You are on page 1of 24
O dualismo cartesiano Lia Levy UFRGS/CNPq O legado filoséfico de Descartes na cultura ocidental é extenso, profundo e controverso. Seu nome tem sido associado, ja ha muito mais tempo, mas particularmente no século XX, a posigées filosé- ficas consideradas indesejaveis e danosas. Na condi¢ao de fundador e emblema da modernidade, Descartes transformou-se no simbolo de tudo o que nos cabe, “pdés-modernos”, renegar e superar. As duas correntes rivais que marcam a filosofia do século XX concordam quase* que em unissono com esse diagnéstico, fazendo-nos percor- rer um espectro tao amplo quanto o que vai da acusagao heideggeri na? as criticas de diversos filésofos analiticos e adeptos da filosofia da mente de cunho naturalista.* Todos, defensores de um humanis- mo revigorado pelos evidentes prejuizos trazidos pela tecnologia, por um lado, e advogados de um novo positivismo cientifico fasci- nados com as recentes descobertas da genética e da neurociéncia* por outro, concordam ao menos nisso: que a filosofia de Descartes, demasiado impregnada na nossa concepgao de mundo, deve ser de- nunciada e extirpada. | Trago, aqui, em fungao dos objetivos deste texto, um painel em grandes Jinhas, um esbo¢o que, portanto, forcosamente, deixa de lado os detalhes e as nuangas da dis cussdo, marcadas aqui pelo termo *quase’. Para uma visdo mais precisa da recep¢ao do cartesianismo no século XX. cf. entre outros, Broughton, J. & Carriero, J. P. 2007, especialmente capitulos 28 a 30. Ver, por exemplo, Ser e Tempo. Para uma sintese da critica de Heidegger a Descartes, ver Jean-Luc Marion, 1987. Ver, entre outros, P. F. Strawson, 1974, ¢ D. Parfit, 1984. A este respeito, 0 livro de divulgagao cientifica de Antonio Daméasio, O Erro de Des- cartes. Emogio, Razto e 0 Cérebro Humano (Sao Paulo: Cia das Letras, 1996) € exemplar. O interessante dessa controvérsia consiste, porém, no fato de que, uma vez aceito o diagndstico geral, as divergéncias se instalam tio logo se queira determinar quais sfo, exatamente, as posi¢des fi- losdficas propriamente cartesianas a serem denunciadas. O consenso se desfaz e os debatedores voltam as suas posigdes originalmente opostas. Na realidade, essa dicotomia pode, ela mesma, ser chamada de dualismo e, em certo sentido, enraiza-se no chamado “dualismo cartesiano”. 0 que é o dualismo cartesiano? Dualismo nao € um termo usado por Descartes. Eie é empregado por estudiosos de sua filosofia para designar uma tese efetivamente cartesiana, mas cuja significacdo é dificil precisar. De uma forma muito geral e, até certo ponto, consensual entre os especialistas, o dualismo cartesiano é uma expressao que se refere 4 sua concepgio de que a mente’ e 0 corpo sao duas substancias distintas, ou seja, duas tealidades absolutamente diferentes, independentes entre si (embora possam agir uma sobre a outra), que podem existir separadamente e que podem — e devem — ser compreendidas e explicadas por princi- pios e conceitos totalmente independentes. Ent termos mais técnicos eproprios 4 filosofia cartesiana, essa expressao refere-se a tese da distingao real* entre a mente ¢ 0 corpo. Essa nao é, de modo algum, * Esse termo foi escolhido para traduzir os termas utilizados por Descartes em suas obras, ‘ame’, ‘eprit'e ‘mens’ apenas para evitar qualquer suposigio de que sua filosofia tenha algum componente religioso, 0 que poderia acontecer caso usasse 0 termo ‘alma’. Do ponto de vista especifico de sua filosofia, porém, pode-se usar i discriminadamente ‘alma’, ‘mente’ ou ‘espirito’ desde que se saiba que o essencial ¢ que Descartes pretende ter estabelecido um nove € definitivo sentido conceitual para esses termos: “... uma coisa que pensa, isto é, um espfrito, um entendimento ou uma razio, que so termos cuja significagdo me era anteriormente desconhecida” (Segun- da Meditagio § 7). ' A distingao é por ele caracterizada como “real”, ndo por ser nao imagindria ou nao iluséria. Esse ¢ uma expressdo que Descartes herda da filosofia de seus predecessores ¢ que continua a ser usada pelos filésofos ao longo do século XVII. Na filosofia de Descartes, esse conceit, que nio aparece explicitamente no Discurso do Método nem nas Afeditagdes Metafisicas, é definido na primeira parte dos Prineipios da Fi- losofia. Sua fungdo, juntamente com os conccitos de distingdo modal e distingao de razao, € caracterizar de modo mais preciso as distingdes que devemos fazer relativa- mente as coisas no mundo e ao nosso modo de concebé-las. Sobre essas distingdes, cf. Principios da Filosofia, parte I. arts. 60.a 65. 87 a Ultima palavra de Descartes sobre a natureza humana. Tal fungao cabe a nogao de unidio substancial entre a substancia pensante (men- te) e a substancia extensa (corpo), que sera preciso esclarecer mais adiante. Nao obstante, o dualismo mente-corpo fixou-se rapidamente no debate filosdéfico do século XVII e, em seguida, no imagindrio ocidental como uma heranga cartesiana, associando-o a uma série de posigGes estranhas 4 doutrina do fildsofo, algumas até explicitamen- te rejeitadas por ele. O dualismo cartesiano é apenas uma das muitas formas de dua- lismo presentes na Histéria da Filosofia, assim como ¢ também ape- nas uma das versdes da distin¢ao entra a mente e o corpo humanos, De um modo geral, o dualismo indica toda e qualquer doutrina que defenda que a realidade deriva de dois, e apenas dois, principios ou fundamentos. O dualismo responde, pois, a uma das principais per- guntas da Filosofia; 0 que é mais fundamental na realidade? Ele nao €, contudo, a tinica resposta possivel. Muitgs fildsofos defendem ou bem a tese de que s6 pode haver um unico fundamento para todas as coisas, ou bem que nao ha como reduzir dessa maneira a realidade, sendo ela essencialmente miltipla e diversa. Assim compreendido o dualismo, a expressiio “dualismo carte- siano” torna-se problematica. Com efeito, a filosofia de Descartes reconhéce uma Unica realidade absolutamente fundamental, da qual depende o ser de todas as coisas: Deus. No entanto, nfo seria cor- reto, por isso, classificé-la como monista, ou seja, como uma das doutrinas que reconhecem uma unica instancia efetivamente real, tal como, por exemplo, a filosofia de Espinosa. Se considerarmos que substincia ¢ 0 conceito que designa, na filosofia de Descartes, os elementos tltimos da realidade, veremos que ele reconhece explici- tamente trés desses elementos: Deus ou substincia pensante infinita, a mente ou substancia pensante finita e o corpo, substancia extensa.’ De dualista a monista, de monista a “trialista”, sem que o ser humano conste entre os entes mais fundamentais... Mais uma vez, trata-se de uma afirmagao questionavel por va- rias razGes. Em primeiro lugar, como nao deixaram de notar muitos dos estudiosos do cartesianismo, a atribuigdo do conceito de subs- tancia tanto ao criador, quanto as criaturas, exige que se atri- 7 Aqui ha também uma dificuldade, 4 qual irei me referir mais adiante. 88 bua sentidos diferentes para os usos desse conceito. Afinal, se o conceito de substancia designa o que ha de mais fundamental na realidade, ou ainda, aquilo cujo ser nao depende de outros para ser Oque é, como Descartes poderia caracterizar a mente € 0 corpo como substancias se os concebe como tendo sido criados por — e, portanto, como dependentes de — Deus? A tinica maneira de pre~ servar a consisténcia da doutrina cartesiana parece ser enfatizar as diferentes definigdes que ele oferece, em diferentes textos, do conceito de substancia e incluir uma espécie de clausula restritiva: substincia, quando esse conceito se aplica ao que cxiste no mundo criado, refere-se a todas as coisas que nao dependem senao do con- curso de Deus para existirem e serem 0 que sao. Desse modo, 0 uso do conceito de substancia nos trés casos nao autoriza, por essa ra- 740, que Descartes seja considerado um trialista. Com efeito, essa nocdo supde uma equiparacao entre os estatutos dos trés elementos que nao pode ser aplicada aqui: Descartes reconhece uma despro- poreao, ou ainda, uma hierarquia entre dois niveis de realidade, 0 docriador ¢ o das criaturas. Assim, no mundo que nos rodeia sé haveria, segundo Descar- tes, duas (ou dois tipos de) substancias ou entes fundamentais: a substincia pensante e a substAncia extensa ou corpdrea. Isso nos traz de volta ao dualismo, mas ainda ha duas observagées a serem feitas. Em primeiro lugar, é preciso esclarecer a introdugao da ex- pressiio entre parénteses “ou dois tipos”. E uma questo classica na interpretacdo da filosofia cartesiana a determinacgéo mais precisa do sentido de seu dualismo: ou bem ele defenderia que sé ha, na tealidade criada, duas substancias, uma pensante e outra extensa, ou bem que ha intimeras substancias, mas que essas sdo de apenas dois tipos, as pensantes e as extensas. Essa é uma decisao inter- pretativa importante, pois ela implica duas concep¢des de mundo muito diferentes. Sea primeira opgo se mostrar correta, entao a filosofia de Des- ‘tartes concebe a diversidade do mundo criado como devendo ser reduzida a duas entidades de estatutos bem distintos. De um lado, teriamos uma Unica substancia finita pensante, uma tnica mente consciente finita; de outro, uma tinica substancia extensa indefinida (0 universo pensado como a totalidade do espago tridimensional). Nesse caso, Descartes teria imensa dificuldade em reconhecer a rea- 89 lidade de outras mentes que nao a nossa (e aqui o plural desse prono- me seria apenas uma gentileza com o leitor, visto que eu s6 poderia _ falar em meu préprio nome). Além disso, a multiplicidade dos corpos | fisicos deveria ser concebida como uma marca de seu estatuto deri- vado ¢ menos fundamental. O espaco tridimensional que os constitui seria a substancia extensa tinica e indefinida, sendo os corpos apenas porgGes particulares desse espago (em termos cartesianos: modos dessa substancia). Mas se a segunda op¢ao estiver correta, ent&o 0 dualismo de Descartes apenas 0 comprometeria com a tese segundo a qual todas as miltiplas, inimeras e diversas substdncias que povo- am o mundo criado sao de dois — e apenas dois — tipos ou naturezas: haveria as substancias finitas pensantes ou mentes e as substéncias finitas extensas ou corpos. Nesse caso, 0 leitor certamente respiraria aliviado, tendo-lhe sido devolvido o estatuto de realidade fundamen: tal... Infelizmente, essa é uma questdo mais intrincada do que pode parecer e ainda esta em debate. Em segundo lugar, ¢ preciso esclarecer que no esta inteiramen- te afastada a hipdtese de um “trialismo” cartesiano, embora de outro tipo.® Segundo Descartes, haveria trés (ou trés tipos) de substancia: a pensante, a extensa e... 0 ser humano. Embora Descartes jamais se refira ao ser humano como uma substancia e sempre caracterize sua natureza pela expressdo ‘uniao substanciai’, muitos estudiosos, devi- do a uma série de dificuldades interpretativas que nao serao aborda- das aqui, defendem a tese de que, na realidade, Descartes considera o homem como uma “terceira” substancia, constituida de mente & corpo sem, porém, poder ser reduzida a essas duas outras substan cias. E fato que Descartes nao pensa a natureza humana como um agregado de coisas sem relaciio entre si. Para ele, a unido substancial entre a mente € o corpo significa que ha uma estreita e intima relagd0 entre eles € essa relagado é 0 que, como veremos, mais propriament ‘CATACIETIZA & NESsA Makuteza. No entanto, é também fato que ele recusa a caracterizar o ser humano como uma substancia, ou sei como uma das estruturas fundamentais da realidade, preferindo expresso ‘uniao substancial’. Esse é também um debate em cur: entre os especialistas. 5 Cf. John Cottingham 1985 para uma defesa acurada dessa posigdo. Para uma posi diferente, ver Gordon Baker & Katherine J. Morris, 1996: Marleen Rozemond, 199! e Ethel Rocha, 2004. 90 Por outro lado, Descartes se insere em uma longa ¢ respeita- vel tradigao de pensadores que defendem nao apenas a realidade da mente (assim como a do corpo), mas, sobretudo, a completa autonomia da mente em relacdo ao corpo. Reserva-se, em geral, a0 Fédon de Platao o privilégio de inaugurar essa tradi¢ao na filosofia, aqual foi preservada por neoplatonicos como Plotino, consolidada nadoutrina crista por Santo Agostinho e discutida ao longo de toda aldade Média, inclusive apds a incorpora¢ao da doutrina aristoté- lica 4 teologia cristaé. Depois de Descartes, muitos outros filésofos prolongam essa tradigao, fazendo-a persistir ainda hoje no debate da filosofia contemporanea. No entanto, malgrado a semelhanga de familia que perpassa todas essas posigées, permitindo classifica-las todas como dualistas, o dualismo mente-corpo assumiu, durante 0 longo periodo em que esteve presente no debate filosdfico, contornos muito distintos na medida em que respondeu a proble- mas e inquietagdes diferentes e que precisou se conformar a es- quemas conceituais e sistemas filoséficos peculiares. Por exemplo, se o problema das relagGes mente € corpo que preocupava Des- cartes, assim como os fildsofos contempordneos, é explicar de que modo fendmenos como a consciéncia, a intencionalidade ¢ aracionalidade se relacionam com o mundo fisico, os medievais se interessavam, antes, em explicar como a matéria, uma realida- de pertencente a um nivel inferior na hierarquia dos seres, pode ter efeitos sobre a mente, uma realidade nobre conforme essa mes- ma hierarquia.? Além disso, uma passagem do Discurso do Método, que é reto- mada na Sexta Meditagao, torna problematica a afiliagaéo de Descar- tes a essa tradigaio. Em ambas as ocasides, para explicar sua posigao acerca da natureza psicofisica do ser humano e das relagdes entre a mente e o corpo que ela implica, ele recorre a uma imagem que tem suas raizes nessa tradigao: [...] a natureza ensina, por esses sentimentos de dor, fome, sede etc., que ndo somente estou alojado em meu corpo, como um pi- loto em seu navio, mas, além disso, que estou conjugado muito estreitamente e de tal modo confundido e misturado que compo- nho com ele um tnico todo. Pois, se assim nao fosse, quando meu * Cf. H. Lagerlund 2007. 91 corpo é ferido nao sentiria por isso dor alguma, eu que nao sou sendo uma coisa pensante, e apenas perceberia esse ferimento pelo entendimento, como o piloto percebe pela vista se algo se rompe em seu navio [...]. (Sexta Meditagao, § 24 — grifo meu) A passagem grifada é uma referéncia explicita a tradic&o dua- lista de origem platénica e foi imediatamente reconhecida como tal. A distancia que Descartes toma dessa tradic¢ao na passagem citada é inequivoca. Assim, é preciso definir melhor 0 que caracteriza o dua- lismo propriamente cartesjano e suas implicagdes para a concep¢ao que Descartes propde do ser humano. Para tanto, iniciarei, como se deve em Filosofia, por expor as razGes que conduziram Descartes a adotar essa posicao. Somente elas podem nos auxiliar a compreender com mais clareza o sentido de sua tese. Por que Descartes defende essa “estranha” posi¢io? Desde que foi publicamente apresentada, essa tese cartesiana provocou polémica; certamente, nado de mesmo teor que aquela que vige entre nos. Afinal, somos por muitas e diferentes razdes incom- paravelmente mais materialistas do que até mesmo os pensadores materialistas do século XVII, época em que coragGes e mentes ainda comegavam a enamorar-se do mundo “fisico”, no sentido em que hoje atribuimos a esse termo, apds tao longo periodo de ampla es piritualidade. Além disso, a palavra ‘corpo’ nio nos evoca mais as coisas do mundo, pensadas antes como objetos ou fendmenos, mas nos faz pensar, quase que exclusivamente, no nosso prdprio corpo e, por essa raz4o, a expressdo ‘dualismo mente-corpo’ nos sugere uma tese acerca da natureza humana. No entanto, nao era assim no século. XVII. A tese da imaterialidade da mente contava entre as concepgdes corriqueiras e nao era apandgio de nenhuma posic¢ao filoséfica pa ticular. Quanto ao conceito de corpo, esse era empregado para de- signar todas as coisas materiais, fossem elas naturais ou artificiais, Nesse contexto, bem mais inovadora relativamente a tradicao, a te do carater exclusivamente espacial (tridimensional) da matéria e, portanto, dos corpos, foi ela, sim, alvo de objegdes nao apenas dos defensores da ciéncia de origem aristotélica, mas também de algun: dos pensadores e cientistas que construiram, juntamente com Di 92 cartes, a nova fisica matematica. Em seu tempo, portanto, o grande desafio de Descartes nao era justificar a imaterialidade da mente,?° mas oferecer boas € definitivas razGes em favor de sua concepgio espacial (geométrica) da matéria e da eliminacio de toda e qualquer explicagdo dos fendmenos corpéreos que envolvesse principios in- trinsecos de movimento, que era sua visdo de uma fisica mecdnica correta. Sob essa perspectiva, o dualismo mente-corpo é, antes de tudo, uma teoria sobre a realidade das coisas que nos cercam e, en- quanto tal, teve uma recep¢ao diferente e bem mais positiva do que aacolhida que mereceu enquanto parte da teoria cartesiana sobre a nossa realidade como seres humanos. E isso, tanto de seus proprios contempordaneos, fossem eles simpatizantes ou nao do cartesianis- mo, quanto dos pensadores que o sucederam. De fato, todos parecem ter retirado como ligao dessa tese car- tesiana que, se ela for correta, a unidade do ser humano estaria de- finitivamente comprometida. Se o dualismo pensamento-extensao for, como pretende Descartes, indispensavel para tornar possivel e justificada a mecanica de Galileu, Kepler, Newton ¢ outros, entao parece que o “prego a pagar” seria a separacao irreconciliavel de nossa mente e de nosso corpo. E é essa ligéo que motiva os pensado- tes contempordneos de diversas escolas e tendéncias a denunciar os prejuizos da filosofia de Descartes. Essa lig&o, porém, nao foi a pretendida por Descartes, que sem- pre reagia surpreso quando confrontado com essa conclusao." Para ele, a unido da mente e do corpo € um fato inegavel e o que Ihe ca- bia propriamente investigar e elucidar era antes a natureza de seus ® Isso nao significa que Descartes nao tenha apresentado argumentos em favor dessa tese. Ao contrario, ele oferece uma das provas mais convincentes, que ficou imortali- zada no dito “penso, logo existo”. O interesse, contudo, dessa prova nao esta no fato de demonstrar uma tese extempordnea, e nem mesmo no fato de apelar para o cariter inegvel do sentimento que temos da nossa propria existéncia, A origem desse apelo encontra-se na obra de Santo Agostinho, como os leitores de Descartes certamente 0 percebcram. A novidade de sua prova consiste na estrutura de seu argumento (conhe- cido pelo nome de cogito) eno uso que ele faz. dessa prova na construgao do dualismo ede sua concepeao da natureza humana. ') Sigo aqui 0 lticido comentario de Henri Gouhier, estudioso francés do cartesianismo, para quem a expresso ‘duatismo cartesiano’ tem uma acepgdo critica ¢ seu apareci- mento na histéria da filosofia é a marca de um vazio que se produz quando se ignora, deliberadamente ou nao, a posigao filosdfica de Descartes: “Le dualisme est une con- séguence de ce vide creusé dans |’oeuvre de Descartes quand on a enlevé ce qui le remplissait” (1987, p. 324-325). 93 elementos constituintes do que uma prova de que eles existiam intima- mente uiidos em nosso ser. Ao fim e ao cabo, todavia, a histéria parece: ter confirmado o que lhe sugeriu Antoine Amauld:” ao ter fornecido provas tao dirimentes da independéncia, autonomia e separabilidade da mente e do corpo, “provou demais” e, desde entéo, malgrado toda sua surpresa € seus argumentos em contrario, nao seria mais possivel conceber racionalmente a unidade fundamental do ser humano, mes- mo que se possa constatar por experiéncia sua efetividade. A motivagao que parece ter levado Descartes a enfatizar tao in: sistentemente as razGes pelas quais devemos distinguir radicalmente a mente € o corpo reside, como disse, no projeto mais geral de sua’ filosofia e na sua intengao de justificar a nova ciéncia diante das acu sagGes de que os “inovadores”, como ele mesmo e Galileu, nada mais faziam do que apresentar hipdteses razodveis e sensatas para dar conta do modo como os corpos nos apareciam, os fenémeno: sem, com isso, realmente comhecer esses corpos como eles so neles mesmos. Se estamos dispostos hoje a eventualmente pensar a ciéncia desse modo, ou seja, como um conhecimento meramente provavel e aproximativo de fenémenos, suscetivel a continuas revisdes e de valor pragmatico, as implicagdes dessa posicdo tedrica tinham sentido muito diferente em um momento como'o do sécufo XVII, em que as fronteiras entre teologia e filosofia estavam sendo redefinidas, Adotar a disposigao de defender tedrica ¢ racionalmente o carite definitivo e realista da nova fisica significava confrontar a autoridade teolégico-politica no campo do saber humano e reivindicar para @ "= Antoine Amauld foi um tedlogo ¢ fildsofo francés de grande importdncia no sé XVIL, sobretudo pelas trocas epistolares ¢ discussdes que protagonizou com filésb fos do porte de Descartes, Malebranche ¢ Leibniz. Essa observagiio encontra-se Quartas Objegdes. por ele redigidas a Descartes e publicadas em anexo as Meditaga Metafisicas. A esse respeito, cabe esclarecer que 0 projeto dessa obra ja previa g sua publicagdo deveria ser acompanhada de objegdes feitas por leitores c das respo tas de Descartes. Assim, antes mesmo de enviar 0 manuscrito ao editor, Descartes fez circular nos meios intelectuais, solicitando que lhes fossem dirigidas por escrif as criticas que 08 autores achassem pertinentes. Ao todo, recebeu sete conjuntasd objegdes: as primeiras, de autoria do tedlogo holandés Caterus; as segundas, qi retinem as objegdes de diversos tedlogos ¢ filésofos reunidas por Marin Mersenn as terceiras, redigidas pelo fildsofo inglés Thomas Hobbes, na época ainda jovem! desconhecido; as quartas, de Antoine Amauid, que so consideradas por Descarest mais interessantes e instigantes; as quintas, redigidas pelo fildsofo ¢ cientista Pie Gassendi; as sextas, que retinem questées de diversos tedlogos, filésofos e gedmetr e as sétimas, enderecadas pelo padre jesuita Bourdin. 94 filosofia e para as nossas capacidades cognitivas naturais a tarefa de examinar e deliberar sobre os limites dessa autoridade. Mas se essa talvez tenha sido a motivagao de Descartes, o que dizer de suas razdes e argumentos? Por que e como o dualismo car- tesiano contribui para a defesa racional do projeto de ciéncia conti- do e expresso na fisica galilaico-newtoniana? Para responder a essa pergunta, é preciso ter em mente o diagndstico de Descartes sobre o gue estava em questio. Sua avaliacao era que a disputa sobre a cienti- ficidade das novas teorias fisicas e astrondmicas envolvia concep¢des distintas acerca da estrutura da realidade e das nossas capacidades cognitivas. De um lado, havia uma teoria j4 consolidada ao longo dos séculos com base na fisica e na metafisica aristotélicas, mas bastante alterada por uma série de resultados e explicagdes paulatinamente in- corporados durante esse longo periodo. De outro, uma série de novos resultados extremamente significativos, que iam de encontro as expli- cagdes da ciéncia tradicional, mas que supunham a legitimidade do recurso a instrumentos dpticos, como o telescépio, e a veracidade de uma concepg¢ao acerca da estrutura da realidade que nao havia ainda sido formulada de modo suficientemente sistematico e devidamente justificado. Pode-se dizer que a grande tarefa que se impés 4 filosofia do século XVII foi explicar e justificar essas duas suposicdes.? Esse diagnéstico, formulado na primeira parte do Discurso do Método e nas linhas inicias das Meditagdes Metafisicas,* levou Des- cartes a redirecionar suas investigagdes de problemas matemiaticos, fisicos, anat6micos e de método,** que marcaram o inicio de sua } Para um estudo mais aprofundado dessas questées, ver Koyré 2006 e Thomas Kuhn 1997. E importante observar, porém, que estou deixando de lado trés outros grandes temas da filosofia do século XVII: as relagdes entre teologia c filosofia, o problema das origens ¢ fundamentos do estado ¢ 0 debate sobre as condigdes da liberdade hu- mana. Cabe aqui mencionar também uma obra inacabada e descoberta apés a morte de Des- cartes, de dificil datagdo ¢ cujo estabelecimento do texto original apresenta diversos problemas: a Busca pela Verdade. Nela, Descartes persegue 0 mesmo objetivo das Meditagies Metafisicas, mas sob a forma de didlogo entre trés personagens. Essas investigagSes e seus resultados constituem o eixo fundamental das correspon- déncias de Descartes sobretudo até 1640 ¢ das seguintes obras: Regras para Diregéto do Espirito (texto inacabado publicado postumamente, cuja redagaio data provavel- mente dos anos anteriores a 1629), Do Mundo ou Tratado da Luz e Tratado do Ho- mem (ambos também publicados postumamente), e Discurso do Método (incluindo os trés estudos que lhe servem de anexo: a Geometria, a Didptrica ¢ os Meteoros, cuja publicagao data de 1637). 95 vida intelectual, para a epistemologia e a metafisica,’* passando a dedicar-se 4 investigagao de como e por que podemos fazer ciéncia propriamente dita. Nesse sentido, o pensamento cartesiano passa a ser uma reflexao sobre a melhor maneira de bem conduzir a nossa faculdade de conhecer de tal forma que o nosso conhecimento pro- grida sempre, de verdade em verdade, de forma segura e constante. Para tanto, ele considera que devemos ser capazes de responder a pergunta: que direito temos de reivindicar que a nossa faculdade ra- cional é uma faculdade do verdadeiro, ou ainda, que o critério que a razao nos fornece para distinguir o verdadciro do falso é legiti- mo? E essa passa a ser a questo que a metafisica, enquanto filosofia primeira,” deve responder. A metafisica deixa de ser, na aurora da modernidade, uma teoria sobre o fundamento da realidade para ser uma teoria sobre o fundamento do nosso conhecimento da realidade, sobre o fundamento da ciéncia. Por isso, 0 objetivo de Descartes, sobretudo nas Meditagées Meiafisicas, é avaliar nossa pretensao a construir um conhecimen- to propriamente cientifico e determinar as condigdes unicamente sob as quais essa pretensdo pode ser considerada, de modo definiti- vo e incontestavel, como legitima. $6 entao, ele acreditava, poder- se-ia resolver satisfatoriamente o dilema que cindia os intelectuais de seu tempo e justificar a nova fisica matematica. E a caracte- ristica fundamental do discurso cientifico que guia essa avaliaga0 € a certeza metafisica.® Seu projeto filosdfico pode, portanto, ser formulado como a determinagao das condigdes unicamente sob as qguais um certo tipo de discurso pode justificadamente ser qualifica- © Qs resultados de todas essas investigagdes foram reunidos por Descartes nos Prin cipios da Filosofia, obra cujo objetivo era fornecer uma suma de sua filosofia que pudesse ser adotada no ensino formal des universidades. Os termos ‘ciéncia’ ou “filosofia’ designam em Descartes indistintamente todo conhe- cimento verdadeiro justificado ou fundamentado racionalmente, A filosofia primeira designaria, pois, a metafisica e, em seguida, a fisica. Sobre a concepgao da estrutura do conhecimento humano, pensada por Descartes na forma da metdifora da drvore do conhecimento, ver a carta que serve de Prefficio traducdo para o francés dos Princ pios da Filosofia (1647). Essa expressiio, propriamente cartesiana, distingue-se, em sua filosofia, da certeza moral, que pertence ao fmbito pritico. Para Descartes, ndo se deve — ¢ nem se pode —exigir nas ages o mesmo tipo de certeza que cabe cobrar das ciéncias ¢, por isso, ele distingue esses dois conceitos. Como o que nos concerne aqui sao as ciénci passarei a usar 0 termo “certeza’ para designar o conceito de ‘certeza metafisica’. 96 do como cientifico, ou seja, como metafisicamente certo. Natural- mente; Descartes nao descuida da exigéncia de que o conhecimen- to cientifico seja verdadeiro.” Essa é uma condigao necessaria de todo discurso que reivindique a cientificidade. No entanto, no con- texto do embate entre as duas propostas de ciéncia do mundo fisico travado nos séculos XVI e XVII, 0 foco da discussao era, definiti- vamente, o problema do reconhecimento da verdade. Como saber que o conhecimento que propomos de uma coisa ¢, efetivamente, oconhecimento verdadeiro dessa coisa tal como ela é nela mesma, independentemente de ser apreendida por nds? Quantas vezes con- sideramos como evidente algo que mais tarde se revela incorreto ou que € contestado por outros? Com efeito, os defensores da fisica aristotélica e os defensores da nova fisica nao divergiam quanto ao que define a verdade, mas quanto aos procedimentos necessdrios para alcanga-la e quanto ao tipo de descrigao e de explicagao que as proposigdes verdadeiras devem fornecer. Sob essa perspectiva, a busca pela certeza concebida como indubitabilidade*® emerge como uma escolha guase” natural. A posi¢ao cartesiana pode, assim, ser resumida na tese de que as suposigdes de que dependia a legitimidade da reivindicagao de cien- tificidade da nova fisica poderiam ser plenamente justificadas a par- tir da demonstragao de que elas so as condigdes unicamente sob as quais um discurso pode ser considerado como indubitavel, ou ainda, metafisicamente certo e, portanto, cientifico. E elas desempenhariam essa fungao porque sao derivadas do conhecimento certo, ou ainda, indubitavelmente verdadeiro da natureza das coisas e da natureza Para um estudo mais aprofundado do tratamento cartesiano do conceito de verdade e das relagdes que mantém com o projeto de fundamentagaio da ciéncia, ver Raul Landim, 1992. ‘A regra que nos permite reconhecer a concep¢ao verdadeira de algo é a primeira a ser formulada por Descartes na terceira parte do Discurso do Método e equaciona 0s seguintes conceitos: certeza, indubitabilidade, evidéncia, clareza & distingao: “... jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu ndo conhecesse evidentemente como tal; isto, [...] de nada incluir em meus juizos que nao se apresentasse tao clara e tio distintamente a meu espirito, que eu nao tivesse nenhuma ocasito de pé-lo em davida". Esta é uma regra fundamental do método cartesiano, pois, em ultima andli- se, é ela que nos permite distinguir o conhecimento verdadeiro do falso. Essa restrigdo visa indicar que a op¢do pela certeza é, na realidade, uma caracteristica propria da filosofia cartesiana e que nao foi compartilhada pelos pensadores que as- sumiram essa mesma tarefa nos séculos XVII e XVIII. 97 das nossas faculdades cognitivas. E 0 dualismo mente-corpo é a tese que permite a Descartes estabelecer esse conhecimento ¢ realizar a tarefa que se propés.’* Duas sao as principais contribuigdes do dualismo cartesiano para essa realizagao. De um lado, ele permite justificar o tratamen- to puramente mecanico e matematico (quantitativo) da matéria ao demonstrar que a natureza e 0 comportamento dos corpos nao con- tém nenhum elemento que nao seja derivado da extensio (espago tridimensional), do movimento local (mudanga de lugar) e de re- lacgdes causais extrinsecas, cujo modelo é o choque, como no caso das bolas de bilhar. De outro, ele permite redefinir a natureza e 0 papel das nossas capacidades cognitivas na construgao das ciéncias, estabelecendo que todas so fungées distintas de uma (nica e mesma capacidade: a razao ou entendimento.* Ele permite, assim, restrin- gir os limites do valor que os dados fornecidos pelos nossos érgaos sensiveis possuem para as ciéncias, estabelecendo a necessidade de que sejam submetidos a uma avaliagao racional, que deve atuar de dois modos: mediante a inserg&o desses dados em uma teoria ra- cionalmente construida a partir de principios nao empiricos acerca da natureza dos corpos, do movimento, da luz e da constituigaio e funcionamento dos nossos érgaos sensiveis; e através da inclusao de instrumentos épticos e de medig’o nas experiéncias, para permitir aos 6rgaos sensiveis fornecer dados mais confiaveis e traduzir esses dados em informag6es quantitativas, pois.eles sao originalmente in- formacGes sobre as qualidades das coisas percebidas (por exemplo, acor, o timbre, a textura, etc.). Essas duas contribuigdes sao as duas- O percurso investigative que conduz da exigéncia da certeza ao dualismo é longo € constituido pelo encadeamento de complexos argumentos que nao serdo tratados aqui. Para uma primeira aproximagao desse percurso, cuja mais completa exposigio encontra-se nas Meditagées Metafisicas, ver André Gorabay, 2008, Michelle Beyssas de, 1972; ou Emanuela Scribano, 2007. A concep¢ao cartesiana de conhecimento envolve ainda uma outra capacidade ou fae culdade: a vontade, sem a qual o coneeito de juizo, que expressa a unidede minimads. conhecimento na filosofia de Descartes, nao seria possivel. Sem cla tampouco seta possivel compreender a nog3o de método ¢ todo o procedimento reflexivo deliberalo que casacteriza tanto o processo de construgao das ciéncias, quanto o empreendimen- to filoséfico. No entanto, a vontade nao fornece nenhum contetido especifico, mas é a origem das nossas decisdes, da aceitagao ou recusa do que nos é apresentado pela raz, pelos sentidos, pela memoria ou pela imaginagac ¢ da suspensio desse mesmo. assentimento (divida). 98 principais faces do dualismo cartesiano: a independéncia do corpo em relagao 4 mente garante a primeira, a independéncia da mente em telago ao corpo assegura em parte a segunda.* Um texto interessante e esclarecedor sobre esses tépicos, bem como sobre o modo como Descartes os relaciona, encontra-se em suas respostas ao sexto conjunta de objecSes que lhe foram feitas. Nessa passagem, Descartes retoma a estratégia que adotou no Dis- curso do Método, onde defendeu sua concepgao de método recor- tendo a uma espécie de estéria pessoal que retraga o caminho que percorreu para alcangar essa concepgio. Nas respostas as sextas ob- jecdes, 0 que esta em questdo € o dualismo. Embora longo, penso que vale a pena citd-lo, porque nao dispomos ainda de uma tradugao em portugués publicada desse conjunto de objegdes ¢ respostas. Na medida em que as dificuldades que restam examinar me so propostas antes como diividas do que como objegées, nao me tenho em tao alta conta que me permita ousar explicar suficiente- mente coisas que vejo ser ainda hoje objeto de divida de homens to sabios. Entretanto, para fazer tudo que posso a esse respeito & nao deixar de apoiar minha prépria causa, descreverei abertamente de que maneira consegui me livrar, eu mesmo, dessas duvidas. Pois, assim fazendo, se por acaso ocorrer que isso possa ajudar a alguns, terei razaio de me alegrar e se nao possa ajudar ninguém, ao menos terei a satisfagio de que ninguém podera me acusar de presungdo ou temeridade. Quando, pela primeira vez, conclui, como consequéncia das razOes contidas em minhas Meditagdes, que a mente humana é realmente distinta do corpo e que ela € mesmo mais facil de co- nhecer do que ele, e diversas outras coisas que ali sao tratadas, cu me senti, na verdade, obrigado a isso consentir porque ai no observava nada que nao fosse tirado de principios muito evidentes a partir das regras da Idgica. Todavia, confesso que nao fui por isso inteiramente persuadido e que me aconteceu quase o mesmo que acontece com os astrénomos que, apds terem sido convencidos por poderosas razGes de que o Sol é muitas vezes maior do que toda a Terra, nao podiam, porém, impedir-se de julgar que ele é menor quando voltavam seu olhar sobre ele. 3 Como veremos mais adiante, essa reformulagdo do valor cognitive dos dados sensi- veis depende ainda da tese da unio substancial entre a almae 0 corpo e, portanto, da concepgdo cartesiana da natureza humana. 99 100 Mas depois que fui adiante e que, apoiado sobre os mesmos principios, passei a considerar as coisas fisicas ou naturais, ex minando primeiramente as nogdes ou s que encontrava em mim mesmo de cada coisa, em seguida distinguindo-as cuidadosamente umas das outras para que meus juizos tivessem uma total relapao, com elas, reconheci que nfo havia nada que pertencesse 4 natu. reza ou esséncia do corpo senfio que ele é uma coisa extensa em comprimento, largura e profundidade, capaz de diversas figuras e de diversos movimentos, e que essas figuras e movimentos eram apenas modos, que jamais podem existir sem ele. Mas que as co- res, os odores, os sabores € outras coisas semelhantes so tao so- mente sentimentos que nado possuem nenhuma existéncia fora dé meu pensamento € que nao sao menos diferentes dos corpos que a dor da figura ou do movimento da flecha que a causa. E, enfim, que o peso, a dureza, 0 poder de esquentar, de atrair, de purgat ¢ todas as outras qualidades que observamos nos corpos consistent apenas no movimento ou em sua privagao, e na configuracao & arranjo das partes. Todas essas opinides sendo muito diferentes das que eu pos- suia anteriormente relativamente 4s mesmas coisas, comecei, depois disso, a considerar por que eu as tinha antes tao outré e descobri que a principal razio foi que, desde minha juventu- de, eu havia feito diversos juizos concementes as coisas naturais: (como as que deviam contribuir muito para a conservacio d minha vida, na qual acabava de entrar) e que havia sempre re- tido, desde ent&o, as mesmas opinides que tinha antes formadi dessas coisas. E, na medida em que minha mente, em tao ten: ra idade, nao se servia bem dos 6rgdos do corpo e que, senda a eles tio apegada que nao perisava nunca sem eles, percebia, pois, confusamente todas as coisas. E ainda que conhecesse sua propria natureza ¢ tivesse em si tanto a do pensamento, quan a da extensdo, nao obstante, porque nao concebia nada de pura mente intelectual que também nao imaginasse ao mesmo tempo algo de corpéreo, tomava ambos pela mesma coisa ¢ relaciona~ va a0 Corpo todas as nogGes que possuia das coisas intelectuais, E na medida em que nunca, desde entdo, eu me tinha livrado, desses preconceitos, nao havia nada que eu conhecesse bastante distintamente e que nao supusesse ser corpéreo, ainda que, nio obstante, formasse frequentemente tais s dessas mesmas coisas que supunha serem corpéreas € que delas tivesse nogoes tais que representassem antes espiritos do que corpos. Por exemplo, quando concebia 0 peso como uma qualidade real, inerente e ligada aos corpos massivos € grosseiros, embora a nomeasse uma qualidade enquanto a relacionava aos corpos nos quais residia, no entanto, porque acrescentava essa palavra real, pensava, na verdade, que se tratava de uma substancia. E ainda que concebesse que 0 peso se difunde por todo corpo que & pesado, eu nao Ihe atribuia, porém, 0 mesmo tipo de ex- tensdo que constitui a natureza dos corpos, pois essa extensdo é€ tal que exclui toda penetrabilidade das partes. E nao pensava que houvesse © mesmo peso em uma massa de ouro, ou de qualquer outro metal, com o comprimento de um pé que havia em uma pega de madeira com dez pés de comprimento. Na realidade, eu julgava mesmo que todo esse peso pudesse estar contide em um ponto matematico.* Descartes prossegue explicando como exatamente esses juizos mfusos sao formados pela mistura indistinta de s que nao podem misturadas por serem relativas tanto aos corpos extensos quanto mente. E essa combinagao, em certo sentido natural e ingénua, as, examinada atentamente, absolutamente inadequada e imagi- ia, scria a origem do erro fundamental da fisica proposta pela digo aristotélica e que deve ser corrigido com a nova ciéncia. im seguida, ele discorre sobre as razdes que o levaram a superar es preconceitos e, assim, ser capaz de se desfazer das diividas que quietam seus interlocutores. Essas razOes sao precisamente as que ustentam © seu dualismo mente-corpo: Mas depois de ter suficientemente considerado todas essas coisas e de distinguir cuidadosamente a da mente humana das s dos corpos e do movimento dos corpos, e depois que me apercebi de que todas as outras s que possuia anteriormente [...] haviam sido compostas ou formadas por minha mente, nao tive mais di- ficuldade de me desfazer de todas as duividas que sao aqui pro- postas. Respostas as Sextas Objegdes, item 10. A tradugdo é de minha responsabilidade e foi feita a partir da tradugio francesa feita por Claude Clerselier e publicada juntamente vom a tradugdo francesa das Meditagdes Metafisicas, feita pelo Duque de Luynes, em 1647 (ambas as tradugdes revistas © autorizadas por Descartes). [ssa tradugao encontra-se no volume XI, tomo 1, p. 238-240, da edigdo de referéncia das obras de Descartes, de responsabilidade de Charles Adam Pau! Tannery. 101 Pois, primeiramente, nao duvidei mais que eu tivesse clara ideia de minha mente. da qual nao podia negar que eu tives continuei a duvidar que essa fosse inteiramente diferente daquela de todas as outras coisas e que contivesse em si algo que pertem cesse ao corpo. Porque tendo investigado cuidadosamente as vei dadeiras s das outras coisas e mesmo pensando conhecé-las todas em geral, nao encontrei nelas nada que nao fosse totalmente d rente da minha mente. E vi que havia uma diferenga ainda maio entre essas coisas que, embora estando todas ao mesmo tempo ef meu pensamento, me pareciam, no entanto, distintas e difere! do que aquelas das quais nés podemos, com efeito, ter s sep’ atentando a uma sem pensar na outra, mas que nao estao ja conjuntamente em nossa mente sem que vejamos bem que nao podem subsistir separadamente.”* Assim, espero que a resposta 4 pergunta dessa secdo tenha sido respondida de maneira suficientemente clara: Descartes adota essai “estranha” posigao por acreditar que ela é necessdria para fornecer uma base segura ao projeto de cientificidade da nova fisica. Afinal, qual é a concep¢do cartesiana do ser humano? Como ja afirmei anteriormente, o dualismo mente-corpo nao& em Descartes, uma tese acerca da natureza do ser humano. Sua co I cepgao acerca dessa natureza esta antes expressa no dificil e misterioso conceito de unido substancial entre a mente (substin pensante) e 0 corpo (Substancia extensa ou uma porgao da substaneia extensa). Essa uniao é substancial nao porque une duas substancias, porque as une swbsiancialmente: a mente e o corpo humanos esti intima e estreitamente ligados, mesmo que, por suas prdprias née turezas, pudessem existir separadamente. No entanto, tendo sid¢ substancialmente unidos por Deus na natureza do homem, mentee corpo existem aqui, no mundo criado, de tal forma associados que est&o como que misturados um com o outro, interagindo um sobreo outro. Nada mais distante, portanto, da concepgao cartesiana do humano do que a imagem do aut6mato ou da maquina. Essa imagen ® Op. cit. p. 241. 102 aplica-se, na realidade, A visdo cartesiana de todos os outros corpos, inclusive os dos animais;?’ mas definitivamente é uma imagem de todo inadequada para a concepg¢ao cartesiana do ser humano. Essa concep¢&o do ser humano é, na realidade, absolutamente fundamental para o projeto de fundamentagdo da nova ciéncia em- preendido por Descartes nas Meditagdes Metafisicas. Com efeito, somente a conjun¢ao das teses do dualismo mente-corpo e da uniao substancial mente-corpo é capaz de justificar adequadamente os li- mites do valor informativo dos dados sensiveis ¢ a necessidade da inclusio de artefatos nas experiéncias para assegurar a confiabilida- de desses dados para as ciéncias. Se a prova de que a imaterialidade (ou carater nao espacial) essencial e irredutive] da mente permite a Descartes conceber os dados sensiveis como uma certa forma muito peculiar de pensar racionalmente, ou seja, como um dos produtos da nossa faculdade racional e nao como produto de uma faculda- de cognitiva distinta da razao, ela nao é suficiente para explicar in- teiramente a peculiaridade desses atos. Em termos cartesianos, as s sensiveis sdo s, ou seja, modos da substancia pensante cuja natureza €éessencialmente racional, mas sao intrinsecamente confusas e, por conseguinte, diferentes de todas as outras s, que podem ser tornadas distintas pelo procedimento metédico de investigacao.”* E essa con- fusio das s sensiveis, constitutiva ¢ irremedidvel mediante reflexdo, que explica o limite de seu valor cognitivo para as ciéncias e a ne- tessidade do recurso a dispositivos que as interpretem e as traduzam adequadamente para o quadro das diversas teorias. O Ambito do sensivel e, por extens&o, o da imaginagao 6, as- sim, a primeira preocupagao de Descartes ao introduzir sua con- ‘cepcao de natureza humana como uma unidade substancial de duas coisas independentes ¢ auténomas e, assim, sem medida comum. O carater substancial da unido exige que nossa natureza possua certas expressdes ou modos de ser que nao possam ser explicados Somente por nosso corpo ou somiente por nossa mente: eles envol- em de forma essencialmente indistinta caracteristicas do pensa- Para um estudo criterioso do sentido dessa tese cartesiana e de suas implicagdes para sua concepgao dos animais, ver Gordon Baker ¢ Katherine J. Morris, 1996, Esse im- portante estudo corrige muitas distorgdes que essa € outras teses cartesianas sofreram na leitura que os filésofos analiticos fizeram de sua filosofia. 4 Uma importante excegao deve ser indicada: a de Deus que, para Descartes, ¢ intrin- secamente distinta. 103 mento ou razdo e do corpo e, por essa razao, sao irremediavelmente confusos. E muito importante atentar para o fato de que nao éa mera independéncia conceitual ¢ autonomia entre o pensamento aextensdao ou espaco que explica essa confusao ineliminavel. Nos- sa mente é, para Descartes, perfeitamente capaz de conhecer cla- ramente e distintamente (e, portanto, de maneira metafisicamente certa) a natureza e 0 comportamento dos corpos ea fisica mecanica € matematica € a expressao desse conhecimento. O problema com dados sensiveis esta antes no fato de que eles sio manifestacées de uma unido tao profunda entre coisas essencialmente indepen- dentes. Nesse sentido, todas as manifestagdes dessa unido sao tio opacas a razao quanto a propria unido e Descartes chega mesmo a afirmar que tudo que se refere a esse aspecto fundamental da nossa natureza é mais bem conhecido pelos sentidos do que pela pura raz4o.”* Ora, € essa posigao cartesiana de que o conhecimento do carater psicofisico de nossa natureza é um limite do conhecimento puramente racional, podendo apenas ser constatado como um fato e elucidado racionalmente em suas fronteiras, que nao foi apropria- damente assimilada por seus leitores, criticos ou seguidores. No entanto, sem ela, Descartes nao teria podido justificar suas afirma- ges sobre o que chamamos de conhecimento sensivel. E quais so essas afirmagGes? Resumidamente, podemos dizer que Descartes considera os sentidos nos fornecem um conhecimen- to seguro da existéncia dos corpos,®° mas nao,de suas naturezas, Podemos recorrer a eles apenas em circunst&ncias muito precisas, como é estabelecido na Sexta Meditag4o. As informagGes sensiveis sdo fundamentais para nossa vida pratica, na medida em que sao ® Cf. Carta a Elizabeth de 28 de junho de 1643: “[...] reconhego uma grande diferenga entre essas trés nogdes: a mente é coneebida somente pelo entendimento puro; 0 cor PO, isto é, aextensao, a figura e os movimentos podem ser conhecidos também apenas pelo entendimento, mas bem melhor pelo entendimento auxiliado pela imaginagio; ¢, enfim, as coisas que pertencem a uniao da mente e do corpo nao sao conheci sendo obscuramente pelo. entendimenta pars, remy pe erentimerto wuxiliado pel ‘imaginago, mas elas sdo conhecidas muito claramente pelos sentidos”. Essa certeza supde, no entanto, a compreensdo adequada da realidade ¢ de nossa| pria natureza, Ela ndo é uma evidéncia imediata, mas depende de uma longa ¢ de consideragdes e argumentos que a justifiquem. Por isso, as dividas que Dest formula na Primeira Meditagao acerea da confiabilidade do que os sentidos nos nam 6 podem ser totalmente resolvidas ¢ eliminadas na Sexta Meditagio, apést © percurso argumentativo anterior. 104

You might also like