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KONRAD HESSE Professor da Universidade de Freiburg i. Br., Alemanha Juiz Ex-Presidente da Corte Constitucional Alema Temas Fundamentais do Direito Constitucional TEXTOS SELECLONADOS & TRADUZIDOS POR CARLOS DOS SANTOS ALMEIDA GILMAR FERREIRA MENDES INOCENCIO MARTIRES COELHO 2009 CB Sarsiva t A : 4 Mb prea CONCEITO E PECULIARIDADE DA CONSTITUIGAO Traduzido por INOCENCIO MARTIRES COELHO SUMARIO: I. COLOCACAO DO PROBLEMA. - II. 0 OB- JETIVO DA UNIDADE POLITICA E DA ORDEM JURI- DICA. ~ II. A CONSTITUICAO E SEU SIGNIFICADO PARA. ACOMUNIDADE.~ 1. Conceito.— 2. Estrutura e fungio.—3.A Constitui¢ao como Constituigao escrita, — 4. “Rigidez” e “muta- bilidade” da Constituigao, —5. A “realizagao” da Constituicao. I. COLOCACAO DO PROBLEMA 1, Entender 0 Direito Constitucional vigente implica a com- preensao prévia do seu objeto: a Constituicao. $6 a partir desta com- preensao 0 Direito Constitucional permite identificar os problemas constitucionais, assim como lhes dar resposta adequada. Daf que nao seja apenas a teoria da Constitucional quem deva inescusavel- mente perguntar-se pela Constituicao. Que é a Constituigéo? A direcao para onde deva apontar essa interrogacao acha-se subordinada ao objetivo a ser alcancado por meio do conceito que se trata de obter; por isso, essa direcao pode ser diferente para a teoria da Constituicdo! e para a teoria do Direito ' Assim, por exemplo, em K. LOEWENSTEIN. “Verfassungslehre” (1959), p. I ess. 127 e ss. (traducao para o castelhano de A. Galtego Anabitarte, Teoria de la Consti- tucién, Barcelona, 1965, 2* ed., 1976). 74 TEMAS FUNDAMENTAIS DO DIREITO CONSTITUCIONAL Constitucional. Procurar um conceito abstrato de Constituigao que abarque o que €é comum a todas ou, pelo menos, a um ntimero con- sideravel de Constituigoes historicas, deixando de lado as peculiari- dades de tempo e lugar, pode ter sentido para a teoria da Constitui- cao. Para a teoria do Direito Constitucional, um conceito dessa natureza resultaria vazio de contetido e, também, incapaz de funda- mentar uma compreensao suscetiwel de embasar a solugao de pro- blemas suscitados aqui e agora. A partir do momento em que a nor- matividade da Constituigao vigente nao é senao a de uma ordem historica concreta e a vida a regular senao a vida hist6rico-concreta, a unica questao que tem sentido colocar-se no contexto da tarefa de se exporem os tragos basicos do Diteito Constitucional vigente é a relativa 4 Constitui¢do atual, individual e concreta. 2, Esta questéo nao pode ser resolvida recorrendo-se a um conceito de Constituigao j4 consolidado ou, pelo menos, admitido majoritariamente. Isso porque a_teoria do Direito Constitucional inda esta comecando a explicar o proprio conceito e a peculiarida- le da Constituicao, sem ter alcangado sequer uma “opinido domi- nante”. O fato de que essa teoria, em larga medida, nao esta plena- mente consciente nem do seu objeto nem dos seus fundamentos resulta claro pelo uso freqiientemente acritico de conceitos antigos, desenvolvidos a partir de pressupostos distintos, que, desvinculados dos seus fundamentos, impedem a sua vinculagéo em um todo, ra- 740 por que nao conseguem explicar esse todo”. Com alguns residuos do positivismo juridico-politico e outros das teorias do Estado e da Constituigao da época da Reptiblica de Weimar resulta impossivel fundamentar uma teoria da Constitui¢ao em condigoes de sustentar 0 edificio tedrico dos diferentes institutos constitucionais; menos ainda porque varios pressupostos histéricos da antiga teoria do Di- reito Politico hoje estao desaparecidos, tornando-se necessaria a compreensiao e a elaboragao tedricas de uma problematica nova. ? fr. as visoes de conjunto de Th. MAUNZ, “Deutsches Staatstenni” (23* ed., 1980), p. 30 € ss. ¢ de K, STERN, “Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deuts- chland’, 1 (1977), p. 51 ess. CONCHITO E PECULIARIDADE DA CONSTITUIGAO 3. Nao é de se estranhar, portanto, que onde a ciéncia nado cum- pre a sua funcao es arecedora da jurisprudéncia constitucional, em particular, a dof Tribunal Constituci ‘ederal,\ tampouco ofereca uma resposta conclusiva a questao colocada pela Constituigao. Ade- mais, nao cabe a jurisprudéncia dar resposta direta a essa questao. Para a jurisprudéncia, a compreensao da Constituigdo nao é mais que a base — embora quase sempre muito firme — sobre a qual as diferentes questdes devem ser resolvidas. E possivel que as consi- derag6es configuradoras desse fundo nao se desenvolvam expressa- mente, em toda a sua extensao, nos fundamentos juridicos das sen- tencas, resumindo-se a alguns tracos soltos, fundamentais em cada contexto, e podendo diferir nas duas Salas, ou se modificar confor- me a composigao do Tribunal. Dadas essas limitacGes, a compreensao da | Constituigao pelo Tribunal Constitucional Federal se caracteriza antes de tudo, por, ae per : sari ser uma COmpreensao nao formal, mas(de contetido;|a Constituicao *_BVer{GE 1, 14 (32), jurisprudéncia constante, cf, por exemplo, também BVerfGE 49, 14 (56) com mais referéncias (mantém-se a forma usual de citar a jurispru- déncia do Tribunal Constitucional Federal alemao, segundo a colegao oficiosa editada pelo mesmo Tribunal, “Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts’, abreviadamente “BVerfGE”: o primeiro dos nimeros faz referéncia ao volume da colegao, o segundo a pagina do volume em que se inicia a sentenga ¢ o seguinte ou seguintes as paginas onde estao as passagens sobre as quais se pretende cha- mar a atengao — N. do T)). + Pre. BVerfGE 3, 225 (233); ver, porém, p. ¢., BVerfGE 10, 59 (81). 5 Pe, BVerfGE 4, 144 (148). © Pe. BVerfGE 5, 85 (197, 379). 7 Pe, BVerfGE 1, 299 (314 ss.). Pe. BVerfGE 5, 85 (379); 6, 32 (41); 14, 288 (296). 75 TEMAS FUNDAMENTAIS DO DIREITO CONSTITUCIONAL Essa compreensao geral — mais pressuposta do que demons- trada — da Constituigdo poe em relevo dados essenciais. Mas enfren- 4. Pois bem, se descartamos um conceito de Constituicéo con- solidado ou majoritariamente aceito, nao faltam abordagens essen- ciais tanto por parte da antiga como da nova teoria do Direito Consti- tucional com que vincular 0 conceito de Constituigao a desenvolver-se a seguir, embora como um ponto de partida diverso e uma énfase distinta. Em particular, esse conceito esta préximo do enfoque de R. ; apesar disso, tal como H. Heller, ele o vé como um processo Acha-se proximo da concepsao a lonstitui¢ao . R. Baulin, para quem se trata de um comportamento estabilizador, que precisa de ° Pre, BVerfGE 6, 32 (41); 10, 59 (81); 12, 45 (51); 13, 46 (51); 13, 97 (107); 14, 288 (301); 21, 362 (371 ss.): 27, 253 (283); 30, 1 (19). "© ByerfGE 12, 1 (4); 19, 206 (216); 27, 195 (201). "Pe. BVerfGE 2, 1 (12); 5, 85 (134 ss.); 6, 32 (40 ss.); 7, 198 (205). © Pe. BVerfGE 5, 85 (139); 28, 243 (259). " BVerfGE 2, 380 (401); 3, 407 (422); cfr. igualmente, 7, 342 (351). R. SMEND, “Verfassung und Verfassungsrecht’, em: “Staatsrechtliche Abhan- dlungen” (2" ed., 1968), p. 189. ‘© H. HELLER, Staatslehre” (1934), especialmente p. 228 e ss. (tradugdo para 0 castelhano de L. Tobio, Teoria del Estado, México, 1942). CONCEITO & PECULIARIDADE DA CONSTITUIGAO constante atualizagao sob a idéia do “correto”"*, procurando acentuar a concretizacao individual dos principios substanciais da ordem constitucional, assim como o elemento normativo, a forga vinculan- te da Constituicao e, com isso, o seu carater relativamente estivel ¢ permanente. Neste sentido, aproxima-se da concepgao de W, Kigi da Constituic¢ao como ordem juridica fundamental do Estado"; mesmo assim, procura abarcar com maior intensidade os elementos de his- toricidade, de abertura estrutural, de “dinamicidade”. Finalmente, existe uma coincidéncia substancial com a concep¢ao da Constitui- ao de H. Ehmke da Constituigao como limitagao e racionalizagio do poder e como garantia de um livre processo da vida political’, mas intentando tornar mais visiveis as singularidades da Constituigio«s- crita e sua transcendéncia. Ademais, cumpre atentar também, sob muitos aspectos, as abordagens da moderna Teoria do Estado e da Constituicao”. © R.R. BAUMLIN, “Staat, Recht und Geschichte” (1961), p. 24 e passim; cia respeito, K. HESSE, Juristenzeitung, 1963, p. 485, ” W, KAGI, “Die Verfassung als rechtliche Grundordnung des Staates’ (195), p.d0ess. * H. EHMKE, “Grenzen der Verfassungsinderung” (1953), em especial p.88¢ss; idem. “Prinzipien der Verfassungsinterpretation’, em “Verdffentlichungen der Vereinigung der deutschen Staatsrechtsleher”, 20 (1963), p. 61 ess. © Devem mencionar-se em particular: U. SCHEUNER. “Das Wesen des Sts und der Begriff des Politischen in der neueren Staatslehre”, em “Staatsverfssing und Kirchenordnung, Festgabe fitr R. Smend zum 80. Geburtstag” (1962), p.25 ¢ 88. idem, voz “Verfassung”, em “Staatslexikon” 8 (1963), col. 117 es idem, toe “Staat’, em “Handworterbuch der Sozialwissenschaften” 12 (1965), p. 633 ¢; H. KRUGER, voz “Verfassung’, em “Handworterbuch der Sozialwissenschi- ten” 11 (1961), p. 72 ¢ ss.; idem, “Allgemeine Staatslehre” (2* ed., 1966); P. B- DURA, voz “Verfassung”, em “Evangelisches Staatslexikon” (2° ed,, 1975), co. 2707 e ss. idem, “Verfassung und Verfassungsgeset2’, em: “Festschrift fr Ulich Scheuner” (1973), p. 19 ¢ ss; A. HOLLERBACH, “Ideologie und Verfassung, em “Ideologie und Recht’, ed. de W. Maihofer (1968), p. 37 ss. 8. HERZ0G, “Allgemeine Staatslehre” (1971), em especial p. 308 e ss. D. GRIMM, “Vers sungsfunktion und Grundgesetzreform’, em Archiv des offentlichen Rechts, 7 (1972), p. 489 e ss5 E. W, BOCKENFORDE, “Die verfassungstheoretische Ut terscheidung von Stat und Gesellschaft als Bedingung der individuellen Fete” (1973); J. P. MULLER, “Soziale Grundrechte in der Verfassung?, em “Refewe und Mitteilungen des Schweizerischen Juristenvereins’, 107 (1973), p.715ess 77 78 TEMAS FUNDAMENTAIS DO DIREITO CONSTITUCIONAL Il. O OBJETIVO DA UNIDADE POLITICA E DA ORDEM JURIDICA 7 5. O que seja cope no sentido da pergunta aqui sus- citada e delimitada, € algo que s6 pode ser meee partir da ta refa eda fungao da Constitui¢do na realidade da vida hist6rico-con- creta, ye aparecem eee unidade politica a eran juridica. 6.0 objetivo a perseguir é a unidade politica do Estado”, porque Estado e poder estatal nao podem ser dados por suposto, como algo preexistente, Eles s6 adquirem realidade na medida em que sc conse- gue reduzir a uma unidade de atuagao a multiplicidade de interesses, de aspiragoes e de formas de conduta existentes na realidade da vida humana, na medida em que se consegue produzir unidade politica. Esta redugao a unidade da multiplicidade jamais se conclui, de tal modo que se possa, sem mais, pressup6-la existente, antes se consti- tuindo num processo continuo e, por isso mesmo, posto sempre como objetivo. E um objetivo que vem imposto no sentido de que a convi- véncia humana sé € possivel no Estado e através do Estado. O simples fato de que o conceito central de “producao da uni- dade politica” aponte para um processo histérico concreto ja signi- fica que nao se trata da unidade esttica e abstrata de uma imagindria pessoa juridica “Estado”. Assim como nao se refere a uma — pressu- posta ou pretendida — unidade substancial nacional, religiosa, ideo- légica ou de que tipo for, e tampouco a uma unidade baseada na comum experiéncia existencial (Erlebniseinheit), por mais que ele- mentos desse género possam operar com forga unificadora. Pelo contrario, a unidade politica que deve ser constantemente persegui- da e alcangada no sentido aqui adotado é uma unidade de atuagao possibilitada e realizada mediante 0 acordo ou 0 compromisso, pelo * Gf. a respeito também BAUMLIN (cit. n. 16), em especial p. 18 e ss.; SCHEU- NER (cit. n. 19) “Handwérterbuch der Sozialwissenschaften’, 12, p. 656; idem, “Festgabe fiir R. Smend”, p. 255; idem, “Konsens und Pluralismus als verfassun- gsrechtliches Problem’; em “Rechtsgeltung und Konsens” (1976), p. 33 e ss, CONCEITO E PECULIARIDADE DA CONSTITUIGAO assentimento tacito ou a simples aceitagado e respeito, se for ocaso, até mesmo por coer¢ao com resultado positivo; numa palavra, uma unidade de tipo funcional, que é condigao para que, dentro de determi- nado territ6rio, se possam adotar e fazer cumprir decisées vinculantes, para que, afinal, exista “Estado”, e nao anarquia ou guerra ci 7. “Formagao da unidade politica” nao significa a produgao de um harménico estado de coincidéncia geral e em nenhuma hipotese a eliminagao das diferengas sociais, politicas ou de tipo institucional e organizativo, através da nivelagao total. Essa unidade é inimagindvel sem a presenca e a relevancia dos conflitos na convivéncia humana. Os conflitos evitam a rigidez, o estancamento em formas superadas; sao — embora sem exclusividade — a forca motriz sem a qual nao ha- veria mudanga histérica”. A auséncia ou a repressao dos conflitos pode conduzir ao imobilismo, que sup6e a estabilizacao do existente assim como a incapacidade para se adaptar a novas circunstancias e a produzir formas novas: chega, entao, um dia em que a ruptura com que existe se torna inevitavel, e 0 choque ainda mais profundo. Assim, nao é importante apenas que haja conflitos mas também que este: surjam regulados e resolvidos, Nao é 0 conflito enquanto tal que con: tém a forma nova, mas 0 resultado a que ele conduz. Em si mesmo, conflito nao permite o viver e o conviver humanos. Por isso, o proble- ma nao esta tanto em abrir espaco para o conflito e os seus efeitos, quanto em garantir — nao, em termos definitivos, por conta do tipo d regulacdo dos conflitos — a formagiio e a preservagao da unidade poli tica, sem ignorar ou reprimir 0 conflito em nome da unidade politica e sem sacrificar a unidade politica em nome do conflito. 8. No passado, essa unidade poderia parecer algo evidente (embora fosse, aquela época, uma unidade historica, conseguida, defendida, preservada e consolidada tanto em face do interior quanto do exterior), de +R, DAHRENDORE, “Die Funktionen sozialer Konflikte”, em “Gesellschaft und Freiheit” (1961), p. 112 e ss.; idem, “Elemente einer Theorie des sozialen Kon- fikts”, ibid., p. 197 e ss5 idem, “Gesellschaft und Demokratie in Deutschland” (1965), p. I7Le ss. 80 TEMAS FUNDAMENTAIS DO DIREITO CONSTITUCIONAL, num contexto de relagées vitais relativamente constantes e de crenga em ordens de validade geral, racionais, situadas acima da Hist6ria; por isso, podia servir-lhe a teoria do Direito politico como ponto de partida de uma compreensao estatica, que via o Estado como um ente substantivo existente em si e para si, perguntando-se apenas como devia ser concebido esse ente (por exemplo, como “organismo ético” ou como “dominio ético” na teoria do Direito politico do sé- culo XIX, ou na formalizacao e esvaziamento da teoria positivista do Direito politico da passagem do século enquanto pessoa juridica), enquanto a sua existéncia mesma estava acima de qualquer divida. O desenvolvimento cientifico, técnico e industrial, o simultaneo aumento da popula¢ sim como o conseguinte e crescente adensamento e mutagao das relacoes vitais ocasionarai if o, din onfigu azendo surgir com intensidade crescent a tare da “busea existence”, assim como acompreensio de que a seguridade e a assisténcia sociais, em dimensdes ® BAUMLIN (cif. n. 16), p. 8 ¢ ss. embora reforcando notavelmente 0 aspecto processual-dindmico (p. 13, 38 ¢ passim). 2 Bsteconceito foi cunhado por E. FORSTHOFF (“Die VerwaltungalsLeistungstrager” (1938), agora recolhido resumidamente em “Rechtsfragen der leistenden Verwal- tung”, 1959, p. 22 e ss.) e designa a provisio de servigos (por exemplo, eletricidade, CONCEITO E PECULIARIDADE DA CONSTITUIGAO cada vez maiores, constituem tarefa do Estado. Na medida em que, econdmicos rivais surgidos no curso desse processo, assim como resul- ta modificada a natureza dos enfrentamentos politicos. Se até o presen- te os grupos sociais haviam desenvolvido os seus antagonismos fora ou por baixo do marco firme da ordem estatal, agora dirigem as suas aspi- racGes e expectativas diretamente ao poder politico e ao seu centro, 0 Estado governante e administrador™. Se até o momento a luta politica tinha sido coisa de setores sociais restritos, a partir de agora ela é assu- mida pelas massas as quais 0 sufragio universal abre a possibilidade de exercer influéncia. o senhor. 0, ois, a totalidade) c 10. Assim, pois, s6 na medida em que se cumpre a tarefa de formar e preservar a unidade politica o Estado torna-se uma realida- de existente, como conexao unitaria de atividade e atuacao. O Esta- do s6 pode ser compreendido na medida em que 0 entendamos sob essas duas dimensGes: como uma unidade que deve ser constante- mente criada, preservada e consolidada e como atividade e atuagao dos “poderes” constituidos sobre essa base. gua, meios de transporte etc., que hoje so vitais tanto para o individuo como para a comunidade ¢, por isso, converteram-se em tarefa para a Administracao Publica; isso suscita, junto a problematica tradicional da garantia da liberdade individual frente a intervengdes ilegais, o problema da garantia da participacdo em tais prestagses. *_U. SCHEUNER, “Festgabe fiir R. Smend” (cit. n. 19), p. 251; P. VON OERTZEN, “Die soziale Funktion des staatsrechtlichen Positivismus. Eine wissenssoziologis- che Studie tiber die Entstehung des formaliscischen Positivismus in der deuts- chen Staatsrechtswissenschaft” (1974), p.305. 81 82 TEMAS FUNDAMENTAIS DO DIREITO CONSTITUCIONAL Ambas as dimensoes sao, a esse respeito e de varias maneiras, mutuamente interdependentes, pois tanto 0 contetido quanto 0 éxi- to da atividade dos poderes estatais dependem do éxito da formagao da vontade politica. Esta, por sua vez, depende do contetido e do éxito que, em grande parte, sao condicionantes da adesao e do apoio de que o Estado possa encontrar, razao por que 0 rumo e os instru- mentos da atividade estatal devem orientar-se, em boa medida, para a adesdo ou 0 apoio existentes, ou para aqueles que é cabivel esperar. Quando, f 0, se util a o conceito de “unidade politi- lidade da convi- 5 le se perguntar, A esse respeito, a concepgao tradicional parte da distingao en- tre ” e “Soci , situando 0 Estado como uma unidade dada ea Sociedade como uma pluralidade dada, um em face do ou- tro e sem relagdo alguma. Esti rafzes no pensamento lil « excluida em boa parte da determinagao e conformagao politi- , cuja vida basicamente vin la, enquanto 0 “Estado” 86 tinha de garantir os pressupostos de um processo submetido as suas proprias leis, intervindo apenas em caso de perturba¢ées. avés da cooperacao social. Também a vida social se acha em relagao mais ou menos estreita com a vida estatal no processo de CONCEITO E PECULIARIDADE DA CONSTITUIGAO formagao da unidade politica. A importancia atual do Estado para a vida econémica e social, assim como a influéncia “social” sobre a atividade estatal, inclusive a participagao “social” no Estado excluem uma contraposi¢ao desprovida de alguma relagao. Dai, pois, que o par de conceitos “Estado” e “Sociedade” seja incapaz de expressar adequadamente tal relacao”*. Outra coisa se da quando a distingao € entendida como expressao de uma diferencia- ¢ao funcional’*; pois bem, ha que se evitar trasladar para 0 presente residuos da concepgao anterior. A expressiva diferenciagéo entre “comunidade politica” como a “associacgao global” e “government” como denominagao sintetizada das instituigdes de formagao da opi- niaio e da vontade politicas, das instituicdes de diregao, coordenacao e governo dentro da associacao global” obrigaria, no contexto das exposicdes dos tragos fundamentais do Direito Constitucional vi- significado dificilmente determindvel. Dai que a diferenciagao entre © estatal e o nao-estatal no seio da colaboracao humana dentro do territério do Estado deva ser expressada empregando-se 0 conceito de “Comunidade” (Gemeinwesen) referido aos dois, enquanto o conceito de “Estado” fica reservado para 0 conceito mais restrito de atividade e atuagao dos poderes constituidos através da formagao de unidade politica. “Unidade politica’, “Estado” e “Comunidade” sao empregados, portanto, como denominagées das diferentes conexdes de atuagao que, em boa medida, sao realizadas pelas mesmas pessoas, razao por que nao devem ser entendidos na forma de uma justapo- sigdo isolada, e sim como “ambitos”, para uma compreenséo me- Thor. A esse respeito resulta evidente que uma determinagado terminolégica desse tipo, condicionada pela tarefa apresentada, da mesma forma que os aspectos antes desenvolvidos, nao pode ficar ® H. EHMKE, “‘Staat’ und ‘Gesellschaft’ als verfassungstheoretisches Problem’, em “Staatsverfassung und Kirchenordnung. Festgabe fiir R. Smend zum 80. Ge- burtstag” (1962), p. 24 e ss. % Assim, basicamente, em BOCKENFORDE (cit. n. 19), p. 21 € ss. ” EHMKE (cit. n. 25), p. 45. 83 TEMAS FUNDAMENTAIS DO DIREITO CONSTITUCIONAL mais do que rascunhada, tendo-se de renunciar ao tratamento de questdes essenciais dessa problematica’’, a lente e, portanto, ir a uni politica. Pois bem, dado que e da unidade politica é um processo permanente, ele mes- mo necessitaré de uma ordenagao, se nao quiser ficar deixado ao __ acaso de lutas de poder carentes de regras; do mesmo modo, o Esta- do, a fim de que os seus poderes se fagam operativos, necessita de que se constituam esses poderes, dotando-os de organizacao, assim S como, para cumprir suas tarefas, de algumas regras de procedimen- to: a coopera¢ao organizada e processualmente ordenada exige uma ordem juridica, mas, veja-se bem, nao uma ordem juridica qualquer, mas uma ordem juridica que assegure 0 éxito dessa cooperagao cria- dora de unidade, assim como a realizagao das tarefas estatais, elimi- A nando-se 0 abuso das atribuicdes de poderes concedidas ou admiti- das como necessarias para 0 cumprimento dessas tarefas, ficando bem entendido que tal garantia e assegura¢ao nao é sé uma questao de estabelecimento de normas, mas, principalmente, de atualizacdo da ordem juridica, (1. Mais ainda, a ordem juridica se apresenta como algo a ser alcangado num sentido mais amplo. A Comunidade necessita dessa ordem porque sem ela a convivéncia humana nao seria possivel, so- bretudo numa situacio como a dos nossos dias, que impée a neces- * Uma exposigao mais ampla destas idéias em K, HESSE, “Bemerkungen zur heuti- gen Problematik und Tragweite der Unterscheidung von Staat und Gesellschaft” Die dffentliche Verwaltung, 1975, p. 437 e ss. (agora também recolhido em “Stat und Gesellschaft’ ed. de E. W. Bokkenfésrde, Darmstadt, 1976, p. 484-502. N.doT.)s cfr. igualmente em W, SCHMIDT, “Die Entscheidungsfretheit des einzelnen zwis- chen staatlicher Herrschaft und gesellschafilicher Macht”, Archiv des affentlichen Rechts, 101 (1976), p. 24e ss. HELLER (cit. n. 15), p.88 ¢ ss. ¢ 228 e ss; BOCKENFORDE (cit. n. 19), p. 24 ss. 84 CONCEITO F PECULIARIDADE DA CONSTITUIGAO sidade de uma ampla ordenacao e coordena¢io material das relagoes e dos ambitos da vida econémica e social. Assim como ocorre em relacao ao Estado, essa ordem nao é algo que preexista num Direito desligado da existéncia e da atividade humanas, situado acima da Historia, existente em si e por si, e tampouco é alguma coisa preexis pecto, sio critérios da sua “retidao” a tradicao acreditada, mas tam- bém o seu oposto, isto é, aquelas experiéncias histéricas que mostra- ram 0 que nao é “reto” e, portanto, nao deve ser considerado Direito, e, conexos a isso, os principios juridicos que se formaram e se confir- maram através da experiéncia histérica das geragdes passadas, bem como os modelos da geragao atual em face do presente e do futuro. 15. A fim de poder condicionar a conduta humana, esse Direito histérico, por principio, precisa de “aceitagao’, a qual, por sua vez, repousa no acordo basico sobre 0 cumprimento dos contetidos ue ordem juridica — inclusive onde a aceitac4o s6 expressa 0 reconheci- mento do cardter vinculante das normas juridicas, mas nao o seu livre acolhimento. Este consenso basico nao garante, necessariamente, a ® BAUMLIN (cit. n. 16), p. 17. 85 86 TEMAS FUNDAMENTALS DO DIREITO CONSTITUCIONAL “retidao’, e sim a manuten¢ao duradoura da ordem juridica. Onde falta aquele assentimento, pode ser que a coacao autoritaria ocupe o seu lugar, mas nao sera capaz de fundamentar uma ordem juridica como algo a se realizar. Ill. A CONSTITUICAO E SEU SIGNIFICADO PARA A COMUNIDADE 1, Concerro 16, Nao cabe, portanto, partir-se nem de um Estado preexisten- te, independente da agao humana, nem de um Direito com esse mes- mo carater, mas apenas dos propésitos expostos, aos quais deve corres- ponder, necessariamente, uma ordem constitutiva — a Constituicao. 17. A Constituicao é a ordem juridica fundamental da Comu- nidade. Ela fixa os principios diretores com relagao aos quais deve-se produzi a unidade politica e assumir as tarefas do Estado. Contém os procedimentos para resolver os conflitos no seio da Comunidade. Regula a organizacao e o procedimento de producao da unidade po- litica ¢ de atuagao estatal. Cria as bases ¢ determina os principios da ordem juridica em seu conjunto. Nisso tudo, a Constituigio é 0 “plano estrutural basico, orientado por determinados principios, que dao sentido a conformagao juridica de uma Comunidade”. 18. Enquanto ordem juridica fundamental da Comunidade, a Constituigao nao se limita a ordenar a vida estatal. Suas normas compreendem também — de forma especialmente clara em garan- tias como as do matriménio e da familia — as bases de ordenagao da vida nao-estatal. Dai que o Direito “Constitucional” se estenda, por um lado, para além do Direito “politico” (Staatsrecht), que, tanto em virtude do objeto quanto do significado literal, refere-se apenas ao Direito do Estado; e, por outro, que os seus limites sejam mais +! HOLLERBACH (cit. s. 19), p. 46, (Sobre a tradugao de Gemeiwesen por “Comu- nidad’, vid, supra nota introdutoria n. 26.) CONCEITO E PECULIARIDADE DA CONSTITUIGAO estreitos, porque 0 Direito “politico” abarca Direito do Estado nao imputavel & ordem fundamental da Comunidade, como 0 Direito Administrativo ou o Direito Processual®’ Os conceitos, portanto, s6 em parte sao idénticos. Dado que a Constituigao estabelece os pres- supostos da criacao, vigéncia e execucdo das normas do restante do ordenamento juridico, determinando amplamente o seu contetido, ela vem a se converter em fator de unidade do ordenamento juridico da Comunidade em seu conjunto, no seio da qual impede nao s6 0 isolamento do Direito Constitucional em relagao aos outros ramos do Direito como também a existéncia isolada dos distintos setores do Direito entre si. 2. EsTRUTURA E FUNCAO 19. As normas da Constituigdo nao sao completas nem perfei- tas. Embora intimeras questes referentes 4 ordem estatal estejam minuciosamente reguladas, muitos outros setores, inclusive da vida estatal em sentido estrito, acham-se regulados por disposigées de contetido relativamente amplo, ¢ alguns nem sequer sdo objeto de qualquer regulacao. 20. A Constituigao, portanto, nao é ordenagao da totalidade da cooperacao socioterritorial (gebietsgesellschaftliches. Zusammenwi- rken), que, a seu turno, nao € simples “execu¢ao constitucional”. Isso nao significa que esse jogo global esteja % Passagens como esta evidenciam a relativa incorrecao da tradugao do termo Staats recht por “Direito politico”, a qual, sem embargo se manteve, de resto, na falta de um termo mais aproximado. —N. do T. 87 TEMAS FUNDAMENTAIS DO DIREITO CONSTITUCIONAL nesse sentido, como unidade *, e temos presente que 0 Direito Cons- titucional acha-se orientado muito mais no sentido da'€oordeiagao do que para o deslinde e a demarcagao™. tebe" — e muitas vezes s6 de forma pontual e em termos gerais — aquilo que parece importante e precisa ser determi- nado; tudo o mais da-se por suposto, tacitamente, ou se deixa para 9 restante do ordenamento juridico conformar e concretizar. Dai | que de antemao a Consttuigao to pretenda ser sent de lncunas¢ [=i 22. Mas a Constituicéo também pode ter interesse em nao submeter a normas juridicas certos Ambitos vitais ou, se os regular, fazé-lo apenas sob alguns aspectos; determinadas questdes, como a “constitui¢ao econdmica’, por exemplo, a Constituicao deixa pre- tensamente abertas, para a seu respeito ensejar discussao, decisdo e configuracao’ i i alhada regulacao juridica ou o sao apenas com dificuldade, nao se afastando a hipétese de que, nestes casos, 0 que se pretenda, antes de tudo, seja preservar a liberdade de configuracao. 23, Finalmente, coincidindo parcialmente com essas razdes BYerfGE 1, 14 (32), jurisprudéncia constante; ft. também BVerfGE 49, 24 (56) com mais referencias. BAUMLIN (cit. n. 16), p.27 ¢ passim; EHMKE, “Prinzipien der Verfassungsinterpretation (cit. n. 18), p. 77 e ss.; U. SCHEUNER, “Veroffen- tlichungen der Vereinigung der deutschen Staatsrechtslehrer”, 20 (1963), p. 125 ico, FE. MULLER, “Die Einheit der Verfassung” (1979), em e ss.; em sentido cr especial p. 225 e ss H, KRUGER, “Verfassungswandlung und Verfassungsgerichtsbarkeit’, em “Staats verfassung und Kirchenordnung. Festgabe fiir R. Smend zum 80. Geburtstag” (1962), p. 159. * Cf BVerfGE 50, 290 (336 ss.) com mais referencias. 88 CONCEITO E PECULIARIDADE DA CONSTITUIGAO enquanto tal, submetida a mudangas histéricas. Essa mutabilidade caracteriza particularmente as relagGes existenciais reguladas pela Constituigao. Dai que sé ao prego de freqiientes reformas constitu- cionais possa o Direito constitucional fazer-se preciso, evidente e previsivel. Se a Constituigao quer ensejar a resolugao das muiltiplas situagées criticas historicamente mutantes, seu conteido tera de permanecer, necessariamente, “aberto ao tempo”**. 24, Esta amplitude e indeterminacgado da Constituigéo nao su- poe, entretanto, sua dissolucaéo numa dinamica absoluta em razao da qual a Constituicao se tornasse incapaz de orientar a vida da Comu- nidade. A Constituigdo nao se limita a deixar em aberto, antes esta- belece, com forga vinculante, aquilo que nao deve ficar em aberto. 25. Nao devem restar indeterminados os fundamentos da ordem da Comunidade. Ao estabelecer-se, com cardter vinculante, tanto os principios que regem a formacao da unidade politica e a fixagaéo das tarefas estatais, quanto as bases do conjunto do ordenamento juridi- co, tais fundamentos devem ficar subtraidos a luta constante dos gru- pos e tendéncias, criando-se um nticleo estavel do que ja nao se discu- te, que nao é discutivel e, por isso mesmo, nao precisa de novo acordo e nova deciséo. A Constituicdo pretende criar um nticleo estavel da- quilo que deve considerar-se decidido, estabilizado e distendido. 26. Porém tampouco devem restar indeterminados a estrutura estatal e 0 procedimento através do qual hao de se resolver as ques- toes deixadas em aberto. 27. Por isso, a Constituisao institui Grgdos aos quais se con- fiam, segundo o seu cardter objetivo, tarefas estatais de ambitos dis- tintos, determinados e delimitados, assim como as atribuigdes de poder necessarias 4 adequada assun¢ao dessas tarefas. A Constitui- ao funda competéncias, criando, assim, no ambito dos respectivos desideratos, poder estatal como for de direito. Procura regular a * BAUMLIN (cit. n. 16), p. 15. Basico para a significagao de “publico” para a Cons- tituigdo: P., HABERLE, “Offentlichkeit und Verfassung’, Zeitschrift fiir Politik, 16 (1969), p. 273 ess. 89 90 TEMAS FUNDAMENTAIS DO DIRELTO CONSTITUCIONAL composi¢ao e conformacao dos distintos érgaos de modo que cor- responda a natureza das suas tarefas, garantindo, assim, a adequada assuncao das respectivas tarefas. Coordena as diferentes fungdes en- tre si, tratando de conseguir, por essa forma, que elas se comple- mentem mutuamente, que se garantam a cooperagao, a responsabi- lidade e 0 controle, e se evite abuso de competéncias. 28. Além dessa regulacao da estrutura estatal, a Constituigao de- termina os procedimentos que devem possibilitar a resolugao de con- flitos, procedimentos através dos quais hé de se desenvolver 0 proces- so de formagao de unidade politica e por meio dos quais a decisao das questées em aberto submeta-se a regras claras, compreensiveis e, quanto possivel, asseguradoras de um resultado adequado. A impor- tancia dessas prescriges é tanto maior quanto mais aberta se mantém a Constitui¢ao em suas determinagées de contetido, porque, acima da necessdria abertura material em face de objetivos diferentes, se estabe- lece, nao obstante, uma forma estavel para a consecugio desses obje- tivos, alcancando-se, assim, aquele efeito estabilizador” e de distensao indispensavel para uma abertura de contetido. 29. Tanto pelo que deixa quanto pelo que nao deixa em aberto, a Constitui¢ao produz esses efeitos, em que se resume a sua fungao na vida da Comunidade. 30. O Direito Constitucional cria regras de ago e de decisao politicas; proporciona diretrizes e pontos de orientagao para a poli- tica, mas sem poder substitu-la. Por isso, a Constituicdo deixa espa- ¢0 para a atuagao das for¢as politicas. Quando ela nao regula nume- rosas questoes da vida politica, ou o faz apenas em linhas gerais, isso. nao deve ser visto apenas como uma rentincia a essa regulacao ou tampouco como um remeter dessa tarefa ao processo de atualizagao e concretizacao, mas também, para além disso, como uma atitude constitucional em prol da livre discussdo e da livre decisao dessas questdes. Que essa liberdade nao possa converter-se num sistema fr. a respeito, também, BAUMLIN (cit. n. 16), p. 43; H. KRUGER. “Allgemeine Staatslehre” (cit. n. 19), p. 197 e ss., 835. CONCEITO E PECULIARIDADE DA CONSTITUIGAO fechado, que impega a atuacado de diferentes forgas, é algo que a Constituicéo procura assegurar mediante distintos tipos de prescri- c6es materiais, organizativas e processuais, cuja fungao nao consiste apenas nessa garantia. 31. Por meio das suas prescricdes materiais, das relativas a es- trutura estatal e a regulagao constitucional do processo de formagao de unidade politica e de atua¢ao do Estado, a Constituigao cria uni- dade estatal, dé forma a vida da Comunidade, assegura continuidade supra-pessoal™, com © conseqiiente efeito estabilizador. Ao mesmo tempo, permite entender e compreender a formagao de unidade po- litica e a atuacao estatal, torna possivel a participagao consciente, protege de recaida no informe e indiferenciado®, com a conseguinte eficdcia estabilizadora. Através da ordenagao do processo de forma- 40 de unidade politica; da instituigao, sempre limitada, de atribui- gOes de poderes estatais; da regulacdo processual do exercicio dessas atribui¢des; e do controle dos poderes estatais, a Constituicao intenta limitar o poder estatal e prevenir 0 abuso desse poder. Nessa fungao de possibilitar e garantir um processo politico livre, de constituir, de estabilizar, de racionalizar, de restringir 0 poder e, nisso tudo, de as- segurar a liberdade individual reside a peculiaridade da Constitui¢ao. A ConstiTUuIcAo COMO CONSTITUIGAO ESCRITA 32. O efeito estabilizador e racionalizador da Constituigao se reforca quando ela é uma Constitui¢ao escrita. Quando o seu contetido estd recolhido num documento, isso tem o mesmo sentido de qualquer certificagao documentak: sobre o que esta escrito deve existir clareza e certeza juridicas. E certo que muitas dessas determinagées em forma escrita dao margem a enten- dimentos distintos, sobretudo quando necessitam de uma concreti- zacao mais precisa. Porém, ao captar o contetido da Constituigao em 8 SCHEUNER, “Handworterbuch der Sozialwissenschaften’, 12 (cit. n. 19), p. 658. ” M. IMBODEN, “Die Staatsformen” (1959), p. 110 ess. 91 92 TEMAS FUNDAMENTAIS DO DIREITO CONSTITUCIONAL um documento que ha de ser interpretado com os meios de inter- pretacao de textos, a Constituicao limita as possibilidades de enten- dimentos diferentes (vid. infra namero marginal 77 ¢ seguintes), ministrando pontos de referéncia firmes para a sua atuacdo e con- cretizagao. Com isso, se fixam nesse texto escrito determinagdes que elevam, consideravelmente, 0 efeito estabilizador, racionalizador e assegurador da liberdade que possui a Constituigao. 33. Esta intengao fracassa quando se deixa de considerar a Constitui¢ao escrita como estritamente vinculante. Quando o juize, com 0 mesmo direito, o politico ou qualquer outro — hoje, nao raro, a partir de um mal compreendido reptidio da concep¢ao positivista do Direito — acreditam poder impor-se a Constituic¢ao escrita, é Possivel que as solug6es obtidas dessa forma sejam, em alguns casos, mais adequadas do que as alcangadas com uma interpretacao mais literal do texto da Constituigao. Com isso, no entanto, fica aberto 0 caminho para que se deixe de lado a Constituigao com a simples invocacio de qualquer interesse aparentemente mais elevado, mas cuja superioridade, com toda a certeza, seré posta em questdo. A idéia basica da Constituigao escrita vé-se, entao, substituida por uma situacdo de inseguranga criada pela luta constante de forcas e opinides que, em sua argumentacao, nao dispdem de uma base co- mum de referéncia. 34. A vinculagao 4 Constituicao escrita nao exclui um Direito constitucional nao escrito", porque tampouco a sua fixagéo num documento constitucional converte a Constituicao num sistema “sem lacunas”; pelo contrario, ela precisa ser completada por inter- médio de um Direito Constitucional nao escrito, 0 qual, no entanto, Por causa de sua funcao apenas complementadora, jamais pode sur- gir e manter-se desvinculado da Constituigao escrita, antes se apre- Sobre isto (divergindo em parte da opinido mantida no texto), H. HUBER, “Pro- bleme des ungeschriebenen Verfassungsrechts”, em “Rechtsthcorie, Verfassun- gsrecht, Volkerrecht” (1971), p. 329¢ ss. Sobre a problematica do Direito Const tucional consuetudinério: Chr. TOMUSCHAT, “Verfassungsgewohnheitsrecht? Bine Untersuchung zum Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland” (1972). CONCEITO E PECULIARIDADE DA CONSTITUIGAO, sentando, sempre, sob a forma de desenvolvimento e aperfeigoa- mento dessa mesma Constituicdo e em conformidade com os seus principios*'. A fungao da Constituicao escrita impede qualquer im- posicdo ao Direito Constitucional em nome de um Direito Consti- tucional nao escrito. 35, Essa primazia da Constituicao escrita, entretanto, nao a con- verte na ultima fonte do Direito. Como Constituigao escrita, ela cria legalidade necessariamente, mas nao necessariamente legitimidade, embora em sua legalidade ja esteja subjacente um elemento — nao raro esquecido — de legitimidade. Além disso, a Constituicao deve sua legitimidade ao acordo em torno do seu contetido ou, pelo menos, a seu respeito. No entanto, nem mesmo o mais completo acordo é ca- paz de excluir a possibilidade de uma contradi¢ao entre a Constitui- ¢Ao € os mais elevados principios do Direito como ultimo fundamen- to da legitimidade, cuja for¢a obrigatéria, entretanto, nao pode ser constatada senao pela consciéncia juridica. Por isso, embora possam fundamentar um direito de resisténcia, em razéo mesmo dessa con- tradicdo nao podem adotar a forma de legalidade da Constitui¢ao. 4, “RiGipez” E “MUTABILIDADE” DA CONSTITUIGAO 36. Dado que a Constituicgao engloba as caracteristicas de abertu- rae amplitude de uma parte com a presenca de disposigées vinculantes de outra, € claro que o ponto decisivo reside precisamente na polarida- de desses elementos. Dai que a questao acerca da “rigidez” ou “mobili- dade” da Constituicao nao se ponha em forma alternativa, mas, antes, como um problema de coordenacao “correta” desses elementos. 37. Para que a Constituigao possa cumprir seu desiderato, sio necessdrios ambos os caracteres: os de abertura e de amplitude, porque * BVerfGE 2, 380 (403). Resulta, no entanto, equivoco que o Tribunal Con: cional Federal busque os fundamentos do Direito constitucional nao escrito na “imagem de conjunto preconstitucional” do constituinte, a qual, 20 vincular € manter unidos os preceitos da Constituig40, converte-se precisamente na nica imagem de conjunto constitucionalmente vinculante. 93 ‘TEMAS FUNDAMENTAIS DO DIREITO CONSTITUCIONAL 86 eles permitem responder a mudanga histérica, assim como a di- versidade das situacdes existenciais; as disposicoes vinculantes por- que sua virtude estabilizadora possibilita essa relativa constancia que preserva a vida da Comunidade de dissolugao numa mudanga continua, incontida e incontrolavel. A coordenagao de ambos os elementos é necesséria para que os dois possam cumprir sua missao, O persistente nao pode converter-se em obstéculo onde 0 movi- mento € 0 progresso se impdem, pois, do contrario, a mudanga se produz 4 margem da norma juridica. O mutante, por sua vez, nao deve eliminar a virtude estabilizadora das di isposi¢des vinculantes, sob pena de nao se cumprir 0 desiderato da Constituicdo, como or- dem juridica fundamental da Comunidade. 38. $6 num segundo plano aparece o problema da “rigidez” ou da “mutabilidade” da Constituicao (por exemplo, sob a forma de requisitos de maiorias qualificadas, de referendo de ratificagéo ou, também, de exclusao de certas reformas) como um problema de re- visdo constitucional, 0 qual s6 se manifesta onde a amplitude e a abertura da Constituigdo nao sao capazes de dar resposta aos pro- blemas suscitados por uma situacdo determinada. A esse ponto se chegara tanto mais depressa quanto mais estritas e detalhadas sejam as disposigoes materiais da Constituigio. 39. Por “revisao constitucional” entende-se aqui, exclusivamen- te, a revisao do texto da Constituicao, devendo-se distingui-la da “ruptura constitucional” (Verfassungsdurchbrechung), quer dizer, da nao observancia do texto numa hip6tese determinada (sem modifica- G40 do texto), como se admitia na pratica politica da Reptiblica de ‘Weimar, desde que se alcangassem as maiorias exigidas para a refor- ma da Constituicdo. Finalmente, a “revisdo constitucional” deve ser distinguida da “mutagao constitucional” (Verfassungswandel), que nao afeta o texto enquanto tal — que permanece inalterado —,e sim a con- cretizagao do contetido das normas constitucionais. Com efeito, dada a amplitude ea abertura das normas constitucionais, estas podem le- var a resultados distintos em face de supostos mutaveis (numero mar- ginal 45 e seguintes), operando, neste sentido, uma “mutagao” A pro- CONCEITO E PECULIARIDADE DA CONSTITUICAO, blematica da revisdo constitucional comega onde terminam as possibilidades da mutacao constitucional. 40. Se se dificultam as reformas constitucionais numa Consti- tui¢ao que deixa pouco espago para a mutagao, entao resulta efetiva- mente correto falar-se de uma Constituigao “rigida”; embora 0 con- tetido das disposigGes constitucionais, neste caso, esteja determinado com relativa precisao, dificilmente a Constituigdo estara em condi- ao de cumprir seu desiderato na realidade histérica da vida da Co- munidade. A situagdo nao é muito melhor quando uma Constitui- ¢4o que deixa pouco espaco para a mutagdo se torna “médvel’, possibilitando sua reforma a qualquer momento e sem obstaculos. E certo que esta solugdo compatibiliza uma mais rapida adaptagao, com maior precisao do texto, mas tampouco nesse caso pode a Constituigéo cumprir a sua misséo como ordem juridica funda- mental da Comunidade, porque fica privada de um aspecto essen- cial, de sua virtude estabilizadora. Diversamente, atende-se a idéia e ao contetido da Constituigéo quando se deixa espago para a muta- Gao constitucional nos limites tragados no texto, ao mesmo tempo em que se criam obstaculos para a reforma constitucional. Tal solu- Gao opera simultaneamente essa relativa clasticidade ¢ essa relativa estabilidade, necessdrias a0 adequado cumprimento de seu deside- rato por parte da Constituigao. 5. A “REALIZACAO” DA CoNsTITUIGAO 41. A Constituigéo compée-se de normas. Estas contém men- sagens dirigidas a uta humana propriamente dita; mero marginal 31). 95 TEMAS FUNDAMENTAIS DO DIREITO CONSTITUCIONAL 42. a) Essa realizagao nao é algo que se possa dar Por suposto, _aconduta humana, na medida, portanto, em que as suas normas se achem “em vigor” nao s6 hipoteticamente mas também de fato. Essa vigéncia real da Constituigao nao se alcanga pelo sé fato de ela exis- tir. Confunde-se 0 processo constituinte no que é e no que faz quan- do 0 concebemos como um tinico ato de vontade do “poder consti- tuinte”™, de um poder originaério do qual deriva todo poder constituido e cujos mandatos hao de ser obedecidos por emanar da sua vontad embora, é claro, também nada menos — do que a formulagio no texto da Constituigéo daquilo sobre o que se est4 de acordo ou da- quilo sobre o ae segundo a Constituicao, se deve estar de acordo. Até que ponto a Constituicdo consegue essa vigéncia é mais uma questo de fora normativa, de sua capacidade para operar na reali- dade da vida historic de forma determinante e reguladora. 43. Essa forca normativa acha-se condicionada de um lado pela possibilidade de realizagao dos contetidos da Constituigao. ando conservar e desenvolver o que ja esta esbocado na disposicao individual do presente, tanto melhor a normativa. radigao com esse estagio C. SCHMITT, “Verfassungslehre” (4° ed., 1965), p. 75 ¢ ss. (tradugao para 0 castelhano de E Ayala, Madrid, 1934, reimpr. 1982). Cfi. a respeito EHMKE, “Grenzen der Verfassungsinderung’ (cit. n, 18), p. 86 e ss. 96 KeOE PE Const (Ni eS (0 pura E PECULIARIDADE DA CONSTITUICAO "de desenvolvimento. Sua for¢a vital e operativa baseia-se na sua ca- pacidade para conectar-se com as forgas espontaneas e as tendéncias vivas da época, da sua capacidade para desenvolver e coordenar es- sas forgas, para ser, em razdo do seu objeto, a ordem global especifi- ca de concretas relagdes existenciais. 44\De outro lado,a forga normativa da Constituigao acha-se condicionada pela yontade constante, dos implicados no processo constitucional, de realizar os contetidos da Constituigao. Dado que vinculantes os seus contetidos e da decisao realizar esses contetidos, inclusive contra eventuais resisténcias; € isso tanto mais porque a atualizagao da Constitui¢ao nao pode ser -apoiada e garantida da mesma forma como os demais direitos, que nao o Direito Constitucional, sao atualizados pelos poderes estatais, ' itme (vid. supra ntimero marginal 15); é impres- cindivel que o acordo do constituinte histérico se mantenha entre aqueles cuja atuagao e cooperagao esse constituinte tratou de dirigir e coordenar através das normas da Constituicado. Quanto mais intensa for a “vontade de Constituigao” (Wille zur Verfassung) tanto mais re- cuados estarao os limites das possibilidades de realizar-se a Constitui- 40, sem que essa vontade, no entanto, possa climinar por completo tais limites. $6 na medida em que se cumpram ambos os pressupostos é que a Constituicao podera desenvolver a sua for¢a normativa"’. 45. b) Assim, portanto, sob a perspectiva das condicées de rea- lizagao do Direito Constitucional, Constituigao ¢ “realidade” nao | podem isolar-se uma da outra, O mesmo se diga sobre 0 proprio a processo de realizacao. O contetdo de uma norma constitucional * Sobre tudo isso, mais detalhadamente, K. HESSE, “A forga normativa da Cons- tituicdo” (1959), p. 61-84 desta selegao. 97 98 TEMAS FUNDAMENTAIS DO DIREITO CONSTITUCIONAL nao pode, de ordindrio, realizar-se apenas com base nas pretens6es _ nela contidas (sobretudo expressadas na forma de um enunciado lingiiistico) ¢ isso tanto menos quanto mais geral, incompleto e in- determinado esteja redigido 0 texto da norma, Por isso, a operagao de realizacao da norma constitucional nao pode despre- zar essas singularidades, sob pena de fracassar diante dos problemas suscitados pelas situagGes que a Constituicao é chamada a resolver. o contetido e 0 alcance da garantia cons- titucion: podem ser determinados tendo-se em conta a funcao social e econdmica da propriedade no moderno Es- tado social. A regulagdo constitucional 4 por meio da radiodifusao so pode ser levada a cabo tomando-se em consideragao as rpidas mudangas ocorridas nessa atividade, espe- cialmente no que diz respeito as suas possibilidades técnicas", razao por que a conformagao e a garantia dessa liberdade tém que ser dis- tintas das pertinentes, por exemplo, a liberdade de expressao por meio da imprensa, onde os condicionamentos técnicos e econdmi- cos sao diferentes. 46, Destarte, a “omcretizagdo" do contetido de uma norma constitucional, assim como a sua realizago, s6 se tornam possiveis ‘s singularidades dessas circunstancias, nao raro ja conforma jrdicomene gate momenta ll ~a partir do conjunto dos dados do mundo social afetados por um preceito juridico e através do mandato contido, sobretudo, no texto da norma, 0 “programa normativo” ~ é algado A condi¢ao de parte Cf. BVerfGE 12, 205 (260 ss.); 57, 295 (322 ss.). com elas 0 “ambito normative’; estéo submetidas a transformagax CONCEITO E PECULIARIDADE DA CONSTITUIGAO, integrante do contetdo normativo*. Porque essas singularidades, ¢ ainda que o texto da ne captar e que, por isso, raramente se manifesta com nitidez 47. Pois bem, as possibilidades dessa “mutagao constitucional” sa6 Timnitadas porque em nada se altera a necessidade da constante vinculagao entre a realizacdo constitucional e, precisamente, as nor mas a realizar. Por isso, Constitui¢ao realizada, pelo menos se com esse con- ceito se pretenda dizer alguma coisa. A verdade € que, inevitavelmen- te, a realizacdo de normas constitucionais, ora mais, ora menos, tem que andar a reboque dos mandatos que essas normas dirigem a con- duta humana, residindo na descrig&o dessa diferenga a justificativa para a contraposicao entre Direito Constitucional e reelidade consti- tucional, sem que isso implique admitir-se a existéncia de uma reali- dade constitucional contra constitutionem. A afirmagao de uma con- traposicdo entre Direito Constitucional e realidade constituciona pode nao s6 obscurecer como até mesmo desviar a discussio. Ao qua- lificar a realidade inconstitucional como realidade constitucional, ou- torga-se fora normatizadora a essa realidade, com 0 que, enquanto forea normatizadora da “realidade’, de antemio ela se sobrepGe a forga 4° MULLER, “Normbereiche von Einzelgrundrechten in der Rechtsprechung des Bundesverfassungsgerichts” (1968), p. 9 € ss. com mais referéncias. A norma converte-se, deste modo, em “modelo de ordenagao cunhado pelo seu objeto (si- chgepriigtes Ordnungsmodell), como projeto vinculante de uma ordem parcial da comunidade juridica, que modela a norma, na qual o regulador e o regulado vio necessariamente unidos complementando-se indeclinavelmente um ao outroe fundamentando-se mutuamente na pratica da realizagao do Direito” (ibid. p.9). Cfr. também F. MOLLER, “Thesen zur Struktur von Rechtsnormen’, Archiv fir Rechistund Sozialphilosophie, LVI (1970), especialmente p. 504 ess. (agora recolhi- do também no mesmo, “Rechtsstaatliche Form Demokratische Politik” [1977],p. 257-270.-N. do T.). 99 100 TEMAS FUNDAMENTAIS DO DIREITO CONSTITUCIONAL normatizadora do “Direito”. A qualificacao da realidade inconstitu- cional como realidade constitucional contém, portanto, uma op¢ao — nao raro, desde logo, inconsciente — contra a Constituigao, privando- a de uma contemplagao juridico-constitutucional. 48. Isso nao significa que na vida da Comunidade nao possa haver realidade alguma que se ache em contradi¢io com a Consti- tui¢ao ou que tal realidade deva ser considerada irrelevante. Trata-se, 10. Por isso, a perspectiva juridica, assim como a argumentagao que se vincula a normatividade da Constituigao, precisa ser completada por consideragoes de politica constitucional dirigidas a manter ou possibilitar esse acordo, a criar 0s pressupostos para uma realizacao legitima da Constituigao ou, se nao, para reformar a Constituigao.

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