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5. “Em busca de uma segunda opiniao”: a tarefa da psicandlise A tarefa do tratamento psicanalitico foi tema de consideragao por Freud e outros analistas, O consenso da opinido geral é tornar 0 inconsciente consciente - mas esta formulacao precisa ser revista. Ao mesmo tempo que é desejavel revelar contetidos do incons- ciente dinamico e reprimido — j4 que outrora estes foram conscien- tes - nao se pode trazer a consciéncia o contetido do inconsciente nao reprimido. Além disso, acredito que 0 inconsciente dinamico ¢ reprimido esteja localizado dentro das coordenadas topograficas do Sistema Pcs. Entao, qual é a fungao da psicanilise e da psico- terapia de orienta¢ao psicanalitica, se apenas parte dela consiste em tornar o inconsciente consciente? A resposta frequentemente mencionada de Bion é “fornecer uma segunda opiniao” ao ana- lisando para que ele se dé conta daquilo que inadvertidamente ja conhecia. Na verdade, o proprio Freud disse algo semelhante - que nunca aprendemos de fato pela primeira vez, mas que reapren- demos, ou seja, percebemos aquilo que ja sabiamos inconsciente- mente 0 tempo todo. 96 “EM BUSCA DE UMA SEGUNDA oPINIAO” Coloco aqui outro conceito de Bion, que é 0 da transforma. giio da Verdade Absoluta (impessoal) sobre a Realidade Ultima em verdades finitas, pessoais € emocionais sobre si mesmo e as pro. prias experiéncias. Essa, para mim, é a resposta a pergunta sobre qual a tarefa, a obriga¢ao, por assim dizer, da psicanilise, Na revisio radical de Bion da concepgao de Freud (1915e) do inconsciente, ele, ao empregar a “visio binocular” (ou aquilo que chamo de “via dupla’, Grotstein, 1978), transforma a ideia de Freud sobre a existéncia de um conflito obrigatorio entre os Sistemas les e Cs, que consiste em uma teoria linear unidimensional, em uma teoria de trés dimensdes na qual os Sistemas Ics e Cs funcionam, sao parceiros opostos, mas cooperantes, na apreensao (mediacio) dialética de O, que é a maneira singular que Bion (1965, 1970) usa para se referir a uma entidade que existe em um dominio que esta tanto dentro quanto fora do territério dos dois sistemas e serve para designar a Verdade Absoluta sobre a Realidade Ultima, que ele também associa aos elementos a priori de Kant: nimena ou coisas-em-si. Bion também faz uma conexao entre O e “elementos ~beta” (impressées sensoriais da experiéncia emocional - elemen tos nao mentalizados aguardando “alfabetizagao” para se tornarem “elementos-alfa” adequados a “digestao mental” na forma de memd- Has, sonhos pensamentos), A isso, Bion acrescenta ainda a “dt dade” como uma designacao utilizada pelos homens tanto part Personificar quanto para deificar a quintesséncia do Desconhecido e Incognoscivel, tio come Lacan (1966) concebe independentemente este dominio com? “Regi > ‘ coat ‘0 do Real’. Resumidamente, a tarefa da mente normal Permitir as evolu self emocional — oC self emocional 'mpacto de Oe tran, ses de O para que se interseccionem com se tua fronteira externa de defesa que confronts ‘ Tegistra sensacdes-impressdes emocion"® sfere tais Sensacdes-impressdes 4 sua JAMES S. GROTSTEIN 97 para transformagao, nao de O em si, mas das impressdes emocionais pessoais de O. Bion (1965, 1970) fala de transformagées em O, de O e a par- tir de O em “K’, isto é, do Desconhecido e Incognoscivel para 0 Cognoscivel. Com base em minha leitura de Bion e minhas dis- cussdes com ele, coloco a questao de maneira um pouco diferente ao interpor alguns passos intermediérios discretos. Acredito, em primeiro lugar, que a primeira tarefa da mente normal é a de trans- formar os resultados do impacto de O sobre o individuo partindo da indiferenga césmica de O para um sentido pessoal do significado subjetivo tinico e pessoal de O. Em outras palavras, 0 individuo deve ser capaz de aceitar a indiferenga da vida e de personaliza-la para si proprio como uma estacdo intermediaria epistemoldgica e onto- légica no caminho de objetificagao da experiéncia. Aqui, também, pode-se observar o uso da “visio binocular” (“faixa dupla”) por Bion de um modo diferente. Eu colocaria o primeiro passo, a per- sonalizagao subjetiva de O, como uma fungio da posi¢ao esquizo- paranoide, e a objetificagéo como fungao da posicao depressiva, com ambos os estagios interagindo em harmonia e sucessao opo- sitiva dialética (EP < D). Transformagao de O césmica indiferente em experiéncias (impressées) emocionais de O pessoal Retornando 4 tarefa da psicanilise, pode-se conjecturar que uma delas consiste em focar a “eterna crianga da psicanlise”, a crianga virtual do inconsciente que o processo psicanalitico recruta, e facilitar sua progressao sucessiva rumo a “posse” de sua parcela’ do destino indiferente (O) através da personalizagao da experiéncia subjetiva de O, para entao auxiliar a crianga no pro- cesso de tornar-se progressivamente mais separada e individuada 98 “EM BUSCA DE UMA SEGUNDA opINniio” referir-se objetivamente a O, que agora se para que possa, por fim, circunstancia, acontecimentos torna “a vida como ela é” - ou seja, a psicandlise tem a tarefa de promover as Em outras palavras, da crianga para a transformacio proprias capacidades analiticas em série de O em constante evolucao - até 0 ponto em que, nos le Bion, o homem finito possa integrar-se com seu selfinfi- “deidade’. Esta ultima nogio ir-se do proprio potencial até termos d nito - ou tornar-se encarnado por sua com ares misticos significa de fato investi entio desconhecido, sua enteléquia - assim como reintegrar-se com os proprios selves descartados através da cisao, dissociacao e identifi- cacao projetiva. Dito de outra forma, isso significa que, a0 ser capaz de “aprender com a experiéncia’, o self finito do individuo progressi- vamente se reencontra com seu self infinito, sua deidade (divindade). Psicandlise como reparagdo no sonho e na fantasia Um aspecto particular da metateoria psicanalitica radical de Bion referese & sua concepgio de que a psicopatologia origina -se essencialmente de um defeito no funcionamento da conten ao interna do individuo e de um defeito em sua capacidade de sonhar. A teoria de Bion sobre os sonhos baseia-se na de Freud, mas é mais elaborada. Ele acreditava que sonhamos tanto de dia quanto a noite e que precisamos sonhar todo estimulo que su do mundo interno e do mundo externo a fim de processé-los e codificd-los para o pensamento, a criagao de pensamentos-sonb® a meméria ¢ 0 reforco da barreira de contato, a qual consiste em 2 . i ° uma membrana seletivamente permedvel entre 0 consciente ¢ vel pela transfor" s-alfa mentalia#” continente inconsciente. Enquanto a fungao-alfa é respons magio de estimulos elementos-beta em elemento: veis (pensamentos emocionais), 0 sonho refor¢a 0 mente que pensa os pensamentos. ~~, JAMES S.GROTSTEIN 99 Como consequéncia desta linha de raciocinio, vemos que 0 id de Freud (1923b), agente do processamento primario, é conce- bido como a area vulnerdvel por Bion. Em outras palavras, a fim de processar e transformar (mentalizar) experiéncias emocionais, deve-se primeiro “sonhar” ou “fantasiar’, que é a forma inicial de personalizar subjetivamente as experiéncias antes de se poder obje- tifica-las. Assim, quando o analista contém o paciente ao interpre- tar suas fantasias e/ou sonhos, o analista esta de fato “sonhando as experiéncias emocionais do paciente” e, desta forma, realizando um reparo baseado na rede de fantasias do mundo interno. O ano de 1897 trouxe uma crise na concepcao de Freud da psicanilise. Foi nesse ano que, em uma carta ao seu confidente Wilhelm Fliess, Freud revelou que havia descoberto a presenga e a importancia da fantasia inconsciente (Freud, 1950[1887-1902]). Dois anos depois ele publicou sua decisiva Interpretagdo dos sonhos (Freud, 1900a) e, desde entao e até recentemente, o sonho e sua gémea fraterna, a fantasia, praticamente dominaram o modo como 0s analistas pensaram e clinicaram. Hoje, as coisas muda- ram. Desde que Freud praticamente abandonou a relevancia dos fatores ambientais, exceto na medida em que evocavam 0 id no trauma, os analistas atuais, com a exce¢ao dos kleinianos, reagi- ram a essa polaridade ao reavaliar a importancia do ambiente ade- quado ou inadequado do analisando e o impacto que relagdes boas e danosas ou mesquinhas tiveram sobre este como legado de seu desenvolvimento. Bion é um dos poucos analistas importantes que manteve uma perspectiva equilibrada sobre a importancia dos mundos interno e externo. Bion se destaca por conta de sua elaboracao de um terceiro mundo, 0 mundo de O - um mundo extraterritorial que, ainda assim, interpenetra a realidade psiquica e 0 mundo externo, um mundo que se caracteriza pela Verdade Absoluta (emocional) sobre 100. “EM BUSCA DE UMA SEGUNDA opintio” a Realidade Ultima, 0 infinito € 0 caos, € que est associadg ag numena de Kant, as coisas-em-si, as categorias priméria e secup, 4s Formas Ideais de Platao e 4 “divindade” (“deidade’) fa daria, gindria que pode abracar o Desconhecido inefivel) divindade ima; (Bion, 1965, 1970). Psicandlise como repara¢ao da comunicacdo consciente + inconsciente Mas ha ainda outro propésito para a andlise que pode ser considerado sob a luz de algumas das ideias de Bion. Proponho a hipétese de que uma das fungdes das intervengées psicanaliti- cas seja a de ajudar a restaurar uma fungao-alfa danificada ou em relativo mau funcionamento. Esta ideia baseia-se na premissa de que a génese da psicopatologia est no “funcionamento alfa” defei- tuoso ou disfuncional que, de acordo com Bion (1992) também corresponde ao “sonhar” - e “fantasiar” — defeituoso. Dito de outro modo, de acordo com esta linha de raciocinio, uma das tarefas das intervengdes psicanaliticas ¢ restaurar a “fungao-alfa” ea “barteira de contato” (entre o inconsciente e a consciéncia) do analisando 20 ajuda-lo a liberar fantasias congeladas de suas amarras sintomati- efeitos de far pobreciment® | te para is 20 cas. Em outras palavras, 0 analisando nao sofre dos tasias concretas. Ele sofre por sua deficiéncia ou em| para lidar com O. Intervengées psicanaliticas servem em Pa" restaurar os efeitos facilitadores e de alivio da dor das fantasias ' auxilié-las a atingir fluidez funcional como estagio intermedia? no processamento de “elementos-beta” de O, antes de se tornaren objetos na digestao e nas transformacées finais do pensamemt©- iC conceito de que uma das fungées das i nalts é ajudar a reparar o “funcionamento alfa” e 4 le contato” do analisando e, consequentemente, SU# a | pacidad® JAMES S. GROTSTEIN 101 de “sonhar” e “fantasiar” envolve a premissa de que o analisando nao desenvolveu um “aparato alfa” e uma “barreira de contato” adequados. Isso pode ser devido a fatores inatos, mas mais prova- velmente a (a) vinculo e apego defeituosos com os primeiros cui- dadores, cuja responsabili idade era a de facilitar o desenvolvimento destes aparatos no analisando enquanto bebé, e (b) internalizacao dos efeitos dos ataques da crianca contra 0 objeto. Bion (1962a, 1962b) acreditava que o bebé introjeta o “funcionamento alfa” da mie e que seu produto, os elementos-alfa, sAo necessarios para a manutengao da “barreira de contato”. Embora eu nao descarte esta ideia, sugiro alternativamente que o bebé nasce com sua propria “fungao-alfa” incipiente como uma categoria primdria kantiana a Priori e que a tarefa dos pais é a de contribuir para que ela alcance seu desenvolvimento étimo. Acredito que a barreira de contato seja a fonte da satide mental e/ou da psicopatologia. A barreira de contato é uma “membrana” bidirecional seletivamente permedvel que separa 0 Sistema Cs do Sistema Ics e regula o “tréfego” emocional entre os dois dominios. Acredito, também, que a barreira de contato possa ser considerada uma extensao da fungao-alfa. Assim, satide mental e doenca men- tal dependem fundamentalmente do funcionamento vital da bar- reira de contato, a qual situa-se entre os dois Sistemas no modelo topografico e entre o id, o superego e 0 ego no modelo estrutural. “Direitos (ritos) de visitagao” a “eterna crianga em constante desenvolvimento” e “resolugao de negécios inacabados” A meta da andlise pode ser concebida, consequentemente, como um empreendimento que transcende o insight. Uma emprei- tada que se beneficia da possibilidade de se ter “ritos (e direitos) 102. “EM BUSCA DE UMA SEGUNDA opiNtio. de visitagio” a0 self infantil inconsciente getemo) € em constante desenvolvimento” de modo a alcangar aletheia [desvelamento] e Dasein [ser-ai] (Heidegger, 1927). BE uma tarefa de evolucio, de tornar-se cada vez mais si mesmo ao reclamar selves cindidos, A fazer isso, 0 analisando deve embarcar repetidamente na excursio rumo aos seus selves cindidos e, com base na empatia, retomar a posse sobre eles. Isso é obtido nao apenas através da compreensio transferencial da cisio, da dissociagao e da identificacao projetiva, mas também pela manutengao do contato com a orientagio do analista, com o self infantil inconsciente que, a meu ver, constituio “administrador da agonia existencial” do individuo — 0 indicador vivo de nosso sofrimento atual. Todo o exposto resulta em quea anilise é um processo de se prestar atengo as questées emocionais nao resolvidas do individuo e de reapresenta-lo as suas verdades interiores, Isso significa, por fim, um ato de reclamagio de nossos objetos internos e externos constituidos por nossa O processada de maneira incompleta (elementos-beta). Notas Parte deste capitulo é a adaptago de uma contribuigio anterior: The light militia of the lower sky: the deeper nature of dreamingand phantasying. Psychoanalytic Dialogues, 14(1): 99-118, 2004. Os gregos antigos acreditavam que as trés Moiras teciam, col ‘avam e entregavam a cada individuo sua “porcio”, [N-T]: Em ingles, Sate significa tanto “destino” como “Moira” Esta palavra de ica se ver, designa tanto as trés figuras mitolégi oni Pelo destino dos humanos, quanto uma fra¢i0 ¢ destino a eles concedida, Nesse contexto, o “metabolisi a0 ciclo de Krebs no tio dos carboidratos, mo” final pelo pensamento é anilog? ue diz respeito ao metabolismo intermedi

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