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7 A pregagio na historia Depois do concilio Vaticano II houve muitas publicagées so- bre pregagio e catequese. Mas tal interesse nao é novo na Igreja. A pregacio crista tem antecedentes no judaismo. A leitura ¢ interpretacéo da Biblia nas sinagogas influenciaram, profunda- mente, os judeu-cristéos que participavam das reuniGes, antes e depois da conversio, A Biblia documenta, também, as formas orais que precederam a Escritura ¢ 0 uso interprecativo desta Diz. Esdras que a assembleia convocada por ocasiao da volta do exilio da Babilénia, vé os levitas na atividade homilética: “Eles liam no livro da lei de Deus em trechos distintos e com ex- plicagdes do sentido e, assim, faziam comprecnder a lcitura” (Neemias 8,8). A primeira descrigéo tedrica da homilética cristi encontra- mos na obra De doctrina christiana (livro IV), de Santo Agosti- nho. Mas a preocupagao mais sistematica, na Igreja catélica, por uma teologia da pregacao é recente, pois a homilética fazia parte da teologia (pritica) pastoral. No periodo entre as duas grandes guerras, no contexto da renovacio biblica ¢ litiirgica, com influ- éncia da teologia protestante da Palavra de Deus, que considera 4 pregacio um evento salvifico, comega a surgir e a desenvolver- se, na Igreja catdlica, uma verdadeita teologia da pregagao. No concilio Vaticano II a Igreja reconhece que o servigo da Pa- lavra, juntamente com a celebragio dos sacramentos ¢ da dia- conia, integra as fungdes ou os ministérios fundamentais de sua missao recebida de Cristo. 144 Uno zZies + Teobpa da Prepario 71 _ A pregagao na Biblia No Antigo Testamento as fontes da pregacéo sao a Tord (lei), que trata da ordenacéo do culto e da vida de Israel; os profetas, acentuando o cardter espontineo e carismitico frente ao institu- cional; os salmos, nos quais se agradece a Deus, anunciando seu poder. A pregacio é feita nas sinagogas pelos chefes, sacerdotes, profetas, escribas, sibios e pelos proprios figis, na consciéncia de {que estao transmitindo a Palavra de Deus no confronto com no- vas situagdes. O préprio Jesus prega na sinagoga (Le 4,15), fazen- do um comentério de Isafas, aplica o texto a0 momento presente. O Ressuscitado explica as Escricuras, no caminho de Ematis, aos dois discipulos ¢ aos onze: “Era preciso que se cumprisse tudo que esta escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos” (Le 24,44). No caminho de Emati, Jesus interpreta 0 ‘momento presente a luz dos textos escrituristicos numa “conversa familiar”, Ao surgirem doutrinas heréticas nas primeiras comunidades, Paulo convida Timéteo e Tito a transmitir, com fidelidade, 0 de- sito da fé recebida e a ensinar a si doutrina (27in 4,1-5; T¢2,1). A homilia é uma continuagio do que se fazia na liturgia ju- daica da sinagoga, onde, aos sibados, se liam passagens da Lei ¢ dos Profetas, que depois eram comentados pelo chefe ou por algum convidado por ele. Assim, em Le 4,16, Jesus foi convida- do, em Nazaré, a comentar o profeta Isaias. Lucas conta-nos que Jesus ensinava nas sinagogas. E isto fizeram, depois, os apéstolos, de modo especial Paulo (Ar 13,14; 14,1; 15,35; 16,13; etc.). Na patristica, homens com formagio literdria ¢ retérica, como Santo Agostinho ¢ Sao Joao Crisdstomo, ampliaram a fungio da prega- io, encontrando caminhos para além da homilia. Na hist6ria do cristianismo, a pregagao nao se reduz 4 homi- lia. O proprio Jesus “viajava de cidade em cidade, de povoado em povoado, pregando e anunciando a boa-nova do reino de Deus” Aprogagaona ita 145 (Lc 8,1). Sua missio & “F necessdrio que leve 4 boa-nova do reino {CDeus também as outras cidades, pois para isso é que fui envia- do” (Le 4,43). Jesus € um pregador itinerante: °O Filho do Ho- ‘nem nao tem onde repousar a cabeca” (Mt 8,20). Toda sua vida Pam éxodo, um camino para Jerusalém (Le 9,51) ¢ para o Pai (Jo 13,1), para levar a termo o mistério da Péscoa. Portanto, seria erréneo querer reduzir a pregacio a homilia. Esta, entretanto, ¢ a mnancira propria da pregagdo dentro de uma celcbrasio livairgica. R homilla éa meta, mas, raras vezes o inicio do caminho para Cristo. "A pregacio da Igreja deve ser missionéria. O discurso de Pe- dro, em Jerusalém, no dia de Pentecostes, pode ser considera- “foo modelo de umn discurso missiondrio a um publico hebrew (At 2,14-36), como o de Paulo, no aredpago de Arenas, wm mor tJelo de discurso missionério para uma assembleia grega (Ar 17, 22-31). 72. [A pregagao na Igreja apostélica Na Igreja primeva, como nas sinagogas judaicas, pregagio cstava unida & leitura das Escrituras, primeiro do Antigo Testa- vento, 20 menos enquanto nao havia Novo Testamento. Por isso reprina mais comium, em quc o ensinamento dos Padres chega a inés, sao comentarios a Biblia ou homilias. Logo depois da morte, ressurrei¢ao € ascensio de Jesus 20s céus, os apéstolos ainda nao celebravam uma licurgia da Palavra Como hoje, pois ainda no havia livros escritos do Novo Testa mento. © evangelho de Marcos, 0 primeiro, na ordem crono- légica, foi escrito pelo ano de 65 .C. Depois surgiram muitos ceecritos na comunidade crist4, demorando séculos até se impor universalmente 0 cinon atual dos livros inspirados. Aos sibados, inicialmente, os judeu-cristios frequentavam a sinagoga ¢ 408 {46 Ubu ziles + Teologa da Propaeo 72 A pregagao na Igreja apostélica Na Igreja primeva, como nas sinagogas judaicas, a pregagao estava unida & leitura das Escrituras, primeiro do Antigo Testa- ‘mento, a0 menos enquanto néo havia Novo Testamento. Por isso a forma mais comum, em que o ensinamento dos Padres chega a 16s, sio comentarios & Biblia ou homilias. Logo depois da morte, ressurreicio ¢ ascensio de Jesus aos céus, 08 apéstolos ainda nao celebravam uma liturgia da Palavra como hoje, pois ainda nao havia livros escritos do Novo Testa- mento, O evangelho de Marcos, primeiro, na ordem crono- légica, foi escrito pelo ano de 65 d.C. Depois surgiram muitos esctitos na comunidade crista, demorando séculos até se impor universalmente 0 canon atual dos livros inspirados. Aos sibados, inicialmente, os judeu-cristios frequentavam a sinagoga ¢, 20s 148 tao Zies + Teongince Preero domingos, celebravam a Eucaristia. Apesar de tudo isso, os apés- tolos pregavam o Evangelho a judeus e pagaos. © Novo Testamento nasce da pregacio, que ¢ a origem da Igreja: “Ide pelo mundo intciro, proclamai o Evangelho a to- das as criaturas. Ide, pois, de todas as nagdes fazei discipulos” (Mec 16,15). “Quanto a cles, safram a pregar por toda parte” (Me 16,20). Os apdstolos pregavam 0 que tinham visto ¢ ouvido. Somente depois de décadas de pregacio, os “apéstolos” sentiram necessidade de escrever as memérias de sua experiéncia. O pro- cesso descrito por Lucas, nos Atos dos Apéstolos, & 0 seguinte: a Pa- lavra se difundia, a fé crescia, o Espirito Santo dava testemunho. Lucas estava convencido de que nao é a acio humana que explica ¢ sustenta a difusio do Evangelho, mas a iniciativa divina. ‘Somente depois que o Novo Testamento foi escrito ¢ estabele- cido 0 canon, ele passou a ser lido universalmente no culto divino ¢, entdo, tornou-se necessaria uma explicagao dessa leitura, como ja 0 testemunham Justino ¢ Tertuliano. Na primeira Apologia, escrita pelo ano 153, Justino relata a pritica do que chamamos homilia: No dia chamado do sol, faz-se uma reunio, num mesmo lugar de todos 0s que habitam nas cidades ou nos campos, leem-se (05 comentirios dos apéstolos ou as escrituras dos profetas, na medida em que 0 tempo o permite. Depois, quando o leitor acabou, quem preside exorta e incita, pela palavra, 0 ddessas coisas excelsas. Depois nos levantamos todos ao mesmo tempo e recitamos oracées. ‘As homilias, feitas na celcbracio litdrgica, dao origem a gran- des comentitios escrituristicos. Os padres costumayam comentar 6 texto biblico, versiculo a versiculo, em geral, correspondendo a uma leitura continua de um livro candnico. Posteriormente, quando se formaram os “tempos litirgicos” e o sistema de peri- copes, a homilia passou a explicar a leitura do Evangelho do dia. ‘A quaresma, como tempo de peniténcia, era o tempo comum da instrugao dos catecimenos, o tempo forte da pregacio. ‘Apeprionancérn 147 Havia uma pluralidade de ministros da palavra. A Didagqué afirma a estima por “aqueles que ensinam” (11,1-2), confirman- do a atividade exercida por apdstolos, proferas, mestres ou dou- tores, Em O Pastor, Hermas descreve 0 profeta como “homem {que possui o Espirito divino” que “vem a uma assembleia de homens justos que tem a fé do Espirito divino”. A Epéstola de Barnabé fala longamente sobre os doutores que tém 0 dom da ciéncia para conduzir os fis, ajudando-os a penetrar mais a fun- Go no sentido das Sagradas Escrituras. Mas, a Didagué também adverte que os bispos, os presbiteros ¢ os difconos assumam 0 tninistério da palavra nas assembleias, para que “desempenhem cnere vos 0 ministério dos profetas ¢ dos doutores; nao os des- rezeis, portanto, pois vos deveis honri-los como os proferas ¢ doutores” (15,1-2). 'A pregacao dos tempos apostdicos sinha algumas carateris- ticas fundamentais: a) Amalidade existencial: fxr. uma leitura teologica da histé- ria, interpretando 0 momento presente como hora da graga de Deus (cairé:), apresentando-se a pregagio com autenticidade € credibilidade b) Cristocentrismo: Deus revela-se na histéria concreta, fa- ando-nos através do Deus-Homem Jesus Cristo, em linguagem humana. Disso Novo Testamento nao deixa dividas. Quando Paulo fala aos habitantes de Atenas, seu discurso desemboca na Cristologia. ©) Tomada de decsdo: toda exortagio apostélica tende a desper- tar uma resposta em quem escuta. Nao se pode ficar indiferente diante da boa-nova. A pregacéo apostdlica tende a despertar uma vida nova ein quem ouve o Evangelho, uma nova mentalidade, um novo modo de ser € agit. Nos tempos apostélicos a Eucaristia era celebrada, inicial- mente, apenas no primeiro dia da semana, dia da ressurseigao do TAB roa ces + Teka ca Peasto Senhor. Depois estendeu-se & quinta-feira, dia da instituigio da Eucaristiae, aos poucos, aos outros dias. A licurgia da Palavra era feita 20s sibados, na sinagoga, até a separagao entre judeus e cris- tos. Ora, a pregacio do Evangelho acontecia também fora da ce- Jebracio littirgica porque, ac menos na forma de querigma, é con- digo para a mesma. No centro da prega¢ao, nos tempos apostélicos, esta o mistério pascal: paixio, morte e ressurreigao do Senhor, como j4 mostram os sermaes dos apéstolos Pedro € Paulo nos Atos. Cristo ressuscitado envia o Espirito Santo, em Pentecostes, para continuar sua obra através da Igreja, pois Ele vird no fim dos tempos como juiz. O tempo presente ¢ 0 tempo de conver- so, O anincio da Palavra leva 4 fé, que conduz. a celebragio da Eucaristia que, por sua ver, leva 4 vivencia da caridade fra- terna, is obras da fé. Desde 0 tempo apostélico, a pregacéo da Igreja teve um duplo objetivo: (a) 0 primeiro antincio do Evangelho (querig- ma) e (b) a instrucéo dos convertidos (homilia), exortando-os a aprofundarem sua conversio. A instrugao, por sua vez, assumitt diversas formas € contetidos no decurso do tempo, de acordo com a situaco, numa influéncia reciproca. Desde Pentecostes, 0s apdstolos dedicaram-se & pregacio e ao ensinamento, dan- do, até mesmo, certa prioridade & pregagio em relacio as obras de caridade (At 6,2) ¢ em relagio celebragao dos sacramentos (1Cor 1,17). Segundo 0 Novo Testament, 0 ensinamento ¢ fei- to pelos apdstolos, doutores e profetas. ‘A leicura dos textos homiléticos do século II, que chegaram até nés, pode ser itil, mas, algumas vezes, eles também expres- sam pobreza. Assim, por exemplo, a identificagao da instrugao com a formagao moral e a iniciacio linirgica, pode transformar fa pregagio em “moralina” ¢ a liturgia em “rubricistica”. F. isso, certamente, empobrece o Evangelho de Jesus Cristo. Em geral, todavia, revelam uma atualizacao da Palavra de Deus no hoje em circunstancias concretas de vida. Apreogioratiaira 149 73 A pregagao na patristica Na vasta literatura patristica, a homilética ocupa um espago considerdvel. Chega até nds um significativo niimero de textos de homilias. Nem todos possuem muita qualidade, mas nao deixam de ser testemunhas da atividade pastoral na época, Em grandes linhas, a pregacio patristica reflete os momentos hist6ricos, nos quais expressa as crises espirituais, provocadas pelas perseguigdes ou pelas controvérsias doutrinais. Propunha-se uma exposigio clara dos conteddos da fé, uma exortagao & continua conversio € 20 cultivo da caridade e da esperanga. A base dessa pregacio era a f€ apostdlica e a Sagrada Escritura. ‘No centro da vida litiingica estava 0 mistério pascal. E os cris- taos reuniam-se no primeiro dia da semana (dia do sol), pois nele celebravam a Pascoa. Nela celebrava-se nao s6 a ressurteicio, mas 0 evento salvifico em sua globalidade, Nos tempos apostélicos e pa- tristicos, a PAscoa era, por assim dizer, tudo, pois nela celebrava-se toda a histéria da salvacdo, desde a criacio até a parusia, como ainda ‘mostra a licurgia da vigilia pascal. E isso se manifesta nas homilias. Hoje, conhecemos duas homilias pascais bem antigas: Sobre a péscoa, de Melitao de Sardes (meados do século II) ¢ outra Insanc- ‘tum pascha, do Pseudo-Hipélito (meados do século I). Essas duas homilias mostram as matrizes da Piscoa cristé, na sua vinculagao com a Pfscoa judaica; mostram, outrossim, como parecia natural relacionar a homilética crista com a haggadah judaica, tanto assim que 0 texto narrativo-explicativo de Melitéo ainda foi chamado de haggadah pascal crista. ‘A haggadah seguia o esquema previsto em Ex 12,26. Como a huggadab judaica, a homilia crista tinha a fungio de ilustrar a Piscoa como festa da libertagao, com base nos acontecimentos do Exodo, centrado na imolagao do cordeiro, cujo sangue libertou os hebreus da escravidio do Egito. A estrutura da homilia crista é a tipologia, ou seja, descobre nas realidades um significado superior 150 UnarodZtes + Tela da rogago que € 0 verdadeiro. Na prética, reconhecem-se nas palavras ¢ nos acontecimentos do Antigo Testamento, figuras (tipos) das reali- dades pela nova economia do Verbo. No caso da Piscoa,-os cris- tios reestruturam a festa judaica em torno da compreensio de Cristo, como verdadeiro cordeiro pascal: No lugar do cordeiro, © Filho de Deus. Aliés, essa compreensio tipolégica jd a encon- tramos no Novo TTestamento: “Cristo nossa pascoa foi imolado” (Cor 5,7). A Primeira Carta de Pedro, por vezes, jé foi consi- derada uma homilia pascal, ou seja, uma lcitura tipolégica de Ex 12, aflorando temas hagadaicos. Em sintese, as primeiras hor lias cristas, situam-se em direta continuidade da haggadah judai- ca. A partir de Cristo faz-se uma releitura do Antigo Testamento. E isso que encontramos nas citadas homilias de Melitao ¢ do Pscu- do-Hipélito, J4, no exérdio de Melitao: “A pericope do Exodo dos hebreus foi lida e os termos do mistério nos mostraram, com toda evidéncia, 0 cordeiro imolado, 0 povo salvo, o Farad, por forga do mistério, castigado”. Lé-se o texto do Antigo Testamento como figura (tipo) da Péscoa crista, interpretando a Pascoa histérica de Israel como figura do mistério pascal de Cristo, fundamentando a substituigao de Israel pela Igreja. ‘A interpretacéo tipoldgica do mistério da Pascoa dos padres, por meio da categoria da figura, mostra que o drama vivido por Israel e narrado no Exedo nao sé diz respcito a Israel ¢ ao Egito, ‘mas também ao homem € ao cosmo. Por isso, os pregadores re- montam is origens da humanidade, ao drama primordial da que- da: o pecado é a verdadeira escraviddo do homem e, a morte, sua condenagio. A piscoa de Cristo, 0 mistério pascal, liberta-nos do pecado e da morte, morrendo na cruz e ressuscitando. As homilias dos padres, por isso, sao um tratado global e abrangente do mis- tério da redengao: sao sobre Cristo, sua mensagem, sua obra ¢ nio sobre 0 homem. O Cristo apresentado nao é 0 Cristo em si, mas 0 Cristo para nés, 0 soteriolégico. Encontramos um paralelismo entre os episédios do jardim do Eden e os do Calvirio, a cruz.e a Arvore da vida, 0 Cristo como novo Addo que resgata a nova Eva, a Paéscoa como nova criagio. Aprogacionanisira 151 © termo alegoria, inicialmente, causava suspeita aos ouvidos cristéos porque lhes parecia compromisso com a interpretacao dos mitos pagios. Entretanto, usavam 0 procedimento indicado por esse termo. Tal procedimento, na interpretacio da Escritu- ra, jf ocorre no Evangelho de Sao Joao, na Carta aos Hebreus ¢, sobretudo, na carta do Pseudo-Barnabé, que usa 0 termo typos ao interpretar textos do Antigo Testamento como prefiguragdes simbélicas e proféticas de Cristo e da Igreja. Paulo ¢ Barnabé nao negam os personagens hist6ricos, mas, ao mesmo tempo, consi- deram-nos simbolos antecipagées de realidades futuras. Essa ini- iativa, na hermenéutica biblica, evidentemente foi rejeitada pelo judaismo rabinico. Mais tarde, Origenes busca, tanto no Antigo Testamento como no Novo Testamento, a interpretagio espiritu- al, que retira do texto o significado mais profundo e verdadeiro, ‘oculto sob o véu da letra. Com isso, a interpretagio da Biblia pode tornar-se mais ttil ao destinatério, Até 0 Edito de Milao (313), os primeiros pregadores conhe- cidos, como Melitio de Sardes, Hipélito ¢ Origenes, mostram uma grande capacidade de visio da economia da salvacio, tra- duzida nos mistérios do culto, As figuras literdrias da tipologia e da alegoria conferiam ao seu discurso uma verdadeira sublimi- dade. Origenes elaborou regras para a interpretacio da Sagrada Escritura, concebendo a homilia como uma clevacao (andbase) do significado literal do texto até 0 espiritual e anagégico. Nisso, mais tarde, ter seguidores como Gregorio de Nazianzo ¢ Gre- gorio de Nissa. : Origenes exerceu uma influéncia determinante sobre a homi- lética posterior, gracas aos seus comentirios exegéticos ¢ as cen- tenas de homilias sobre a Sagrada Escritura, Com ele a homilia torna-se um itinerdrio espiritual e mistico, fundado no testemu- rho biblico. Sua extraordindria erudicio jamais corrompent a in- tengio primeira de edificar ¢ alimentar o Animo dos fiéis. Tragou seu caminho, orientado na péscoa do cristo, que € chamado a passar do homem velho ao homem novo, do vazio e do pecado para a graca e a vireude. 152 Urano Zies + Teolwjade Pregario Alguns estudiosos consideram Origenes (185-252) 0 ini- ciador do género homilia, como explicagio das Sagradas Es- crituras, a fim de caprar seu sentido espiritual ¢ dai tirar as aplicagoes prdticas. Segundo o historiador Eusébio, Origenes “foi um homem de aco”, um dos escritores eclesidsticos mais fecundos, dos tedlogos mais audazes, e, com Santo Agostinho, ‘© mais influente na Igreja antiga, apesar da tenaz oposicio a cle, apés a sua morte. Deve-se a cle a primeira exposicio siste- mitica, amadurecida e critica, da interpretacao crista da vida e do universo, Nas cerca de duzentas homilias, chegadas até rnés, mostra sua preocupacio com a edificacéo de seus ouvin- tes: “Nao é este 0 momento para um comentario minuciosos devemos edificar a Igreja e estimular, com explicages misti- cas ¢ com o exemplo dos santos, os ouvintes preguicosos inertes’."® Para Origenes, um leigo tedlogo, “o presbitero é 0 doutor” e a sua tarefa é a de explicar a Escritura aos figis. Em 230 ele se transferiu de Alexandria para Cesareia da Palestina, onde posteriormente foi ordenado presbitero. reconhecimento oficial do cristianismo pelo imperador Constantino, e a consequente paz € liberdade, as numerosas conversdes 4 fé e 0 aumento do niimero de catecimenos, a for- magio das organizacées eclesidsticas, a construgéo de templos para o culto ¢ 0 enriquecimento da liturgia, as grandes contro- vérsias religiosas, 0 confronto com o paganismo e a decadéncia do fervor ¢ da moral, desafiaram grandes oradores ¢ pastores como Bastlio de Cesareia, Gregério de Nazianzo, Gregério de Nissa e, sobretudo, Joao Criséstomo, no Oriente grego ¢ Agostinho, na Africa latina. Actesce que a grande maioria dos oradotes cristaos eram pessoas nao s6 cultas, mas grandes te- Slogos. A pregacao cra algo muito vivo para a qual afluia o povo. Consistia, cssencialmente, na explicasio dos mistérios da fé e da Sagrada Escritura. © ORIGENES. Homilies sobre o Genesis, 10,5 Aprogaciona stra 153 No periodo do século IV ao VI, grandes figuras de bispos dio forma orat6ria ¢ contetido doutrinal & pregacio homilética a pon- to de constituirem modelos para seguir. No Oriente destaca-se Sio Jodo Criséstomo, presbitero, com seus numerosos discursos sobre textos biblicos, com a preocupacao de atualizar a Palavra de Deus, aplicando-a as diversas situagdes da comunidade crista. No Ocidente, Agostinho, com seus numerosos sermées, na sua obra De doctrina christiana, explica a Biblia pela Biblia, usando, a0 co- mentar 0 texto, as citagdes de outros textos. As homilias dos san- tos Padres s4o 0 comentdrio vivo da Biblia na Igreja dos primeiros séculos, o melhor testemunho da vivéncia da fé biblica. O papa Gregério Magno (540-604) concebeu 0 ministério. pastoral como pregagao. Ele mesmo foi um pregador incansével, conservando-se mais de 600 de suas homilias. Na metade do sé- culo V, Leéo Magno restringira & ordem sacerdotal a prerrogativa de pregar, embora as Constitutiones Apostolicae do século IV, afir- ‘mam: “Quem ensina, mesmo que seja leigo, ensina como expe- riente na palavra e probo nos costumes. E todos serio ensinados por Deus” (8,32,17). Seguindo os passos do apéstolo Paulo, os padres expressam © Evangelho na linguagem da cultura grega. Para cristianizar 0 helenismo, também helenizaram o cristianismo. A traducéo do cristianismo para dentro da cultura helénica foi t4o profunda, ‘que até hoje os tedlogos ¢ pregadores se expressam nas catego- tias da filosofia grega. Sio Justino, 0 primeiro filésofo cristao, ¢ Séo Clemente de Alexandria valorizaram e assimilaram a cul- tura grega. Esta, que é a base da civilizacao ocidental, evoluiu a ponto de hoje devermos reconhecer que é outra. E a dificuldade do cristianismo ¢ inculturar a fé nas novas culturas do século XXI. O conecilio Vaticano II, na constituicéo Gaudium et spes, indica caminhos, para inculturar a fé na pluralidade de culeuras hodiernas, mas falta a coragem e a competéncia dos pregadores e tedlogos e, sobretudo, dos bispos para esse desafio. Enquanto os pregadores nao valorizarem a cultura dos homens de hoje, nao se espere que esses valorizem a mensagem da Igreja de ontem. 154 Usinozies + Teta de Pio Nao é 0 mundo que foge da Igreja, mas a Igreja é que se retira do mundo moderno. Os padres tinham a capacidade de desenvolver 0 quetigma na perspectiva da inculeuragao da fé, valendo-se da filosofia grega na interpretagio da Biblia, fazendo uma sintese entre fé e vida, entre iéncia e fé. Esses tedlogos, embora muitos deles fossem monges, viviam com 0 povo ca servigo do povo, pois eram tedlogos e; 20 mesmo tempo, pastores. Depois da patristica, a acao littirgica tornou-se mais clerical ¢ a homilia biblica desaparece nos livros liturgicos e, em geral, na pritica. O Ordo Romanus I, compilado, provavelmente, no século VII, sintomaticamente, nada diz sobre a homilia. Da mesma ma- neira, 0 Missal de Sao Pio V (1530) sequer menciona a homilia depois da proclamacao do Evangelho. 73 A pregagéo nos tempos modernos A situagio da pregac4o, no fim da Idade Média e na transigao para o Renascimento e 0 Humanismo, é precéria em duplo sen- tido: por um lado, a formagéo do clero, em geral, deixava muito a desejar e, por outro, a pregacio afastara-se muito da Sagrada Escritura, Nesse contexto surgitt a reforma protestante, defen- dendo a liturgia em lingua vulgar e 0 acesso dos figis & Biblia concflio de Trento determinou a formagao do clero nos semi- nirios e, através do decreto Super lectione et praedicatione, diz que a leitura da Biblia deve ser favorecida ¢ a pregacéo do Evangelho a0 povo cristao deve ser feita, obrigatoriamente, aos domingos € nos dias de festa. Mas, como tantas outras determinagées con- ciliares, quando mexem na pritica vigente, na realidade, pouco mudaram. Nos seminitios, a formagio continuou a imposta- Gao escolistica e a consequence pregagéo temético-catequética. Por isso, com raras excec6es, a pregacao procura chegar a0 povo através da forma oratéria retérica, inspirando-se, muitas vezes, mais na mitologia, na filosofia ¢ na literatura que na Biblia. Da Biblia tiram-se citagoes de efcito. O coneilio de Trento (cin. 5) insiste na proibigio de os leigos pregarem “sem a permissio do bispo”. Nio se trata, portanto, de uum principio geral contra a pregacio dos leigos, mesmo durante 4 missa, como o demonstrou o préprio concilio de Trento que, depois, em fins de 1561, a0 retomar os trabalhos conciliares, nos pontificais de inauguracao ouviu uma pregacio feita por um leigo, a servigo do cardeal Madruzzo, o médico Paulo Guidello, na festa dos Santos Inocentes. Ap6s 0 concilio de Trento houve uma melhora na pregacio, encabecada pelas antigas e pelas novas ordens religiosas. Os je- suitas dedicaram-se a ela enquanto se dedicavam ao seu apos- tolado na educagio. Da mesma maneira, os redentoristas ¢ os 158 Ubanozies + Tevoja da Pepto passionistas voltaram-se & pregagio, no campo ¢ nas cidades. Alids, 0 Catecismo de Trento tinha a finalidade de ajudar os pi- rocos na preparagio de suas homilias, Surgiram, aos poucos, as misses populares nas pardquias, que se estendiam durante uma semana de intensa pregacao, visando 4 conversio. 76 A pregacao nos tempos recentes Nos tempos recentes, os pontifices romanos tentam reduzir 695 abusos na pregagdo, estabelecendo regras rigidas para conce- der a faculdade de pregar, supostamente reservada aos bispos. Claro, nao conseguiram inibir os abusos ocorridos na pregacéo dos préprios bispos ¢ presbiteros, O grande problema na pre- gacio da Igreja catélica, hoje, néo é propriamente uma questio livirgica, muito menos de normas, mas de mentalidade, nio s6 dos pregadores, mas, sobretudo, da propria hierarquia. Leaio XII, no motu proprio Sacrorum antistitum (1884), lamenta “os abusos na escolha dos temas ¢ na forma da abordagem”. Bento XV, na enciclica Humani generis redemptionem (1917), apresenta © apéstolo Paulo como modelo de pregador ¢ critica a pregagao que deixa de lado os textos biblicos para limitar-se a linguagem da razdo. Para superar a distincia entre 0 antincio do evangelho € a vida real, no mundo de hoje, nao basta conhecer e citar Sao. Paulo, Importa encarnar seu espirito apostélico, inculturando a boa-nova na vivéncia dos homens de hoje. Isso pressup6e criati- vidade, além de fé e competéncia intelectual. O Cédigo de Direito Canénico de 1917 prescreve que, nos domingos ¢ nas festas, todo paroco anuncie ao povo a Palavra de Deus, consueta homilia, na missa mais frequentada: “Dé-se uma breve explicagéo do evangelho ou de alguma parte da doutrina crista”. O Missal e 0 Cédigo sA0 pouco explicitos quanto 3 na- tureza da homilia. Certamente, a questio da evangelizagio nio ‘Apoagionatiseea 159 pode ser reduzida & simples questao de quantidade de homilias, pois o que falta, é antes de tudo, qualidade. Por vezes, pode terse a impréssio de que a preocupacio dos pregadores é tio grande com as normas ¢ rubricas que esquecem do essencial: Cristo ¢ sua mensagem, atualizada para os ouvintes concretos. ‘No século XX houve reages & pastoral intelectualista, atra- vvés do jesuita alemao Pe. José Jungmann, tomando como centro a boa-nova, 0 mistério de Cristo, através dos movimentos de renovacio catequética, de renovacio linirgica dos beneditinos ¢ do Pe, Romano Guardini, o movimento biblico, a renovacio no campo da moral... enfim, preparou-se 0 ambiente para 2 reali- zagéo do concilio Vaticano IL 77 A pregacio no Vaticano IT

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