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9 O DESAFIO DA HISTORIA INDIGENA NO BRASIL! JOHN MANUEL MONTEIRO A historiografia brasileira, ao longo das tiltimas duas décadas, tem bus- cado incorporar grupos sociais antes ignorados pela bibliografia. Ao mesmo tempo, abordagens antropoldgicas tém penetrado diversas areas de investig: cao histérica, abrangendo estudos sobre a inquisigfo, a escravidao, as rela- ces de género, as mentalidades, entre tantos outros assuntos. Diante deste quadro, contudo, é de se estranhar a pouca atengdo dispensada aos povos in- digenas pelos historiadores. Com excecao de poucos estudos, parece prevale- cer, ainda hoje, a sentenga pronunciada pelo historiador Francisco Adolfo Varnhagen, na década de 1850: para-os indios, ‘“‘ndo hd histéria, hd apenas etnografia”’.2 Entre antropdlogos, no entanto, tem surgido um renovado interesse pela hist6ria indigena. Renovado, pois, nao se trata apenas de preencher as lacu- nas e omissdes legadas pelos historiadores € antropélogos de geracées ante- 1. Uma primeira versio deste texto foi publicada com o titulo “Hist6ria Indigena: repensando 0 passado, othando para 0 futuro’, na revista Temporais, n. 4, 1993, publicago dos alunos do curso de Histéria da USP. Outra versio foi apresentada no VI Encuentro Intefnacional de Historiadores Latinoamericanos y del Caribe, em Mesén de la Muralla, Querétaro, México, em 1994. 2. F. A. Vamhagen (Visconde de Porto Seguro), Histéria Geral do Brasil (1854], 10 edicao integral, Sao Paulo, Edusp, 1981, vol. 1, p. 30. Com estas palavras, Varnhagen aprofundava a visto pessimista jd esta belecida por C. F. P. von Martius, em “Como se deve escrever a histéria do Brasil", Revista do Instituto Histérico e Geografico Brasileiro, 6 (1845), pp. 389-411. 222 A Temética Indigana na Escola riores, como também envolve a discussfo critica das formas pelas quais 0 passado indigena tem sido abordado desde os tempos coloniais. De fato, autores tao diversos como Gabriel Soares de Sousa, Simio de Vasconcelos, Alexandre Rodrigues Ferreira, Carl F. P. von Martius, F. A. Varnhagen, Karl von den Steinen, Capistrano de Abreu, Florestan Fernandes € Darcy Ribeiro — entre tantos outros, como os integrantes dos institutos his- WGricos € geograficos estaduais — todos buscaram, a seu modo, diante dos desafios politicos ¢ limites tedricos de suas respectivas épocas, atribuir um Significado a hist6ria das populagdes indigenas. Porém, se hd um trago co- mum entre estes observadores pensadores, tio dispersos no tempo, é 0 pes- simismo com que encaravam o futuro dos povos nativos. Sobretudo a partir do século XIX, a perspectiva que passava a predomi- nar prognosticava, mais cedo ou mais tarde, 0 desaparecimento total dos po- vos indigenas. A tese da extingfio, sustentada Por sucessivas correntes do Pensamento social brasileiro e reforcada, mais tarde, pelas teorias que orien- favam a antropologia no pais, encontrava na histéria uma sdlida base de apoio. Assim, para von Martius, as sociedades americanas, enquanto frutos de uma decadéncia ou degenerescéncia histérica, traziam “ja visivel o gérmen do de- saparecimento répido’’; para os cientistas do final do século XTX e inicio des- te, firmemente amarrados a um paradigma evolucionista, a fragilidade destes “homens da idade da pedra’’ diante do rolo compressor da civilizacio jé da- va, de antemio, a resposta para o futuro dessas sociedades*; ¢ para a antro- pologia brasileira nas décadas intermedifrias do século XX, as frentes de expansao forneciam um roteiro em’que se repetia a histéria da destruicdo © “transfiguracdo”” das etnias indigenas, ao passo que a perspectiva tedrica da aculturacdo propunha um outro caminho para o mesmo desfecho fatal 3 Sao bem conhecidas as conseqiiéncias deste suporte tedrico para a politi- ca indigenista no pais: posto na pratica, redundava no deslocamento de popu- lacdes, na imposieao de sistemas de trabalho que desagregavam as comunidades, na assimilagao forcada, na descaracterizagdo étnica e, em episddios de triste memoria, até na violéncia premeditada ¢ no extermfnio fisico. Mesmo nas fases mais esclarecidas da “‘protegio’’ oficial, os érgaos indigenistas traba- Ihavam no sentido de amenizar o impacto do proceso “‘civilizatorio’’, consi- Tous, FB Yon Martius, © Estado de Direito entre os Autéctones do Brasil (1832], So Paulo, Edusp, 1982, p. 70. 4. Sobre os conceitas cientfficos ¢ o pensamento social neste periodo, trés obras recentes merecem desta que: Antonio Carlos de Souza Lima, “‘Aos Fetichistas, Ordem e Progresso: um estudo do campo indige- fist no seu estado de formagao”’, disseriagio de mestrado (inédita), Muse Nacional da Universidadle Federal do Rio de Janciro, 1986; Roberto Ventura, Estilo Tropical: hist6ria cultural e polémicas lierértas no Brasil, S40 Paulo, Companhia das Letras, 1991; e Lilia K. Moritz, Schwartz, O Espetdcula das Racas: Cientistas, instituigdes e quesiao racial no Brasit, 1870-1930, Sio Paulo, Companhia das Letras, 1993, 5, Wer, entre outros, Darcy Ribeiro, Os Indios e a Civilizagdo, Rio de Janciro, Civilizagdo Brasileira, 1970, sobretudo a parte originalmente redigida no final dos anos 50. © desefio de hiatérie indigene aoa derado um fato inevitével que, dia mais, dia menos, levaria 4 completa integragio dos indios & nacio brasilei Nos ultimos anos, entretanto, o pressuposto de que os indios simplesmente deixarao de existir comegou a ser revertido, de modo que hoje, talvez pela primeira vez na histéria do Brasil, paira uma certa nuvem de otimismo no horizonte do futuro dos indios. A principal voz discordante, em enfatica ne- gacao da tese do desaparecimento, pertence aos préprios indios que, através de novas formas de expresso politica — tais como as organizacoes indigenas —, reivindicam e reconquistam direitos. histéricos. O novo indigenismo, por seu turno, encontrou, desde a primeira hora, fortes aliados no meio antropo- Idgico, que passaram a pautar suas pesquisas nfo apenas a partir de interesses académicos mas também pela necessidade de fornecer subsidios para as lutas ¢ reivindicagdes dos indios. Assim, surge uma nova bibliografia que tem con- tribufdo nfo apenas para ampliar a visibilidade de povos indigenas numa his t6ria que sempre os omitiu, como também revela as perspectivas destes mesmos povos sobre seu préprio passado, incluindo visdes alternativas do contato e da conquista. Se a nova hist6ria indigena no Brasil brotou nesta particular conjuntura entre a antropologia e o indigenismo, encontrou um campo fértil para crescer a partir de uma série de elementos novos. Primeiro, a populacio indfgena, em continuo declinio desde a primeira metade do século XVI, tem-se estabi zado, mostrando até uma tendéncia de aumento, apesar dos recentes abalos epidemiolégicos sofridos pelos Yanomami e por outras etnias. De acordo com os dados do Centro Ecuménico de Documentacao e Informagao (CEDI), os cerca de 206 povos indigenas perfazem por volta de 270.000 individuos®: um mimero talvez irrisério no contexto global da populacao brasileira, porém, ao mesmo tempo, elogiiente testemunho do despovoamento histérico, numa propor¢ao provavelmente maior do que 15:1.7 Segundo, o movimento em prol dos direitos histéricos dos indios tem avan- gado muito. De fato, tem-se assistido nos tiltimos anos uma proliferagio de novas organizagées indigenas e indigenistas no Brasil. Sio novas nao apenas em termos de sua formaciio recente, mas antes em funcao de suas caracteristi- cas politicas, refletindo o movimento mais geral da organizacio da sociedade civil, porém representando igualmente uma ruptura especialmente forte com um longo passado de dependéncia no Estado, que remonta aos primérdios da colonizagao portuguesa na América. Através da busca de aliados supra- -comunitérios, de cardter nacional ou mesmo internacional, as organizacoes indigenistas tém contribuido para uma reformulagao fundamental do modo de 6. Cf. capitulo 12 deste volume. 7. A demografia hist6rica indigena, campo tio avangado para outras partes das Américas, permancce ape- nas incipiente na Rrasil 224 A Temitica Indigena na Escola A danca dos ntimeros: a populacao indigena do Brasil desde 1500* De maneira geral, o estudo da populagao indigena no Brasil tem-se preo- cupado com dois aspectos entrelacados: 0 tamanho original da populagéo (no momento) do contato e o grau de seu declinio. Nesta perspectiva, os povos in- digenas, supostamente em equiltbrio demogrdfico antes do primeiro contato com brancos, sofrem profundos abalos quando expostos a fatores externos, tais co- mo as doencas ndo-endémicas, a violencia dos colonizadores e a descaracteri- zacdo da cultura nativa, iniciando assim uma caminhada inexordvel rumo a seu desaparecimento final. O modelo é tao simples quanto equivocado: ndo apenas apresenta as po- pulacdes pré-contato em termos estéticos, como também considera a mortali- dade - aumentada por esses fatores - como o iinico mével de mudanca demogrdfica. Fundamenta-se, @ rigor, no pressuposto corriqueiro de que os fndios estariam fadados a extinedo, em fungao de seu desaparecimento puro e simples ou, na melhor das hipéteses, ¢!: sua assimilagao a populacéo nacional. Crescimento atual. Esta perspectiva, no entanto, torna-se cada vez mais in- sustentdvel diante do quadro atual pois, apesar dos reveses enfrentados por al- guns povos em anos recentes - como os Yanomami, face aos garimpeiros e é malaria -, a populago ind(gena tendle a crescer como um todo. Além disso, pela primeira vez na atribulada hist6ria da politica indigenista no Pats, esbocam. ~se garantias legais voltadas para o futuro dos indios, abrangendo.o reconhe- cimento de direitos territoriais e 0 abandono da orientagdo assimilacionista que ‘marcou as politicas anteriores. As implicagoes desta nova perspectiva - que sublinha a continuidade ao invés da ruptura, contemplando outras dindmicas demograficas que ndo o de- clinio - também repercutem na andlise das populacoes do passado. Longe de uma crénica de extingao dos povos indigenas, a demografia histérica indigena hd de servir como suporte para explicar os complexos processos que marcaram @ trajetéria desses povos. Revisio de estimativas. Para tanto, é necessério reformular alguns pressu- postos vigentes no estudo das populacoes indigenas. Em primeiro lugar, qual- quer estimativa da populacao global de 1500 terd de levar em conta fatores histéricos, tais como os efeitos diferenciados das doencas sobre povos distintos € 0s movimentos espaciais de grupos indtgenas em decorréncia do contato, en- tre outros. As estimativas mais ponderadas, que oscilam entre dois e quatro milhdes para o territério brasileiro, cometem sérios enganos ao transportar cél- culos referentes aos séculos XVI, XVII ou XIX ao marco zero de 1500. John Hemming, por exemplo, em seu livro Red Gold, arrola os Tupinambd do Mara. nhao e da itha Tupinambaranas como componentes da populagao de 1500, quan- do na verdade sao grupos que migraram para esses lugares na segunda metade do século XVI. Mais grave: inclui os Avd-Canoeiro, grupo recomposto a partir do século XVII, que sequer existia em 1500. * Publicado na Revista Tempo ¢ Presenga, CEDI, Ano 16, , 273, pp. 16-17. 0 desatio da histéris indigene 2 do mesmo tempo, é preciso redimensionar modelos pautados em teorias que impoem limites ecoldgicos a expansao demogréfica. Sabemos, a partir das fontes escritas dos séculos XVI e XVI, que as aldeias tupi-guarant da faina litordinea do Brasil ¢ da fitura regido sul eram maiores e mais densas do que seus sucessores, estudados pela emologia moderna, do mesmo modo que ha indicios historicos e arqueolégicos de populacaes densas em zonas de vérzoa na Bacia Amazénica. Nesse sentido para se entender melhor o processo de des. Povoamento, é necessdrio também conhecer 0 proceso de povoamento ante~ rior & chegada dos europeus. Despovoamento ¢ deslocamento. Quanto ao proceso de despovoamento em si, ainda sabemos pouco a respeito do impacto diferenciado das doengas sobre 4s populacdes atingidas. A agao das epidemias, embora sempre semeasse am- los estragos, nao se dava de modo uniforme ou previsivel, mas dependia igual mente de outros fatores correlatos: 0 grau de isolamento, o agravamento causado por outros flagelos (como a fome); 0 acesso & assisténcia; e outros. Porém, também estava intrinsecamente articulada aos sistemas de trabalho, ds formas de apropriacdo do solo e & politica indigenista dos brancos, Nos sistemas de apresamento e descimento vigentes nas Capitanias do Sul e na Amazénia colo. nial, por exemplo, criava-se um circulo vicioso no émbito epidemioldgico: em cada surto que se abatia sobre a populagao escravizada ou aldeada, os coloncs ¢ 08 missiondrios voltavam-se para 0 sertao com finalidade de repor o nimero de indios perecidos. No entanto, os novos cativos e catectimenos, expostos pela primeira vee as doencas, agravavam as crises de mortalidade Outro aspecto fregitentemente negligenciado reside nos deslocamento popula- cionais que marcaram grande parte da histéria do Brasil. Assim, 0 despovoa- mento de uma regido nao redundava, necessariamente, em perdas demogréficas no quadro global. Este processo também pode ser ilustrado pelo exemplo da escravizacdo e dos descimentos: enquanto diversos grupos foram esfacelados para compor a populacao indigena diretamente subordinada aos interesses dos colonizadores, outros fizeram longas migracdes para postergar 0 contato com 98 brancos. Foi o caso dos Tupinambé (migraram do litoral para o Médio Ama. Zonas a partir do século XVI), dos Waidpi (grupo origindrio do Rio Xingu, atual- mente estabelecido no Amapd), dos Kayowé (a partir do século XIX migraram do Paraguai e Mato Grosso do Sul para o Vale do Paranapanema e litoral sul do Brasil), dos Avé-Canoeiro (migraram da regido das minas de ouro de Goids para 0 rio Tocantins no século XVII), dos Guajajara (a partir do século XVI deslocaram-se progressivamente para o interior do estado do Maranhao), para citar apenas os exemplos mais claramente documentados. Preconceitos. Em plena véspera do século XXI, 0 tamanho da populagao ind. gena do Brasil permanece objeto de muitas contestacdes. Para uns, sua expressao irrisoria no conjunto global da populacao do Pais - perfazendo, hoje, algo em toro de 0,17% - nao justificaria nem as reivindicagoes territoriais das povos indfgenas remanescentes, nem sua presenca na politica nacional, considerade desproporcional a seus niimeros. Para outros, a populacdo indigena atual re. Presentaria apenas a ponta de um iceberg que, no pasado, teria englobado 226 A Temética Indigena na Ssoole mais de oito mithoes nas Américas como um todo -, 0 que serve para dimensio- nar 0 tragico impacto das sucessivas acées dos colonizadores e do Estado ao longo dos tiltimos cinco séculos. Se sd0 os nimeros que emprestam dramaticidade e contundéncia aos argu- mentos, sua aparente objetividade esconde, muitas vezes, pressupostos falsos, preconceitos velados e vontades politicas. A verdade é que praticamente desco. nhecemos as caracteristicas demogréficas, tanto historicas quanto atuais, dos povos indigenas do Brasil. Trata-se de um desafio para antropblogos, historia- dores ¢ entidades indigenistas que, mesmo pouco familiarizados com as técni- cas ou com os problemas da demografia aplicada, muito poderdo contribuir para 0 conhecimento dos povos indigenas e, por extensdo, do préprio pats. John Manuel Monteiro CEBRAP/UNICAMP Se pensar o futuro das sociedades indfgenas no Brasil. Esta reformulagao, por seu turno, tem repercutido de forma significativa nao apenas no campo teéri- Co como também no legislativo, a julgar pelos avancos da Constituicao de 1988 ¢ pela predisposicao — ainda que hesitante — do Estado, através do ministé- rio puiblico, em afirmar os direitos histéricos dos povos nativos.® O terceiro elemento ambienta-se mais especificamente no méio académi- co. Em anos recentes, um renovado didlogo entre a antropologia ¢ a histéria tem propiciado, nas Américas como um todo — sem falar de outras partes do mundo —, um surto significativo de estudos sobre a histéria dos povos colonizados, estudos que oferecem 0 contraponto das dindmicas locais e re- gionais para se repensar tanto as abordagens estruturalistas quanto as teses globalizantes das décadas anteriores.? Ao passo que aquelas subordinavam o Ppensamento € a agao dos fndios as estruturas inconscientes enquanto estas en- quadravam as sociedades invadidas como inermes ¢ inocentes vitimas de pro- Cessos externos, a tendéncia geral era a de minimizar, ou mesmo eliminar, 68 indios enquanto atores histéricos. Em contrapartida, a antropologia hist. rica buscava qualificar a a¢ao consciente — agency, em inglés — dos povos 8. Carlos Alberto Ricardo, ‘Quem Fala em Nome dos fndios?””, Povos Indfgenas no Brasil, 1987/88/89/90 (Aconteceu Especial no, 18, 1991), pp. 69-72. 2. Para o Brasil, um marco fundamental foi a publicacio da coletinea organizada por José Roberto do Amaral Lapa, Mdos de Producdo e Realidade Brasileira, Petropolis, Vozes, 1980, gue retine ensaios de cconomia politica que demarcam o pensamento de uma geracio. Quanto & critica as posturas globalizantes € ao pensamento estruturalista, veja-se a excelente introducao a Jonathan Hill, org.» Rethinking History and Myth: indigenous South American perspectives on the past, Urbana, University of llinois Press, 108), Marshall Sahlins, islands of History, Chicago, University of Chicago Press, 1985; e William Roseberry, Gtitrorologies and Histories: essays in culture, history and political economy, New Brunswick, Ruteecs University Press, 1989. 0 dosstio da historia indigene nativos enquanto sujeitos da histéria, desenvolvendo éstratégias politicas e mol- dando o préprio futuro diante dos desafios ¢ das condigdes do contato e da dominacao.10 Somado ao deslocamento do enfoque teérico, os historiadores e antrop6- logos passaram a adotar como fonte de confianca outros géneros de discurso hist6rico, tais como os mitos ¢ outras narrativas das tradigdes orais. O con- junto desses estudos recentes, enriquecendo 0 conhecimento do passado das sociedades que vivenciaram a penetracdo da expansdo européia, 20 mesmo tempo tem obrigado os antropdlogos e historiadores a reverem seus préprios conceitos e preconceitos!!. Neste contexto, ainda que de forma apenas incipienie, a hist6ria indigena lanca no Brasil um duplo desafio. Por um lado, cabe ao historiador recuperar © papel histérico de atores nativos na formago das sociedades e culturas do continente, revertendo 0 quadro hoje prevalecente, marcado pela omissao ou, na melhor das hipoteses, por uma visdo simpética aos indios mas que os en quadra como vitimas de poderosos processos externos a sua realidade. Afinal de contas, conforme bem destaca, em artigo recente, a antropéloga e especia- lista em histéria indfgena Manuela Carneiro da Cunha ‘‘ndo é a marcha inelu- tavel e impessoal da hist6ria que mata os indios: sdo acdes e omissdes muito tangiveis, movidas por interesses concretos’’.! Por outro, e muito mais com- plexo, faz-se necessdrio repensar o significado da hist6ria a partir da expe- rigncia e da meméria de populagdes que nao registraram — ou registraram pouco — seu passado através da escrita. Nesta grande reavaliacio das sociedades indigenas e das politicas indige- nistas, a historiografia tem — e terdé — um papel fundamental, decisivo até. Pois cabe aos historiadores, através de uma revisao séria das abordagens vi- gentes — que relegam os indios a um papel fugaz ¢ mal-explicado no inicio da colonizacao, que reservam aos mesmos indios um enquadramento etno- grafico e nao histérico ou, ainda, que reduzem-nos a meras vitimas do inexo- rdvel processo da expansio europgia —, nao apenas resgatar mais esses “‘esquecidos’’ da historia, mas antes redimir a prépria historiografia de seu papel conivente na tentativa — fracassada — de erradicar os indios. Mais do que isso, a historiografia poderé fornecer fundamentos e diretri- zes para a compreensao do desafio tedrico e politico que os indios apresentam para a sociedade e para o Estado brasileiro. Trata-se, vale dizer, de uma revi- 10. Ver Hill, “Introduction: myth and history"’, op. cit.; Manuela Carneiro da Cunha, “Introdugao & uma Historia Indigena”’, in HistOria dos Indios no Brasil. Sao Paulo, Companhia das Letras/Fapesp/Secrotatia Municipal de Cultura, 1992, pp. 9-24. 11. Dentre os excelentes ensaios lidando com esta temitica na coletanea organizada por J. Hill, destaca-se a discussio em Alcida Ramos, “Indian Voices: contact experienced and expressed”, in Rethinking His- tory and Myth, pp. 214-234. 12, Manuela Cameiro da Cunha, “Parceria ou Barbéric’’, Folha de $. Paulo, 22/8/1993, p. 3. 228 A Tematica Indigena na Escola sfio jd em curso, através das excelentes coletineas e revistas publicadas por ocasiéo do V Centenario — merecendo destaque a Histéria dos Indios no Brasil, organizada por Manuela Carneiro da Cunha!3 — e de uma agenda para o fu- turo, uma vez que se torna cada vez mais evidente a potencialidade das fontes para a hist6ria indfgena que jazem, empoeiradas, em centenas de arquivos no pais.14 A extingao dos indios, tantas vezes prognosticada, é negada enfaticamen- te pela capacidade das sociedades nativas em sobreviver os mais hediondos atentados contra sua existéncia. Recuperar os miltiplos processos de intera- co entre essas sociedades e as populagdes que surgiram a partir da coloniza- Ao européia, processos esses que vio muito além do contato inicial e dizimagao subsequente dos {ndios, apresenta-se como tarefa essencial para uma historio- grafia que busca desvencilhar-se de esquemas excessivamente deterministas. Com isto, paginas inteiras da histéria do pafs serao re-escritas; e ao futuro dos indios, reservar-se-4 um espaco mais equilibrado e, quem sabe, otimista. 13. Editado pela Companhia das Letras, 1992. A esta obra deve-se somar a coletinea Indios no Brasil, corganizada por Luis Donisete Benzi Grupioni, Si0 Paulo, Secretaria Municipal da Cultura, 1992. 14, John Monteiro (coordenador), Guia de Fontes para a Histéria Indigena ¢ do Indigenismo em Arquivos Brasileiros, S80 Paulo, NHI-USP/Fapesp, 1994 riences e jovens 228 Criangas e jovens nas comunidades indigenas A infancia é uma fase de aprendizado social. Brincando, imitando os pais, ouvindo as histérias que os mais velhos contam, participando das atividades cotidianas ¢ rituais do grupo é que as criancas crescem e se tornam adultas. Muito raramente as criangas indigenas s4o punidas; quase nunca fisicamente. A atitude dos pais e dos mais velhos é sempre de grande tolerancia, pacién- cia, atengio e respeito as suas peculiaridades. Desde cedo as criangas apren- dem as regras do jogo social. E, embora os pais sejam os responsdveis mais diretos pela criaco dos filhos, 0 processo mais amplo de socializagao, de trans- formar as criangas em completos membros de suas sociedades, é efetuado tam- bém pelos parentes mais proximos ¢ até pela comunidade inteira. As criancas sio, assim, completamente integradas na vida comunitédria, aprendendo, des- de cedo, 0 que pode ou nao pode ser feito. Foto Luis Donisete B. Grupioni 230 Foto Marco Antonio Goncalves A Taméties Indigens ne Eseole Foto Luis Donisete B. Grupioni Criangas e jovens Xikrin Foto Lux B. Vidal Pankararé Parakana A Temétics Indigene na Escola 293 Criangas ¢ jovens A Tamstica indigene ne Esco! Foto Dominique T. Gallois Xukuru-Kariri Criangiis @ jovens Foto Marco Aurélio Martins/Anai-Ba _ Foto Marcos Santili | g e . ‘Tukano A Tematica Indigena na Escola

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