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nm sereoou ho Ao ssTup0 90 BRETO um saber prudencial jé com tracos dogmiticos; em analogia com as verdades biblicas, o direito tem origem divina e como tal deve ser recebido, aceito e interpretado pela exegese juridica, Desde 0 Renascimento, ocorre, porém, um processo de dessacraliza- fo do direito, que passa a ser visto como uma reconstrucao, pela razio, das Tegtas da convivéncia. Essa razio, sistemdtica, & pouco a pouco assimilada a0 fendmeno do estado moderno, aparecendo 0 direito como um regulador ra- cional, supranacional, capaz de operar, apesar das divergéncias nacionais € religiosas, em todas as citcunstancias. A crise dessa racionalidade, no entan- 10, ird conduzir-nos, como diziamos, a um impasse que se observard, no inf- cio do século XIX, pelo aparecimento de formulagdes romanticas sobre 0 di- | reito, visto como fendmeno histérico, sujeito as contingéncias da cultura de cada povo. 2.5 POSITIVAGAO DO DIREITO A PARTIR DO SECULO XIX: O DIREITO COMO NORMA POSTA © século XIX, diz Coing (196925), “representa ao mesmo tempo a destruigio eo triunfo do pensamento sistemético legado pelo jusnaturalismo, qual baseava toda sua forca na crenca ilimitada na razio humana”. Os teé. ficos do direito racional nao estavam presos a nenhuma fonte'positiva do di- feito, embora a temporalidade da agéo humana que criava e modificava o direito nao ficasse olvidada. Afinal, um dado importante da juridica entre os séculos XVI e XVIII é ilo de o direito ter-se tor ‘vez mais direto escrito, o que ocorre tidade de leis emanadas do poder, cretacio da maior parte das re; recepgio do direito romano velo propic tes (leis, costumes, direito 10). Qui meado direito comur ou direito comum escrit Go precisa, parece que se referia 20 chamad0 jus commune, 0 direito comum 4 todas as cidades e vila, em oposico a0 jus propium, peculiar a cada uma delas, distingao j& corrente na Italia a partir do século XII (ef. Gilissen, 1968:225) © fato de o direito tornar-se escrito contribuiu para importantes transformagées na concepgao de direito e de seu conhecimento. A fixagao do direito na forma escrita, ao mesmo tempo em que aumenta a seguranca ea preciso de seu entendimento, aguga também a consciéncia dos limites. A possibilidade do confronto dos diversos conjuntos normativos cresce e, com isso, aumenta a disponibilidade das fontes, na qual esta a esséncia do apareci de hierarquia de fon- ito escrito, também no- ‘DiRT coMo ORFETO DE CONECIMENTO: ERE MISTOHCO mento das hierarquias. Estas, no inicio, ainda afirmam a relevdincia do costu- me, do direito nao escrito sobre o escrito. Pouco a pouco, no entanto, a situa- fo inverte-se. Para tanto contribuiu 0 aparecimento do Estado absolutista e 0 desenvolvimento progressivo da concentracio do poder de legislar. Nesse periodo, a percepcio da necessidade de regras interpretativas cresce, © que pode ser observado por sua multiplicagao com vistas na organizacéo e articu ago das diversas fontes existentes. Essas transformagées iriam culminar 2 dduas novas condicionantes, uma de natureza politica, outra de natureza nico-juridica. Quanto as primeiras, assinale-se a nogao de soberania nacional € 0 principio da separagio dos poderes; quanto as segundas, o caréter privile giado que a lei assume como fonte do direito e a concepcéo do diteito como sistema de normas postas. ‘A Declaracio dos Direitos do Homem ¢ do Cidadio de 1789, em seu art. 3%, proclamava: “O principio de toda soberania reside essencialmente na nagdo”. A soberania, a efetividade da forga pela qual as determinagées de au- toridade séo observadas e tornadas de observacdo incontorndvel mesmo por meio de coacéo, ndo estando sujeitas a determinagées de outros centros nor: ativos (c. Giannini, 1970, v. 1:95; Hart, 1961; Jouvenel, 1955; Jellinek, 1970:327), residira, nos séculos anteriores, no senhor territorial ou no rei. sa forme bastante conereta e personalissima de simbolizar o centro tinico de normatividade assinalava uma operacionalidade bastante limitada na or- ¢ganizagio do poder politico. Ora, a substituicéo do rei pela nacio, conceito Inais abstrato €, portanto, mais maledvel, permitiria a manutengao do cardter uno, indivisivel, inaliendvel e imprescrtivel da soberania (Constituicéo fran- cesa de 1791) em perfeito acordo com o principio da divistio dos poderes ‘que, por sua vez, daria origem a uma concepgéo do poder judiciério com ca- racteres préprios e auténomos (“O poder judiciério nao pode em nenhum ‘caso ser exercido pelo corpo legislative, nem pelo rei ~ art. 1%, cap. V) e com possibilidade de atuacio limitada (“Os tribunais néo podem se imiscuir no texercicio co poder legislativo, nem suspender a execucio das leis" - art. 3°, cap. V), A teoria clissica da diviséo dos poderes, construida com um claro acento anti-hierarquizante face & concepgao personalista anterior, iria garan- tir de certa forma uma progressiva separacao entre politica e direito, regu- lando a legitimidade da influéncia da politica na administracio, que se torna totalmente aceitdvel no Legislative, parcialmente no Executivo fortemente neutralizada no Judiciario, dentro dos quadros ideolégicos do Estado de Di reito (cf. Friedrich, 1953:208; Locke, 1952:58; Montesquieu, s.d.). Ora, essa neutralizagao politica do Judiciério (Luhmann, 1972) € uma das pegas im- portantes para o aparecimento de uma nova forma de saber juridico: a cién- cia do direito do século XIX. De fato, a neutralizagio politica do Judiciério significara a canaliza- «a0 da produgao do direito para o endereco legislativo, donde o lugar privile- 3 74 eTRODUCKO AO ESTUDO DO IREETO giado ocupado pela lei como fonte do direito. A concepeao da lei como prin- cipal fonte do direito chamard a atencao para a possibilidade de o direito ‘mudar toda vez que mudar a legislacio. Destarte, em comparacao com o pas- sado, 0 direito deixa de ser um ponto de vista em nome do qual mudangas € transformagées so rechagadas. Em todos os tempos, o direito sempre fora percebido como algo estivel face As mudancas do mundo, fosse o fundamen- to desta estabilidade a tradigo, como para os romanos, a revelagao divina, na [dade Média, ou a razao na Era Modema. Para a consciéncia social do sé- culo XIX, a mutabilidade do diteito passa a ser a usual: a idéia de que, em principio, todo direito muda toma-se a regra, e que algum direito néo muda, cultura de entio corresponderé ao chamado fendmeno, reito (Luhmann, 1972) yagio do di- H4 um sentido filosétfico e um sentido sociol6gico de positivacio. No primeiro, positivacao designa 0 ato de positivar, isto é, de estabelecer um di- reito por forca de um ato de vontade. Segue daf a tese segundo a qual todo ¢ ‘qualquer direito ¢ fruto de atos dessa natureza, ou seja, 0 direito ¢ um con- junto de normas que valem por forca de serem postas pela autoridade consti tuida e sé por forca de outra posicZo podem ser revogadas. Ora, & medida _que tais atos de vontade sio atos decisérios, positivacdo passa a ser termo ‘cortelato de decisio. Em conseqiiéncia, implicando toda decisio a existéncia de motivos decisérios, positivagao passa a ser um fenémeno em que todas as vvaloracées, regras e expectativas de comportamento na sociedade tém de ser fil- tradas através de processos decisérios antes de adquirir validade juridica (cf. { Lohmann, 1972:141). Em outras palavras, direito positive é nfo sé aquele | que é posto por decisio, mas, além disso, aquele cujas premissas da deciséo | \ que 0 péem também sao postas por decisao. A tese de que s6 existe um ditei- 10, 0 positivo nos termos expostos, é o fundamento do chamado positivismo jurfdico, comente dominante, em varios matizes, no século XIX. “ No sentido sociolégico, positivagao é um fenémeno que naquele sécu- lo sera representado pela crescente importéncia da lei votada pelos parla- mentos como fonte do diteito. O antigo regime caracterizara-se pelo enfra- quecimento da Justica, cuja dependéncia politica projetava-se no arbitrio das decisbes. A critica dos pensadores jluministas e a necessidade de seguranca da sociedade burguesa passou, entio, a exigir a valoriza¢ao dos preceitos le- gais no julgamento dos fatos. Dai se originou um respeito quase mitico pela Tei, base, ent, para o desenvolvimento da poderosa Escola da Exegese, de grande influéncia nos paises em que dominou o espirito napoleénico. A redu a0 do jurigico ao legal foi crescendo durante o século XIX, até culminar no chamado legalismo. Nao foi apenas uma exigéncia politica, mas também eco némica. Afinal, com a Revolucdo Industrial, a velocidade das transformagoes tecnolégicas aumenta, reclamando respostas mais prontas do direito, que 0 ‘a excegao. Essa verdadeira institucionalizacéo da mutabilidade do direito na ‘nero Cotto OBJETO DE CONIECIMENTO: FEL MISTORICO direito costumeiro nao podia fornecer. Ao contrétio, 0 direito reduzido ao le- gal fazia crescer a disponibilidade temporal sobre o direito, cuja validade foi sendo percebida como algo maledvel e, 20 fim, manipuldvel, podendo ser tecnicamente limitada e controlada no tempo, adaptada a provaveis necessi- dades futuras de revisio, possibilitando, assim, em alto grav, un detalha- ‘mento dos comportamentos como juridicizaveis, nfo dependendo mais 0 ca- rater jutidico das condutas de algo que tivesse sempre sido diteito (como acontecia com a predominancia do direito consuetudinétio). 0 direito, com a Revolucao Francesa; tomna-se uma criagio ab ovo. Com isso, ele instrumentaliza-se, marcando-se mais uma vez a passagem de ‘uma prudéncia prética para uma técnica poética. Ou seja, para usar uma dis- tingio aristotélica (Etica a Nicémaco, 1094 a 21), 0 direito passa a ser conce- bido como poiesis, uma atividade que se exterioriza nas coisas externas a0 agente (pot exemplo, com madeira fabricar uma mesa) e que por isso exige técnica, iste é, uma espécie de know-how, um saber-fazer, para que um resul- tado seja obtido. Deixa, pois, de ser concebido, como o fora desde a Antigii- dade, como uma praxis, uma atividade que nao tinha um adimplemento ex- terior a ela mesma e a0 agente; ela nao visava sendo ao bem agir (ético) do prdprio agente, sua eupraxia. Esta ai o micleo do fenémeno da positivagao do direito em seu sentido social. A percepgio da mutabilidade teve conseqiiéncias importantes para 0 saber juridico. No inicio do século XIX, essa percepcio provocou, a principio, uma perplexidade. Afinal, diré alguém, referindo-se & ciéncia do direito, que ciéncia é esa se basta uma penada do legislator para que bibliotecas inteiras tomem-se maculatura? (Kirschmann, 1966:26). A primeira respos.a veio, na ‘Alemanha, pela chamada Escola Histérica. Significativa, nesse sentdo, a obra do civilista alemao Hugo (1764-1844). No primeiro volume de sea Lehrbuch eines civilistischen Kursus (2. ed., 1799), cuja introduco contém uma enciclo- pédia juridica, ele propée, segundo um paradigma kantiano, uma divisfo u partida do conhecimento cientifico do direito, correspondente a trés questbes fundamentais: dogmatica juridica (que responde ao problema: que deve ser reconhecido como de direito ~ de jure?); flosofia do direito (cujo problema €: é racional que o reconhecido como de direito assim o seja?); historia do direi- to (como aguilo que é reconhecido como de direito se tornou tal?). Essa tri partigao, observava o préprio Hugo, sob 0 ponto de vista da temporalidade, podia transformar-se numa biparticdo, & medida que a primeira e a segunda ‘questdo ligam-se ao presente ¢ a terceira ao passado, Por outro lado, a pri- meira e a terceira so histéricas, mas nfo a segunda. Estava af em germinacio uma concep¢io do direito néo como um fe: ndmeno que ocorre na Hist6ria, mas que é hist6rico em sua esséacia, 0 que permitiria a qualificacio do acontecimento presente também como histéria, criando-se 2 possibilidade do conhecimento juridico como metodicamente 76 nerRopu;io x0 xsTUDO DO DIET histérico. Assim, para Hugo, a Hist6ria do Direito aparece como ciéncia pro- priamente dita, enquanto a Dogmética Juridica é uma espécie de continua- ‘Gé0 da pesquisa histérica com outros instrumentos. ‘A afirmacio da historicidade do direito (como objeto e como ciéncia) foi uma resposta & perplexidade gerada pela positivagao. Afinal, se 0 direito ‘muda, isso niio invalida a qualidade cientifica de seu conhecimento, pois ele muda historicamente. Para Savigny, jurista alemao considerado um dos pais da Escola Histérica do Direito, nao seré a lei, norma racionalmente formula- da e positivada pelo legislador, que serd primariamente 0 objeto de ocupacéo do jurista, mas a conviegéo comum do povo (0 “espirito do-povo"), este sim a fonte origindria do direito, que dé o sentido (hist6rico) ao direito em cons- tante transformacéo. Savigny (1849, v. 1:19), por isso, enfatiza 0 relacionamento primério 4a intuiggo do juridico nao a regra genérica e abstrata, mas aos institutos de direito, que expressam relagdes vitais, tipicas e concretas (como, por exem- plo, a familia). Os institutos sio visualizados como totalidades de natureza orginica, um conjunto vivo de elementos em constante desenvolvimento. E a partir deles que as regras juridicas sfio construidas e entendidas, manifestan- do destarte 0 direito uma contingéncia radical no tempo ¢ no espago. Essa contingéncia, porém, nao deve ser confundida com irracionalidade (pois en- tdo nao haveria ciéncia), & medida que a historicidade dinémica dos institu- tos mostra-se na conexao espiritual da Histéria. A organicidade para Savigny (1959:75 e 1944:14) nao se refere, pois, a uma contingéncia real dos fend- ‘menos sociais, mas deve ser buscada no cardter complexo e produtivo do pensamento conceitual da ciéncia juridica elaborada pelos juristas desde 0 passado. Nesse sentido, assinala Wieacker (1967:391), a palavra povo, para Savigny, é antes um conceito cultural, quase idéntico ao que julzes e jurstas de um pafs produziam (ver também Correa, 1969, v. 37:320). Nao é de es- tranharmos, pois, que a Escola Histérica acabasse por marcar o aparecimento do que Koschaker (1966:211) denomina “o direito dos professores” (ver tam- bém Savigny, 1840:14). 0 direito dos professores aparece quando, sob certas condighes, a t6- nica na ocupagéo com o direito passa para as Faculdades de Direito ¢ seus ‘mestres. Nasce af também a expresso Ciéncia do Direito (Rechtswissenschaft) como termo escolar, que assim se difunde por toda a Europa. Isso no queria dizer que 0 direito passasse a ser criado e produzido pelos professores, mas que a doutrina passava a ocupar um lugar mais importante que a pratica e os doutrinadores a terem precedéncia sobre os profissionais do direito. Essa precedéncia tinha, porém, um aspecto curioso e até paradoxal. De um lado, apesar da énfase conferida i lei, obra do legislador, a doutrina (ao menos na ‘Alemanha) possufa certa independéncia em relagio ao poder central (as Uni- versidades alemas localizarem-se, desde o passado, fora das capitais politicas CbinEo coMG OREO DE CONHECIMENT: PERE HISTORICO ~ a tinica excegéo era Berlim, fundada no século XIX): 0s professores viviam, assim, fora dos centros politicos, embora sua atuacao neles repercutisse. De ‘outro, os mestres, Savigny, por exemplo, nunca tiveram relacéo positiva com 1 pratica do dia-a-dia, que este ignorava. Em seus livros, nao surgem citagoes de decisées, nem tinha ele contato com 05 praticos. No entanto, tinha um senso intuitivo do trabalho prético dos pro‘issionais. Seus livros no ensina- vam a mera Histéria do Direito, mas voltavam-se para o direito vigente. Des- se modo, néo obstante, isso nao impediu que os préticos, educados nas Uni vversidades, viessem a absorver as condig6es para influenciar por intermédio da douttina professoral as decisdes judiciérias, 4 medida que as teorias, ma- _ravilhosamente construidas pelos tedricos, encontravam ali enorme ressonin- ‘cia. Com isso, a proposta metodolégica da Escola Histérica acabou dissolven- do-se, até certo ponto com o préprio Savigny, numa estilizagao sistematica da tradigéo, como selecao abstrata das fontes histéricas, sobretudo as roma- nas, Reaparecia, desse’ modo, a sistemtica jusnaturalista numa roupagem nova. A énfase depositada expressamente na intui¢ao do juridico nos institu- tos cedia lugar a um sistema de construgies conceituais das regras de direito. Isto é, se de um lado a intuigéo aparecia como o tinico instrumento de capta- do adequada da vitalidade dinamica representada pelo instituto, de outro, 0 pensamento conceitual Iégico-abstrato revelava-se como 0 mais necessétio tinico de sua explicitacio. Assim, a Escola Hist6rica aumentow 0 abismo entre a teoria e a pré xis, que vinha do jusnaturalismo, com infiuéncias até hoje no ensino univer: sitério e na pratica dos juristas. Apesar de Savigny acentuar 0 valor prepon- derante do espirito do povo sobre as turbagses de uma codificagao legislativa (que cle julgava, a sua época, extempordnea), Puchta (1841, v. 3, , © 10), que foi seu discipulo, ao transformar o espirito do povo em uma categoria formal do conhecimento juridico, retirando-Ihe quer 0 cardter jusflos6ftco, quer as implicagées sécio-histéricas, realizou uma transformaco importante, de decisiva conseqiiéncia para o fendmeno da positivacdo do direito. Para ele, 0 direito surgia da conviccdo fntima e comum do pove, mas 0 modo pelo qual se formava essa conviccdo absolutamente nao Ihe interessava. Assim, conseguiu ele uma simbiose entre 0 direito posto € o direito formado na consciéncia histérica, fazendo do legislador seu maximo representante. Com isso, no entanto, a preocupacao da Escola de dar ao pensamento juridico um cardter cientifico por meio da incorporacéo da Histéria a0 conhecimento do direito acabou assumindo um caréter decorativo. A Dogmatica Juridica, que para Savigny néo era bem o cerne da ciéncia, enquanto teoria do direito gente, ocupou, pouco a pouco, 0 lugar principal. A seu lado, a investigacao histérica foi-se tornando uma disciplina capaz. de estabelecer 0 que ainda era utilizével do Direito Romano, assinalando-se-Ihe apenas uma funcéo prelimi: nar e secundaria em face da Dogmética, perdendo sua importancia ndo $6 nos compéndios, como também no ensino. 7 8 ssrnooucko ao EsTuD0 BO RETO Em resumo, aquilo que a razdo representou para os jusnaturalistas passou a ser substituldo pelo fendmeno histérico. Surgiu, assim, dessa exi- de uma fundamentacdo da mutabilidade do direito, a moderna Dog- No inicio, isso significou uma sintese do material romano com a si temética légica do jusnaturalismo. Tal vinculagao do historismo com uma teoria pritica do direito custou & ciéncia do direito, no sentido de uma meto- dologia histérica, uma falta de rigor que, no entanto, foi compensada pelo enorme desenvolvimento e pelo sucesso das construcdes dogméticas desde enti. Esse aparente paradoxo, em que uma proposta metodolégica histéri-, a desemboca numa atividade analitica (andlise do direito posto), pode ser desfeito se atentarmos ao préprio conceito de Histéria que Ihe era imanente. Na era moderna, como assinala Arendt (1972:89), a Histéria emergiu como algo distinto do que fora antes. Enquanto no passado ela era constituida dos feitos e sofrimentos do homem, ao mesmo tempo em que contavia os eventos ‘que afetaram sua vida, agora ela passava a ser vista como um processo, um processo feito pelo homem, 0 tinico processo cuja existéncia tinha sido exclu- sivamente uma realizagio humana. Notemos que néo se trata de um conjun- to de agées humanas, recolhidas de seu acontecer efémero e que exigia do historiador imparcialidade, mas da propria experiéncia humana que, como ‘um todo, tem um comego, um meio e um fim, exigindo do historiador objeti vidade, marca caracteristica do saber cientifico moderno. Destarte, assim ‘como 0 homem faz a historia, cujo processo deve ser captado pelo cientista de modo objetivo, ao perceber-Ihe as leis de formagéo, do mesmo modo 0 homem faz o direito historicamente. Entretanto, como esse processo é andlo- go ao de qualquer fabricacao (a histéria como um fazer ¢ no como um agir), ele também tem um comeco, um meio e um fim. Ora, o direito feito, a0 cabo do processo, é 0 direito vigente. Destarte, cancela-se a imortalidade das ages humanas do passado, pois 0 processo, quando acaba, torna irrele- vante tudo 0 que aconteceu. Para o direito vigente, o passado adquire, usan- do uma imagem de Arendt, 0 mesmo significado que as tébuas € os pregos para uma mesa acabada, Entendemos por isso mesmo que, embora a Escola Histérica insistisse na historicidade do direito e de seu método de conhec mento, ao cabo da pesquisa o resultado se tomasse mais importante do que @ propria investigag&o que o precedera. Dai a presenca que o saber dogmatica do direito vigente assume, no pensamento juridico, face a sua histéria. ‘tarefa do jurista, que se toma entio tipicamente dogmitica, a partir dai circunscreve-se cada vez mais & teorizaglo e sistematizagao da experién- cia juridica, em termos de uma unificacio construtiva dos juizos normativos € do esclarecimento de seus fundamentos, descambando por fim, ja ao final do século XIX, para o positivismo legal, com uma autolimitagéo do pensa- ‘mento juridico ao estudo da lei positiva ¢ a0 estabelecimento da tese da esta ‘ piaurr0 Como OR:TO DE CONHECIENTO: PERF MISTORICO talidade do direito (cf. Reale, 1969:361). Esse desenvolvimento redunda na configuragao de um modo tipico de pensar 0 direito e que se transformou na ‘que ainda hoje conhecemos como Giéncia Dogmatica de Direito. De modo geral, esse pensamento apresenta uma concepcéo de sistema caracteristica, apesar da diversidade de suas formas. Em primeiro lugar, trata-se de um sistema fechado, do qual decorre a exigéncia de acabamento, ou seja, a auséncia de lacunas. © problema das la- ccunas da lei jé aparece nas obras de juventude de Savigny, embora a ele néo haja evidentemente referencia expressa, com essa terminologia. Com efeito, em sua chamada Kollegschrift, de 1802. a 1803, distingue ele, ao lado da ela- boracio histérica; a elaboragio filoséfica ou sistemética do direito, cujo pro: pésito seria descobrir as conexées existentes na multiplicidade das normas (Gf. Larenz, 1960:9). Nesse sentido, o direito constitui uma totalidade que se ‘manifesta no sistema de conceitos e proposicGes juridicas em intima conexao. Nessa totalidade, que tende a fechar-se em si mesma, as lacunas (aparentes) devem sofrer uma corregio num ato interpretativo, nao pela criagao de nova lei especial, mas pela redugdo de um caso dado a lei superior na hierarquia. Isso significa que as leis de maior amplitude genérica contém, logicamente, as outras na totalidade do sistema. Nesse sentido, toda e qualquer lacuna é cfetivamente uma aparéncia. O sistema jurfdico é necessariamente manifes- taco de uma unidade imanente, perfeita e acabada, que a andlise sistemati- ca, realizada pela dogmética, faz mister explictar. Essa concepcio de siste- ma, que informa marcantemente a Jurisprudéncia dos Conceitos, escola doutrindria quey na Alemanha, se seguiu 4 Escola Histérica, acentua-se e de- senvolve-se com Puchta e sua piramide de conceitos, o qual enfatiza 0 card: ter légico-dedutivo do sistema juridico, enquanto desdobramento de concei. tos e normas abstratas da generalidade para a singulatidade, em termos de uma totalidade fechada e acabada. Com o advento da chamada Jurisprudén- ia dos Interesses, que se seguiu & Jurisprudéncia dos Conceitos, o sistema nio perde seu carater de totalidade fechada e perfeita, embora perca em par- te sua qualidade logico-abstrata. Com a introducao do conceito de interesse, ¢ {4 anteriormente, com o de finalidade (cf. Jhering, 1864), aparece na con: cepedo de sistema uma dualidade que se corporificaré mais tarde no que Heck (1968:188) denominaria de sistema exterior e sistema interior, ou sis tema dos interesses, com o relacionamento das conexées vitais. A idéia de sistema fechado, marcado pela auséncia de lacunas, acaba assim ganhando 0 cariter de fiecao juridica necesséria, ou seja, 0 sistema juridico ¢ considerado como totalidade sem Iacunas, apenas per definitionem. Entretanto, autores como Bergbohm (1892:387) afirmam ser 0 direito uma totalidade acabada de fato. A segunda caracteristica dessa concepgao, que est na base do desen- volvimento da cigncia dogmética e esta implicita na primeira, revela a conti- 79 80 rrRopuGio AO ESTIDO DO RETO nuidade de uma tradigfo dos séculos XVI, XVI XVII: trata-se da idéia do sistema como um método, como um instrumento me:sdico do pensamento dogmdtico no direito. A esta segunda caracteristica ¢ que se liga 0 chamado procedimento construtivo e 0 dogma da subsuncao. De modo geral, pelo pro- cedimento construtivo, as regras juridicas séo referides a um principio ou a ‘um pequeno nimero de principios e dai deduzidas. Pelo dogma da subsun- éo, segundo 0 modelo da légica clssica, 0 racioctnio juridico se caracteriza- ria pelo estabelecimento tanto de uma premissa maio:, a qual conteria a di retiva legal genérica, quanto da premissa menor, que expressaria 0 caso concreto, sendo a conclusio a manifestagao do juize concreto ou decisio, Independentemente do carter I6gico-formal da construcdo e da subsuncdo, fe sem querer fazer aqui uma generalizacao indevida, é possivel afirmar que, ‘grosso modo, esses dois procedimentos marcam significativamente 0 desen- volvimento da dogmatica no século XIX (cf. Lazzaro, 1965). Notamos, assim, que o desenvolvimento da dogmatica no século XIX, em termos de sua funcio social, passa a atribuir a seus conceitos um cardter abstrato que Ihe permite uma emancipagao das necessidades cotidianas dos interesses em jogo. Com isso tomou-se possivel uma reutralizagao dos inte- resses concretos na formagio do préprio direito, neutralizacao essa ja exigida politicamente pela separacio dos poderes e pela autonomia do poder judicié- rio. Além disso, no século XIX, a atividade dogmatica néo se vincula mais a nenhum direito sagrado, nem mesmo a um contetido ético teologicamente fundado, mas a formas abstratas, sobre as quais se dispée com certa liberda- de por meio de novas abstragées. Mesmo a polémica da Jurisprudéncia dos Interesses — ¢ mais tarde da Escola da Livre Interpretapéo ~ contra uma Juris- prudéncia dos Conceitos, nao muda esta situagao que domina a ciéncia dog- ‘mética. Fla nao ocorre contra seu carter abstrato, contra sua conceptualida- de, mas somente contra uma pretensio de um dispor conceitual autnomo sobre questdes juridicas apenas de um ponto de vista cognitivo. Assim, no sé- culo XIX, a ciéncia dogmética instaura-se como uma abstragao dupla: a pré: pria sociedade, & medida que o sistema juridico diferencia-se como tal de ou- ttos sistemas ~ do sistema politico, do sistema religicso, do sistema social ~ stricto sensu ~ constitui, ao lado das normas, conceitos e regras para sua ma- nipulagao auténoma. Ora, isto (normas, conceitos e regras) passa a ser 0 ma- terial da ciéncia dogmatica, que se transforma numa elaboracéo de um mate- rial abstrato, num grau de abstracéo ainda maior, o cue Ihe da, de um lado, certa independéncia e liberdade na manipulagao do direito, permitindo-the grande mobilidade; pois tudo aquilo que é direito passa a ser determinado a partir de suas proprias construgées. Nesse sentido, Jhering fala-nos da cons- ‘rugio juridica, ligada, é verdade, ao diteito positivo como um dado, mas ¢a- paz de Ihe dar a unidade sistematica necesséria para sua prépria atuacdo. E também, nesse sentido, em ‘jurisprudéncia inferior” fa que trata da matéria jurfdica em sua forma origindria, tal como ela é dada) e “jurisprudéncia su- ‘© nmErTo cov onveTO DE coHECMENTO: PRELHUsTERIC 81 perior” (que transforma aquela matéria em nogdes mais altas). De outro | lado, porém, paga-se um preco por isso: 0 risco de um distanciamento pro- ‘gressivo da realidade, pois a ciéncia endo abstracio de abstra- fan, var probeupatse'de modo ead ver mals prepooderante com «fungio de suse propriascassiaghes, om anata jurdien de seus prprios com] ceitos ete. 2.6 CIENCIA DOGMATICA DO DIREITO NA ATUALIDADE: O DIREITO COMO INSTRUMENTO DECISORIO A primeira metade do século XX acentua as preocupagdes metodol6 sgicas j4 presentes no século anterior. O in{cio do século ¢ dominado por cor- Tentes que o levam as preocupagdes do pandectismo a seu maximo aperfei- oamento ~ por exemplo, na obra de Kelsen — ou insistem numa concep¢ao Tenovada do saber juridico, ligando-o & realidade empirica, Como latente he- ranca dos métodos dedutivos do jusnaturalismo, permeados pelo positivismo formalista do século XIX, podemos lembrar inicialmente algumas teorias juri- dicas, sobretudo do Direito Privado, cujo empenho sistemético estd presente ‘em muitos de nossos manuais. O jurista aparece af com o tedrico do direito {que procura uma ordenacéo dos fenémenos a partir de conceitos gerais obti- dos, para uns, mediante processos de abstracdo Idgica e, para outros, pelo re- conhecimento de institutos historicamente moldados e tradicionalmente mantidos. £ possivel notar, neste momento, a preocupagao de constituir séries conceituais ~ como direito subjetivo, direito de propriedade, direito das coi sas, direito real limitado, direito de utilizacao das coisas alheias, hipotecas etc. A caracteristica desse tipo de teorizagao ¢ a preocupacao com a comple- tude, manifesta nas elaboracées de tratados, em que se atribui aos diferentes conceitos € a sua subdivisio em subconceitos uma forma sistematica, 0 que deve permitir um processo seguro de subsungo de conceitos menos amplos a conceitos mais amplos. A ciéncia dogmética do direito constréi-se, assim, como um processo de subsungdo dominada por um esquematismo binério, que reduz os objetos juridicos a duas possibilidades: ou se trata disso ou se trata daquilo, construindo-se enormes redes paralelas de segoes. A busca, para cada ente juridico, de sua natureza ~e esta é a preocupago com a na- tureza juridica dos insticutos, dos regimes juridicos etc. ~ pressupée uma ati vidade teérica desse tipo, na qual os fendmenos ou sao de direito piblico ou de direito privado, um direito qualquer ou é real ou é pessoal, assim como 82 vTRoDuCho No EsTULO DO HARE ‘uma sociedade ou & comercial ou é civil, sendo as eventuais incongruéncias bu tratadas coma excecdes (natureza hibtida) ou contornadas por ficgOes. esse quadro, a cigncia dogmética do direito, na tradicéo que nos ‘vem do século XIX, prevalecentemente liberal, em sua ideologia, e encaran- Yo, por conseqiiéncia, 0 direito como regras dadas (pelo Estado, protetor repressor), tende a assumir o papel de conservadora daquelas regras, que, en- tio, sao por ela sistematizadas e interpretadas. Fssa postura reérica é denomi hada por Norberto Bobbio de teoria estrurural do direito, Nela prevalece um enfogue que tende a privilegiar as questoes formats, como o problema men Gionado da “natureza juridica” dos institutos, da coeréncia do ordenamento jJuridico, do estabelecimento de regras de interpretacio, da conceituagdo ana- Iitica de nogdes basicas como obrigacio, responsabilidad, relacdo juridica, sango como uma retribuicio negativa (pena, castigo), sentido de ato lieito ¢ ilicito, direito subjetivo etc. O enfoque estrutural, em suma, é um enfoque a ‘posteriori, que toma o direito dado e procura as condigdes de sua aplicagao. Podemos dizer, nesse sentido, que a ciéncia dogmatica do direito cos- ‘uma encarar seu objeto, 0 direito posto e dado previamente, como um. con junto compacto de normas, insttuigdes e decisbes que Ihe compete sistema Zar, interpretar e direcionar, tendo em vista uma tarefa pritica de solugio de possiveis con! 5 que ocorram socialmente. O jurista contemporaneo prea Eipa-se, asim, com 0 direito que ele postula ser um todo coerente relativa- mente preciso em suas determinacées, orientado para uma ordem finalist, ‘que protege a todos indistintamente. Ciéncia Dogmatica do Direito e seu Estatuto Tedrico 3.1 DOGMATICA E TECNOLOGIA: A fim de completar este capitulo introdutério, € preciso chamar a atengdo daquele que se inicia no estudo da cignciajuridica para uma discus sio que emerge da tendéncia, historicamente perceptivel, de o jurista conce: ber seu saber na forma preponderante de uma ciéncia dogmatica. ___ Como vimos, 0 saber juridico é mais amplo que um estrto saber dog- rmitico. No entanto, sobretudo no iiltimo século e até meados deste, vem pre- valecendo a idéia de que o direito-ciéncia & constituido de teorias sobre 0s or- denamentos juridicos vigentes e suas exigéncias préticas. Em conformidade com isso havia e ha a idéia de que o direito-objeto deste conhecimento ¢ basi camente um fendmeno de disiplina social sob a forma repressva, punitiva. Essas idéias reproduzem, na verdade, uma concepgio da sociedade tipica do século XIX. Com efeito, a importancia conferida ao aspecto repressivo ~ 0 di: reito como expressio do proibido @ do ohrigatério ~ repradu. a distinglo ~ hhegeliana — entre sociedade civil e Estado, bem como a cisdo entre a esfera dos interesses econémicos e dos interesses politicos, entre o homem na con- digdo de burgués e o homem na condigao de.cidadao, conforme a sociedade industrial do século passado. Em principio, nessa visio, o Estado assume a funcao de garantidor da ordem publica e o direito, estabelecido ou reconhe~ cido pelo Estado, constitui um elenco de normas, proibigdes e obrigacées, instituigées, que o jurista deve sistematizar e interpretar, " 84 xtaooucio ao EsTuD0 DO DIRE E verdade que, moderamente, as transformagées © o aumento de ‘complexidade da sociedade industrial alteram em parte essa situago. Afinal, hoje, 0 Estado cresceu para além de sua fungio garantidora e repressiva, aparecendo muito mais como produtor de servigos de consumo social, de re- gulamentador da economia e de produtor de mercadorias. Com isso, foi sen- do montado um complexo instrumento juridico que Ihe permitiu, de um lado, organizar sua propria maquina assistencial, de servigos ¢ de producio ¢, de outro, criar um imenso sistema de estimulos e subsidios. Ou seja, 0 Estado, hoje, se substitui, ainda que parcialmente, ao mercado na coordena- cao de economia, tornando-se o centro de distribuigao da renda, 20 determi- har pregos, 20 taxar, 20 criar imposios, ao fixar indices salariais ete. De outro lado, a propria sociedade alterou-se, em sua complexidade, com 0 apareci mento de fendmenos novos, como organismos internacionais, empresas mul- tinacionais, fantdsticos sistemas de comunicacéo etc. Ora, neste contexto, o direito, como fendmeno marcadamente repres- sivo, modifica-se, tomando-se também e sobretudo um mecanismo de con- trole premunitivo: em vez de disciplinar ¢ determinar sangbes em caso de in- disciplina, dé maior énfase a normas de organizacéo, de condicionamentos que antecipam os comportamentos desejados, sem atribuir o carter de puni- Go As conseqiiéncias estabelecidas ao descumprimento. Nessa circunstancia, 6 jurista, além de sistematizador e intérprete, passa a ser também um teérico do aconselhamento, das opcoes ¢ das oportunidades, conforme um célculo de custo-beneficio, quando examina, por exemplo, incentivos fiscais, redugdo de impostos, vantagens contratuais, avalia a necessidade e a demora nos pro- cess0s judiciais etc. Nesse sentido, podemos observar que, em sua transformacao histéri- ca, 0 saber juridico foi tendo alterado seu estatuto tedrico, De saber eminen- temente ético, nos termos da prudéncia romana, foi atingindo as formas pré- ximas do que se poderia chamar hoje de saber tecnolégico. Na verdade, a chamada ciéncia (dogmédtica) do direito, sendo uma sistematizagao do ordenamento e sua interpretagao, suas “teorias” chamadas, no conjunto, de “doutrina’, so antes complexos argumentativos, ¢ nao teo- ria no sentido zetético, isto ¢, sistema de proposicées descritivas que, de um lado, compéem um conjunto légico de termos primitives, no observaveis (como, por exemplo, néutron, elétron) e, de outro, um conjunto de regras ‘que permitem interpretar empiricamente, relacionando a fenémenos obser- vveis os termos nao observéveis (cf. Suppes, 1967). Ao contrério dessas, quando 0 jurista diseute temas como a “nulidade das sentencas”, a “natureza juridica das convencées coletivas do trabalho”, os “efeitos juridicos da apa~ réncia de direito", suas teorias (doutrina) constituem, na verdade, um corpo de férmulas persuasivas que influem no comportamento dos destinatérios, as sem vinculé-los, salvo pelo apelo a razoabilidade ¢ & justiga, tendo em ‘abicx Bocurica vo pier ESE ESTATUTO TEORIGO vista a decidbildade de possiveisconflits. As proposigdes doutrinéras, asim, ‘toma: (1) ou a forma de orientag6es, ou Sela, proposigées que pretendem ill minar aquele que deve tomar uma decisao, dando-the elementos cognitivos suficientes, como esquemas,sistematizag6es; (2) ou a forma de recomenda- 6, isto &, proposigdes persuasivas que pretendem acautelar aquele que vai decidir, fornecendo-Ihe fatos, atuais e histéricos, experiéncias comprovadas, tudo transformado em regras técnicas do tipo “se queres x, deves 2” ou regras pragmaticas do tipo “visto que deves x, entao deves 2; ow ainda, (3) a forma de exortagdes, que persuadem, apelando a sentimentos sociais, valores, em termos de principios, maximas em que se exigem o respeito & justica, ao bem comum, a preponderancia do interesse pablico etc. ___Vejamos, por exemplo, a teoria dogmética que atribui aos sindicatos 0 cardter de pessoa juridica de direto privado. O jursta parte de uma classifi cago dos atores Sociais, vistos como pessoas fisica ¢ juriicas. Pressupde a distingéo entre dieito piblico (0 Direito Administrativo, o Pena, o Processual) e privado (0 Comercial, o Civil) e argumenta: “se o sindicato se caracterizas se como piiblico, estariam irremediavelmente comprometidas tanto a liberda- de sindical como a autonomia privada coletiva, valores que cada vez em in- tensidade maior sio reconhecides como prineipios fundamentais da organizacio sindical, condico mesma da existéncia do sindicalismo” (Nast mento, 1982:159). Note ai o recurso as clasifieacdes (orientagées), 0 apelo a valores ~ como liberdade, autonomia ~ (exoreagées) e a mengéo ao fendmeno hist6rico e social do sindicalismo (recomendagdes). Desse modo, podemos dizer que a ciéncia dogmatica cumpre as fun- 8es tipicas de uma tecnologia. Sendo um pensamento conceitual, vinculado 20 direito posto, a dogmética pode instrumentalizar-se a servigo da agio so- bre a sociedade. Nesse sentido, ela, ao mesmo tempo, funciona como um agente pedagégico — junto a estudantes, advogados, juzes ete. — que insttu- cionaliza a tradico jurdica, e como um agente social que cria uma “realidade” consensual a respeito do direto, na medida em que seus corpos doutrindrios delimitam um campo de solugio de problemas considerados relevantes © cortam outros, dos quais cla desvia a atengio, No exemplo citado, 0 autor isola a problemética politico-social e politic-econémica dos sindicatos, que ele néo ignora, mas que, conceitualmente, é apenas pressuposta na sua argu ‘mentagdo, pois, naquele passo, é mais importante o cardter da pessoa juridica Nesses termos, um pensamento tecnolégico é, sobretudo, um pensa- } mento A problematizacao de seus pressupo: conceitos Bases de ser tomados de modo no problemético - a fim de ‘cumprir sua fung4o: criar condigées.para.a.agao. No caso da ciéncia dogmati-_ a, criar condig6es para a decidibilidade de contlitos juridicamente definide Destarte, quando dizemos que, desde o século passado, houve uma progressiva assimilaggo da ciéncia do direito pelo pensamento dogmético, es- 86 erRoDUCKO AO ESTADO Be DIRETO unos afirmando a ocorréncia de uma assimilagdo de enfoque cientifien do diveto pelo enfoque teenodgico. A ciénca juridica, desde a Antigiiidade, sempre foi considerada, coma vimos, uma cincia prétca. A ciéncia dogméti- ca, na atualidade, nao deixa de ser um saber prético. Mas com uma diferenca importante. Enquanto para os antigos o saber pratico, por exemplo, a juris- prudentia romana, nao estava apartado do verdadeiro, visto que era um sa- ber que produzia o verdadeiro no campo do itil, do justo, do belo, a tecnolo- gia modema deixa de nascer de uma verdade comtemplads pela ciéncia, surgindo antes, como dia Heidegger, de uma “exigéncia” posta pelo homem & natureza para esta entregar-Ihe sua energia acumulada, Assim, a tecnologia dogmatica, 20 contrério da jurisprudentia romana, toma-ée uma provocagdo, uma interpelago da vida social, para extrair dela o maximo que ela possa dar. A tecnologia juridica atual forga a vida social, ocultando-a, ao manipulé-la, 40 contrério da ciéncia pratica da Antigiidade, que se prostrava, com hum dade, diante na narureza das coisas. Por exemplo, se, no passado, seria in- concebivel imaginar que o instituto juridico do matrimnio pudesse ser apli- cado as relagdes homossexuais, na atualidade, por meio da manipulacao conceitual, essa hip6tese adquire viabilidade. saber dogmatico contemporaneo, como tecnologia em principio se- mnthante Ss tecnologissindustiis, um taberem que @ influéncia da visao econdmica (capitalista) das coisas é bastante vsivel. A idéia do edlculo em termos de relacio custo/beneficio esté presente no saber juridico-dogmitico da atualidade. Os conflitos tém de ser resolvidos juridicamente com 0 menor {indice possivel de perturbacao social: eis uma espécie de premissa oculta na aioria dos raciocinios dos doutrinadores. E dbvio que, nesse cdlculo, no conta 56 a eficiéncia das relasées pro- postas, pois a eficiéncia vem limitada e dimensionada pelo direito vigente (quer no sentido de normas postas pelo Estado ~ lei, regulamentos, atos ad- ministrativos ~, quer no sentido de normas costumeitas, quer no sentido de prineipios gerais de ordem ética, lbgica ou técnica). Ou seja, 0 cleulo jurii- ¢o leva em consideragao os limites dogméticos em face das exigéncias so ais, procurando, do melhor modo possivel, criar condigdes para que os con- flicos possam ser juridicamente decidiveis. Podemos dizer, nesse sentido, que o saber dogmatico, fa como ee aparece nos tratados juridicos (de Direito Civil, Penal, Comercial etc.) ou nos comentios (Comentarios 2 Constiuigho Cédigo Civil ‘Comentado etc.) ow nos ensaios (teoria da a¢do no processo brasileiro, teoria da responsabilidade no Direito Administrativo ete.), tem, inicialmente, uma funcao pedagégica, posto que forma e conforma 0 modo pelo qual os juristas encaram os conili- {0s sociais. Tem também uma fungio de desencargo para o jursta, pois per mite que este, seja juiz, advogad, promotor, legiiador, no soja cbrigado a tomar consciéncia de todo o repertério argumentativo a utilizar-se em cada caso, posto que previne, de modo genérico, uma série de solugdes possiveis Para a interpretagio e aplicacao do direito. Tem ainda a funcio de institueto. nalizar a tradigdo Juridica, gerando seguranca e uma base comum para os técnicos do direito (que séo seus aplicadores) ‘Ao contrrio das teorias zetéticas, as dogmaticas, preocupadas com a decidibilidade de conflitos, nao cuidam de ser logicamente tigorosas no uso de seus conceitos e definig6es, pois para elas o importante nio é a relaglo com os fenémengs da realidade (descrever os fendmenos), mas sim fazer aim corte na realidade, isolando os problemas que sao relevantes para a tomada de decisio e desviando a atengio dos demais. Por exemplo, muito embora doutrina tenha consciéncia da multiplicidade de sentidos, problemas e dados empiticos referentes a fama, a0 fornecer-ihe um sentido técnico (grupo fe. chado de pessoas, composto de pais ¢ filhos e, para efeitolimitados, paren. tes, unidos pela convivéncia e afeto, numa mesma economia ¢ sob a inesina dlirecdo), ef. Ferrara, citado por Maria Helena Diniz (1982:5), isola um as ecto da realidade ~ a familia, al como ela se apresenta em alguns grupos mormente ha tradicdo ocidental~ estabelecendo um corte em relagio ‘os demais dados antropolégicos ~ agrupamentos em que a relagao pai-mae. flhos ¢ secundéri, formas comunitérias em que a familia ndo é'a cella pr. mméria etc. Com isso ressalta-se a preocupagdo com questées sucesséria, fis. cai, previdenciias etc. desviando-se a atencio de problemas outros como, Por exemplo, a itrelevncia das normas para certos agrupamentos promis, ‘cuos que se formam nos bolsées le miséria das periferias urbanas do mundo subdesenvolvide. Assim, os conceitos mais importantes da dogmética, usados de modo nio problemética (por exemplo, o conceito de vigéncia, vigor, eficdcia), ret. hem, simulaneamente, aspectos de concedes descritivos e de firmulas de asa (exemplo: 0 conceito de “declaraczo de vontade” aponta para algo real, consistente, mas é também uma espécie de etiqueta para a argumentacio, pois em seu nome pode-se reconhecer um ato como declaragao de vontade, ou pode-se impugnar este cardter), 3.2 DECIDIBILIDADE DE CONFLITOS COMO PROBLEMA CENTRAL DA CIENCIA DOGMATICA DO DIREITO Note inicialmente que nio falamos em objeto, mas em problema, SGUisso, queremos dizer que, seja qual for o objeto que determinemos para @ Giéncia Dogmética do Direito, ele envolve a questio da decidibilidade, 87

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