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Copyright © 1996 by Autres edie 2000 SUMARIO DauisInternacionss de Cataogagio na Pubiicagto (CIP) ‘Climara Brasileira do Live, SP, B Na Metdpole: Texios de Antopologa Urbana / José G+ Iharme C. Magnan; Lilian de Laces Tomes (erganizadores).— 9 1 Paul: Bator da Universidade de Sio Palo; Faperp, 2000. ISBN 85.314.0356-1 |. Amtopologin utara 2. Cultura 3. Sociologia urbana | Magnan. José Guiherme C. 1 Tores, Lin de Lucea poole fodices pra eatlogo sist 1, Anlepologie urbana: Socictogia 124 156 196 Apresentagao Quando 0 Campo ¢ a Cidade: Fazendo Antropologia na Metrépole José Guilherme Cantor Magnani Programa de Paulista: Lazer no Bexiga e na Avenida Paulista com a Rua da Consolagio Lilian de Lucca Torres As Esquinas Sagradas: O Candomblé e o Uso Religioso da Cidade Vagner Goncalves da Silva A Cidade das Torcidas: Representagdes do Espaco ‘Urbano entre 0s Torcedores e Torcidas de Futebol na Cidade de Sio Paulo Luiz Henrique de Toledo Janela para o Mundo: Representagées do Piiblico sobre 0 Circuito de Cinema de Sao Paulo Heloisa Buarque de Almeida © Retrato do Nation Disco Club: Os Neodandis no Final dos Anos 80 Marinés Antunes Calil 252 299 Severinos, Janudrias ¢ Raimundos: Notas de uma Pesquisa sobre os Migrantes Nordestinos na Cidade de ‘Siio Paulo Rosani Cristina Rigamonte Cidade em Festa: O Povo-de-Santo (¢ Outros Povos) ‘Comemora em Sio Paulo Rita de Cassia Amaral Posfatcio Maria Liicia Aparecida Montes APRESENTACAO Neste livro so descritos e analisados alguns aspectos da dina- mica cultural urbana a partir de uma abordagem particular, a da antropologia. Sao sete textos sobre modalidades de lazer, lugares de encon- tro, formas de ser ¢ atuar de personages que, com seu compor- tamento, se apropriam de determinados espagos da cidade (no caso, a cidade de So Paulo), dando-Ihes novos e surpreendentes significados. Os freqiientadores do circuito club, 0 piblico da Mostra Inter- nacional de Cinema, os integrantes das torcidas organizadas, o ritmo de algumas manchas tradicionais de lazer, as marcas do povo- de-santo na cidade ¢ suas festas caracteristicas, a presenca sempre atual da cultura nordestina — esses sio os temas tratados nesta cole- tinea, O objetivo é identificar sua presenca, descrever seus tragos peculiares ¢ analisar de que maneira atividades aparentemente tio dispares contribuem para o cardter metropolitano da cidade. Qs autores s2o ou foram alunos do Programa de Pés- Graduacéo em Antropologia Social da Universidade de Sio Paulo, e seus trabalhos tém como cixo um recorte particular da vida social no contexto urbano, focalizando lazer, sociabilidade, priticas culturais. © capitulo titulo de introdusdo, organiza - principal- mente para um p mais amplo ~ a trajetéria dos estudos na rea da antropologia urbana ¢ discute os principais problemas que tal enfoque envolve, assim como as possibilidades que propicia, © posfacio 1é 0 conjunto das etnografias que constituem 0 niicleo do livro, buscando juntar, aqui ¢ ali, pistas que apontem a existéncia de légicas ¢ sentidos mais gerais, proprios da vida metropolitana. Os autores do primeiro capitulo ¢ do posfacio so professores que vém se dedicando ja ha algum tempo, no ensino ¢ na Pesquisa, a questées relativas & dindmica cultural na cidade: o pri- meiro é o orientador dos trabalhos que deram origem aos textos integrantes da coletinea, ¢ a segunda, exercendo o papel de inter- locutora, faz a primeira reflexdo sobre eles. © que se pretende é oferecer, a partit de monografias curtas mes com base em pesquisas mais amplas, algumas facetas da riqueza cultural e diversidade dos modos de vida que caracteri- zam um grande centro urbano. Os organizadores my 5 CITT ij rig a j QUANDO 0 CAMPO E A CIDADE fazendo antrops 4 (9.12.13; CRUZAMENTO DA RUA DA CONSOLACAO COM A AV, PAULISTA, DESTAQUE PARA, (OS OHSFACULOS A TRAV SSI DF PEDESTRES. EHH ree eee eee errr eee eee eee eee eee reer me ‘E sempre lindo andar, na cidade de Sa0 Paulo Oclima engana, a vida é grana, em Sao Paulo A joponesa loura, a nordestina moura de Sao Paulo Catinkas punt, wm jezo iangue, emt Sdo Paulo Na grande cidade me realizar ‘Morand num BNH Na periferia, a fabrica escurece 0 dia Premeditando o Breque, Sao Paulo, Sdo Peulo Contrapondo esta cangao aquela outra, mais conhecida até — ‘Sampa! - e que terminou celebrizando a esquina das avenidas Ipiranga com Sio Jodo, teriamos, com imagens vivas e numa lin- slégica. O “avesso do avesso”, recurso através do qual o estrangeiro por fim consegue ver algum |. Alguma coisn acontece no meu coragio’ Que #0 quando cruza a Ipiranga € a avenida ‘io Jo2o/ E que quando eu cheguei por aqui Eu nada entendi’ Da dura poesia eon- ‘mau gosto"! B que Narciso acha feio © que nto éespelhey E A mente epavora o ainda no & mesmo velba! Nada do que no era antes, quando ni somos matantes! as de Campos ¢ espacos!Tiss oficins de Gorestas, as de Afsicas oépicss, timulo do samba! Mas pos js sentido e beleza em comportamentos que inicialmente 0 choca- ram (“chamei de mau gosto 0 que vi"), contrasta com a visio dos \“nativos”, que simplesmente acham lindo caminhar pelo seu lago (veja adiante, pp. 30-31). O referente € 0 mesmo para ‘ambos; o primeiro, porém, o interpreta pelo angulo do estranha- mento (“quando cu cheguei por aqui eu nada entendi”), enquan- to, para os ultimos, é absolutamente familiar: “a deselegéncia discreta de tuas meninas” no é senio “o jeito ianque”, o visual punk da “japonesa loura” ou da “nordestina moura”. Mais se poderia dizer sobre Sao Paulo ¢ seus moradores com- parando 0 texto das duas can¢écs, assim como outros paralclis- mos poderiam igualmente ser explorados entre o discurso poético Logica. Existe, contudo, uma questio prévia: se o assunto ¢ essa cidade, tio préxima e conhecida, por que, jus tamente, antropologia ~ disciplina que usualmente evoca culturas distantes, no tempo ¢ no espaco, com seus personages exdticos, comportamentos estranhos, ritos desconhecidos? Essa é na verdade uma associagéo que de certa forma tem a ver com a propria origem dos estudos antropoldgicos, em fins do stculo Xrx, quando se procurava uma explicagao para o fenéme- no da diversidade de costumes entre os povos. Nao era uma ques- tio nova: sem ir muito para tris, desde a época das primeiras grandes viagens maritimas, despertavam vivo interesse as fabulo- a5 historias que os viajantes traziam sobre povos “selvagens”, a respeito dos quais se discutia até mesmo se pertenciam ao géne- 10 humano. Ainda que diferentes tradig&es, ment sem também percebidos no seio das sociedades ocidentais (eram considerados a base do “génio” ou o “espirito” de uma nacao), 0 ‘gue continuava chamando a aten¢io era o contraste entre estas ltimas, “civilizadas”, € 08 povos “primitives” com os quais se ‘estava em contato, nas coldnias ¢ possessdes. Explicar as diferen- 628, agora partindo do principio — com fundamento nos postula- dos darwinistas — de que todos pertenciam a mesma espécie, eis 4a tarefa da antropologia em seus primérdios. E qual foi a resposta, na época? Tais diferencas foram conside- tadas sinais de estagios sucessivos num processo evolutivo tinico: enquanto alguns povos evoluiram rumo a patamares mais eleva- idades ¢ costumes fos- dos, outros teriam permanecido nas primeira etapas, presos a sis- meios técnicos e atividades econémicas ~ formas culturais, em suma ~ mais simples, atrasa- das, primitivas. Desde entio, muita coisa mudou: a antropologia deixou para trds essa perspectiva evolucionista, passou por uma fase marcada pela pesquisa de campo, elaborou outros conceitos e paradigmas, abriu novas areas de investigagdo. Nunca abandonou, porém, a preocupagao fundante, a respeito da diversidade cultural. Sé que, deixando de associar o diferente a0 airasado, se desvincu- lou da idéia de que seu objeto era constituido pelos povos consi- derados “primitives”. Essa mudanga chega a seu termo induzida pela aguda cons- cigncia do processo de extingdo de nagdes indigenas ¢ também pela recusa de antigos povos colonizados, agora independentes, a serem consideradés objeto de estudos antropolégicos. Esses foram os fatores que levaram Claude Lévi-Strauss a se perguntar, na década de 60, se “a antropologia nao corre o risco de tornar- se uma ciéncia sem objeto” (Lévi-Strauss, 1962:21). E ele proprio quem da a resposta ao demonstrar que 0 objeto da di ndo € propriamente o estudo de um determinado tipo de sociedade, mas que “enquanto as maneiras de ser ou agit i de certos homens forem problemas para outros homens, haverd lugar para uma reflexdo sobre essas diferengas que, de forma sempre renovada, continuardo a ser o dominio da antropologia [...]. Se um optimum de diversidade ¢ condigio permanente do desenvolvimento da humanidade, podemos estar certos de que dessemelhancas entre sociedades ¢ grupos nao desaparecerdo sendo para se reconstituir em outros planos” (idem: 26)*. Nessa v mesma direcio, conclui Geertz, “agora somos todos natives” + (1988). Esse ajuste de foco — gracas ao qual nao se necesita ir muito Jonge para encontrar 0 “outro” — terminou revelando uma reali- dade que aparentemente nada fica a dever ao exotismo que tanto | espantava 0s europeus em contato com os povos “primitives”: basta uma caminhada pelos grandes centros urbanos € logo se entra em contato com uma imensa diversidade de personagens, comportamentos, habitos, crengas, valores. Alis, no deixa de ser curioso que, para designar formas de sociabilidade e cultura de grupos jovens, por exemplo — neodandis, clubbers, grafitciros, darks, punks, grunges, goticos, funks, blacks, torcedores, heavies, breakers, carecas, roqueiros, rappers, headbangers, night rollers, igua- bays -, se use a expresso “tribos urbanas”...” ‘Mas 0 que importa ao olhar antropolégico nfo é apenas reconhecimento € registro da diversidade cultural, nesse ¢ em outros dominios das priticas culturais, mas também a busca do le tais comportamentos: so experiéncias humanas — de entretenimento, de religiosidade = que 86 aparecem como exéticas, estranhas ou até mesmo peri- gosas quando seu significado é desconhecido. O proceso de acercamento e descoberta desse significado pode ser trabalhoso*, mas o resultado ¢ enriquecedor: permite conhecer e participar de uma experiéncia nova, compartithando-a com aqueles que a vi- vem como se fosse “natural”, posto que se trata de sua cultura. ‘Nao foi nada facil entender uma nova realidade, por parte de “quem vem de outro sonho feliz de cidade”, como era 0 caso dos “novos baianos da cangio”. Mas, finalmente, “passeiam na tua de ir numa boa”. mutras grandes cidades — consti 60 privilegiado para experiéncias desse tipo, dada a procedénci de seus habitantes, a riqueza de suas tradicdes culturais, a vari de seus modos de vida e, por conseguinte, a infinita possi- lade de trocas e contatos que propicia. Mas também alimenta representacdes que a identificam com 0 ethos do trabalho, com a Hformalidade e frieza das relacdes impessoais, anonimato da vida cotidiana. A desigualdade social, a violéncia ~ desde a poluigio sonora e visual até a criminalidade -, passando pelas conhecidas ¢ gritantes contradigées urbanas, so outros fatores presentes quando se avalia a qualidade de vida que oferece. Sem negar a realidade desses fatores, nem procurar amenizar suas conseqiién- cias, € possivel mostrar que a cidade oferece também lugares de lazer, que seus habitantes cultivam estilos particulares de entrete- nimento, mantém vinculos de sociabilidade ¢ relacionamento, criam modos e padrées culturais diferenciados. ‘Trata-se, enfim, de uma metrépole, com suas mazelas ¢ tam- bém com os arranjos que os moradores fazem para nela viver (ou sobreviver), combinando 0 antigo e 0 moderno, o conhecido ¢ a novidade, o tradicional e a vanguarda, a periferia ¢ 0 centro. Do pove oprimido nas filas, nas vilus, favelas/ Da forca da grana que ergue «¢ desr6i coisas belas/ Da feia fumaga que sobe, spegando as estrelas/ Eu vejo surgir tous poetas de Campos © espacos (..). ‘Mas, antes de passar aos textos que compédem o nucleo desta coletanea, ¢ preciso voltar 4 questao colocada anteriormente, que retorna em outros termos: ndo mais por que antropologia, e sim, de_que modo essa_ciéncia, formada no estudo de sociedades de pequena escala, lida com a complexidade caracteristica de uma metropole. Estupos sone a CIDADE: ANTECEDENTES “Da porta da minha barraca”, escreveu Evans-Pritchard nas primeiras paginas de sua clissica etnografia, “podia ver 0 que acontecia no acampamento ou aldeia e todo o tempo era gasto na companhia dos Nuer”. Se esta passagem de Os Nuer - (Evans-Pritchard, 1978 {1940]:20)*— constitui a imagem cl da pesquisa de campo, nada mais distante, entao, das condigdes : "| : de trabalho de um antropélogo as voltas com questdes e proble- mas caracteristicos das modernas sociedades urbano-industriais, ‘uj campo é a cidade: da janela de seu apartamento nao tem dian- te de si o espeticulo da vida social em sua totalidade, e mesmo que conviva mais intensamente com o grupo que esti estudando, nem sempre gasta todo 0 tempo em sua companhia. Cabem, por conseguinte, as perguntas: podem os antropélo- gos, com os conceitos ¢ instrumentos de pesquisa forjados no estudo dos entio chamados povos “primitivos” — observacao par- Como estabelecer as mediagdes necessarias entre o trabalho de campo — particularizado, minucioso, atento para cada detalhe—e instancias interpretativas _mais_amplas? Poderdo superar, os antropélogos, a tentacao do “padrao aldeia” e assim articular a singularidade de seu objeto com outras variaveis da vida urbana, ‘principalmente nas grandes e superpovoadas metropoles? Apesar de nao mais se aceitar — com razio — a oposi¢do entre “sociedades simples” (€ muito menos “primitivas”) versus “socie- dades complexas” para estabelecer 0 ponto de corte entre aque- Jes grupos tradicionalmente estudados pelos antropdlogos e as sGiedades urbanio-industriais, nao se pode negar que o modo de ‘operar dessa disciplina, seja qual for o contexto de seu estudo, carrega inevitavelmente as marcas das primeiras incursdes a campo. Que nio deixam de ser particularmente sentidas ~ seja como vantagem ou dificuldade — quando o que se tem pela fren- te so problemas, objetos e temas proprios das sociedades con- temporéneas, na sua escala e complexidade caracteristicas. E, se a antropologia segue estudando aqueles grupos tradicio- nais, no é por uma estranha fidelidade a antigos modelos ou puro conservadorismo, mas porque as questes levantadas pelo modo de vida (organiza¢ao social, mitologia, religiio, estruturacao da familia, relagdes com a natureza etc.), escala e temporalidade des- sas sociedades continuam enriquecendo os métodos de pesquisa ¢ alimentando a reflexdo ~ nao apenas sobre elas, mas sobre a nossa ¢ outras sociedades. Como jf se afirmou, no é o lado suposta- mente exotico de praticas ou costumes o que chama a atengdo da \ antropologia: trata-se de experiéncias humanas, ¢ 0 interesse. cm conhecé-las reside no fato de constituirem. arranjos. diferentes, particulates — e, para o observador de fora, inesperados -, de temas ¢ questées mais gerais ¢ comuns a toda a humanidade. A antropologia, la ou c4, na floresta ou na cidade, na aldeia ou na metrépole, ndo dispensa o cardter relativizador que a presen- ¢a do “outro” possibilita. E esse jogo de espelhos, ¢ essa imagem y de si refletida no outro que orienta ¢ conduz o olhar em busca de jcados ali onde, a primeira vista, a visdo desatenta ou pre- -onceituosa $6 enxerga 0 exetismo, quando nao o perigo, a anor- malidade. Dito isso, nao se pode desconhecer, entretanto, que o estudo das modernas sociedades nacionais traz novos desafios e proble- ‘mas para a pesquisa ¢ reflexdo antropologicas. Trata-se, com efei- to, de sociedades organizadas com base em principios que introduzem outra escala ¢ outros graus de complexidade nas esfe- ras da economia, do poder, da organizacao social, da producao simbélica. E_que dizer, entio, da cidade ~ forma de implantacao espacial predominante dessas sociedades -, principalmente na versio metrépole, que abriga, concentra_¢_multiplica toda essa > complexidade Até © presente, a antropologia, a ciéncia do homem, tem-se preocupado principal mente com o estudo dos povos primitives. Mas © homem civilizado & ‘um objeto de investigacéo igualmente interessante, ¢ ao mesmo tempo sua vida € mais aberta a observagio ¢ a0 estado. A vida ¢ a cultura urbanas so mais ‘ariadas, sutis ¢ complicadas, mas os motivos fundamentais so os mesmos nos dois casos. Os mesmos pacientes métodos de observasao despendidos por antropélogos tais como Boas ¢ Lowie no estudo da vida e maneiras do indio norte-americano deveriam ser empregados ainda com maior sucesso na investi- gagdo dos costumes, crencas, priticas sociais ¢ concepgdes gerais de vida que prevalecem em Little Italy, ow no baixo North Side de Chicago, ou no registro dos felktcays mais sofisticados dos habitantes de Greenwich Village e da vizi- nhanga de Washington “quare em Nova York [Park, 1915, apud Velho, 1987:28), Apesar desse apelo, feito nos termos da época por um dos pio- neiros no estudo de questdes urbunas, a produgdo antropolégica na fren 6 recente © pouco sixtematizada, o que dificulta a tarefa EEE HEE EEE Eee ee eee eee eee eee ee eee eee eee eee eee ee eee reer eee eee eee eee de compor quadros de referéncia. Por outro lado, cidade nio era precisamente a forma de assentamento dos povos que consti- tuiam seu objeto inicial e privilegiado de anilise. De qualquer forma, dada a relativa indiferenciacdo de areas e interesses teéri- 60s por parte de alguns autores 5, antropélogos ou nio ~ Emile Durkheim, Ferdinand Ténnies, Georg Simmel, Max We- ber; entre outros -, ndo custa uma répida alusio a eles, em busca de pistas que permitam demarcar a especificidade do fendmeno urbano, Nao é 0 caso, evidentemente, de resumir 0 pensamento desses autores; 0 propésito é identificar, neles, temas ¢ linhas de anélise que alimentaram a reflexio sobre questdes relativas 4 cidade ¢ a sua dinamica. E possivel, de inicio, descobrir um elemento recorrente que é 0 conceito de comunidade, em geral se opondo ao de sociedade. A expressdo ficou conhecida a partir do texto de Ténni se reconhecer a mesma argumentaco na terminol miana de “solidariedade mecénica” versus “solidariedade orgini- ca” ~ com algumas nuances, recobrem a mesma problemitica. Segundo Tonnies, esquematicamente, comunidade é marcada Por laos de sangue, relagdes primérias, consenso, rigide controle sociedade, ao contritio, caracteriza-se pela presenca de s secundarias, por convengao, anonimato, troca de equiva- lentes. Por meio dessa oposicio, o autor descreve a transformagio de uma forma tradicional de vida sob a influéncia de uma econo- mia predominantemente baseada na troca: de uma Europa paro- quial ¢ agriria para uma sociedade cosmopolita ¢ comercial. A jav'o trabalho de “estilo, dignidade e encanto” (Mellor, 1984:290). Essa oposicdo serviu para Simmel distinguir o tipo metropoli- tano ~ espécie de personalidade intelectual, calculista, reservada = em contraste com o habitante da peque descansa sobre relacionamentos emocionais mais profundos. Como Ténnies, Simmel vai mostrar a transicio da comunidade Para uma sociedade predominantemente urbana ¢ A andlise de Max Weber ressalta 0 cariter da racionalidade presente na cidade medieval do Ocidente, com base na comuni- dade — associagio local, militar ¢ politicamente auténoma em face do senhor feudal. $6 cla, com 2 nova classe dos mercadores € artesiios, rompe com os lagos, tabus € religido clinicos; razio pela qual, diferentemente do que ocorreu no Oriente, se tornou condigo para 0 surgimento do capitalismo. Mais tarde essas ci- dades de governo proprio ¢ auténomo dissolvem-se no interior dos Estados nacionais: as metrépoles que surgem na esteira da Revolucdo Industrial completam a desintegragdo daquele mode- lo de vida urbana. A cidade medieval como pardmetro, algo nostalgico, do ideal de comunidade surge como trago comum a esses autores na and lise ¢ julgamento da socicdade ¢ cidade contemporneas a cles: ibrar que todos viveram a realidade da cidade curopéia eral, emergente das revolucdes de 1848, marcada pela intervengdo do Estado no ordenamento urbano. Outro seré o ponto de partida de um importante grupo de pesquisadores que, no outro lado do mundo, fizeram da cidade seu objeto de preocupacao ¢ estudo, Trata-se da Escola de Chi- cago, nome gue terminou agrupando esses pesquisadores, mem- bros do Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago, com intensa atividade no periodo que vai da Primeira Para W. I. Thomas, R. E. Park, E. Burguess, R. MacKenzie — 0s pioneiros -, 0 referencial que sustentava a linha interpretativa ses empiricas nao era a transformacao da cidade me val sob as injungées da Revolugio Industrial, como acontecia com 08 teéticos curopeus. O que tinham diante dos olhos era 0 vertiginoso crescimento de Chicago, nos anos 20, a partir de cor~ rentes migratorias, com a correspondente seqiiela de problemas que tal fendmeno acarretava. As mudancas cram répidas, 08 gru- os que disputavam os espagos eram heterogéneos ¢ a comp cao, feroz. fluéncia dos autores europeus faz-se sentir ~ 0 bindmio de versus sociedade esta presente -, 0 ponto de referén- cia é 0 da ecologia. Trata-se de explicar a dinamica urbana atra- vés de conceitos como dominagio, invasdo, sucesso, dominancia € outros ~ diferentes formay que adquire a competigio por espa- $0, recursos, it ais”, produzindo as diferentes “zonas” concéntricas da cidade. Aqui, comunidade ¢ entendida como o resultado de relagdes sim- bidticas, ao passo que sociedade depende da comunicacao entre seus membros que compartilham atitudes, sentimentos, idéias comuns. A Escola de Chicago também ficou conhecida pelos estudos empiricos que realizou sobre temas especificos como delingiién- cia, prostituicdo, criminalidade etc., que terminaram agrupados ‘sob a classificagao de “patologia so E possivel distinguir ou- tra tendéncia, ainda, no interior dessa escola: so os “etndgrafos” de Chicago, conforme a denominagao de Ulf Hannerz (1986), que enfatiza o carter propriamente antropolégico de sua produ- $80, ainda que essa aproximaco se deva mais em fungo da esco- ha de temas ¢ métodos do que por orientagao tedrica. Este autor cita cinco estudos que denomina “etnografias”: “The Hobo”, de N. Anderson (1923), sobre o modo de vida de trabalhadores sazonais ¢ andarilhos; “The Gang”, de F. M. ‘Trascher (1927), um levantamento ¢ descrigéo de gangues juve- nis em Chicago; “The Ghetto”, de L. Wirth (1928), sobre o bair- to judeu; “The Gold Cost and the Slum”, de H. W. Zorbaugh (1929), um estudo de seis “areas naturais” com os diferentes modos de vida de scus moradores, desde a classe superior até 0 mundo das pensdes baratas; e, por tiltimo, “The Taxi-Dance Hall”, de P. G. Cressey (1932), a ersonagens ¢ regras que presidiam o funcionamento dos célebres sales de danca “por cartio”. Ainda que um pouco posterior, caberia nesta lista “Street Corner Society”, de W. F. Whyte (1943), estudo que uti- lizou a técnica da observacdo participante entre grupos de jovens de origem italiana em Boston. Louis Wirth e Robert Redfield, no final dos anos 30, represen- tam, respectivamente, a culminacdo de duas tendéncias da Escola de Chicago. © primeiro, com sua famosa definigao de cidade ~ “para fins sociolégicos, uma cidade pode ser definida como um Ricleo relativamente grande, denso ¢ permanente, de individuos socialmente heterogéneos” (apud Velho: 96) ~ e a énfase no caré- rio, utilitarista, transitério das relagdes que impoe Robert Redfield, a0 cont “anticidade” ~ civilizagdo e cultura de folk: niicleo pequeno, iso- lado, analfabeto ¢ homogéneo, com um forte sentimento de soli- dariedade grupal. Esses pélos antagénicos terminaram constituindo a conhecida proposicéo do continuum folk-urbano — linha 20 longo da qual se distribuiriam os assentamentos humanos, da aldeia & metr6pole -, inspiragao dos ndo menos conhecidos “estudos de comunidade” no Brasil, principalmente em Sao Paulo, no final da década de 40°, ANTROPOLOGIA URBANA EM SAO PALLO Diferentemente do que ocorreu nos Estados Unidos, nao foi ‘um grande centro urbano mas pequenas localidades interioranas que por aqui constituiram o principal objeto das pesquisas sob influéncia da Escola de Chicago: Cunha, Bofete, Cruz das Almas, Guaratingueté, Itapeti -omunidades caicaras do litoral ~ no caso de Sao Paulo. Dificil dizer, por outro lado, se tais pesquisas ram antropologicas ou sociolégicas, pois a base teérico-metodo- légica de ambas as disciplinas era a mesma desde a implantagio das ciéncias sociais em moldes acedémicos, em Sao Paulo’. Apesar dessa base comum, algumas fronteiras iam sendo esta- belecidas e, no caso especifico da antropologia, pela escolha de seus objetos ou de suas “tarefas”, para usar os termos do profes- sor Emilio Willems. De acordo com o entao responsivel pela dis- ciplina na Faculdade de Filosofia, Ciéncias ¢ Letras, as “trés 2 0 estudo de Mis de Vda, de Antonio Candido Marvin Harris (1956); Balugdo da Trese Ano, de Lucila Hermann (1948); Fem 1952); Cumho:Tradgto ¢ Tansizdo om ma Cileurt Rural do Bras de Emilio Willems (1947) = culturas caboclas € estudo da aculturagdo de certos grupos étni- cos € raciais, como negros, japoneses, alemiies etc.® Essa formulagdo oferece uma pista para entender a reduzida producdo de trabalhos relativos a cidade de Sao Paulo: os objetos privilegiados da antropologia br pelas populagdes indigenas, no que sem duvida seguia a tendéncia geral da di fa desde sua formagao, na Europa € nos Estados Unidos; vinham, em seguida, as comunidades “rasticas” ou “caboclas”; e por fir as “minorias étnicas” e seus problemas de “aculturagdo” ¢ “assimilagdo” a sociedade nacional. Analisando a produgio da época, conclui Eunice Durham que nem a antropologia nem a sociologia estavam preocupadas em investigar as ‘grandes transformagdes sociais em curso. Ao contririo, preocuparam-se ambas ‘com as bases sobre as quais a transformaco estava operand, isto &, a socieda- de rural tradicional, # populacio negra © seu passado escravo, a imigracio cestrangeira do século anterior. (Durham, 1982:161), ‘Sé mais recentemente & que a pesquisa antropolégica voltou- se para a cidade de Sio Paulo em busca de temas e objetos de estudo. E verdade que se pode apontar um antecedente ilustre: trata-se de Claude Lévi-Strauss, slebre livro Thisies Trépicos, Publicado em 1955 — vinte anos apés sua estada como professor visitante ma recém-criada Faculdade de Filosofia, Ciéncias Letras -, contém passagens sobre a cidade de Sao Paulo dos anos, 30. Mas nio & nesse texto que se refere a sua meteérica experién- cia de campo na cidade, Na entrevista conce a Eribon Didier, que resultou no livro De Perto e de Longe, Lévi-Strauss afirma que iniciou suas expedigées as tribos indigenas 8. Carta de 27 de agosto de 1943, envida « Archur Ramos, apud Azcredo, 1986:49-50, formulagio como bate de programa de ensino © pesquisa revelow-se bastante jo primeiro ano letivo. Em vez de voltar para a Franga, minha mulher eu fomes para 0 Mato Grosso, para as aldeias cadiveu e bororo, Mas eu ja tinha comegado a fazer etnologia com os meus alunos: sobre a cidade de Sio Paulo ¢ sobre o folclore dos arredores, do qual minha mulher se ocupava mais, 1990:32), cespecificamente (Lévi-Strauss & Di Folclore: talvez seja essa uma das chaves para mapear outros trabalhos da area de antropologia sobre Sao Paulo, no periodo em que a disciplina apenas comecava a ser ministrada, de forma sistematica, no espaco académico. Sem entrar na discussdo sobre as diferengas entre folclore ¢ antropologia, entdo ¢ agora, seria ‘obrigatorio, contudo, mencionar a contribuigao de intimeros pes- quisadores, a comegar por Mario de Andrade, incentivador de estudos na area, a partir do Departamento Municipal de Cultura 1935)’, A cidade de Sio Paulo, por conseguinte, a ndo ser de forma fragmentaria ¢ episodica, ndo forneceu temas ¢ objetos de interes- se para a pesquisa antropoligica; isso s6 vai ocorrer mais tarde, na década de 70. As profundas transformagdes pelas quais o pais vinha passando desde o final dos anos 50 em sua base econémica, no esquema de poder ¢ na composi¢ao social foram temas de importante producdo das ciéncias sociais, principalmente da so- logia, economia e ciéncia politica: tratava-se de explicar o \delo de desenvolvimento em curso para entender suas cons giiéncias no sistema produtivo, as mudancas nas instituigdes pol ticas ¢ as contradi¢des que se acirravam na estrutura social. B a antropologia? Continuava fiel as “trés tarefas”, estudando populagées indigenas, relagdes raciais, religides populares, fami- 9. A dlversidade dos estes fbetricnse de seus enfoques torna impossivel, qu, quale {Quer pretensto de sequercié-os, quam mais de distinguiraquelee evo objeto cidade de Sio Paulo, Florestan Fernandes, ele préprio astor, quando lino, ry forncce um " de 1958, Se fose para ci Amsdeu Amaral, Oneyda alvare 2) | lia, migrantes... temas e personagens que nio estavam, por certo, jo centro dos acontecimentos. Mas nos anos 70 a antropologia comega a adquirir maior bilidade e prestigio, fendmeno entretanto que no se deve crec tar exclusivamente “a qualidade de nossa producao intelectual”, como observa Eunice Durham (1986). Para a autora, um dos fatores dessa popularidade 0 fato de que os grupos tradicional- mente estudados pela antropok favelados etc. — passam de“ exigindo participacdo na sociedade!®, O mesmo ocorre com temas caros reflexio antropolégica como religito, sexualidade, papel da mulher na familia e na sociedade, a cultura popular e outros: sio pensados como “formas de resisténcia”, de contesta~ do, de luta. Essa conjuntura ~ politica, académica, institucional"! — abriu espaco para estudos de cardter antropoldgico sobre a realidade dos grandes centros urbanos, pois era preciso conhecer de perto esses atores, seu modo de vida, aspiragdes ~ jd que conceitos ‘como “consciéncia de classe’ - teresses de classe” € outros no davam conta de uma dindmica que se processava no cotidiano. Quem so? Onde moram? Em que acreditam? Como passam seu tempo livre? Nesse particular a antropologia estava a vontade, pois, no trato com qualquer grupo constante das “trés tarefas”, 10, Cabe aqui uma mencéo 4influéncia de M, Castels (1972) sobre signifiativo conjun- tais perguntas sempre estiveram presentes, norteando a pesquisa etnografica. Os temas ¢ objetos centrais passaram a ser: 0s moradores da riferia de Sao Paulo; estratégias de sobrevivéncia na metropo- religides populares urbanas; comunidades eclesiais de base; cultura € festas populares; formas de lazer e entreteniment movimentos feminista, negro, homossexual; representagdes pol ticas e participacao em associagdes de bairro; estratégias popula- res de sade, ¢ tantos outros"?, © Lazer € A LOGICA 00 Penaco lazer estava, por conseguinte, entre os temas que comega- vam a despertar interesse. Mesmo assim, & epoca da realizagao da minha pesquisa em bairros da periferia da cidade de Sao Paulo, entre 1978 ¢ 1980", ainda foi preciso argumentar em favor de = afinal de contas tratava-se de uma atividade eva 0 lugar cantnico da formaglo da consciéncia de classe ¢, além de ocupar uma parte minima do tempo do traba- Ihador, nao apresenta implicagdes politicas explicitas. As objegdes mais correntes eram: [Em primeiro lugar, é contiderado irrelevante, enquanto tema de pesquise: hi coisas mais “sérias” como o trabalho, a politic. Als, mem mesmo existe: no caso especfico dos trabalhadores, hi quem constate que o tempo livre é basica- 12. Segundo levantamento realizado pela Associagio Bratieica de Ancropologia (19 cenaric ifica identifica marcos, reconhecer divisas, anotar pontos de interseccdo 0 partir nfo apenas da presenca ou auséncia de equipamenton ¢ extr desses elementos em rela~ 38) ‘¢do com a pritica cotidiana daqueles que de uma forma ou outra uusam 0 espaco:@5 atores> Com relacio a estes, trata-se de detectar tipos, construir cate- gorias, determinar_comportamentos ~ agrupando, separando, clastificando, Serio moradores, clientes, trabalhadores, passan- tes, usuarios, transeuntes, manifestantes -, segundo 0 enfoque escolhido e a orientagio da pesquisa. Se a observagio direta ¢ 0 meiro levantamento dos atores, uma classificacao mais precisa ¢ a obtengio de dados e informagées mais completos fazem-se por ‘GIO de enirevistas, questiondrios e historias de vida. As regras ‘ow script constituem a etapa final dessa fase da anilise: (oF lores, naquele cendrio, seguem um roteiro, Sdo essas regras, ‘que dao significado ao comportamento e através delas é possivel determinar as regularidades, descobrir as légicas, perceber as transgressOes, os novos significados. Identificar os movimentos, ‘08 fluxos ¢ as diferentes formas de apropriacdo no universo de significado dos atores é o primeiro passo para chegar a padrdes mais gerais, responsiveis pela compreensio dos comportamentos articulados a outras instincias ¢ dominios mais amplos da vida AS CATEGORIAS A primeira tarefa que se coloca para uma pesquisa antropolé- gica cujo objeto é constituido por priticas que se desenvolvem em espagos de miiltiplos usos, como é o caso do lazer no centro da cidade, é delimitar as unidades significativas para observagio ¢ dlise: como nio sao dadas de antemiio, é necessario destaca-las do fundo impreciso da realidade tal como € vista pelo senso comum. As descontinuidades significativas no tecido urbano nio so © resultado de fatores naturais, como a topografia, ou de intervengdes como o tragado de ruas, zoneamento e outras nor- ‘mas, Tais descontinuidades so produzidas por diferentes formas de uso e apropriagdo do espago, que é preciso, justamente, iden- tificar e analisar. Ruas, pragas, edificagdes, viadutos, esquinas e outros equipa- mentos estdo 1d, com seus usos e sentidos habituais. De repente, tornam-se outra coisa: a rua vira trajeto devoto em dia de pro- cissao; a praga transforma-se em local de compra ¢ venda; 0 via- duto € usado como local de passeio a esquina recebe despachos e ebés, ¢ assim pox dian, Na real lidade so as peiti- Icomo pista de rolamento; calgada, area de circulacdo de pedes- ites etc.) porque no opera com sentidos univocos: as vezes, 0 spago do trabalho é apropriado pelo lazer, o do passeio & usado tomo local de protesto em dia de manifestacdo, o ambito do masculino € invadido pelo feminino, a devocio termina em festa... Quando, porém, algumas das priticas sociais que estio na base desses sistemas de classificacdo tornam-se recorrentes, com ‘usos mais regulares e reconheciveis, permitem estabelecer novos recortes trabalhar com outras categorias. No contemto de barre, por exemplo, yma das formas de apro- visto, tem como sree ar priagio do espaco, como trais da cidade, quando se trata de areas marcadamente residen- ciais: tata-se_da_mesma légica. Em outros pontos, porém ~ usados Brincipalmente como lugares de encontro, lazer mas sim se reconhecem enquanto portadores dee eset los que remetem a gostos, orientages, valores, habitos de consu- mo, modos dé vida semethantes. Esti-se entre iguais, nesses lugares: 0 terri 7 * i caracteristica. Um trecho do relatério, descrevendo 2 caminhada, pode dar uma idéia: ara este roteira a praca da Repiblica é ponto de partida em diregao a0 cen- to (praga sera objeto de roteiros especificos) e a rua 24 de Maio é a via de aces- 50, Chama a atengio a cela reinente na rua, em contraste com a costumeira 6 até possivel perceber um grupo de punks e mais adian- yorém, destaca-se ‘uma das tantas galerias da regido: Centro Comercial Presidente, ocupada por lojas de discos funk, disco e outros ritmos dancantes (Disco Mania Blacks, Truck’s Discos), além de outros servigos como cabeleireiros black (Gé Curl ‘Wave, Almir Black Power, Gueto Black Power) que reforcam a particular grax rmitica de sua ocupacio earacteristica: & um pedaco negro que aglutina repazes fe mosas em tomo de algumas marcas de negritude como determinada estética, misica, ritmo, frequéncia a shows ¢ danceterias (Chic Show, Zimabwe, Skina Cub ete.) O euidado com a estécica pessoal, aids ~saldes de beleza, cabeleirei- ros, butiques, comércio de acessérios, tudo em pequenas lojas -, esti presente em toda a regiéo, principalmente nas gelerias, produzindo um continuo € cam= biante flxo de estimulos visuais (Magnani, 1991:52) Quando jovens negros saem de suas casas e dirigem-se a esse seu pedago, no Centro Comercial Presidente, na rua 24 de Maio idade), nao 0 fazem, necessariamente, para dar um o até I para encontrar seus iguais, exercitar-se no uso dos cédigos comuns, apreciar os sim- bolos escolhidos para marcar as diferencas. E bom estar ld, rola um papo legal, fica-se sabendo das coisas... ¢ é assim que a rede da sociabilidade vai sendo tecida. Existe uma outra forma de apropriacdo do espaco quando se trata de lugares que funcionam como ponto de referéncia para um namero mais diversificado de freqitem € mais ampla, permitindo a circulagao de gente oriunda de varias procedéncias. Sdo as manchas, areas contiguas do espago urbano dotadas de equipamentos que marcam seus viabilize cada qual com sua especificidade, competindo ou complemen- tando ~ uma atividade ou pratica predominante, Numa mancha de lazer os equipamentos poder sér bares, restaurantes, cinemas, et ee teatros, o café da esquina etc., os quais, seja por competicao ou complementacio, concorrem para o mesmo efeito: constitusm E preciso estar atento ao que acontece no cendrio, também. # final de tarde 4e sdbacio, 0 movimento nas estreitas ruas é intenso. As padarias estBo cheias, criangas circulam pelas caleadas, hé gente nos bares los ¢ estabelecimentos de diversos servigos vio fechando at portas. A media que a noite se aproxima, 28, ‘pessoas recolhem-se s casas, mas muitos permanecem diante de portas,jane- las, e escadas que dio para a rua, conversando; acendem-se a iluminacao pabli- ca das residéncias, Entretanto, uma movimentacdo inusitada para um bairro residencial chatna a atengdo: caminhées de entrega estacionam diante de esta- se um certo vaivém, caixas de bebidas so 3 nas calgadas. B, nfo ha descarregadas, slgumas mesas e cadeiras sio col vidas: © prepara-se parn uma prometedora vida noturna, ‘outro tipo de atividades e outros personagens darao o tom is suas ru 0 Bexiga que aqui interesse, aquele que de repente & outro, 0 d luzer, tio conhecido. Caminhar por ele no é $6 prest aque 4 noite & muito diferente, apesar de 0 referencia Bexiga baitco, Subir 0 pequeno trecho da rua Treze de Maio a partir do Café Sosaite, por exemplo, & perceber uma multiplicidade de cheiros, cores, luzes, sons, de ambos os lados da rus, do mais “aobre” edo outro. E encontrar gente, também, Principalmente. No Bexiga tem de tudo: “entendidos” e “entendidas”, antigns hippies, casais, turistas, familias inteias, garotos, “intelectuais”. Tudo depende da hora, claro, pois alguns desses stores tém hordrio ¢ local certos. A. caminhada pelo Bexiga ensina que para entender sua dinimica é preciso estar iiteisfing de semana; sexta/sibado/domingo; igreia de Nossa Senhora de Achiropita/Centro Espirita de Umbanda Caboclo Arutaé; italisnos/negros/nor= destinos; escola de sambalbanda de rock; pizea/senduichelfogazza; morado- resifreqientadores ete. Sacrostanta misural B quanto mais se caminha, mais elementos vém aumentar essa lista. Mas comegam a aparecer, também, pistax 42 —o tracado das ruas, a contighidade dos estabetecimentos, a escala das edifica- ses, as proprias edficacdes, transformadas em casas noturnas. E esse desenho € particular arranjo que explicam o reforgo, mais que a competigio, entre as casas, por obra do efeito espethamento: os estabelecimentos dialogam, conver- sam, opdem-se, complementam-se ~ uns 2o lado dos outros e frente @ frente, Existe um estimulo pare pascar de lé para ca, subir e descer, parar e espiar — antes de decidir-se por este ou aquele bar, boteco ou casa de show (Magnani, 56-59) Mancha, contudo, nio se restringe a0 lazer: as lojas de tecidos iamentos ¢ produtos de couro no Bras, por exemplo — procuradas por atacadistas e varejistas -, sus- tentam uma intrincada rede_de sociabilidade que vai além da mera compra de produtos. Durante a realizagao da pesquisa “A Dinamica nas Redes das Relagdes Comerciais do Bras”, realiza- da por Walter Fagundes Morales,!®0 aluno teve sua atengio des- pertada pela demora no atendimento em algumas lojas, que chegavam a distribuir senhas para as clientes. Ao perguntar por ‘que, em vez de enfrentar longas esperas, ndo se dirigiam a outros, estabelecimentos, ouviu a seguinte resposta: “Costureira nao pode ter pressa para comprar”. Aquele tempo, & pri vista desperdigado, era, como péde entdo comprovar, devidamente preenchido por uma discreta mas cuidadosa avaliaclo do mate- rial comprado pelas colegas, comparacdes, troca de informagées, comentarios etc. Em suma, enquanto se esperava, tecia-se a rede de sociabilidade. As marcas dessas duas formas iagho.e uso_do espago — pedago-€ mancha — na paisagem mais ampla da cidad ss. No primeiro caso, no qual o determinante sio as relacdes que se estabelecem entre seus membros, pelo ma- ncjo de simbolos € cédigos comuns, o espago enquanto ponto de é interessando mais a seus habitués. Com faci- lidade muda-se de ponto, quando entio leva-se junto 0 pedaco, A mancha, ao contréri sm como no imaginario. As atividades que oferece e as praticas que propicia sao o resultado de uma multi- I cidade de relagées entre seus equipamentos, edificagdes ¢ vias de acesso — 0 que garante uma maior continuidadc do-a, assim, em ponto de referéncia fisico, visivel e publico para um numero mais amplo de usuarios. A cidade, contudo, ndo é um aglomerado de pontos, pedaros ou manchas excludentes: as pessoas _circulam ent suas_escolhas entre as varias alternativas ~ este ou aquele, aquele ¢ depois aquele outro — de acordo com determinada logi- ca; mesmo quando se dirigem a seu pedago habitual, no interior de determinada mancha, seguem caminhos que nao sio aleaté- ios, Estamos falando de_trajzios. O_termo _trajeto surgi forma de uso do espaco que se diferencia, em primeiro lugar, quele descrito pela categoria pedago. Enquanto esta, como foi visto, remete a um territério que funciona como ponto de refe- réncia — e, no caso da vida no bairro, evoca a permanéncia de iagos de familia, de vizinhanca, origem ¢ outros Cerajeto Aplica-se a fluxos no espaco mais abrangente da cidade ¢no ingerior das manchas urbanas. Nio que nao se possa reconhecer sua ocorréncia no bairro, mas é justamente para pensar a abertura do particularismo do pedago que essa categoria foi elaborada, E a extensao ¢ principal- colocam a necessidade de deslocamentos por regides distantes ¢ ‘igo contiguas: esta é uma primeira aplicagao da categoria: na pai- sagem mais ampla e diversificada da cidade, majetas ligam pontos, ‘manchas, circuitos, complementares ou alternativos, “Dutra aplicagao € no interior das manchas. Tendo em vista que a mancha supde uma presenca mais concentrada de equipamen- 108, cada qual concorrendo, 4 sua maneira, para a atividade que Ihe da a marca caracteristica, os rrajeto: 2 so, na escala do andar: representam escolhas ou recortes no inte- tior daquela mancha, entendida como uma area contigua: Na rua Augusta eu gosto muito do Viens, né? bom pra cinema. No Conjunto Nai tem programagies legais li, S “ i t de-vez em quando no cinema. E gritis mesmo [..] Freqiiento pizzaria, né, 0 Zi ‘Teresa. E muito bos. Aqui na Consolagio, depois do banco. B que eu saio com co pessoal do banco, né,¢ a gente se reine nesses lugares. E 0 que eu gosto mais aqui é o Baguette (trecho de entrevista com Edilene, 27 anos, banciria, mora- dora do Campo Limpo}. Pau Brasil, nessa ordem, ou Livraria Belas Artes/Cine Belas Artes/Bar e Restaurante Riviera — sao exemplos de trajetos ja clas- sicos, um no interior da mancha do Bexiga, ¢ outro na mancha da ‘esquina da Consolagao com a Paulista, como resultado de esco- thas concretas diante dé aliernativas ofere / Sanduicheria Baguette/Cineclube/Cafe do Bexiga/Livraria Arte ‘em suas possibilidades de combinagio. Estamos diante de uma logica ditada por sistemas de compatibilidades. No exemplo Livraria Belas Artes/Cine Belas Artes/Bar ¢ Restaurante Riviera — que mostra uma combinaco nao apenas possivel, mas bastan- te freqiente ~ nao entra na seqiiéncia (nem como alternativa) 0 bar Metropolis, apesar de estar situado na mesma mancha. Outra é a gramética que permite compreender_o significado desse bar e do rrajeto em que se inscreve: com caracteristicas de bar yuppie, apresenta um tipo de paquera com abordagens expli- citas que o distancia do bar Riviera, por exemplo. E no caso yrtado no Bexiga, ndo entra, por certo, tempo tao distante, ao menos do ponto de vista de determinado padrao de lazer. : ‘Assim, a idéia de rrajeto permite pensar tanto uma possibilida- de de escolhas no interior das manchas como a abertura dessas manchas ¢ pedagos em direcat e, por consegiiéncia, a outras 16 o Fisco de cair numa perspectiva reificadora, restrita ¢ demasiada- mente “comunitiria” da idéia de pedago — com seus cédigos de teconhecimento, lacos de reciprocidade, relagdes face a face. Foi afirmado que o pedaro € aquele espaco intermediario entre a cas: (© privado) ¢ 0 publico ou, para utilizar-um sistema de oposiga ja consagrado, entre casa ¢ rua (Da Matta, 1979). Nao é, conte: do, um espaco fechado ¢ impermeavel a uma ¢ outra, ao contra- io de trajeto que abre 0 pedaco para fora, para 0 espa- 0 ¢ ambito do publico. Os srajetos levam de um ponto a outro através dos particos. ‘Trata-se de espacos, marcos e vazios na paisagem urbana que configuram passagens. Lugares que ja nfo pertencem ao pedago ou mancha de ci, mas ainda ndo se situam nos de és escapam aos sistemas de classificago de um e outra e, como tal, apresentam a “maldigio dos vazios fronteirigos”"”. Terra de ninguém, lugar do perigo, preferido por figuras liminares e para a realizagao del rituais magicos — muitas vezes lugares sombrios que é preciso’ cruzar rapidamente, sem olhar para os lados... E, por fim, a nogio de circuito, que une estabelecimentos, espa- ‘508 e equipamentos caracterizados pelo exercicio de determinada Pratica ou oferta de determinado servico, porém ndo_contiguos na _paisagem urbana, sendo reconhecidos em sua totalidade ape- nag pelos usuérios: circuito gay, circuito dos cines de arte, cireuito/ esotérico, dos salées de danga e shows black, circuito do povo-dey santo, dos antiquirios, brechés, clubes e outros. “Todas essas categorias, que descrevem diferentes formas de uso e apropriagio do espaco, constituem chaves para leitura, entendimento e orientagdo na cidade: ao circunscrever_pontos socialmente reconhecidos como relevantes na dinémica urbana, |. Fazem parte do patriménio da cidade, configuram aquele repertério de significantes que possibilitam guardar histo- e personager esquecidas no fosse pela perma- néncia, na paisagem urbana, de tais suportes. Bar Riviera, Café do Bexiga, Bar das Putas, Ponto Chic e Café dos Artistas, Restaurante Pirandello, Nation Disco Club, Café Paris, Rei das Batidas, Bora-Bora, Longchamp, 22 e tantos outros ~ em plena atividade, reformados ou decadentes, no importa ~ tém seu lugar assinalado em mapas ni de ontem e de hoje, que permitem acompanhar a dinami nchas, trai € circuitos da cidade de Si0 Paulo. Sew/poder simbélico i dade de organizar 0 espago sio tais que resistem até mesmo a destruicao fisica do equipamento: 0 cinema desapareceu ha anos, mas quem é do pedaco sabe muito bem onde € o largo do Cliper, 1a pelos lados da Freguesia do O. Conctusio No artigo “O Conceito de Cultura e o Estudo das Sociedades ‘Complexas: Uma Perspectiva Antropoligica”, Eduardo Viveiros ¢ Gilberto Velho descrevem o processo pelo qual a antropologia, ‘em seus comegos ~ diante da expresso “cultura ou civilizagao” que encabeca a famosa defini¢io de Tylor'’ -, terminou optando por cultura ¢ erigindo-a como seu conceito totémico, seu simbo- lo distintivo. De acordo com 0s autores, “se 0 conceito de cultu- ra veio a predominar sobre ‘civilizagéo’ € porque originalmente cle se adequava melhor & proposta da antropologia”!”. Em outro contexto, o das primeiras pesquisas de campo, & diante de outro binémio ~ comunidade versus sociedade ~ mais identificado com a tradigao sociolégica, como foi visto, a antro- pologia fez nova escolha: ficou com “comunidade”. Como na situacdo anterior, também terminou optando pelo termo que me- Thor se adequava ao passo seguinte de sua trajetéria. Parece que ai,na “comunidade”, os antropélogos se sentiam mais a vontade: defende que os conhecimentos dos antropdlogos sociais tem uma qualidade ‘especial, devido a irea onde exercitam sua imaginaglo attstica. Essa area € 0 complexo que espago vivo de alguma pequena comunidade de pessoas que vivem juntas em circunstancias em que a maior parte de suas comunicagdes didrias depende diretamente da interagao. Isto ndo abrange toda a vida social humsna, muito ‘menos abrange toda a histéria humana. Mas todos os seres humanos gastam ‘grande parte das suas vidas em contextos desta espécie (Leach, 1989:50-51). A questéo ainda é valida desde que nio se entenda a contra- 10 como sendo entre dois tipos concretos de organizacdo io da sociedade moderna ¢ industrial e outro dos povos “primitivos”. Na realidade trata-se de dois padrées, dois tipos-ideais de interagao social: sociedade implica relagdes secun- nculos impessoais, visto racional, atitudes utilitaristas — enquanto comunidade evoca relagdes face a face, sentimento de rigido controle social etc. jas” nao constituem caracte- coexistem, imbricam-se. E assim como mesmo os grupos indigenas mais isolados e auto- suficientes so afetados por varidveis externas, de ordem nacional ¢ até internacional, da mesma forma é possivel encontrar no con- texto de uma grande metrépole aqueles espagos vivos descritos por Leach, associados a idéia de comunidade: algumas formas de saciabilidade e vinculos que foram observados nos pedacas ¢ man- chas nao diferem do tipo de interagao a que ele se refere. No caso da pesquisa antropologica em contexto urbano, esta sempre presente, contudo, a “tentagao da aldeia”, que ¢ a de encarar 0 objeto de estudo — uma festa, um ritual, um bairro, uma como uma unidade fechada e autocentrada, No entan- to, o significado e o alcance do candomblé, por exemplo, nao se circunscrevem ao terreiro: seus rituais transbordam para a cida- de, dialogam com outras instituigges, 0 mesmo ocorrendo com outras prdticas culturais nos grandes centros. Recortar um obie- to ou tema de pesquisa na cidade nao implica cortar os vincylos que mantém com as demais dimensdes da dinamica urbana, em jernidade, em ger. cidade", uqui, esto tomadss no mesmo sentido e mexmu relagdo que “comunidade-sociedade”; -pudrdy que podem ser consideradas como a trata-se de form: contrapartida desse bindmio, quando traduzido em termos de ntagio e agenciamento espacial. Assim, para além da mul- idade das formas concretas ¢ historicas que assumiram, belecem. © “padrdo-aldcia”, por exemplo, estabelece_distincio clara (reconhecidos por pertencerem a uma cadeia de obrigagdes reciprocas) ¢ “os de fora” (que devem ser evitados, ou encarados com cautela, desconfianca)**. A cidade, 20 contririo, no s6 admite ¢ abri sua presenca: “Seja do tipo que for, a diversidade produzida pelas cidades reside no fato de conter tantas pessoas, to perto umas das outras ¢ ostentando tao diferentes gostos, habilidades, neces- sidades, suprimentos ¢ excentricidades’ Dessa forma, a0 pos: contatos entre estranl (acobs, 1992:147). itar um sistema mais amplo de trocas ¢ amplia os horizontes dos grupos fami- liares, domésticos, de vizinhanga ou quaisquer outros fundados ‘em lagos de confianga pessoal e conhecimento direto. Portanto, quando se diz que a antropologia “optou” pela de organizagio social ou que deva deixar de lado as relacdes jetirias”, desconsiderando as trocas ¢ contatos em outro |, mais amplo. O que caracteriza o fazer emografico no con- texto da cidade € o duplo movimento de meérgulhar no particular para depois emergir e estabelecer comparaciies com outras expe- rTigncias ¢ estilos de vida ~ semelhantes, diferentes, complementa- 20.*"Um grande niimeto de tibos primtivas charam-sea si mesmas com um nome que significa somente, ein sua lingua, ‘os homens", mostrando com isso que a seus ofhos lum azributoessencial da humanidade desaparcce quando se sai dos Bo que acontece com of exqu ‘de comunklade, que & fonedo da solidaridade efetiva do grupo" 192340), OEXIGA, RUA 13 DE MAI, MaRS

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