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Capa Alberto Giacometti Homem caminhando I 1960 foto Ernst Scheidegger Iver fig. 30, pagina 52] FRoNTISPICIO detalhe de Paul Cézanne A ponte de Maincy 1879-80 Iver fig. 8, pagina 201 O ESPAGO MODERNO © Cosac & Naily EeligSes 2001 © Alberto Tassinari Capa e projeto grafico Fabio Miguez Producao editorial Celia Euvaldo Preparacao de texto Maria Eugenia Régis Revisfio. Fabio Goncalves e Rodrigo Lacerda Composigiio Fernanda Mendes Catalogacao na Fonte do Departamento Nacional do Livro Fundacao Biblioteca Nacional ‘Tassinarl, Alberto Alberto Tassinari / O espago moderna So Paulo: Casac & Naify Edicées, 2001 160 p. 82 1, ISBN: 85-7503.045.-0 1. Filosofia das artes. Teoria das belas-artes, Teoria das artes decorativas opp: 701 ‘Todos os direitos reservados. Esta publica;ao nao pode ser reproduzida, no todo ou em parte, par qualsquer meios, sem a prévia autorizacéo por escrito da editora, exceto quando para fins de critica, artigo ou resenha. Cosac & Naily Edigées Fone 0_11 255-8808 Fax 0_11 255-3364 info@cosacnaify.com.be ard Serra 00 inclinado mo81 Aco cor-ten 5x 3.751 x Sem Federal Plaza, Nova York bra destrufda) III. O MUNDO DA OBRA EO MUNDO EM COMUM 7 A comunicacao, promovida por um espago em obra, entre o espaco do mundo em comum e 0 espaco da obra é algo de inteiramente novo na historia da arte ocidental. Tanto para uma pintura quanto para uma escultura contempordneas, 0 espaco do mundo em comum passa a assumir funcoes que antes, na arte naturalista — e mesmo na fase de formacao da arte moderna -, se cumpriam no préprio espago da obra. ‘Uma tal comunicacao entre 0 espaco da obra e 0 espaco em comum nao tora, porém, uma instancia indistinta da outra. Ao conceituar um espaco em obra como imitacao do fazer da obra, evitou-se a indiferen- ciacdo. Nao foi apenas para evita-la, entretanto, que se recorreu a nocao de imitacdo. Esta ultima possui sua justificativa nos sinais do fazer da obra. Assim, quando numa obra contemporanea o espaco per- tencente a ela nao alcanca individuacdo por si mesmo, ele passa a ser uma entre as partes da obra que exibem sinais do fazer, pois os contor- nos ndo mais sao suficientes para delimita-la. E por sinais do fazer que @ obra estd conectada ao espaco do mundo em comum, nao necessitan- do, portanto, individuar-se por meios ainda comprometidos com o natu- Talismo, A obra toda passa a ser, entéo, a obra e suas vizinhancas. O que levanta um problema: se a obra, por assim dizer, nao é toda a obra, até que ponto a imitacao participa dela? Dito de outra maneira: o espa- so do mundo em comum também é imitado na obra? A resposta s6 pode ser negativa. Uma obra naturalista pode imitar 0 espaco do mundo em © ESPACO MODERNO cwra(oe em) 2 % comum justamente porque difere completamente dele. Jé uma obra contempordnea, ao tequisitar a espacialidade do mundo em comum para individualiza-la, néo possui autonomia para se desembaracar total- mente dele, O espago compartilhado pelas duas mulheres em A carta de amor também 6 espaco de um mundo em comum, porém, como um ané- logo do mundo em comum, isto é como uma imitacao da visao natural do espaco a partir de um ponto de vista, nao 0 espaco em comum pro- priamente dito. Num espaco em obra, entretanto, o que se imita é 0 fazer da obra. Se 0 espaco em comum também fosse imitado, cada obra contemporanea tenderia a imitar a totalidade do espaco do mundo como obra stia, O que é uma hipétese absurda, Uma obra contemporanea nao transforma 0 mundo em arte, mas, a0 contrério, solicita 0 espaco do mundo em comum para nele se instaurar como arte. Assim, hé uma duplicidade na arte conlemporanea quanto ao papel do espaco do mundo em comum. De um lado, ele é requerido para a individuacao da obra, de outro, ele deve permanecer inalterado endo ser articulado pela obra. £ sob esses dois aspectos ~ excludentes e que se alternam — que 0 espago do mundo em comum se relaciona com um espaco em obra. Distante das vizinhancas da obra, ele 6 0 es- pago habitual; préximo da obra, porém, ele 6, tanto parte dela quanto © espaco do mundo em comum habitual, cotidiano, e em principio indi- ferente a dimensao estética, Se @ obra 0 requisita e altera seu aspecto proximo a ela, mesmo ai néo 0 mobiliza de todo. A obra o arrasta para si por meio dos sinais do fazer. Com isso se individua, destacando-se entre as coisas cotidianas. Nao 0 solicita, porém, por inteiro. O espec- tador, junto a uma obra contempordnea, pode perceber as alteraces que a obra provoca no espago em comum e cotidiano em que vive por meio dos sinais do fazer, mas também pode perceber que ela esta da ao espaco cotidiano nao o imitando, E somente no seu pér-se em. obra que a obra possui, na sua relacéo com 0 espaco do mundo em comum, dimensao imitativa. Arco inclinado, de Serra, pode ajudar na compreensao desse duplo papel que desempenha 0 espaco do mundo em comum num espaco em obra. A escultura inclina-se e verga amea- cando desabar. Parece abracar 0 espaco da praca. Inerva 0 espaco do mundo em comum e tende a conté-lo. Seu espaco é 0 da chapa de aco O MUNDO DA OBRA E 0 MUNDO EM COMUM. curva e inclinada, mas também tudo 0 que a seu redor imanta com intensidades diversas. O olhar nao pode compor, como para uma escul- tura naturalista - ou mesmo da fase de formacao da arte moderna -, uma série de visdes que encontrem um nticleo no interior da escultura a partir do qual ela se exteriorizaria. A escultura praticamente nao pos- sui um interior. Circunda-se a obra e se 6 circundado por ela, mas sua interioridade 6 quase nula. Seu espaco é quase inteiramente sua rioridade —a curvatura que conforma e requisita 0 espaco fora dela. Vista de perfil (ig.44), mesmo que se saiba que a linha ligeiramen- te inclinada ao fundo tem o mesmo tamanho da que esta préxima, nao se corrige 0 desconto que a percepgao habitualmente dé quando os ob- jetos se distanciam. Vé-se ostensivamente 0 que se sabe ser igual como menor. A chapa parece entao se retrair, O que é menor, por estar ao fun do, surge também como menor e préximo. O espaco da escultura torna- se eldstico, dindmico, e mede forcas com a inércia do espaco da praca. Caminha-se préximo a obra sem jamais té-la sob os olhos como um. espaco interiorizado. As visdes fragmentadas indicam que ha sempre mais a ver. Nao porque, como em muitas esculturas naturalistas, ela teria frente e verso, mas porque, como um corte no espago, a escultura 6, no seu todo, uma espécie de nao-todo. Grandiosa, nao deixa de ser um fragmento, uma sec¢ao do espaco. Sua totalidade ou sua inteireza nao esta isolada do espaco fora. A praca a acolhe, ¢ ela a redimensiona. Nao ha uma interioridade na obra onde o espectador possa duplicar ou refletir a sua propria. Ha, antes, uma segunda exterioridade que sobre- veio ao espaco do mundo em comum. Exterior num exterior, a obra néo pode modificar 0 espaco em comum na sua estrutura basica. Ela tam- bém esta no espaco do mundo em comum como qualquer outra coisa. A obra nao é o mundo nem possui um mundo inteiramente auténomo, mas emerge do espaco em comum emprestando dele ~ através dos sinais do fazer, como os cortes ea implantagao ~ 0 que @ ela falta para individua- lizar-se, pois, sem um interior, precisa fincar-se no espaco fora para completar seu espaco em obra. Arco inclinado talvez seja um exemplo demasiado propicio para ilustrar as relacdes entre 0 espaco da obra € 0 espaco do mundo em comum na ocorréncia de um espaco em obra. Fosse a tela de Conceito Q EsPAcO MODERNO ore espacial, de Fontana (fg. 45), também uma praca, os talhos da pintura provocariam efeitos em parte assemelhados. Mas 0 que se tem é uma pintura, e os talhos sao muito mais suaves que a chapa de ferro incli- nada da obra de Serra. Sua superficie amarela, que se pode imaginar intocada antes dos cortes, j4 possui por si sé uma interacao com 0 espa- co exterior A obra. O que comeca por revelar a ligagao da tela com seu exterior 6 a auséncia de profundidade. Sua opacidade, a quase neutra- lidade de um campo de cor amarelo homogeneamente tingido, poe & mostra uma exterioridade onde o olhar nao penetra. Ou, deixando de Jado a imaginacéo do que seria a tela antes dos talhos, que a penetra justamente onde ela nao é tela, mas fendas cujo escurecimento contras- ta com o amarelo da superficie. A comunicacao entre os dois espagos, 0 da obra e o do mundo em comum, é, entéo, muito ténue. Ela se da, além da prépria opacidade da tela, pelas fendas. E dado que sao fendas, tam- bém respiram, embora sendo partes da obra, o mesmo ar do espaco fora. Se entre um corte e outro a tela adquire pequenas ondulacées, a sutil topografia que formam se acopla com 0 espaco fora e aquém da tela. Fossem linhas pintadas, nao rasgos, 0 olhar sentiria um outro espaco. As finas faixas pretas apareceriam sobre um fundo amarelo. Mas, se ha um fundo na obra, ele é justamente as regides escurecidas do interior dos cortes. Um fundo detrés da tela, mas que ndo é um fundo ou uma pro- fundidade apenas 6ptica. E uma profundidade sem luz, vazios no espa- co em comum, e nao pertencente apenas ao espaco da tela. A tela, além de receber os cortes cindindo-se, também os recebe fechando-os. Rasgassem-na de alto a baixo, perderia sua unidade. Nao haveria entao, como bem diz o nome da obra, um conceito espacial, pois, retirado de sua aura intelectual, 0 termo “conceito” pode significar con- cebido ~ seja uma idéia, seja uma criacao. “Conceito espacial”, assim, uma expressdo que pode significar concebido espacial, ou, ainda, espa- 0 concebido. Tantas obras de Fontana possuem este titulo que é raz0a- vel supor que, de diferentes maneiras, a0 engendré-las, engendrava uma determinada espacialidade. Se assim for, e se for correto ver na pintura de Fontana um espaco em obra ~ e neste tiltimo uma ligacao entre 0 espaco da obra e 0 espago do mundo em comum -, 0 engendra- mento de um espaco ocorre em Conceito espacial tanto na tela quanto (© MUNDO DA OBRA E 0 MUNDO EM COMUM 43, Lucio Fontana: Conceito espacial; espene 1965 Cleo sobre tele 92,4 x 73,2.cm Museu de Arte Contemporane= da Universidade de Sao Paulo no espaco exterior, sendo os cortes os sinais do fazer que ligam os dois espacos. E se é verdade que em toda pintura a um espaco ou uma espacialidade, na obra de Fontana, porém, é o proprio espaco que éseu tema. Como conceito, vale dizer, concebido, 0 espaco de Conceito es- pacial 6 um espaco em estado nascente. Levemente entreabertas, as fendas ainda nao criaram de todo uma expansao do espaco. Os Timites i exteriores das fendas pertencem a tela. Seus interiores, delgadas fres- tas, sao lugares por onde a obra se liga com 0 espago em comum. A tela 1 guarda as fendas, porem, em regides que ainda nao vieram a luz, Os rasgos sao firmes, definitivos. A tela, entretanto, apenas comeca por fe- cundar um espa¢o. Pouco se abre para 0 exterior. A intensidade e a ex- tensdo dos cortes sao bem maiores que as da espacialidade gerada. 0 ritmo dos rasgos ainda marca uma estrutura espacial elementar. Mas nao 6 exatamente isso 0 que algo concebido exige para ser comunica- do ainda em seus inicios? O que se vé de forma cabal em Arco inclina- do, em Conceito espacial vé-se germinando. Ativado pelas incisdes, 0 espaco esta para brotar do campo da tela. Mas ndo nasceria para 0 mundo, por seus talhos — que sao partes do espaco da obra e também do espaco fora da obra -, se nao estivesse ligado com 0 espaco desse mesmo mundo 8 Objetos cotidianos podem despertar experiéncias estéticas.** Em geral 6 junto a obras de arte que se dé a experiéncia estética. E dificil des- crever o que se sente quando um objeto qualquer ganha valor estético para alguém na vida didria como que salta para fora dela, A poesia 4 A nocdo de experiéncia estética em geral néo é tema deste ensaio. Na parte V, a nogéo sera analisada apenas om relagao a obras de arte. A experiéncia estética dlante de arlefatos ou da natureza toma, porém, a nogdo mais ampla. O papel do espectador é modificado quando a experiéncia estética ndo se dé diante de obras de arte. Ele passa meio & condicdo de artista, embora seus impulsos imitativos e criativos permanecam num estado embrionario. 80 O MUNDO DA OBRA E 0 MUNDO EM COMUM.

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