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O governo Goulart ¢ o golpe civil-militar de 1964 Jorge Ferreira Professor Adjunto deral Fluminense. do Departamento de Histdeia da Universidade Fe Aindaé diffeil, para os historiadores, determinar as relagées entre individuo e sociedade, entre livre-arbftrio pessoal ¢ determinismo social, sobretudo 0 econdmico, Sabemos, no entanto, que a problematica que contrapé indi duo e sociedade refere-se a uma falsa questo. Segundo Phillippe Leviliain, com o esgotamento das teorins globalizantes, principalmente o est mo, foi possfvel avaliar que, embéra os individuos sejam modelados pela sociedade, eles, por sua vez, manifestam preferéncias que devem ser explicadas (1996, p. 168). Apesar do avango nas reflexdes sobre o tema, a historiografia sobre o governo de Joio Goulart ¢ o golpe civil-militar de 1964, via ce re- gra, ainda tem como referencia paradigmas tradicionais, ora culpabilizando um tnico indivfduo, ora referindo-se, ainda que no explicitamente, a esru- turas que determinam, de maneira irrevers{vel ¢ inelurdvel, 0 destino das coletividades. Comecemos por aqueles que preferem personalizar a Histéria, Para a direita civil-militar que tomou o poder em 1964, Goulart era um demagogo, corrupto, inepto e influenciado por comunistas. Motivos suficientes, por tanto, para o golpe de Estado. Para as esquerdas revoluciondrias ea. ottodn xia marxista-leninista, 0 presidente era um Ifder burgués de massa, . unt lideranga cuja origem de classe marcou seu comportamento diibio e vacilar te, com vocagSo inequfvoca para trair a classe trabalhadora, Portanto, sua origem de classe teria permitido 0 golpe. Além disso, segundo muitas inter+ pretagcs, incluindo a de diversos historiadores, um consenso: tratava-se de um “populista”, Nas palavras de Thomas Skidmore, alids, “um populista de pouco talento” (1969, p, 238), Neste caso, portanto, direitas, esquerdas ¢ liberais se unem em uma mesma explicagio: 0 comportamento, a personali- dade ¢ a incapacidade polftica de um Gnico individuo atuaram ¢omo fatores © aNASiL RePusiicANo decisivos, se nio determinantes, para o golpe. Assim, em uma andlisetradi- ional, superada na historiografiae teoricamente inaceitével, 0 regime ins- taurado em margo de 1964 que, durante duas décadas, mudou face do pais, gerando um procesto politico, econémicg, social e cultural de grandes pro- porgbes, teria ocortide devido& falta de talento de um dnico individuo. Da explicagio individual, outras andlises voltam-se para as grandes esteur ruras, Primeito, a mais conhecida e disseminada: margo de 196g significou o “FSwtapso,do populismo no Brasil”. Ocrévio lanni (1975), em interpretagio que s¢ tornou clssica, compreende o golpe como o resultado da contradi- fio entre a crseestrtutal do padrio agririo-exportador ¢ 0s modelos de desenvolvimento nacionalista ¢ associativo com empresas estrangeiras.' A explicagdo estrutural obteve grande aceitagio nas reflextes de diversos estu- diosos, Segundo a critica de Argelina Figueiredo, Guilherme O'Donnel, por exemple, aproximou excessivaniente estgios de indusrializagdo com resi- tres autortdris, Para 0 autor, o processo de industrializagio por substitu io de importagdes,.em um certo estigio, atinge um nivel em que © Grescimento econdmico exige regimes autoritérios na regulagio dos confli- tos. Para Fernando Henrique Cardoso, em viséo ainda mais determinista — continua a autora ém sua critica —, 0 processo de acumulagdo de capital necesita de formas autoritfrias de gestéo, desarmando as classes populares t reestrururando os mecanismos de acumulagso para o desenvolvimento das forgas produtivas, Na avaliagdo de Argelina Figueiredo, em interpretagées ‘como essas 0 determinismo econdmico € evidente. As andlises “presumem ‘uma coincidéncia perfeita enire requisitos estruturais ¢ ag6es individuais ou sgrupais, sem especificar 0 mecanismo artavés do qual a ‘necessidade’se rea liza na ago” (Figueiredo, 1993, p. 23-24). Aconcepgio de que estruturas econbmicas, independentemente da pré- ptia sociedade que as produziram, tornam-<¢ sistemas fechados, com po~ der de auto-regulagio, dominando as iniciativas e as crengas das pessoas, nio € levada mais a sério, A tese que sustenta a inevitabilidade do golpe militar com base nas mudangas no padrio de acumulacéo de capital que ‘ocorreram ainda no governo Juscelino esté, hoje, desacreditada. Trata-te de um determinismo econdmico oriunds de um marxismo que elimina os atores coletivo: —sejam eles grupos organizados ou classes sociais — bem “yee 0 GOVEANO GOULART £ © GOLPE CIVIL-MILITAR OF s454 como o conflito entre eles. Se tudo estaria determinado pelo padrio de acumulagio, 0 destino da sociedade j& estaria tragado, independente dos projetos, interesses ¢ da luta social entre os atores envolvidos, Nada a fa- zer, portanto, Por essa interpretacio, travestida de marxismo, mas de evi- dente enfoque estruturalista, ndo teria havido golpe militar ov acirrainento das lutas sociais no Brasil. Teria havido, simplesmente, “crise de acumula- 40”, ou “do populismo”. Uma outta interpretacio, que no deve ser minimizada, fala, por sua vex, da Grande Conspirasdo, da alianga entre grupos sociais conservadores brasi- leiros — a exemplo de empresérios, latifundisrios, polfticos reacionirios, militares golpistas ¢ Igreja tradicionalista — com a CIA € 0 Departamento de Estado norte-americano, A conspiragio dircitista interna-externa, desse modo, teria sido o fator fundamental para a crise politica de 1964. Nesse tipo de anilise, adotada muitas vezes pelos préprios trabalhistas para explicar a que- da de Goulart, igualmente minimiza-se a participagio dos grupos e das clas- ses sociais que atuaram de maneira conflituosa dentro do pais, deslocando para o exterior os protagonistas da prépria hist6ria vivida pela sociedade brasileira. Nesse sentido, 0 “culpado” pelo golpe teria sido 0 Outro, 0 “es- trangeiro”. Ora, desde 1954 grupos conservadores brasileiros tentaram gol- Pear as instituigdes: em agosto daquele ano, em novembro de 1955, em duas tenrativas no governo de Juscelino ¢ uma decisiva em agosto de 1961. Nio conseguiram. Néo encontraram apoio da sociedade para 0 golpe, Em outras palavras, nio basta conspirar, mesmo que com o apoio de poténcias estran- geiras. £ preciso encontrar uma ampla base social para levar a conspiragio adiante. Para compreender as dificuldades vividas pelo governo de Joio Goulget © a crise politica que permitiu a formagSo de um amplo arco de aliangas en- > tte grupos civis e militares que culminou com sua deposiséo, recorrerei 20 método histérico, reconstituindo as identidades e os interesses dos atores coletivos envolvidos no processo, bem como as lutas politicas e conflivos sociais que eles patrocinaram, © BRASIL REPUBLICANO. (© GOVERNO PARLAMENTARISTA No dia 7 de setembro de 1961, Joio Goulart tomou posse no Congresso Nacional em clima de grande entusiasmo, apesar de assumir o poder em uma conjuntura muito diffcl. Saiu do pafs como vice ¢ voltou como presidente, sem mesmo saber se assumiria. Nem tempo para 0 necessério planejamento de seu governo encontrou. Tornou-se presidente da Republica sob gravissima crise militar, com as contas piiblicas descontroladas, tendo que administrar tum pais endividado interna e externamente, além da delicada situagio polt- tica, Ainda mais grave, Goulart nio tinha como implementar seus projetos reformistas. O sistema parlamentarista, implantado as pressas, visava, na verdade, impedir que ele exercesse seus poderes. Sob um parlamentarismo “brio”, 0 governo nao tinha instrumentos que dessem a ele eficiéncia € agilidade. Tratou-se de uma solusio que resultou de uma ampla coalizdo para impedir 0 golpe militar, isolando os grupos civis ¢ militares que no se con- formaram com a sua posse, garantindo, assim, as instituicoes democréticas. Contudo, a coalizéo democrética, formada por diferentes correlagbes de forgas, nao chegou a um consenso no sentido de manter as regras constitu cionais, sobretudo na questéo da manutengéo do presidencialismo. A solu- io de compromisso, portanto, foi a de restringir os poderes de Goulart com 6 parlamentarismo, impedindo o golpe, mas também frustrando os grupos naciohalistas e de esquerda que lutavam pelas reformas de base (Figueiredo, 1995, p. SU). ; A estratégia do presidente era a de desarmar os seus opositor vadores, procurando ampliar sua base politica com o apoio do centro, s0- bretudo com o PSD, mas, ao mesmo tempo, nao querendo abrir mao de suas iro gabinete, nomeado em 8 de Tancredo res conser relagdes com as esquerdas. Assim, 0 pri setembro e denominado de “conciliagéo nacional”, foi chefiado po Neves, do PSD, partido de maior representagdo na CAmara. Mesmo diante das dificuldades e limitagées, Goulart implementou um programa nacion: lista mfnimo. Em outubro de 1961, o gabinete aceitou a proposta do Minis- ‘tétio das Minas e Energias para cancelar as concessbes de exploragio de rminério de ferro em Minas Gerais feitas a0 grupo norte-americano Hanna Company. Além disso, Goulart dew continuidade & politica externa indepen- © GovERWo GouLART € 0 GoLFE civit-miLizan oF 1964 dente, iniciada por seu antecessor. Visando sobretudo ampli os mercados Para exportagio, estabeleceu relagées diplomaticas com os palses do bloco socialista e, em novembro de 1961, com a Unio Soviética Coerente com a nova politica externa, o governo brasileiro rechacou as sancdes que os Esta- dos Unidos propuseram contra Cuba, bem como a ntervencio militar nailha, Na Conferéncia de Punta del Este, em janeiro de 1962, 0 chanceler San Tiago Dantas defendeu a neutralidade em relacéo Cuba, opondo-se aos Estados Unidos que pretendiam impor a sua politica aos palses latino-americanos. Contudo, também nas semanas iniciais de seu governo, comesou a cons piragéo civil-militar articulada pelos grupos politicos mais conservadores € dircitistas. Os trés ministros militares de Jénid Quadros, logo que entrega- ram os cargos, passaram a tramar a destituigSo de Goulart, sobrerudo o ma- rechal Odilio Denys, com 0 apoio, inclusive, de um grupo de empresirios cariocas. A eles juntaram-se os generais Cordeiro de Farias e Olimpio Moutio. Em Sio Paulo, entraram em coniato com vatios coronéis, a exemplo de Jai- me Portela, ¢ politicos conservadores, como Herbert Levi e Abreu Sodré, Entretanto, 0 grupo sabia que nio tinha bases polfticas, sociaise, sobretudo, militares para levar adiante os planos. Os conspiradores enfrentavam as mesmas dificuldades de epis6dios anteriores: convencer e arregimentar a maioria da oficialidade a aderir ao golpismo. De fato, para grande parte dos oficiais das trés Armas, uma coisa era ndo gostar de Goulart e de sua politica reformista; outra, muito diferente, era derrubar um governo legitimo que algou 0 poder dentro das regras democriticas ¢ constitucionais. Um dos problemas enfrentados pelo presidente foi o acirramento das lutas no campo. Procurando formas de organiza¢ées, f no governo Kubitschek os trabalhadores rurais de Pernambuco organizaram-se nas chamadasLigas ‘Camponesas. Dois meses apés tomar posse na presidéncia, realizou-se, e7t” Belo Horizonte, oI Congresso Camponés. Goulart discursou na abertura do evento, Os cerca de 1,600 delegados, vindés de todo o pals, apresentavam ropostas radicais. Francisco Julifo; falando no enicerramento do encontro, afirmou que “a reforma agréria serd feita na lei ow na marra, com flores ou ‘com sangue”. A questdo da reforma agréria, nia verdade, impunha proble- mas de diffcil solugao. As iniciativas do presidente nia avancavam ptincipal- mente pelo artigo 141 da Constituigéo que previa pagamento prévio em aay © BRASIL REPUBLICANS dinheiro por desapropriagdes feitas por interesse piblico, Assim, enquanto as esquerdas defendiam o pagamento em titulos da divida piblica, os con- servadores no aceitavam a alterago do artigo constitucional, Com a intransigtncia das partes, Goulart nao encontrou condigbes polfticas para ‘enviar a0 Congiesso Nacional um projeto de reforma agréria. A grande dif cculdade que ele enfrentava era que as esquerdas estavam empenhadas em uma straégia maximalista de reformas, descartando concessdes, negociacbes ou “CoMpramissos (Figueiredo, 1993, p. $3). O governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, despontando como grande lideranga no campo da es- querda, afirmava queo Poder Legislativo, ao aceitar a emenda do parlamen- tarismo, perdera a legitimidade politica. Assim, incitava Goulart a fechar 0 ‘Congresso, assumir seus poderes de fato ¢ realizar as reformas, sobretudo a agréria, desconhecendo a Constiruigto, Um problema que'se apresentou muito diffcil ao presidente foi quando, dias depois do término da Conferéncia de Punta del Este, Leonel Brizola desapropriou os bens da Comipanhia Telefénica Nacional, subsidiéria da International Telephone & Telegraph, acirrando ainda mais a crise entre 0 governo brasileiro e o norte-americano. J& em 1959, Brizola havia encampado a Companhia de Energia Elétrica Riograndense, subsidiéria da American & Foreign Power, grupo ligado a Bond & Share. De fato, ambas as empresas negavam-se a investit na infra-estrutura e na expansio energética ¢ de co- municagées, comprometendo, assim, as possibilidades de desenvolvimento do estado, embora continuassem a remeter seus lucros para 0 exterior. No entanto, para o governo dos Estados Unidos, as medidas ndo passaram de ‘um contisco ilegal das autoridades brasileiras. Apesar disso, o governo fede- ral apoiou as ndcionalizag6es no Rio Grande do Sul e instituiu um grupo de trabalho para promover a implantagio da Eletrobris.

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