tenham um sentido, ela deve ao menos, preci- samente porque se pretende formal, fazer abstracc4o desse sentido para se ligar apenas 4 forma exterior do discurso. E no entanto, Aristoteles ndo se fica nesta atitude nominalista. A proposicfo € 0 X6yos a que pertence o verdadeiro ou o falso; ora o verdadeiro ¢ 0 falso, para Aristé- teles tal como para Platdo, primordialmente sé pertencem aos pensa- mentos, e é sé em relagdo ao pensamento que ela exprime que se pode dizer de uma fala que ela é verdadeira ou falsa. Sendo os sons emitidos pela voz 0 indicio do que se passa no espirito, temos, em ultima instan- cia, de remontar do enunciado verbal para o juizo que ele exprime. Para reconhecer, por exemplo, a partir de um certo enunciado, qual de dois outros deve ser tido como o verdadeiro contrario do primeiro, é 0 pen- samento daquele que julga que € preciso consultar', Mais em geral: «a demonstracdo, tal como.o silogismo, nao se dirige ao discurso exterior, mas ao discurso interior da alman’; é referindo-se a este wltimo, como juiz supremo, que se evitara deixar-se apanhar nas armadilhas verbais que nos lancam dialécticos e sofistas. Donde pode concluir-se, com Bochenski, que para Aristételes 0 assunto da légica é em primeiro lugar a rectiddo do pensamento, seguindo-se a correcgdo da linguagem como uma simples consequéncia’. Agora, subordinando assim, no \60¢, a expresso ao pensamento, ainda sO respondemos a metade da quest&o. Havera que entender este pensamento no sentido subjectivo ou no sentido objectivo, como pen- samento pensante ou como pensamento pensado? Trata-se das opera- des que se passam na alma, ou daquilo sobre que elas incidem? O que fica dito deixa-nos ainda na incerteza, porque o verdadeiro e 0 falso sé podem convir aos contetidos objectivos do pensamento, ao passo que o juizo € um acto do espirito. Mas uma declaragdo expressa, logo na aber- tura da Interpretagdo, exclui a interpretagdo subjectivista. As «afeccdes da alma», raOjuata tis puyiis, cujas expressdes verbais so os sig- nos, sio estranhas ao objecto da légica: € o tema de uma outra disci- plina, ANS yep tabtz npayparetac, e Aristateles remete quanto a isso para 0 seu tratado Da Alma. Tal como os nossos contemporaneos, Aristoteles afastaria portanto o «psicologismo». Como, por outro lado, ele afasta 0 nominalismo, sera preciso coloca-lo entre aqueles a que cor- rentemente hoje chamamos os «realistas» ou os «platonistas», porque, a maneira de Platdo, véem os objectos do pensamento, enquanto distintos das coisas materiais a que podem referir-se, entidades dotadas de uma realidade sui generis? Aristételes distingue bem entre o que é significado pela palavra € as proprias coisas as quais se refere essa significacdo. Mas sabe-se que ele recusa as ideias toda a consisténcia ontoldégica. E, por " Ibidem, 14,23 a 32s. ° 2 Seg. Anal., 1, 10; 76 b 24-25. 1 Ancient formal logic, p. 26. 40 outro lado, nao se encontra nele uma doutrina que corresponda ao que sera, nos estdicos, a teoria dos incorporais. A prudéncia histérica deve, sem duvida, dissuadir-nos de procurar fazer entrar Aristételes num dos nossos compartimentos, e de the por com demasiada insisténcia quest6es que s40 mais nossas do que suas. A menos que, pelo contrario, como nao teme fazé-lo Bochenski', que se queira louva-lo por ter sabido construir uma légica puramente formal sem a compromenter numa ou noutra destas filosofias, e, guiado por uma intui¢do genial, ter propositadamente escolhido um vocabulario que, passando por cima das querelas de interpretagdo, permita elevar a teoria até ao nivel da pura légica. Tese da qual temos infelizmente de dizer que € pelo menos gratuita, porque jamais Aristdteles nos deu a conhecer uma tal intengdo. 3. A oposigao e a conversio Num raciocinio dedutivo, a conclusdo resulta de uma certa maneira de aproximar — de pér em conjunto, como o sugere a prépria palavra ovddoytau.6¢ — ao menos duas proposigGes. Mas dado que a propo- sigo consiste ela prépria numa certa maneira de combinar dois termos, podem ja obter-se, a partir de uma sé proposi¢ao, varias proposigdes novas compostas dos termos segundo as diversas combinacées possiveis desses termos, por exemplo, fazendo actuar as diferengas segundo a afirmagao ou a negacio, a universalidade ou a particularidade, ou ainda permutando os termos. Pér-se-4 entdo o problema de determinar, de um ponto de vista formal, a relag&o légica de validade da nova proposi¢ao em relagao a primeira. Os légicos posteriores constituiram assim uma teoria daquilo a que chamaram as «inferéncias imediatas», a estudar antes da das «inferéncias mediatas» das quais o silogismo sera a peca lenominag6es nado saéo de Aristoteles, tal como a distribuig&o sistematica. Mas encontra-se de facto nele, com todos os seus elementos essenciais, uma teoria da oposigao ¢ uma teoria da con-! versdo das proposigées. Postuladas uma e outra pelas necessidades dax dialéctica, e esbocadas a partir das suas primeiras obras légicas, elas | tomardo a sua forma acabada na /nterpretagdo para aposicao, ¢ nos # _Analiticos para a conversao. © tratado das Categorias consagra dois capitulos (10 e 11) aos opostos, &vzBéceis, que ele reparte em quatro grupos: a oposi¢do «dos relativos, como o duplo 4 metade; a dos contrarios, como o mal ao bem; a da privagdo a posse, como a cegueira a visio; a da afirmagdo 4 nega- ¢40, como ele estd sentado, ele ndo estd sentadon*, Notar-se- o caracter ' EL, p.54. * * Categ.. 10, 11 b 20-23. A autenticidade destes tiltimos capitulos das Categorias é, recordemo-lo, bastante suspeita; ras noutros sitios, na Merafisica € nos Tépicos, Aristoteles retoma a mesma divisio. Ele adopta-a ao que parece, como uma coisa estabelecida mais que como uma teoria pessoal. Numa outra passagem, essa certa- mente auténtica, das Categorias (6, 6 a 17-18), Aristoteles apresenta como tradicional a definigdo dos contrarios como os extremos de um mesmo género. x 41 aparentemente pouco sistematico desta divisdo’ e, principalmente, a sua falta de homogeneidade: as trés primeiras oposigGes referem-se a concei- tos, a quarta apenas a proposi¢ées. E na Interpretagéo que se encontraré uma teoria sistematica das proposi¢ées opostas (ivztxzuéy2). Juntando-se & simples distingao entre afirmacao e negac4o (cap. 6) também ai € tomada em consideragao * (cap. 7) a diferenga que separa as universais das particulares’, O funda- mento de uma teoria da oposicdo das proposicGes continua natural-; mente a ser sempre a relacio da negacdo a afirmacdo. A clarificacdo | desta relagdo era indispensavel para uma boa técnica da discussio onde, | na discussao dialéctica, se trata para o perguntador de rebater a tese do | adversario, o que equivale a estabelecer a proposicao que é a sua exacta | negagdo, formando com a afirmagdo uma verdadeira alternativa, sem » escapatéria possivel. Ora, Aristételes da-se conta de que convém distin- guir entre duas maneiras de negar uma proposi¢do, que ele proprio tinha antes confundido em varias passagens de Metaficica A, e que, por con- seguinte, uma proposigo ndo tem uma, mas duas opostas. Ao lado da que Ihe € oposta contraditoriamente ( &yz1pxTL%Gs ), ha que dar um lugar 4 que lhe ¢ oposta como sua contraria( Evavrta@s_). Reaparece assim’ a relacdo de contrariedade, mas actuando desta vez entre elemen- tos diferentes e com um sentido novo: nao ja entre dois conceitos, como extremos de um mesmo género, mas entre duas proposi¢ées, como incompativeis entre elas. Incompativeis, isto é, nao suportando ser ver- dadeiras em conjunto, mas sem por isso constituirem alternativa: 0 que as distingue das contraditérias. Porque duas contraditérias nado podem ser nem ambas verdadeiras, nem ambas falsas; de maneira que da ver- dade ou da falsidade de qualquer uma delas, pode concluir-se pela falsi- dade ou pela verdade da outra. Ao passo que em presenca de duas con- trarias, pode sempre concluir-se da verdade de uma pela falsidade de outra, pois que elas ndo toleram a sua comum verdade, em contrapar- tida, da falsidade de uma nada pode concluir-se sobre a outra, porque ¥ elas podem ser ambas falsas. Os er inio que Aristételes ti primeiro cometido consistiam precisamente em ter tratado contrarias ! como. contraditorias, julgando ter estabelecido a verdade de uma porque ; tinha provado a falsidade da outra. « ' No entanto, Hamelin tentou mostrar (Le systéme d’Aristote, p. 141-142), fun- dando-se numa passagem da Metafisica (1, 4) como Aristételes punha uma ordem hierdcquica nesta diviséo. 1 Lembremo-nos de que, na Interpretacdo, & feita a versais ¢ as singulares; mas como um sujeito «universals (isto é, um conceito geral) pode ser afirmado ou negado quer universalmente, quer ndo universalmente, isso equi- vale, quase nos mesmos.termos, A distingdo entre 0 que os Analiticos denominarso as Proposigdes universais ¢ as particuiares. Acrescente-se que um capitulo, bastante com- Plicado, da Inverprevacdo (10) 1 que a negagdo incide propriamente sobre a proposicéo, le em que ela incide sobre um das seus termos. , s dois casos, que explica sem duvida que Aristételes tenha retomado esta palavra conirdrios para transferi-la da oposi¢do dos conceitos para a oposigdo das proposi¢Ses, reside no facto de haver sempre entre os dois contrarios, conceptuais ou proposicionais, uma zona intermediaria da qual eles constituem os dois, limites extremos: todos os matizes do cinzento entre o branco € o preto, como toda a extensfo dos alguns entre todos e nenhum. tingdo entre as coisas uni- 42 i i i Fa consideragdo da quantidade das proposig6es que permite por a claro esta distingéo. A oposic¢ao segundo a contradicao funciona, quer entre a universal afirmativa e a particular negativa (Todo o S é P, Algum S ndo é P), quer entre a universal negativa e a particular afirma- tiva (Nenhum S é P, Algum S é P). A oposicao segundo a contrariedade estabelece-se entre as duas universais (Todo o S é P, Nenhum S é P): ve-se que elas podem ser ambas falsas, no caso em que as duas particu- lares correspondentes, Algum S é P e Algum S ndo é P, sas verdadeiras tanto uma como a outra. Ulteriormente, os légicos alargarao a teoria da oposigao ampliando © sentido da palavra, designando como opostas duas proposigdes que, tendo 0 mesmo sujeito e o mesmo predicado, diferem quer pela quali- dade, quer pela quantidade, quer por ambas ao mesmo tempo. As con- traditérias e as contrarias juntar-se-o assim as_subcontr: (as duas particulares, que podem ser ambas verdadeiras mas nao ambas falsas) € as subalternas (as duas proposi¢ées que, tendo a mesma qualidade, se opdem em quantidade: implicando a verdade da universal a da parti- cular e a falsidade da particular a da universal). Aristételes néo ignora estas relagdes', mas nao_as inclui na sua teoria das opostas. A lei das subcontrarias obtém-se alids facilmente combinando as leis das contra- ditérias e das contrarias; s6 que Aristoteles considera que a particular e a negativa sé séo opostas de uma maneira verbal’: quer dizer que se uma comporta bem, em relacdo & outra, a introdugdo da negacdo, nem por isso € menos verdade que ndo se podem olhar como verdadeira- mente opostas duas proposicdes que podem ser verdadeiras em conjunto € que podem portanto colocar-se simultaneamente. Com maioria de razo cle teria recusado tratar como verdadeiras opostas as subalternas, dado que nenhuma relacdo de negatividade funciona entre elas, ¢ dado que a verdade universal no ¢ apenas combativel com a da particular correspondente, mas que a implica necessariamente. Isso néo impede que, desde os Tépicos, ele conhega bem as leis das suas relagdes, ainda que sé ai as formule na metalingua’. A validade das regras que autorizam certas inferéncias de uma pro- posigdo para uma das suas opostas funda-se na verdade de certas leis logicas. Assim, a regra das contraditérias assenta naquilo a que pode 7 ugacao de duas leis elementares, a da 4 contradi¢ao ea ea do terceiro excluido’. A primeira, que regula também a oposicdo das duas universais (contrarias), nega a con- jugagdo de uma quaiquer proposicao p ¢ da sua negacao ndo-p: nao ao mesmo tempo p € ndo-p; donde resulta que, se uma é verdadeira, a outra é falsa. A segunda, que regula também a oposi¢do das duas parti- culares (subcontrarias), afirma a disjuncdo de uma qualquer proposi¢éo ' Ainda que ele ndo tenha dito expressamente que as duas «subcontrarias», que podem ser verdadeiras conjuntamente, nao podem ser falsas ao mesmo tempo. ? Prim, Anal., MI, 15; 63 b 28. A palavra wsubcontratias» (Srevaycix.) 6 aparece com Alexandre de Afrodisia. ' Topics, 11, 1, 109 a 4-6; 111, 6, 119 a 34-36. * As denominagées «alternativa» ¢ «lerceiro excluido» nao pertencem @ lingua- gem de Aristételes. 43 t p eda sua negagdo ndo-p; p ou ndo-p; donde resulta que se uma ¢ falsa, a outra é verdadeira. Aristételes conhece estas duas leis, embora as nao exprima 4 nossa maneira € ndo tenha a preocupacdo de reduzir cada , uma delas a uma férmula Unica e canénica. No livro 1 da Metafisice que. é precisamente consagrado ao principio de contradigao, ele i insurge- ' se com indignagao contra aqueles que, como os megaricos, ousam pé-lo em questo; ele proprio coloca-o no cume da hierarquia e faz dele o 0 fundamental de todo o pensamento, porque ele esta por natu- reze na origem de todos os outros axiomas»'. Quanto ao principio do ‘terceiro excluido, se nao é expressamente estabelecido, sera pelo menos sempie aplicado, e portanto implicitamente admitido, em toda a silo- gistica. Entretanto, sobre este ultimo ponto, encontra-se na Interpretagao? uma passagem, talvez acrescentada mais tarde, onde Aristoteles, opondo- -se mais uma vez aos megaricos cujas teorias parecem implicar que o futuro esta inteitramente determinado, apresenta aparentemente algumas reservas. O priricipio segundo 0 qual a negagao ou a afirmagio € neces- sariamente verdadeira ou falsa é¢ mantido quando se trata de proposi- gdes gerais (universais ou particulares), ou mesmo de proposigées singu- lares quando estas incidem sobre o passado ou o Presente; mas «para os futuros que incidem sobre singulares, a solugdo jé nio € a mesma»? Porque aplicar-Ihes este principio ndo equivalera de facto a negar a con- tingéncia dos fyturos? Amanha haveré, ou ndo haverd, uma batalha naval? Se admitirmos que entre uma Proposi¢ao © a sua negagdo uma delas € necessariamente verdadeira, ndo sera preciso dizer que a pastir dai € necessariamente verdadeiro que havera uma batalha ou que nao a havera? Mas Aristoteles observa que 0 que aqui é necessdrio é a alterna. tiva € ndo este ou aquele dos seus membros. «Necessariamente haverd amanha uma batalha navai ou nao a havera; mas nao é necessario que haja amanha uma batalha naval, tal como nao é necessario que a nado haja‘.» Sé amanh4, quando um ou outro destes acontecimentos se veri- ficar, se poderd dizé-lo necessdrio, ¢ necessaria igualmente a auséncia do outro: porque «que aquilo que é seja, quando é, e aquilo que nao é nado yseja, quando nao é, eis 0 que é verdadeiramente necessirion’. Mas ‘quando um _acontecimento existe apenas poténcia, Suvauer, entio ele é apenas possivel, Suvatéy. E o que é vilido paca os acontecimen- tos, € também valido para as proposigées que incidem sobre eles. Antes da batatha naval, a proposi¢do sobre a batalha existe, se assim se pode dizer, apenas em poténcia quanto a sua verdade, dado que a verdade de um proposi¢ao se funda na sua correspondéncia com o ser, e que se , {ata aqui de um ser em poténcia. Quando a poténcia tiver passado a “acto, quando a batatha tiver tido lugar ou nao, sé entao a verdade oua falsidade da proposigao que incide sobre esse acontecimento se tera ela ', Metafisica 1, WN, 1005 b. ? Capitulo 9. +18 a4 - *19a31-32. ‘19224 propria actualizado. Até la, nem uma nem outra de ambas as proposi- gGes referentes ao acontecimento era verdadeira ou falsa: nao no sentido de que o principio do terceiro excluido, p v ~ p, nao se verificaria 14, mas no sentido de que a qualificagado de-verdadeira ou de falsa sé pode aplicar-se a uma proposi¢éo que incide sobre um acontecimento, quando esse acontecimento esta em acto. E portanto pelo menos duvidoso que seja preciso ver nesta teoria dos futuros contingentes, como por vezes se fez nos nossos dias, o esboco de uma légica trivalente, admitindo, para uma proposi¢ao, a possibilidade de um sertium entre a sua verdade e sua falsidade. Em todo o caso, nao haverd nenhuma abertura deste género nos Analiticos, onde todos os raciocinios admitem implicitamente a validade universal do principio do terceiro excluido, sem que apareca em nenhum lado a minima restrigdo. Nao poderia, alias, haver qualquer restrigi0, dado que Aristoteles tinha ele proprio limitado expressamente a’ sua discussio ao caso de certas proposigées singulares, ao passo que a sua silogistica exclui precisamente as singulares do seu dominio. Uma outra maneira de obter uma proposi¢d0 nova a partir de uma proposic’o dada, ¢ permutar nela sujeito e predicado: operagao que, como dissemos, 36 € possivel se estes dois termos forem homogéneos, isto é, se o sujeito for, ao mesmo titulo que o predicado, um conceito!. Aristoteles chama-lhe conversio (dyreatpoph) € interroga-se sobre as condigdes em que uma tal transformagdo é legitima, isto é, permite con- cluir da verdade da primeira proposigao para a da segunda. A palavra e a ideia aparecem ja nos Tépicos, mas’sob uma forma ainda bastante vaga e confusa, pois que a dvttotp0@7 aplica-se ai tanto a um sé nome ou a um raciocinio completo como a uma proposi¢ao. Mesmo neste titimo caso, a convers’o nao tem exactamente o sentido que assumiré seguidamente e que passara para a ldgica classica. Aristo teles apresenta 4, de facto, como exemplo a passagem de P pertence a todo o S para Todo o S é P, acompanhando portanto a permuta dos termos pela mudanga da cépula. Contudo, uma teoria importante dos Tépicos’, pois que € sobre ela que se funda o plano do tratado, sugere ja a ideia das condigées de validade de uma conversao, no sentido defini- tivo desta palavra; é a teoria daquilo a que em seguida se chamard os uptedicaveis». Ela consiste em enumerar, fundando-se, quer empirica- mente na indugdo, quer racionalmente na deducdo, as diferentes classes, +yév7, Sob as quais se podem catalogar os diversos predicados possiveis. * Ela seria também possivel, segundo a mesma condic&o de homogeneidade, se os dois termos fossem igualmente singulares, como se transformassemos Teofrasto é Tyriamos em Tyrtamos é Teofrasto. Mas Aristoteles ndo encara conversdes deste tipo. ? Tépicos, I, 8 € 9; o cap. 9 tenta precisar as relagdes entre os predicdveis ¢ as categorias, 45 a O predicado de uma proposicdo ou enuncia a esséncia, e entdo a propo- sigao € uma definic¢ao, 4:52, ou o proprio, 13.6%, isto é, aquilo que pertence unicamente ao sujeito sem por isso figurar na sua esséncia, por exemplo, para o homem, a aptidado para aprender a gramatica, ou o género, “rEG2, de que o sujeito faz parte, como animal é para homem, ou finalmente um simples acidente, ou6267,%42, que pode encontrar-se ou nao no sujeito, por exemplo, para o homem, «er branco. Ora vé-se logo, e Aristoteles tira de imediato esta consequincia, que a troca do sujeito e do predicado pode fazer-se sem risco nos dois primeiros casos, pois que o sujeito € predicado tém ai exactamente a mesma ext A mas ndo nos dois tltimos casos. E se se combinar esta convertibilidade ou inconvertibilidade com o cardcter essencial ou nao essencial do pre- dicado, obter-se-4o quatro casos possiveis, 0 que mostra que a classil cago dos predicaveis é exaustiva: se 0 predicado marca a esséncia, ele ¢ “convertivel (definigao) ou ndo-convertivel (género); se ndo marca a -esséncia, ele é igualmente ou convertivel (proprio) ou ndo-convertivel | (acidente). A teoria € retomada nos Analiticos' onde desempenhard um papel importante para a redugdo dos silogismos das segunda ¢ terceira figuras. Mas ela ¢ ai precisada pela consideragdo da quantificagdo e da negacdo, com a disting&o entre as quatro espécies de proposi¢des que dai resulta, ao mesmo tempo que se apaga a considera¢do dos predicaveis. A uni- versal negativa converte-se simplesmente, sem que haja nada a mudar na sua quantidade nem na sua qualidade, e de igual modo a particular afirmativa. Mas para a universal afirmativa — que pode ser olhada como enunciando a subsungdo do sujeito sob o predicado ou como a incluséo da espécie no género — com a convers4o 0 novo predicado é apenas, para o novo sujeito, um acidente, o que quer dizer que pode nao Ihe pertencer; é por isso que a proposic’o deve entéo mudar de quanti- dade, e tornar-se particular, sendo a particularidade precisamente a marca do acidente: de Todo o S é P apenas se pode concluir que Algum PéS. Quanto a primeira negativa, ela no se converte: se homem nao pertence a algum animal, ndo se segue dai que animal nfo pertenca a algum homem. : A conversio, os légicos da Idade Média acrescentardo outras «infe- réncias imediatas» fazendo funcionar a nega¢4o nao apenas sobre a pro- posigdo, mas também sobre os termos. Assim, a partir de S é P, a obversio da, por neutralizagéo das duas negagdes, S ndo é ndo-P; a contraposig&o, que equivale a converter uma obversao, da ndo-P é ndo S. Se Aristoteles ndo ignora estas operagées, no sentido de que sabe oportunamente pratica-las, ele ndo faz no entanto a sua teoria. 4. 0 silogismo A palavra silogismo aparece, como termo técnico, nos Tépicos. O silogismo é ai apresentado como uma das duas maneiras possiveis de Prim, Anal., 1, 2. 46

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