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Introdugao a Historia Publica Juniele Rabélo de Almeida Marta Gouveia de Oliveira Rovai (organizacao) PUCRSI/BIBLIOTECA CENTRAL ~ COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.695/2003. © Copyright 2011 Os autores © Copyright 2011 Letra e Voz Editor Fernando L.. Cassio Preparacao de originais e revisio Lucas Magnani ‘Tradugées (capitulos 2, 3. 4) Daniel Barbosa dos Santos Revisio de tradugao Veronia Charity Diagramagao Luzia Femandes Desenvolvimento de capa Estadio Xlack Foto da capa Martyn E, Jones Dados Internacionais de Catalogagao na Publicagio (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Introdugio a histéria publica / Juniele Rabélo de Almeida, Marta Gouveia de Oliveira Rovai, (organizagao), ~ Sao Paulo : Letra e Voz, 2011. ISBN 978-85-62959-11-0 1. Histéria pablica 2. Meméria - Aspectos sociais I, Almeida, Juniele Rabélo de. II. Rovai, Marta Gouveia de Oliveira. 11-08616 CDD-909 Indices para catélogo sistematico 1. Histéria publica 909 Todos os direitos reservados Letra BE Voz Tel.: (11) 3042-3381 www.letraevoz.com.br editorial@letraevoz.com.br PUCRSIBIBLIOTECA CENTRAL - COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.695/2003. O QUE E HISTORIA PUBLICA? Os PUBLICOS E SEUS PASSADOS Jill Liddington O que é histéria publica e o que os historiadores publicos fazem? Nos ultimos tempos, tem havido uma explosio de representacées populares do passado. Tornou-se quase impossivel ligar a televisao e nao encontrar a série de grande audiéncia A history of Britain, de Simon Schama, ou o documentiario dramatizado Band of brothers, de Steven Spielberg’, ou ainda ligar o radio e nao bisbilhotar um discurso sobre meméria e lembranga. O entusiasmo pela historia viva domina a nacao. A série The 1940s house, com uma familia contemporanea oferecendo-se para “reviver” o racionamento e a blitzkrieg, foi extremamente popular. Tanto que a exposi¢ao 1940s House, do Imperial War Museum, na qual ‘17 Braemar Gardens, West Wickham’ foi reconstruida em toda a sua banalidade suburbana ~ para o deleite de hordas de jovens estudantes ~ foi prorrogada por duas vezes.” Enquanto isso, a revista BBC History, apresentando History to go e History on the net, vende mais de 50 mil cpias por més. Sim, “o passado é um pais estrangeiro”; eles ainda “fazem as coisas diferen- tes 14” (Hartley, 1958). Mas, de forma crescente, seja na histéria de Schama ou em ‘The trench experience’, do Imperial War Museum, o passado popular é apre~ 1. Radio Times, 5-11 mai.; 29 set.; 5 out. 2001. 2. Radio Times, 6-12 jan, 2001. 3. Ver também Lowenthal (1985, p. 185). 4, Quando estive no Imperial War Museum, minha roupa enroscou no arame farpado e havia desespero ‘real’ na voz do ‘Capito Newman’ das trincheiras. PUCRS/BIBLIOTECA CENTRAL - COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.695/2003. 32 | Introducao a Histéria Publica sentado como se estivesse logo ali, dobrando-se a esquina, a um mero estalar de dedos. Nao é preciso passaporte ou uma longa viagem; vocé s6 tem que usar 0 controle remoto da TV, clicar com seu mouse, navegar pelo History Channel’, ¢ instantaneamente - muitas vezes, prazerosamente — vocé estara Id. O passado, ou ao menos suas formas populares, estd a nos rodear. E pas~ sado significa negécio. Produtores de radio vasculham seus contatos em busca de historiadores capazes de resumir a pesquisa atual em umas poucas senten- gas. Até as associacées académicas de elite debatem “Os historiadores e seus puiblicos”.° O pioneiro Ruskin College, em Oxford, oferece um Mestrado em His~ toria Publica, enquanto outras instituicdes dao cursos em histéria aplicada [ap- plied history] ou estudos de patriménio [heritage studies] com um componente de historia publica.’ Ento: agora somos todos historiadores ptiblicos? Sera que todos os que sé debrugam sobre 0 passado com a participacao do publico (sejam eles visitantes de museus, telespectadores ou grupos de estudantes) é um “historiador publi- co”? A “hist6ria publica” é um guarda-chuva téo acolhedor a ponto de oferecer abrigo a todas as formas de histéria “popular” ~ seja ela a historia oral ow a “his toria dos povos’, a “histéria aplicada” ou os “estudos do patriménio”? A resposta, Provavelmente, é um generoso “sim”: deixai que mil flores desabrochem. Sem dtivida, em conferéncias recentes, ouve-se uma ampla gama de profissionais ~ historiadores orais, educadores de adultos, arquivistas experientes ~ alegarem, com um tanto de mistificagao, que “até ouvir a frase ‘historiador publico’, eu nao tinha percebido que fiz isso a minha vida toda. Agora eu tenho um rétulo”. Entretanto, “historia publica” é um conceito escorregadio. E 0 desafio de uma abordagem ecuménica é, creio eu, que a expressio seja usada em tantos sentidos ~ tanto na Gra-Bretanha quanto internacionalmente, por profissionais e académicos ~ a ponto de se tornar desconcertante. E se “historia publica” é me- ramente um novo nome para aquilo que nés ja estavamos fazendo, sera que nao 5. Disponivel em: wwwhistorychannel.com (EUA), que inclui: This day in History, Relive 100 years: Click here, e um quadro de Patrocinadores (incluindo a rede de hotéis Holiday Inn). 6, Titulo da conferéncia da Royal Historical Society (RH), abril de 2001 (University of Yor!) 7. Simon Ditchfield: “It pays to help the public to meet the ancestors", Times Higher Education Supple- ‘ment, 20 abril de 2001. PUGRSIBIBLIOTECA CENTRAL - COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.696/2003. Odque é historia publica? | 33 estamos perdendo a chance de pensar sobre o que queremos dizer por “piblico” e, com isso, perdendo a oportunidade de aperfeicoar nossa propria pratica? O que quero fazer aqui, portanto, é explorar significados e usos amplos de “historia publica”, feitos tanto por profissionais quanto por académicos, ini- cialmente através da comparacao com a histéria oral; em seguida, rastrear como estes diferentes significados se desenvolveram - primeiro nos Estados Unidos, depois na Australia e, por fim, na Gra-Bretanha.’ Assim, quero investigar 0 que entendemos pela palavra-chave “ptiblico” (em oposi¢ao a, digamos, “o povo”, “a sociedade” ou “as massas”), verificando se os tedricos sociais e culturais podem nos ajudar; e, enfim, considerar como essa teoria ajuda historiadores publicos em atua¢do — citando exemplos de boas praticas que atravessaram meu caminho. HISTORIA ORAL, HISTORIA PUBLICA Fale em “historia oral” e muitas pessoas imaginarao uma entrevista, um gravador e talvez uma transcricdo: normalmente uma pessoa mais velha ira “relembrar” e essas “memérias” serao usadas de varias formas: livretos com as “testemunhas do ontem”, o programa Archive Hour da Radio BBC, ou uma sessao de reminiscén- cias numa casa de repouso. Hoje em dia as pessoas “entendem” a pratica da his- t6ria oral. Contudo, como objeto de estudo no Ensino Superior ela se torna um tanto mais desafiadora. Se considerarmos um curso de pos-graduagao bem esta- belecido, veremos que ela explora “as questées éticas e epistemoldgicas colocadas pela relacao entre narrador e pesquisador (...) [e] entre memérias, narrativas e identidades”.” Claramente, os estudantes deparam objetivos mais complexos. E assim é, a meu ver, com a historia publica ~ embora muito menos en- raizada na Gra-Bretanha do que a histéria oral. Quando se menciona “hist6ria publica”, as pessoas ainda torcem o nariz devido & falta de familiaridade. Quando recebem uma definic4o rapida, eles entéo acenam positivamente (e te contam com entusiasmo sobre o episddio de Spielberg que acabaram de assistir ou sobre o museu que visitaram). Assim, para manter clara em nossas mentes essa dis- tingao académico/profissional, podemos considerar a pritica da historia publica 8. Reconheco uma inclinagéo angléfona; mas espero que isto inicie o debate em outras culturas. 9. University of Sussex, Life History Research: Oral History and Mass-Observation (mestrado), PUCRS/BIBLIOTECA CENTRAL ~ COPIA NOS TERMOS DA LE! 9.610/1998 E LE! 10.695/2003. 34 | Introdugao a Historia Publica como sendo a apresenta¢ao popular do passado para um leque de audiéncias ~ “por meio de museus e patriménios histéricos, filme e ficcao histérica. Mas, assim como no caso da histéria oral, se nos voltarmos para aquilo que os estudantes de um curso de “historia publica” poderiam aprender, isso também se torna mais complexo, Considerando-se um respeitado curso de pés-graduacao, os estudan- tes lidam com “histéria publica e identidade”, “lendo museus: géneros e historia”, a “economia do patriménio”.” Mais uma vez, estamos num terreno bem mais desafiador do que um mero clique no History Channel. Assim, o estudo de his- toria ptiblica esté ligado a como adquirimos nosso senso de passado - por meio da meméria e da paisagem, dos arquivos e da arqueologia (e por consequéncia, é claro, do modo como esses passados so apresentados publicamente). Fiz estas distincdes ~ que espero que nao sejam enfadonhas ~ porque dis- cussées sobre histéria publica rapidamente se dissolvem em perplexidades do tipo “mas 0 que vocé quer dizer com...?”, Isso porque o “significado” de historia publica parece variar de acordo com o cendrio ~ profissional ou académico. Em todo caso, na Gra-Bretanha esses dois mundos sao mais separados a cada dia. Neste texto, eu escrevo conscientemente para ambos: para profissionais e tam- bém para académicos da historia publica. ORIGENS DA HISTORIA PUBLICA: EsTADos UNIDOS Historia publica é “o novo nome paraa historia mais velha de todas”. Aqui, porém, em vez de uma genealogia detalhada, precisamos apenas lembrar a nés mesmos que se pode remontar as origens da histéria publica a meados da década de 1970 ao desemprego entre os formados ~ e, em particular, a University of California, Santa Barbara (Davison, 1991, p. 4)."" O historiador fundador dali declarou: “A historia publica refere-se ao emprego de historiadores e do método hist6rico fora da academia (...). Historiadores publicos estao a trabalho sempre que, dentro de suas qualificagées profissionais, so parte do processo publico (Kelley apud Davi- son, 1991)." A énfase, ai, recai sobre os profissionais e sua empregabilidade no 10, University of York, History and Heritage (mestrado); wwrw.york.ac.uk/depts/hist 11, Para outros cursos de historia aplicada, ver também Schulz (1999, p. 31). 12, Kelley era um historiador do meio ambiente e G. Wesley Johnson, um historiador da Africa interes- sado em histéria local. PUCRSIBIBLIOTECA CENTRAL — COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.695/2003, O que éhistéria publica? | 35 espaco piiblico; 0 periédico The Public Historian [O historiador publico], também proveniente de Santa Barbara, auxiliado pelo fundo Rockefeller e patrocinado pelo novo National Council on Public History [Conselho Nacional de Historia Pu- blica], reuniu um corpo editorial que incluia nao somente universidades de elite e o Oral History Institute, bibliotecas e museus, mas também o US Department of State Office of the Historian, o Wells Fargo Bank e o US Army Centre of Military History. Governo, capitalismo, exército. Nos Estados Unidos, esta perspectiva corporativista foi logo alvo de ataque ~ por parte, por exemplo, do historiador oral Ron Grele, que declarou furiosamente: A “histéria publica” (...) nao tem nada de novo. Ela esta ocupando campos ha muito ocupados por historiadores nao académicos (...) [como] os projetos de historia comunitaria (...). Como o movimento da historia piblica ignorou estes debates, ele parece ter aceitado uma ideia bem mais limitada da profissio (...). Ser um historiador parece significar ter um emprego, ganhar a vida, cavar um re- fiigio seguro (...). [A historia publica] nos promete uma sociedade na qual um pi- blico amplo participa na construgao de sua prépria histéria (...). [Do contrario], ela ira (..., na pior das hipéteses, desviar nossas energias para o oportunismo pelo status quo. (Grele, 1981, p. 44-8) De fato, a “histéria publica” rapidamente se tornou um territdrio muito con- testado nos Estados Unidos. A geracao dos radicais do Vietna desafiou as reivin- dicacées da velha elite branca a posse exclusiva do passado; ela criticou as nos- talgicas aldeias-museu [museum villages] financiadas pelo capital privado (como o Colonial Williamsburg, de Rockfeller, ou o Greenfield Village, de Henry Ford) que “distorceram o passado, mistificou a forma como o presente emergiu, e aju- dou a inibir a a¢ao politica no futuro” (Wallace, 1986, p. 146). Ao invés do novo movimento da nova histéria publica, esses historiadores olharam para tras: para as iniciativas do New Deal de Franklin Roosevelt, na década de 1930. Roosevelt, lembrando zombeteiramente que as Filhas da Revolugao Americana eram tam- bém descendentes de imigrantes, desafiou as reivindicagées da elite pelo passado buscando dar ao Estado federativo “uma abordagem da histéria publica que ex- pandisse a definicao de histérico (...) [e] pudesse competir com o capital privado como guardiéo da meméria piblica”. 0 Estado provou seu poder. Mais de mil arquitetos desempregados foram contratados pela Historic American Building Survey para medir e fotografar edificios - “enraizados em tradigées e memérias PUCRSIBIBLIOTECA CENTRAL ~ COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LE! 10.695/2003. 36 | Introdugao a Historia Publica locais”, desconectadas dos famosos pais fundadores. A Works Progress Admi- nistration colocou escritores e historiadores para trabalhar, descortinando os legados da luta de pessoas comuns (embora esta histéria publica populista tenha sobrevivido escassamente A guerra fria) (Wallace, 1986, p. 149-50). Aqueles his- toriadores radicais, que criticavam a hist6ria publica feita com capital privado, também argumentaram contra a producao de “imagens do passado para nosso consumo passivo” (Frisch, 1986, p. 12), em lugar de projetos sobre “o que fazer para tornar as memoérias ativas e vivas” (p. 16-7) - um tema de historia partici- pativa ao qual retornarei adiante. Entao, como a hist6ria publica se coloca nos Estados Unidos apés a virada do milénio? Vocacionalmente, ela esta bem organizada dentro das universidades. O National Council on Public History (NCPH) lista mais de 50 programas de pés- -graduagao, normalmente com cursos basicos em Historia e Politicas Publicas, € com optativas como Histéria Oral, Administracao de Arquivos, Planejamento de Cidades, e Historia Ambiental. Os estagios para estudantes abrangem um le- que cultural amplo: a Howard University, de Washington, oferece a Association for the Study of Afro-American Life and History [Associacao para os Estudos da Vida e da Historia Afro-Americanas], ao passo que a Middle Tennessee State University, proxima a Nashville, oferece a Country Music Foundation e também Graceland, Memphis. As colocagées (empregos obtidos por graduados treinados) incluem os gigantes National Park Service (NPS) e o Smithsonian Institution, 0 US Senate Historical Office, e também o Wells Fargo Bank, o Gene Autry Mu- seum e o Lower East Side Tenement Museum em Nova York (NCPH, 1996)."° E tecentemente os alunos empreendedores da University of Maryland criaram o website do Public History Resource Center." Alguns académicos americanos permanecem cinicos diante da histéria pi- blica, considerando-a infrutifera ou oportunista.!° Mas o movimento da historia piblica oferece excelentes exemplos de colaboracao criativa entre académicos e profissionais. O NPS gerencia tanto paisagens (o Grand Canyon, por exemplo), quanto edificios hist6ricos (como a Casa Branca), e desenvolveu maneiras de tra~ 13. Agradeco a Laura Feller, historiadora do NPS. Ver também Ritchie (2001), 14. Confira em: www publichistory.org. Concebido profissionalmente, o site inclui resenhas e dicas sobre vagas de emprego, e oferece estimulos para “ser oficialmente reconhecido como um Editor Associado”. 15. Como amavelmente defende Cantelon (1999). PUGRSIBIBLIOTECA CENTRAL - COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.695/2003. O que é histéria piiblica? | 37 balhar com académicos, incluindo um sistema pelo qual historiadores contra- tados visitam uma localidade gerenciada pelo NPS e escrevem um relatério de avaliagdo independente."° De modo similar, o NCPH - cujos membros incluem historiadores orais e guias de museus, historiadores de empresas e do governo ~ organiza conferéncias conjuntas com a Organization of American Historians (OAH)."” A revista veterana Radical History Review, por sua vez, desenvolveu uma se¢do de histéria publica com a discussao dos sitios de memoria [lugares de me- méria] no Chile de Pinochet e de como “mudar o puiblico” significa agora que até o Monticello escravista de George Washington “jé nao é 0 que costumava ser”.'* De fato, a historia publica esta viva e indo muito bem nos Estados Uni- dos. Como um templo amplo, ela abrange um largo espectro politico, que vai dos poderosissimos monumentos do capital privado, como o Williamsburg”, até os projetos de base, passando por grandes agéncias federais, como o NPS. Os Esta- dos Unidos podem ser um tanto isolacionistas, muito pouco criticos em relacdo ao que exportar Hollywood-como-histéria significa globalmente; podemos achar seu modelo de compra/venda comercial demais. Mas eles oferecem exemplos ins- piradores de historiadores trabalhando publicamente. HisTORIA PUBLICA EM ESTILO AUSTRALIANO A “historia publica em estilo australiano”, de inspiragdo radical e pensamento revigorante, desenvolveu-se ligeiramente mais tarde do que 0 movimento da historia publica nos Estados Unidos” e, em parte, como critica a este (embora compartilhando sua preocupacao com questdes empregaticias e vocacionais). Ela atuou com energia, por vezes com uma critica mordaz aos historiadores univer- 16.Disponivel em: www.cr.nps.gov/history, e no Directory of National Park Service Historians, 2001, Agradego a Constance Schulz por me apresentar a Dwight Pitcaithley, historiador-chefe do NPS. Sou grata a Dwight e Laura Feller pela discussdo (Washington, maio de 2001). 17. Confira em: www.ncph.org. 18. Entrevista com Mike Wallace: Radical History Review, v. 79, 2001, p. 68. Disponivel em: chnm.gmu. edu/rhr/rhr.htm, A RHR iniciou sua segao de histéria publica em 1987. Agradeco a Dave Kinkela por isto. 19."Torne-se um membro da Colonial Williamsburg Foundation ¢ ajude-nos a compartilhar as lig6es do nosso pasado com as jovens mentes de hoje”, diz o folheto, com incentivos aos contribuidores. 20.Sobre “a aceitacao irrefletida do credo profissional baseada num modelo consensual liberal de socieda- ‘ados Unidos, ver Rickard e Spearritt (1991, p. 3) e Davison (1991, p. 14). de" pelos PUCRS/BIBLIOTECA CENTRAL - COPIA NOS TERMOS DA LE! 9.610/1998 E LEI 10.695/2003. 38 | Introdugao a Historia Publica sitarios, refestelados no langor de seu tenure [estabilidade empregaticia]. “A his- toria entrou no mercado como nunca havia ocorrido. Historiadores auténomos atuam por necessidade, como donos de pequenos negécios”, relatou com simpa- tia a Australian Historical Studies citando “Phyllis Phame, a historiadora mirim”, o extravagante alter ego da recém-formada Professional Historians’ Association (PHA) [Associacéo de Historiadores Profissionais]. Phyllis era intrépida, leva- va uma vida independente exercitando sua formacao histérica, vendendo suas habilidades ao publico, construindo uma carreira (Rickard & Spearritt, 1991, p. 1-2)." E em 1992, a PHA langou a fresca e mal humorada Public History Review, alinhando a histéria publica com a historia comunitaria.2? Na Australia, a historia publica engajou-se tanto politicamente quanto na pratica, lutando em batalhas comunitdrias - mais controvertidamente como “historiadores da linha de frente” em Sydney, entrando no tribunal, subindo sem. medo no banco das testemunhas, submetendo-se a ardilosos interrogatérios pe- los conselheiros da cidade, para defender e preservar suburbios industriais da classe trabalhadora tradicional - literalmente, na linha de frente.” E por fim, é claro, a Austrdlia teve que repensar sua propria histéria, a historia da terra dos australianos nativos: desde 1788, quando os primeiros esquadrées chegaram de Plymouth a enseada de Sydney na qualidade de colonizadores, até a visio dos Europeus como invasores.”* Embora a énfase permanega sobre o formar-para-o- -mercado-de-trabalho, a “histéria publica em estilo australiano”, com sua energia politica e intelectual, é uma inspiragao a mais. GRA-BRETANHA: PATRIMONIO E MEMORIA Os debates mais ruidosos na Gra-Bretanha acerca do nosso senso sobre o passado nao se deram em torno da “histéria publica”, mas do patriménio e da memoria nacionais. Eles foram liderados por um novo ramo de landscape historians [histo- riadores da paisagem], gedgrafos historicos e tedricos culturais. The past is a fo- reign country (1985), de David Lowenthal, um historiador/ge6grafo proustiano, 21. Ver também Phame (1991); Kass e Liston (1991). 22, Ver Ashton e Hamilton (1996-7, p. 12-3). Agradeco a Paul pelas c6pias. 23. Ver Morgan (1991, p. 78 em diante), 24, Para apresentagées de museus, ver Oral History, v. 29, n. 2, 2001, p. 21-2. PUCRS/BIBLIOTECA CENTRAL — COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.696/2003. O que ¢ historia publica? | 39 indagou brilhantemente (embora muitas vezes idiossincraticamente) a respeito de como sabemos sobre o pasado. “A resposta simples é”, respondeu provocati- vamente, “que nds lembramos coisas, lemos ou ouvimos historias e crénicas, e vivemos entre reliquias de tempos passados” (Lowenthal, 1985, p. 185). A partir disso, sugeriu, a memoria é particularmente complexa: nés chegamos a revisar nossas proprias memérias “para adequé-las ao passado que é lembrado coletiva- mente e, gradualmente, parar de distinguir entre as duas coisas”, procurando em vez disso “conectar nosso passado pessoal com a memoria coletiva e a histéria publica” (p. 196). Ele concluiu: “a fun¢ao primordial da meméria, entdo, nao é preservar 0 passado, mas adapta-lo de modo a enriquecer e manejar o presente” (p. 210). Sintomaticamente, Lowenthal, que ocupa um rico dominio literario do meio-Atlantico, nao é nem um historiador oral, nem um historiador ptblico — de fato esta tao distante quanto possivel da histéria comunitaria.”> De forma mais controversa, a discussao sobre patriménio foi particularmen- te desencadeada pelas ameagas “socialistas” aos palacetes, em meados da década de 1970. As campanhas Heritage in danger, dos latifundiarios, explodiram num imaginativo debate intelectual uma década depois. On living in an old country, de Patrick Wright (1985), escrito quando ele retornou a Gra-Bretanha de ‘Thatcher, revitalizado pela vida no exterior, maravilhava-se com a nostalgia nacional pelo passadismo ancestral. Sugeriu que poucas tensdes eram tao carregadas, quanto as existentes entre os interesses do capital privado e a preservacao de patrimé- nios histéricos ~ e ele mirou no National Trust, um dos maiores proprietarios de terras da Gra-Bretanha, que, “quando se trata de politica e nao de devaneio histérico-nacional, simplesmente cochila” (Wright, 1985, p. 53, 55). Ainda mais critico e controverso foi o pessimista The heritage industry: Britain in a climate of decline, de Robert Hewison (1987): “conforme o passado comega a se erguer sobre o presente e obscurecer os caminhos para o futuro, uma palavra particular sugere a imagem em torno da qual se aglomeram outras ideias sobre 0 passa~ do: patriménio [heritage]”. Hewison também atacou o National Trust, ha muito tempo “o feudo” dos “condes das amenidades”, e desferiu um ataque valente ao desyendar a entrelacada “politica de clientelismo” da “induistria” do patriménio e 25. Ainda assim, David Glassberg (1996) estimulou uma mesa-redonda que incluia Lowenthal e Frisch. Ver ‘The Public Historian, v. 19, n. 2, 1997, PUCRS/BIBLIOTECA CENTRAL - COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LE! 10.695/2003. 40 | Introducao a Historia Publica a politizacao thatcherista do establishment da cultura apos 1979 (Hewison, 1987, p. 31, 55, 111, 118).”* Salvando “o patriménio das pessoas” destes “destruidores de patriménio”, Raphael Samuel surgiu como um inesperado defensor. Seu afetuosamente ecléti- co Theatres of memory (1994) celebrava 0 “conhecimento nAo oficial” e a meméria popular, contra Wright, o “reacionario chic’, e Hewison, o “aristocrata conspira- dor”, Samuel tragou as raizes de “patriménio” até os desfiles da “Marcha pela His- toria” socialista dos anos 1930 e os parques nacionais do governo Attlee (Samuel, 1994, p. 207, 210, 242, 297). Patriménio, ele afirmou, teria menos a ver com casas de campo e mais com humildes casebres provincianos, com a preservacao de antigas técnicas artesanais (como as associacées de ferrovias a vapor) e ativi- dades plebeias (como os vendedores de barraquinhas “retrd-chic”). Ele atacava a condescendéncia dos heritage-baiters, chamando-os de esnobes literarios mi- s6ginos, e procurava, ainda que brevemente, nos Estados Unidos e na Australia inspiracao para a hist6ria publica (Samuel, 1994, p. 265, 267,-274, Afterword; Mandler, 1997, p. 474). HISTORIA PUBLICA NA GRA-BRETANHA: AUTOBIOGRAFIA Contudo, em vez da “historia publica”, o que emergiu na Gra-Bretanha foi o En- glish Heritage (um quango”” com fundos governamentais criado em 1983).?° As tentativas de introduzir a “historia publica” vinda da América nunca deram cer- to. O History Workshop Journal, com um antigo interesse na hist6ria em filmes, Por exemplo, tinha inaugurado uma se¢io, em 1995, destacando museus, tiri- nhas cémicas e histéria online - mas a chamou de History at large [Historia como um todo]. Mais persuasiva foi a energia poderosa vinda da Australia, que atingiu a Gra- 26. Embora esta obra seja util para as hipocrisias (0 fechamento de bibliotecas publicas, por exemplo), ela se torna um pouco inflamada na medida em que se aproxima do presente. Para uma descrigao mais ponderada, sob uma perspectiva diferente, ver Mandler (1997, Epilogue). 27. N.T.: A expresso quango, muito utilizada no Reino Unido, é um acrdnimo para quasi non-governmen- tal organisation 28. Ver o dossié The debut of public ‘history in Europe (The Public Historian, v. 6, n. 4, 1984) e, especialmente, Beck (1984). PUCRS/BIBLIOTECA CENTRAL - COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.695/2003. O que é historia publica? | 41 -Bretanha em meados da década de 1990. A revista Oral History lancou, em 1997, uma nova se¢io de histéria publica, focada em “usos e representacées publicas de histéria oral em uma grande variedade de midias”, oferecendo novidades dos Estados Unidos e da Australia e enfatizando questées globais, como migragao e novas tecnologia, como web sites (embora 0s leitores permanecessem confusos a respeito do que “historia publica”, de fato, era).”” Outro dos pioneiros foi, sem davida, o Ruskin College do proprio Raphael Samuel, uma escola para alunos adultos, que oferece desde 1996 um Mestrado em Historia Publica em tempo parcial. Seu programa inclui o estudo de memoria popular e histéria visual - jun- tamente com um grupo de discussées sobre historia publica com o objetivo de “atravessar o abismo entre o estudo académico e o mundo real”. Desde 2000, o Ruskin College também tem organizado congressos bem sucedidos sobre his- toria publica, baseados em oficinas participativas que atrairam alunos adultos e family historians, curadores de patriménio e professores universitarios. Com certeza, isto foi o que me trouxe a histéria publica. Meu trabalho original era como pesquisadora da BBC. Foi s6 apés deixar 0 jornalismo para tras e me mudar para o Norte, em 1974, que me envolvi pela primeira vez com a Oral History Society - quando Paul Thompson e Raphael Samuel encorajaram Jill Norris e a mim em nossa experiéncia com o sufragio (Liddington, 1977). Desde entao, trabalhando na educa¢ao de adultos por toda West Yorkshire, me envolvi com projetos de historia comunitaria - escrevendo livretos com aprendizes mais velhos, organizando exposi¢ées locais, trabalhando em colabora¢ao com museus e bibliotecas. Entao, em 1999, fui convidada pelo Labour Women’s Council local, com 0 qual eu tinha uma vaga ligacdo, para ajudar a celebrar seu centenario. Em 1950, seu meio-centenario foi marcado por uma ceriménia publica. Seré que eu idea- lizaria mais uma ceriménia publica? Depois de objetar que “eu nao faco didlogo, eu néo sei fazer ceriménias puiblicas”, em algum momento sugeri organizar uma exposigao, Apés alguns encontros, ficou claro que eu teria que cumprir a maior 29. Agradeco a Alistair Thomson, pela conversa na Oral History Society conference (2001); ¢ tam- bém a Stephen Hussey, por seu e-mail honesto (2001). Se a revista Oral History nao tivesse um editor australiano teria esta inovacio acontecido? 30. Ver www.ruskin.ac.uk/prospectus/hist-crs.htm. Agradeco muito a Hilda Kean pelas conversas. Ver Kean et al. (2000). PUCRSI/BIBLIOTECA CENTRAL - COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LE! 10.695/2003. 42 | Introdugao a Historia Publica parte das demandas no meu tempo livre - pois um projeto desse tipo nao se coadunava com as exigéncias do Research Assessment Exercise (RAE) das uni- versidades. A exposico The vanishing century foi lancada com sucesso na Hali- fax Library, no Dia Internacional da Mulher de 2000 e, em seguida, excursionou pelas bibliotecas do distrito. Contudo, com os constantes ataques sofridos pelo movimento sindical, 0 processo era muito desafiador: como oferecer 4 nova gera- 40 0 acesso a este mundo evanescente, de intensas identidades locais e reunides laboriosas em saguées mal aquecidos. Foi exatamente neste momento que encontrei um cartaz anunciando o con- gresso sobre histéria publica do Ruskin College (“atravessando 0 abismo entre a torre de marfim e o mundo real”). Isso foi muito oportuno para mim. A “historia publica” parecia oferecer um cenario receptivo (da maneira que o “patriménio” nao fazia) para os muitos projetos com os quais, ha muito tempo, eu estava en- volvida. Falei sobre a exposi¢ao em Ruskin®* e retornei no ano seguinte para falar sobre “Posicionando a historia piblica?”. O que esta em cena é uma proposta de historia publica inclusiva e democratica, com énfase nado na “compra” do pro- fissionalismo de uns poucos historiadores, mas sim nas muitas pessoas tendo acesso as suas prdprias histérias, com os historiadores ajudando a “devolver as pessoas a sua propria histéria”. HisToRIADORES E SEUS PUBLICOS Mais recentemente, os historiadores académicos comecaram, enfim, a prestar aten¢ao ~ uma entrada na “fortaleza da histéria”, de fato. Aqui, uma historiado- ra se destaca particularmente: Ludmilla Jordanova ajudou a colocar a histéria publica no mapa. Seu History in practice (2000), que introduz os estudantes aos mais novos desenvolvimentos na disciplina da histéria, inclui um importante capitulo de “histéria publica” — que trata de “passados utilizaveis”; géneros e au- diéncias; politica e historia publica (Jordanova, 2000, cap. 6). A isso se seguiu 0 congresso Historians and their publics, na York University, promovido em colaboracao com ~ e isto foi o que a tornou particularmente signifi- 31. The vanishing century: Living, losing, retrieved, displayed ~ maio de 2000, the First National Public His- tory Conference, Oxford. PUGCRSIBIBLIOTECA CENTRAL — COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.696/2003 O que é histéria publica? | 43 cativa — a Royal Historical Society (RHS), que talvez seja a mais tradicionalista das associa¢ées profissionais de historiadores.” Jordanova deu 0 tom da discussao, argumentando que a histéria publica deveria ser motivo de preocupacao de todos 08 historiadores (e que suas diferentes definigées eram apropriadas para seus di- ferentes contextos). Também participavam Ian Kershaw e Laurence Rees, da BBC, que trabalharam juntos no bem sucedido Nazis: A warning from history (1997). Jordanova e a Royal Historical Society sugerem outro tipo de pratica, por meio da qual uma elite profissional ~ intelectuais nao apenas “treinados”, mas com alto grau de rigor, dialogando regularmente entre si por meio de publicagdes e conferéncias ~ estaria capacitada (em colabora¢ao com empresas de radiodifu- so, editoras, museus) a alcangar um piblico amplo, bem mais amplo que aquele que lé suas monografias académicas encadernadas. Dessa forma, Kershaw falou em alcangar de 30 a 35 milhées de espectadores pelo mundo com sua série Nazis. Seria este o acesso a exceléncia - a “maioria” lendo, escutando, assistindo, visi- tando, consumindo “o melhor”? Os criticos desta abordagem falam de uma “hi- tlerizagao da histéria”. Mas, se isto é meramente histéria-como-entretenimento, sera que deverfamos lamentar a passividade dos milhées de espectadores? PuBLico E PRIVADO Deste brevissimo levantamento sobre histéria publica, fica imediatamente evi- dente que nao ha uma resposta unica para a questo “o que é histéria publica?”, ou mesmo “o que fazem os historiadores publicos?”. De fato, até mesmo a per- gunta “o que é um historiador?” revela uma grande diferenca entre, por um lado, a énfase da Royal Historical Society e de Ludmilla Jordanova em uma disciplina académica critica baseada em networking e; por outro, a énfase de Raphael Sa- muel na democratiza¢ao da historia - “todo mundo é um historiador”. A palavra “piiblico”, talvez, seja ainda mais perigosa. Se pensarmos rapida- mente em todos os seus usos como adjetivo, as complicagées ficam evidentes: “relagées publicas” e publicidade, mas também a “opinido publica”, “interesse publico”, “servi¢o publico”, e também o Public Works Administration, de Roose- 32. Outros palestrantes foram Patrick Wright, Matthew Evans (chair of resource), Constance Schulz. € Dave Peacock, que, com Simon Ditchfield, da York University, ofereceu um Heritage studies as applied history HEFCE/EDTL project 1996-9. PUCRSIBIBLIOTECA CENTRAL - COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.695/2003. 44° | Introdugao Historia Publica velt, De fato, os norte-americanos envolvem a palavra “piiblico” de significados especiais, que nascem de um ideal de cidadania incorporado em sua Constituicao e em sua Carta de Direitos.* Sera que poderiamos voltar aos tedricos culturais em busca de uma ajuda? Em Keywords, Raymond Williams deu mais aten¢do as “massas” do que ao “pti- blico” (1976, p. 192-7); os historiadores de género escreveram longamente sobre a “esfera publica” masculina e a “esfera privada” feminina — mas com foco no debate sobre a “separagao das esferas”, e nao na historia publica. Assim, voltei-me ao socidlogo frankfurtiano Jiirgen Habermas - embora ele mal seja mencionado na literatura sobre historia publica. Seu texto fundamen- tal nesse ambito, The structural transformation of the public sphere, foi publicado na Alemanha em 1962, mas no esteve disponivel em inglés até 1989, donde de- corre a leve sensacao de distancia em relac4o a ele. Contudo, foi escrito de modo sucinto e bem traduzido ~ resistindo as provagées do tempo. Habermas é um dos Poucos tedricos sociais que discutem os sentidos mutaveis da palavra “public” ~e, assim, ainda é util para avaliar o consumo popular Gnuitas vezes passivo) do passado nos dias de hoje. Habermas comega pela classica “ sfera publica” da cidade-estado grega, de cidadaos homens livres - dependente, é claro, da “esfera privada” doméstica, na qual as mulheres reproduziam e serviam aos homens e 0s escravos trabalhavam (Habermas, 1989, p. 3). Na Gra-Bretanha do século XVIII, os burgueses, infor- mados pelas paginas dos jornais e encontrando-se convivialmente nos cafés, pu- deram formar, e de fato formaram, a “opiniao publica”, conduzindo debates cri- ticos racionais sobre questées publicas, tanto politicas quanto literarias. Porém, argumentou Habermas, a ampliagéo democratica da “esfera publica” no século XIX para abarcar grupos sociais previamente excluidos (notadamente homens da classe trabalhadora e mulheres) néo levou a um acréscimo no discurso puiblico critico, racional. Na verdade, o desenvolvimento da midia e da cultura de massas (especialmente a televisio americana e as indtistrias de relacées ptiblicas e de propaganda, que ele observou por volta de 1960) levou A degeneragdo da esfera 33. Ver Davison (1991, p. 6), que ainda é um dos analistas mais hicidos da histéria publica. 34. Ver Landes (1998), 35. Exceto por Tony Bennett (1995) e, muito brevemente, por Jordanova (2000). De toda forma, Haber- mas 6, hoje em dia, cultuado entre os historiadores modernos PUGRSIBIBLIOTECA CENTRAL ~ COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.696/2003. Oque é historia publica? | 45 publica ~ com a velha esfera publica liberal sendo “substitufda pelo mundo pseu- dopiblico ou falsamente-privado da cultura de consumo”, um “piblico massivo | de consumidores culturais” (Habermas, 1989, p. 164-8). Habermas descreve isto de forma contundente: a A nova midia cerceia as reacées de seus destinatarios de um modo peculiar (...). Ela os priva da oportunidade de falar alguma coisa e de discordar. A discussao critica de um publico leitor tende a dar lugar a “intercambios de gostos e prefe- réncias” entre consumidores, (1989, p. 171) Para ele, “a grande massa dos consumidores cuja receptividade [a cultura de massa] é publica, mas acritica” (p. 175, grifo meu), é relegada a displays imoveis, com a "publicidade representativa”, aos quais 0 publico s6 pode reagir pela acla- magao ou pela negacao da aclama¢o ~ uma democracia cultural plebiscitaria, em lugar do discurso critico ativo que caracteriza a velha esfera ptiblica (Calhoun, 1991, p. 11-2, 26-7). Escrevendo no contexto de fim-da-ideologia de 40 anos atras, Habermas permaneceu aberto a criticas - embora recentemente tenha revisto algumas das suas afirmagées mais rigidas e pessimistas sobre “degeneracao”. Ele agora reconhece a “agéncia” da classe trabalhadora, a natureza genderizada da esfera ptiblica e a capacidade de resisténcia dos piblicos mais pluralistas (Habermas, 1991, p. 440 em diante). Nao surpreende, entao, que Habermas continue sendo um escritor-chave para uma andlise mais sutil da democracia participativa, que, ele diz, possui o potencial emancipatério para redimir 0 consumo passivo das “exposigées” de massa.36 Ele nos ajuda a reavaliar o que “hist6ria ptiblica” pode significar - em termos de como o senso do piblico a respeito de seus préprios passados pode ser consu- /mido ativamente e debatido criticamente. Ele nos ajuda a pensar se os milhées de nés, sentados em salas escuras assistindo passivamente a televisao ~ as tlti- mas batalhas a cavalo de Schama, ou a uma viagem do tipo I love 1978 através de imagens de arquivo ~ fazem parte de um publico ativo ou simplesmente um “pseudoptiblico” plebiscitario: participantes reais ou apenas consumidores de hist6ria privatizados. Os comentadores tém evitado fortemente tocar no oposto implicado de his- toria publica: a “histéria privada”. E por qué? Qualquer pessoa que dé aulas no 36.Ver, por exemplo, Benhabib (1998, p. 82). PUCRSIBIBLIOTECA CENTRAL - COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.695/2003. 46 | Introducao a Historia Publica Ensino Superior na Gra-Bretanha reconhece o que constitui a “histéria privada’: muito do que se escreve na atual proliferacéo dos periddicos altamente especia- lizados, resultado principal (mas nAo tinico) das pressées institucionais cumula- tivas do RAE” ~ uma rigida hierarquia, que tem revistas “de referéncia” no pice ea maior parte publicacées ocupando uma terra de ninguém muito abaixo. Mais notas de rodapé do que leitores: mas nao importa.” Mas, a meu ver, os académicos nao tém qualquer monopélio sobre a “his- toria privada”. Existem outras variedades. Seguramente, alguns historiadores publicos so apenas “historiadores privados” astutamente disfarcados: escrever uma histéria encomendada para uma grande empresa privada no estaria mais perto de “relagdes publicas” do que de “histéria publica”? E (mais controverti- damente) poderia a “historia privada” incluir genealogistas e também historia- dores locais e de familia, cujo trabalho nao somente comeca de um interesse pes- soal, mas emerge exatamente dai - a histéria privada de um membro do publico, ainda pouco consciente das necessidades de uma audiéncia ou de um contexto maiores? (Este terreno ainda é contencioso. Quem seriam os historiadores mais publicos: os financiados publicamente, os académicos comprometidos publica- mente, ou os entusiasmados praticantes comuns?)"” HistoriaDorES PUBLICOS, BOAS PRATICAS Aessa altura, provavelmente temos uma boa ideia sobre o que poderia ser ensi- nado num curso de histéria publica: patriménio, museus, memoria. Mas creio que © nosso entendimento da histéria publica enquanto prdtica permanece vago. A histéria publica certamente é (e deve continuar sendo) um templo de tolerancia. Contudo, quero encerrar tratando de como estes debates tedricos 37. N. T: Sigla para Research Assessment Exercise, sistema para avaliagdo da exceléncia académica no Reino Unido. 38. Houve uma interessante discussdo sobre o RAE na conferéncia da RHS, com algumas pessoas suge- indo que 0 governo paga aos académicos para ndo se comunicarem publicamente e outras defendendo que o RAE nao deve pressionar os historiadores. 39. Ver Davison (1991, p. 7), também citando Grele (1981). 40. Ver Rosenzweig e Thelen (1998, p. 187) PUCRSIBIBLIOTECA CENTRAL — COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.695/2003. O que é historia publica? | 47 podem ajudar historiadores publicos praticantes, ilustrando com exemplos de boas praticas que conheci. Devemos, certamente, colocar a audiéncia no centro do palco. Os historia~ dores piblicos — em oposigao aos privados — tém consciéncia da audiéncia e provavelmente, desde o inicio de uma ideia ou projeto, buscam estar atentos a leitores e audiéncias ampliados, visando aumentar o acesso publico ao passado. Uma abordagem possivel é perceber como uma historia pessoal ou local ilumina o quadro mais geral (do modo como tentei estruturar minha exposi¢4o Vanishing century), com 0 qual historiadores privados necessitam se preocupar menos. Mas isso nao deve ser uma busca pela audiéncia a qualquer custo, mas, antes, uma percep¢ao de comunicar-se apropriadamente com “o ptiblico”. Exemplos de boas praticas incluem a revista Oral History ~ a despeito de todas as pressées do RAE, cla ainda recebe “uma variedade de abordagens de pessoas (...) com repertérios diferentes” ~ e a BBC History Magazine, que combina um jornalismo descarada- mente populista com, digamos, um debate informado sobre a série de Schama." Os historiadores publicos, muitas vezes, também querem trabalhar cola borativamente. Assim, um historiador americano, que trabalhou numa série da BBC/APB sobre a Primeira Guerra Mundial, foi tao longe a ponto de proclamar: “A historia publica é quase sempre coletiva, no sentido de que ela lida com ques- tées grandes demais para que um tinico estudioso possa dominar, expressar ou explicar” — em contraste com os historiadores académicos, para quem a “voz au- toral” é o cerne de seu empreendimento (Winter, 1996). Talvez isto seja um tanto dogmatico, conveniente para uma série sobre guerra mundial no horario nobre ~ mas muitos de nés estamos envolvidos em projetos regionais ou locais bem mais modestos. No entanto, considero muito valioso que os historiadores, sempre que possivel, trabalhem em parceria com outros profissionais: bibliotecarios ou ar- quivistas de estudos locais, jornalistas ou web designers. Estes ganham acesso a uma experiéncia académica crucial: em um tema ou em um periodo. E 0 ganho dos historiadores inclui técnicas de produgao melhoradas e alcance publico mais amplo, O que eles perdem é 0 controle sobre a pega autoral, estando presos a pro- pésitos, financiamentos, cronogramas e argumentos de outras pessoas. Minha experiéncia atual em trabalhar colaborativamente com alguns parceiros muito 411, Ver “Magnificent: But is it history2”. BBC History Magazine, maio de 2001. A revista Labour History Re- view também inaugurou sua segao de historia publica em 2001, com resenhas sobre museus do trabalho, PUCRSI/BIBLIOTECA CENTRAL ~ COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LE! 10.695/2003. 48 | Introdugao a Historia Publica diferentes tem me mostrado a importancia de respeitar as habilidades profissio- nais de outras pessoas (diferentes das minhas de um modo revigorante) e tam- bém de manter o foco (paciéncia e discussées, é claro, mas pode haver um ponto no qual “publico” se torna “popularizacao”, que se torna distor¢ao).’” Em terceiro lugar, os historiadores piblicos provavelmente querem assegu- | possam ser consumidos ativa e participativamente. Ha- bermas lembra-nos da cidadania critica, “o pitblico” nao é meramente reduzido a consumidor passivo da cultura de massa, Entio, qual o lugar de séries populares como A history of Britain? “Quase nenhum’”, sugere pelo menos um historiador publico: assistir a histéria na televisdo nao substitui fazer historia, sobretudo se Schama nos mostra pouco de suas fontes (“Alan Titmarsh, ao menos, conta de onde vieram suas plantas”). Canais de televisio podem programar I love 1978, seguido por Top ten: 1977, para que, no fim das contas, o telespectador saiba um adinha a mais sobre o passado recente." Outros acham impraticavel represar 0 dique da informacao eletrénica da histéria-como-entretenimento, e veem a tele- / viséo como um maravilhoso ponto de partida.* Em quarto lugar, os historiadores publicos podem até estar conscientes das quest6es comerciais, mas provavelmente nao querem simplesmente agarrar uma grande fatia do publico leitor ou espectador de um contexto de economia de mer- cado moldado por anunciantes e acionistas. H4 muitos exemplos. Um deles é He- ritage, revista que tem o simpatico subtitulo Britain's History Countryside, e des- taca cabanas de palha em Stratford, com uma escassa alusao A industrializacao, e antincios clasificados para a aquisicao de titulos de nobreza. Sim, é um amplo publico leitor; mas, se isto nao diz respeito a consumidores completamente pas- sivos, também dificilmente significa acesso publico ou democracia participativa. Em quinto lugar, creio eu, os historiadores puiblicos querem manter os mais altos padrées de rigor critico. As vezes, isto nao é exequivel - ou, pelo menos, € 0 que dizem seus colaboradores. Mas integridade e transparéncia académicas 42. Ver “Entrevista com Mike Wallace". Radical History Review, v. 79, 2001, p. 67. Disponivel em: chnm. gmu.edu/rhr/rhr-htm. 43. Ver Radio Times, 21 jul. 2001. 44, Ver “Past is perfect” (“We're the new rock'n'roll”), Guardian, 29 out. 2001. “Esquega o cliché de que a histéria éo novo rock'n'roll (..):éa boa histéria que esta ganhando popularidade”. BBC History Magazine, Books of the year, winter 2001. Ver também: www.bbe.co.uk/history. PUGRSIBIBLIOTECA CENTRAL - COPIA NOS TERMOS DA LEI 9.610/1998 E LEI 10.695/2003. Oque historia publica? | 49 certamente continuam sendo importantes. Se aceitarmos os argumentos de his- toriadores como Jordanova ~ de que a pratica da histéria é uma disciplina com convengées académicas da argumentagao critica, evidéncia e citagao -, entao os profissionais que trabalham (em museus, em radiodifusao, em quangos de patri- ménio) apresentando 0 passado para o publico certamente precisam de historia- dores. O National Park Service, nos Estados Unidos, oferece um exemplo de boa pratica colaborativa. Contudo, na Gra-Bretanha parece que ainda nao estamos fazendo a coisa certa. Os historiadores estao notadamente ausentes — Power of place: The future of the historic environment, projeto do English Heritage, foi supe- visionado por organizagées como a associacao dos proprietarios de terra‘, em vez de historiadores. Por fim, os historiadores piblicos precisam provavelmente conhecer 0 es- tado, nacional, regional e, é claro, localmente. As razées s4o muitas. O Estado é um provedor legal de servicos culturais ~ especialmente bibliotecas ptiblicas locais. Ele também é uma fonte de financiamento direta e indireta — através, por exemplo, do Heritage Lottery Fund."* Preencher formularios de editais consome tempo e, é claro, ha sempre o perigo de que o tom desses editais produza uma uniformidade crescente e uma visio limitadora.*’ No entanto, o financiamento publico ajuda, por exemplo, a equilibrar desigualdades regionais flagrantes, e até 0 projeto mais modesto pode pleitear financiamentos especiais, talvez em parce- ria com outros patrocinadores ~ 0 que pode significar a diferenca entre alcangar poucos sem eficacia e alcancar a maioria de forma satisfatéria.** O Estado tam- bém oferece um quadro politico ~ muitas vezes diretamente, através do Depart- ment of Culture, Media and Sport (DCMS) - para, digamos, combater a exclusao 45,Membros dirigentes do projeto Power of place. A tinica excecio é a professora Lola Young, divetora de projetos na area de historia e cultura negras. O relatério tinha cabecalhos como “Antes de qualquer coisa, precisamos do conhecimento”, os quais, provavelmente, nao foram escritos por historiadores. Havia, & claro, um arquedlogo no grupo; e a arqueologia é geralmente colocada em um lugar diferente em relagao ao patriménio inglés. Agradeco a Constance Schulz por esta discussao. 46.N. Tz Fundo que distribui o dinheiro arrecadado com a Loteria Nacional. A Fawcett Library, fundada em 1926, recebeu um financiamento de 4,2 milhées de libras do HLE,e foi reaberta como Women’s Li- brary em um novo edificio. 47 Stephen Hussey: “What principles?", Conferéncia da OHS, Talking community histories, jun. 2001. 48,Para a nossa exposi¢ao The vanishing century, recebemos 450 libras de uma pequena obra de caridade, ‘© que permitiu que os nossos painéis tivessem um acabamento profissional. PUCRS/BIBLIOTECA CENTRAL - COPIA NOS TERMOS DA LE! 9.610/1998 E LEI 10.695/2003.

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