You are on page 1of 31
JOAO FILIPE MARQUES Revista Critica de Ciéncias Sociais Faculdade de Economia da Universidade do Algarve Racismo, etnicidade e nacionalismo. Que articulagao?: Grande parte das reflexdes socio- lgicas politicas acerca das socie- dades contemporaneas utiliza as ‘categorias racials, etnicas e nacionais de uma forma essencialista ou reifica- dora. Os conceitos de racismo, otni- cidade e nacionalismo tém vindo a ‘ser usados como explicativos, quando carecem, frequentemente, eles pré- prios de’ explicagao. Pretende-se, neste artigo, sublinhar o caracter de construgad Social das categorias cita- das, explorando, simultaneamente, a articulacdo légica entre os fenémenos de racismo, de etnicidade e de naci nalismo. Net Dezembro 2001 103 ..iberto dos meus ornamentos estrangeiros, vi-me apreciado com mais justica. Tive motivo para me queixar do meu alfaiate, que me fez perder num instante a atengao e a estima publica: porque entrei de repente num nada odioso. Eu ficava por vezes uma hora numa reunido sem que alguém me olhasse e me pusesse na situagao de abrir a boca. Mas se alguém, por acaso, soubesse na reunido que eu era persa, ouvia imediatamente 4 minha volta um sussurrar: «Ah, ah, 0 senhor 6 persa? E uma coisa realmente extraordindrial Como é que se pode ser persa?» Montesquieu, Cartas Persas ACISMO, etnicidade e nacionalismo tém vindo a ‘ocupar um terreno cada vez mais alargado tanto no que res- peita A pesquisa empirica, como no que toca a produgéio tedrica das Ciéncias Sociais ou, ainda, a reflexao politica sobre as sociedades contempordneas. Qualquer destes fend- menos pressupde uma forma de diviséio da populagao mundial em unidades discrotas mutuamente exclusivas, isto é, cada um deles se fundamenta numa dicotomia do tipo nés/outros. * Neste artigo, esta incorporada, com alteragSes, a comunicagao intitulada «Ainda podemos falar de “ragas"? A “raga” enquanto conceito sociologico», Publicada inicialmente na obra colectiva O que é a raca. Um debate entre a Biologia ¢ a Antropologia. Lisboa: Oikos ~ APB - APA, 1997, 65-70. 104 Jodo Filipe Marques Consoante os contextos sociais e culturais, os mesmos individuos ou grupos podem auto-definir-se ou ser definidos por outros através de categorias raciais, étnicas ou nacionais. A utilizagéo de cada uma destas formas de categorizagao depende, nao apenas dos contextos, mas também das inten- ges politicas dos individuos e grupos envolvidos. A pers- pectiva aqui adoptada assume, como se vera, que, quer as «ragas», quer os grupos étnicos, quer as nagées, constituem entidades socialmente construidas e, portanto, fluidas, insta- veis @ provisorias, que constantemente se sobrepoem umas as outras e cuja utilizagao pelos actores sociais 6 também social ¢ historicamente contingente. Ou seja, «ragas», nagdes @ grupos étnicos constituem o que Benedict Anderson designa por comunidades imaginadas. |maginadas no sentido em que, contrariamente as representagdes dos seus membros, nao possuem nenhum fundamento natural ou biolégico e porque 08 individuos que se incluem nessas comunidades nao podem, regra geral, interagir concretamente de modo a formar uma comunidade real ou mesmo conhecer-se uns aos outros (Anderson, 1983). Tal como a abordagem sociolégica contemporanea do racismo pode deixar de lado a definicao da «raga» que Ihe toi fornecida pela Biologia e pela Antropologia Fisica do século XIX, também as principais abordagens sdécio-antropo- ldgicas contemporaéneas acabam por deixar de lado a defi- nigdo objectivista de grupo étnico, ou fazem-no de uma forma vaga e tautoldgica. Do mesmo modo, a definigao de nagao em termos objectivos parece condenada ao fracasso ou a ambi- guidade. Por isto, tem vindo a ser gradualmente defendido que, mais interessante ¢ provavelmente mais util do que defi- nir sob um prisma objectivo grupo étnico ou nagao, é abordar 0s discursos e as praticas (ou as ideologias e os movimen- tos sociais) daqueles que subjectivamente se reclamam per- tencentes a um grupo étnico ou a uma nagao e se mobili- zam colectivamente em torno destas ideias: a etnicidade e o seu avatar moderno, o nacionalismo. No que nos diz res- peito, importa igualmente realgar a articulagdo destes dois fenémenos com o racismo, uma vez que os trés aparecem frequentemente associados, quer no Ambito da teoria social, quer da pesquisa empirica, quer, obviamente, dos discursos do quotidiano. Talvez nao venha a despropésito lembrar que a maior parte dos discursos dos meios de comunicacdo social e dos politicos e de uma boa parte da propria ciéncia social de produgao nacional satisfaz a sua boa consciéncia ao utilizar expressdes como «raga negra» e «etnia cigana» afirmando, assim, que sabe fazer a distingao entre «raga» e «etnia» sem, no entanto, se dar conta de que a escolha de um ou outro rétulo nada tem de cientifico. A substituig&o de expressdes que tornaram politicamente incorrectas depois de 1945 como «raga judia» ou «raga cigana», polo tormo aparentemente mais noutro de «etnia», apenas mascara a atitude que esta por detrds das duas designagdes e que costuma estar inti- mamente ligada a uma concepgao determinista do compor- tamento humano. E a atitude que consiste em encerrar os individuos, nomeadamente os membros de minorias domina- das, numa categoria essencial, isto é, numa categoria perma- nente e imutavel a qual estariam associadas determinadas maneiras de pensar e agir: um «negro» deixa de ser um indi- viduo para se tornar no representante da sua «raga», da «raga negra»; um cigano transforma-se no epifendmeno da sua categoria de pertenga, a «etnia cigana»; 0 «portugués», por seu turno, define-se por referéncia ao quadro identitario da nacao cujo contetdo também é, na maior parte das vezes, pensado em termos naturalistas. Trata-se daquilo que em Sociologia se designa por pensamento essencialista e que esta na base da emergéncia dos racismos. Para a Biologia actual, 0 conceito de «raga» deixou de ter objecto real e, com a descodificagao do Genoma Humano, ficou absolutamente desprovido de sentido. «O que perma- neceu» — afirma Robert Miles — «foi a ideia do senso comum de que as “racas” existem, uma ideia sustentada pela inques- tionavel realidade das diferengas somaticas e culturais entre as pessoas» (Miles, 1993: 3).1 Mas, mesmo assumindo a ausén- cia de referente para, numa perspectiva biologica, se falar de «ragas», 0 conceito continua a ser utilizado, embora de forma polémica, no registo das Ciéncias Sociais, nomeadamente * De qualquer forma, bem sintomética da permanéncia da concepeao bio- logica das «ragas» fora do campo da Biologia é, por exemplo, a utlizagao per- feitamente anacrénica que dela faz 0 antigo presidente da Associagao Inter nacional de Sociologia, T. K. Oommen, Num artigo nao muito antigo, Oommen continuava a reproduzir afirmagdes do tipo: «Em Antropologia. a classificacao tradicional das ragas baseia-se em certos tragos fisicos e biolégicos obsor- vaveis, tais como, 0 indice cefalico, a textura do cabelo, o grupo sanguineo, etc. A'divisao da ospécie humana om trés grandes ragas — caucastide, mongoldide e negrdide — apoia-se em caracteres biolégicos @ genéticos» (Oommen, 1994: 101) Racismo, etnicidade nacionalismo Ma raga 105 106 Joao Filipe Marques pela corrente socioldgica britanica e americana que ficou conhecida por race relations e, mais recentemente, pelos racial studies. Na perspectiva sociolégica, a existéncia de «ragas huma- nas» tal como a Biologia as definiu até a década de setenta nao constitui um problema nodal. As crengas e accdes huma- nas s6 muito raramente sao orientadas por verdades objec- tivas € as que se prendem com a categorizagao do mundo social nao fogem a essa regra. O que é central, do ponto de vista socioldgico, é 0 facto de, em determinadas sociedades, os individuos, nas interacgdes quotidianas, aceitarem as «ragas» como realidades. O conceito sociolégico de «raga» € entAo utilizado para descrever uma construg¢ao social — a ideia de «raga» — através da qual, numa dada sociedade num determinado momento historico determinados grupos de individuos sao percebidos, designados ou se auto-designam. E neste sentido, que pretende dar conta, simultaneamente, da subjectividade dos actores e da produgao e reproducdo social de uma categoria, que a expressdo «raga» tem vindo a ser utilizada pelas Ciéncias Sociais. Esta posigéio nao implica, bem pelo contrario, a aceitagéo duma doutrina cientifica acerca da existéncia «real» de «ragas humanas». Por outras palavras, pode dizer-se que uma «raga» 6 «apenas» aquilo que é quotidianamente percebido enquanto tal e que o seu estatuto ontoldgico € o de uma realidade socialmente construida. Uma construgao social apropriada dos discur- sos cientificos do passado — e por isso reificada — com © recurso A qual os individuos regulam as suas acgées e interacgdes. Ao contrario, por exemplo, da classe, relativa- mente & qual podemos separar a dimensio objectiva, em termos de rendimento ou ocupagao, de uma dimensdo sub- jectiva (a consciéncia de classe), a «raga» é apenas social- mente definida pelos actores sociais; 0 que implica que a categorizagao racial varie de forma consideravel de uma for- magao social para outra. Omi e Winant empregam o conceito de formacao racial (Omi e Winant, 1986) para se referirem ao processo pelo qual, numa mesma sociedade, o significado e as delimitagdes das categorias racializadas sao formados @ remodelados ao longo do tempo através das dinamicas sociais e politicas. Para ser utilizada enquanto conceito socioldgico, a ideia quotidiana de «raga» tem de ser situada na ontologia social das sociedades estudadas (Anthias e Yuval-Davis, 1993: 1). Um individuo que nos E.U.A. seria inequivocamente classifi- cado como «black», no Brasil poderia ser classificado como «branco».2 Alguns autores chegam mesmo a propor a desig- Nagao ragas sociais, no duplo intuito de destacar o seu carac- ter de constructo social e de evitar confusdes com a racizagao de tipo bioldgico (van den Bergue, 1984: 238). A maior parte da literatura sobre o tema opta, no entanto, por colocar a pala- vra «raga» entre aspas. Parece particularmente pertinente a aplicagao, a questao da «raga», da nogao de reflexividade de Giddens.’ Os conhe- cimentos que a ciéncia vai produzindo reflectem-se, isto 6, 1ém consequéncias, nas praticas e conhecimentos do quoti- diano. Quando os historiadores da ideia de «raga» se Ihe refe- rem enquanto uma das formas do cientismo emergente a partir do inicio do século XVIII, ou quando Michel Foucault se Ihe refere como componente de um bio-poder possibilitado pela ciéncia moderna (Foucault, 1991), confirmam a estreita associacaio e consequente reflexividade entre o conhecimento produzido acerca do homem e das sociedades — neste caso as doutrinas racialistas — e as subsequentes praticas sociais e politicas. Exemplos extremos desta reflexividade do pensamento nao apenas biolégico, mas sociolégico, antropo- ldgico e historico, podem ser encontrados nas doutrinas eugénicas e higienistas, na concepgao da historia das nagdes enquanto luta de «ragas», ou, naturalmente, na dominagao colonial e na «solugao final». © conceito de «raga» e os seus corolérios — a hierar- quizagéo ou segregagao dos grupos humanos — constituiu, através do determinismo biolégico dos comportamentos humanos, uma das principais chaves para a compreensado dos fenémenos sociais e histéricos, tendo sido por isso apro- priado e manipulado, quer pelo campo do politico, quer pelos discursos e praticas do quotidiano. A utilizagéo do termo «raga» no contexto das Ciéncias Sociais refere-se a um dos modos através dos quais os membros de determinada sociedade percebem as diferengas 2.0 exemplo mais caricato da variagao social da classificagao racial e, a0 mesmo tempo, das determinantes politicas e econémicas que Ihe estéo na origam é fomecico pelo Estado sul-atricano durante o regime de apartheid. Enquanto todos os individuos de origem asidtica — chineses, coreanos, etc. — eram clasificados na categoria «coloured, os japoneses eram considera- dos «honorary whites» ® «A reflexividade da vida social moderna consiste no facto de as praticas sociais serem constantemente examinadas a luz da informagao adquirida sobre essas mesmas préttces, alterando assim constitutivamente o seu caréc- ter» (Giddens, 1992: 34). Racismo, etnicidade e nacionalismo 107 108 Joao Filipe Marques entre grupos e elaboram as fronteiras sociais entre esses grupos — i.e. definem quem Ihes pertence ou nao — na maior parte das vezes com recurso a certos tracos fenotipicos. A «raga» constitui, deste modo, uma categoria social definida, principal mas nao exclusivamente, através da visibilidade somatica. Mas mesmo a assungao sem reservas do cardcter de constructo social da «raga» tende a encarar como «natu- ral» a atribuicao de significados etnoculturais a determinadas variagdes fenotipicas, nomeadamente, a cor da pele. Importa, por isso, salientar duas ordens de questdes indis- pensaveis na articulagdo entre problematica da «raga» e as. problematicas do racismo. Por um lado, o facto de nem todas as sociedades humanas utilizarem ou terem historicamente utilizado 0 fendtipo fisico como base para a distincao entre grupos socioculturais. As que o fazem sao, nas palavras de Van den Bergue, invariavelmente sociedades marcadas pela presenga do racismo. Pois na utilizagao de marcadores fisi- cos na categorizacao social parece estar sempre subjacente a ligagao a uma caracterizacao intelectual, moral ou compor- tamental das categorias assim identificadas (Van den Bergue, 1984, 239). Por cutro lado, no processo de racializagao dos grupos humanos, esse fenémeno social a que chamamos visi- bilidade somatica pode ser substituido por tracos culturais ou religiosos, ou mesmo totalmente imaginado. Foi este o caso do anti-semitismo europeu e da invengao de caracteristicas fenotipicas distintivas dos judeus. Neste registo, as relagées raciais (ou «relagdes entre ragas») no constituem relagdes entre grupos biologicos dis- cretos, mas antes uma forma particular de relagdes sociais: as relages entre individuos ou grupos que sao estrutura- das através da ideia de «raga» (Miles, 1984: 240). Este tipo de abordagem foi desenvolvida nos Estados Unidos com os trabalhos ja classicos de Giinnar Myrdal, Oliver Cox, John Dollard ou Robert Park nos quais se tentava dar conta dos processos de assimilagao dos imigrantes e da sistematica discriminagao vivida pelos negros na sociedade americana (cf., entre muitos outros, Wieviorka, 1990, cap. 2). No Reino Unido, por seu turno, as primeiras teorizagdes acerca das relagées raciais e étnicas pretendem dar conta de duas ordens de preocupagoes. Por um lado, o papel desempenhado pela colonizagao na determinagao das concepgdes populares da «raga» @ da etnicidade e, por outro, lado a integracao dos imigrantes provenientes dos paises da Commonwealth no tecido econdmico e social britanico (Solomos e Back, 1994: 15). Associados a estas primeiras andlises, que adoptaram a designagao norte-americana de race relations estéo os nomes de John Rex ou Michael Banton. Parece particularmente pertinente interrogarmo-nos aqui acerca da legitimidade de se continuar a utilizar a «raga» enquanto conceito, bem como de considerar as relagdes raciais enquanto tipo especifico e diferenciado das relagdes sociais. Nomeadamente para Robert Miles, que aparece a liderar 0 movimento de critica feroz 4 manutengao do uso dos conceitos de «raga» ¢ de relagées raciais, se a «raga» 6 um fenémeno de categorizacao sociaimente construido, nao existe qualquer razdo aparente para o considerar numa classe & parte dos outros tipos de categorizagao. Do mesmo modo, se as relacées raciais sao estruturadas através da ideia de «raga», nao devem ser tratadas de um modo diferente das outras relagées sociais, elas proprias estruturadas através de construgdes sociais Nao se trata, portanto, de negar que a ideia de «raga» 6 um elemento constitutivo e estruturante do senso comum; a questo reside em saber se a sua utilizagao quotidiana deve ou nao ser transferida para 0 acervo conceptual de uma ciéncia que pretende compreender o senso comum. Para o autor citado, a utilizagao sociolégica da ideia quotidiana de «raga» @ a Sua Consequente conceptualizacao apenas refor- cariam a crencga segundo a qual as «ragas» existem «real- mente» servindo, assim, para reificar aquilo que € um pro- cesso ideologico e histdrico especifico (Miles, 1993: 242). De qualquer forma, na minha perspectiva, este tipo de argumento inviabilizaria os modelos sociologicos € antropo- légicos que integram na compreensao dos fendmenos socio- culturais conceitos extraidos da ontologia social das proprias sociedades que estudam. Inviabilizaria mesmo, por exemplo, uma Sociologia das Religides que postulasse que a religiao € uma construg&o social e que, por isso, deveria deixar de utiliza-la pelo menos enquanto conceito descritivo. A perspectiva sociolégica deve afirmar claramente que a ideia de «raga» releva da consciéncia dos actores ¢ nao da andlise. Ao aceitar a validade do conceito descritivo de «raga» construido a partir da ideia quotidiana de «raga», a abordagem sociolégica deve colocar-se na perspectiva de uma Sociolo- gia do Conhecimento e procurar compreender os condiciona- lismos sociais, politicos, econdmicos e histéricos que levam certos individuos a considerar os outros cultural e biologi- camente diferentes de si. Isto 6, deve realizar uma dupla Racismo, etnicidade € nacionalismo 109 110 Joao Filipe Marques hermenéutica (no sentido de Giddens)‘ e assumir como prio- ridade a explicagdo dos processos sociais que intervém na categorizagao racial e na formagao da «consciéncia de raga» de que falava Park (1964). Mas uma abordagem sociolégica da categorizagao racial nao pode igualmente afastar-se de uma Sociologia do Conflito. A utilizag&o social das categorias raciais, implica inevitavelmente uma dimensao conflitual. As sociedades cujos membros estru- turam as suas relagdes com base em diferengas fenotipicas reais ou imaginadas fazem-no quase sempre no interior de um tipo de conflitualidade que comummente se designa por racismo. Como afirmou Guillaumin, parafraseando um célebre enunciado de Sartre, «6 0 racismo que inventa a raga» (1985: 218). Quer os tedricos das race relations, quer a corrente que nega a pertinéncia do uso da «raga» enquanto conceito ana- litico, esto de acordo relativamente ao facto de o objecto central das suas investigagédes ser 0 racismo: «ragas imagi- narias e ragas reais desempenham o mesmo papel nos pro- cessos sociais e funcionam, consequentemente, de forma idéntica: 0 problema scciolégico reside precisamente aqui» (Guillaumin, 1972: 63). Concordando, embora, com Albert Memmi quando afirma que «uma definic&o nao passa de um utensilio, uma formula operatoria» (1993: 72), chegamos a uma primeira definigao de racismo. Uma definigao que procura deixar de lado 0 coe- ficiente de performatividade do termo e, por isso, nao con- templa indiscriminadamente como acontece com frequéncia, quer no discurso quotidiano quer no discurso cientifico, todas as praticas sociais consideradas despreziveis, todas as carac- teristicas negativas da condicao humana. Na perspectiva aqui adoptada, que segue a definicao de John Rex, a carac- teristica central do racismo é a existéncia de sistemas de crencas deterministicos. Deste modo, estamos em presenga de racismo quando as desigualdades e as diferencas inerentes a uma dada estru- tura social esto relacionadas com critérios fisicos e culturais de * Como retere Giddens a propésito da «dupla hermenéutica» sociolégica: «0 campo de estudo do socidlogo € constituido por fenémenos ja dotados de significado. A condigéo para “entrar” nesse campo é tentar saber aquilo que 0s actores ja sabem e tém de saber para levarem a cabo as actividades quo- tidianas da vida social. Os conceitos que os observadores inventam sao con- celtos de “segunda ordem’, na medida em que reconhecem certas capacida- des conceptuais aos actores a cuja conduta se reterem» (1984: 284). 5 <0 anti-semita € que faz 0 judeu» (Sartre, 1960: 47). caracter atribuido e sao racionalizadas em termos de siste- mas de crengas deterministicos, dos quais os que tém sido mais usuais recentemente fazem referéncia & ciéncia biolégica. (Rex, 1970: 39) Tratando-se de uma maneira de pensar a que os socidlo- gos chamam essencialista ou naturalista, 0 racismo 6 também uma maneira de agir e um modo de legitimar a instauracao de sistemas sociais. Impde-se, entao, que se distinga cla- ramente aquilo que Wieviorka tem vindo a designar por «formas elementares do racismo» (Wieviorka, 1990). Ou seja, © racismo pode assumir as formas empiricamente observa- veis do preconceito, da discriminagao, da segregagao, da violéncia ou ainda das elaboracées ideolégico-doutrinarias. Como tenho vindo a defender noutros locais, na esteira das reflexdes de Taguieff e de Wieviorka (Marques, 1995, 2000), pensar 0 racismo, bem como analisar as suas articulagdes com a etnicidade e com o nacionalismo, implica distinguir, de um ponto de vista ideal-tipico, as duas logicas que Ihe estao subjacentes: o racismo desigualitario, isto 6, a hierarquizagao de cariz universalista e biologizante de determinados grupos humanos que legitima ideologicamente 0 seu tratamento discriminatério, a sua dominagao ou explorag4o; ¢ o racismo diferencialista, de pendor mais culturalista, que preconiza a separagao, a expulsao ou, no limite, a destruigéo dos grupos racizados. E a auséncia desta distingdo que engendra, segundo Taguieff, «a maior parte da cegueira e das confu- sdes perceptiveis quer no espago publico quer nas conver- sas espontaneas> (1990: 163). E hoje unanime entre os ana- listas que, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, tem vido a operar-se a substituigao do racismo «classico» desigualitario, herdado do passado colonial e das tipologias antropoldgicas € biolégicas oitocentistas, por uma nova forma de racismo diferencialista baseado, j4 nado no determinismo bioldgico, strictu senso, dos comportamentos dos individuos e dos grupos, mas na incomensurabilidade e incompatibilidade dos modos de viver e pensar, das religides e das identidades tomados como esséncias, logo perenes e imutéveis. Trata-se de um fendmeno que tem vindo a ser designado por «neo-racismo». Do mesmo modo que, para os Gregos, o termo ethnos serviu para designar os outros, aqueles que nao se organi- zavam segundo 0 modelo da polis, também a expressao «etnia» ou a forma adjectiva étnico tém sido utilizadas para Racismo, etnicidade € nacionalismo Etnicos so os outros 14 112 Jodo Filipe Marques designar e, consequentemente, distinguir os grupos humanos. que nao se enquadram na instancia de identificagaio cultural e politica da modernidade: a nacao. Com efeito, a nocao de «etnia», substituida hoje pelos conceitos, mais amplamente aceites, de grupo étnico ou categoria étnica, esta intimamente ligada, como salientou Amselle, as grandes oposigées através das quais se operou a divisdo entre Antropologia e Sociologia (1990: 15) e que é também a clivagem moderna do mundo: sociedades com histéria/sociedades sem histéria, sociedades industriais/sociedades pré-industriais, Gemeinschaft/Gesell- schait... «etnias»/nagdes. Uma dicotomia onde, insistente- mente, de um lado e de outro, se foi também entretecendo a ideia de «raga». A conceptualizagéio contemporanea da etni- cidade emana, precisamente, dessas duas tradigdes cienti- fico-académicas cuja comunicagao reciproca, nem sempre conseguida no passado, é hoje uma exigéncia generalizada: da Antropologia Social e Cultural, por um lado, e da Sociolo- gia, por outro. Em grande parte «inventadas» por administradores colo- niais e por antropdlogos ou por quem combinava estas duas situagoes (Amselle, 1990) as «etnias» (como as «tribos») correspondiam, para a Antropologia, as formacao sociais equivalentes ao que as nagdes eram para socidlogos e his- toriadores. No fundo, «etnias» e «tribos» constituiam as uni- dades onde o antropdlogo revia os tragos definidores do seu proprio quadro identitario: uma designacao, uma lingua, um Conjunto de costumes e uma forma de organizagao social e politica ou, por outras palavras, uma identidade, uma cultura e uma sociedade. As construcdes conceptuais gémeas de «etnia» e de «tribo» forneciam o quadro que permitia a antro- pdlogos e administradores classificar e comparar as socie- dades e culturas humanas. Se desde cedo esteve marcada pelas exigéncias do método comparativo, a Antropologia Social foi também, e por causa disso, permanentemente atra- vessada pela discussao em torno do problema da definigaéo e delimitagao das unidades a comparar. Uma das quest6es centrais com que se debateu a conceptualizagao antropo- légica pode mesmo, ironicamente, formular-se deste modo: «where is the skin of a culture»? (Poutignat e Streif-Fenart, 1995: 64).6 Contudo, pode também dizer-se que, relativamente & classificag&o sociocultural dos grupos humanos, os antro- © Em inglés no original pologos sociais e culturais acabaram por se confrontar com 0 mesmo tipo de dificuldades que os antropdlogos fisicos expe- rimentaram relativamente a problematica da «raga»: encontrar critérios universalmente validos que permitissem recortar 0 mundo etnogréfico e defmir objectivamente as unidades sobre as quais se debrugavam. Os critérios mais comummente utilizados foram a autodesignacao, os costumes, a lingua, a economia, o sistema politico, a organizacao social ou 0 territé- tio, mas Os varios autores combinavam-nos de modo diverso ou, também diversamente, enfatizavam um ou outro trago.” Eo paralelo com a questao racial nao termina aqui. Tal como as «fracas» inventadas pelos antropdlogos fisicos foram, e sao ainda, social e politicamente apropriadas, também as cons- trugdes tipolégicas e os recortes culturais dos antropdlogos sociais tém vindo a tornar-se self-fulfilling prophecies, isto é, tém vindo a fomecer fundamentos para a constituigéo de «ver- dadeiros» grupos étnicos e para a consequente mobilizagao politica em toro deles. Até a década de sessenta, a visao antropolégica da «etnia» que estava inscrita nos modelos estrutural-funcionalistas per- maneceu uma concepgao «substantivista» e relativamente estatica. Cada «etnia» constituia uma entidade discreta, rela- tivamente integrada, isolada e fora da historia, dotada de uma designagao, de uma cultura, de uma lingua, de caracteristicas sociais e psicoldgicas distintivas e de alguns antropdlogos para a descrever. A superagao dessa visao foi possibilitada através de uma série de aquisigdes empiricas e tedricas entre as quais se destacam: i) a clara separagao entre identidade étnica e cul- tura partilhada (ou entre grupo étnico e especificidade cultu- ral); ii) 0 abandono definitivo do postulado que fazia do isola- mento sécio-espacial o factor responsdvel pela diversidade 6tnica; iii) a adopgao de uma perspectiva que substituiu a «etnia» enquanto dado a priori pela problematizagao da cons- trugdo social da etnicidade. As tentativas para classificar as unidades étnicas numa base objectivista® estiveram sempre votadas ao fracasso uma 7 Ironicamente, quase somos tentados a parafrasear Jacques Rutfié — segundo © qual, existiram tantas classificagoes racials da espécie humana quantos os autores que se debrugaram sobre o assunto (Ruffié, 1978: 380) — e a afirmar que existiram tantos modos de classificar os grupos étnicos quantos 08 antropslogos que se debrucaram sobre o assunto. * Estas tentativas comegam a ser ultrapassadas a partir do artigo funda- dor de Frederik Barth: «Ethnic Groups and Boundaries» (Barth, 1995 [1969)), Racismo, etnicidade e nacionalismo 113 114 Joao Filipe Marques vez que repousavam em trés limitagées que, segundo Pou- tignat e Streiff-Fenart, constituiam outras tantas «ingenuida- des» da Antropologia. A primeira «ingenuidade» consistia em conceber 0 grupo €tnico enquanto «suporte de uma cultura» e em acreditar na possibilidade de o definir objectivamente a partir da enume- ragao de uma série de tragos culturais partilhados pelos seus membros. E hoje consensual que a identidade étnica é mantida apesar de uma constatavel variagdo nos modos de vida daqueles que se reclamam pertencentes a um mesmo. grupo e que, inversamente, a homogeneidade cultural obser vada pelo antropologo numa dada regio nao implica a iden- tidade étnica dos grupos em presenga. Ou seja, as fronteiras das identidades étnicas nao so necessariamente coinciden- tes com a descontinuidade cultural. A segunda limitagao da Antropologia consistiu em postu- lar a separagéo — ecoldgica ou culturalmente forgada, através da hostilidade ou da guerra, por exemplo — enquanto factor causal da diferenciagao étnica e cultural. Com efeito, como defende Barth, a observagao etnografica demonstra clara- mente que, por um lado, as fronteiras ontre grupos étnicos — leia-se, fronteiras culturais e simbdlicas @ nao territoriais — s40 mantidas, independentemente do fluxo de individuos que as atravessam e que, por outro lado, muitas relagées vitais, para os grupos em questo sao processadas precisamente através dessas fronteiras (Barth, 1995: 204). A terceira «ingenuidade» da conceptualizagao antropolé- gica prende-se com 0 estatuto ontolégico que era atribuido ao grupo étnico — este foi, na maior parte da vezes, reificado — bem como, com o apriarismo com que era tomada a iden- tidade étnica — esquecendo que esta 6 apenas um dos quadros identitarios passiveis de utilizagao pelos actores sociais. Como sublinham Poutignat e Streiff-Fenart, 6 preci- samente a andlise da relagao entre as instancias conjunto de pessoas, modo de vida e designagao étnica que deve cons- tituir a tarefa do antropdlogo (1995: 68). A assuncao de uma identidade étnica por um grupo de individuos, ou a sua relevan- cia social e politica num determinado contexto, nao sao «auto- -explicativas», sao elas que devem devem ser explicadas pelas Ciéncias Sociais. Se o paradigma antropolégico é uma das fontes das actuais redefinigdes do fendmeno étnico, a Sociologia, nomea- damente a Sociologia das Migragdes que se desenvolveu nos Estados Unidos, constitui a outra fonte. Sob a designacao ethnic foram também categorizados aqueles que se definiam pela exterioridade relativamente a sociedade americana e, por arrastamento, relativamente @ ideia de sociedade moderna: os imigrantes. A tradigao sociolégica moderna que entronca em Tonnies, em Durkheim e em Weber, assumindo como inevitaveis a pas- sagem da comunidade @ sociedade, a transigao da solidarie- dade mecanica para a solidariedade organica e a adopgao do modelo da racionalidade burocrética, constituiu o tecto ted- rico, mas também ideolégico, sob o qual foram analisados os processos de inclusdo dos imigrantes numa sociedade pre- dominantemente industrial e urbana. A Escola de Chicago primeiro e, posteriormente, a corrente funcionalista, com o modelo assimilacionista que a ambas estava subjacente, desempenham, aqui, um papel preponderante. Para a Socio- logia americana, até a década de sessenta, a manutengao da diversidade cultural, dos lagos comunitarios e das identi- dades étnicas das populagdes imigrantes seria apenas um dos momentos iniciais da sua «assimilagdo»’. Ou soja, uma etapa da entrada no melting pot — para a Escola de Chicago — ou da adaptacao a estrutura e da completa identificagéo aos valores («anglo») da sociedade de acolhimento — para os funcionalistas. Neste quadro, a especificidade étnica de cada um dos grupos que iam compondo a sociedade ameri- cana dissolver-se-ia inexoravelmente ao cabo do processo de aculturacao. Os lagos comunitarios e particularistas, incom- pativeis com os valores universalistas-individualistas da racionalidade abstracta, apagar-se-iam naturalmente no fim de um «ciclo de assimilagéo» mais ou menos conilituoso. A partir dos anos sessenta, esta perspectiva comega a ser posta em causa em conjunto com a propria nogao de melting pot. O paradigma assimilacionista, ideologicamente igualitarista liberal, foi sendo sistematicamente infirmado pela observacéo empirica. Tornou-se cada vez mais ébvio que, contrariamente as previsdes das Ciéncias Sociais, independentemente da homogeneidade cultural e de uma grande conformidade aos valores da sociedade americana, independentemente do processo de aculturagao portanto, os grupos étnicos nao s6 mantém as suas identidades como as vao reforgando ao ® Entendendo-se por «assimilagao» 0 processo de inclusdio de grupos minoritérios num sistema sécio-cultural maioritério através de uma identificagao total com esse sistema. O concaito de «integraco», pelo contrério, contem- pla a manutengdo © reproducao das identidades e de certos tracos culturais. Racismo, etnicidade e nacionalismo 115 116 Joao Filipe Marques longo das geragées. Nao se trata, na perspectiva sociolégica, de negar o processo de aculturagao, mas de perceber que este tem como «efeito contra-intuitivoy um aumento da cons- ciéncia da identidade étnica e do significado social da etnici- dade. Este processo é definitivamente confirmado nos anos setenta com a emergéncia do fenémeno que ficou conhecido por ethnic revival. O paradoxo com que se debate entéo a Sociologia americana 6 duplo. Por um lado, quanto maior 6 a uniformizagao cultural maior vitalidade apresentam a categorizagao étnica, a afirmagao das identidades étnicas 0 a mobilizagdo colectiva em torno delas. Os individuos conti- nuam, por exemplo, a valorizar a endogamia, a utilizar as redes comunitdrias na procura de emprego ou de habitagao, a votar «etnicamente» e a tratar-se reciprocamente enquanto membros de comunidades distintas. Por outro lado, a integragao social @ a consequente mobilidade ascendente que se verificou nos grupos de origem europeia, nao foi, em larga medida, alcangada pelos negros ou pelos latino-americanos. Se o padrao inicial da sociedade americana foi o da rejeico ou discriminagao dos imigrantes europeus (nao anglo-saxénicos) 0 processo ate- nua-se ou inverte-se com o tempo. A pertenca étnica, embora se tenha reforgado, deixou de ser um factor preponderante da estratificagao social. No que respeita s minorias racializa- das, este processo nao se verificou. A visibilidade somatica de alguns grupos significou a manutengao de preconceitos e de processos discriminatorios mesmo depois de ocorrida uma completa aculturacao. Em detrimento da ideia de uma cultura partilhada, foram, neste caso, a segregagao e discriminagao racial e a maior consciéncia social desses fendmenos por parte dos actores sociais que comegaram entao a ser perce- bidas enquanto poderosas forgas de etnicizacao. A crescente popularidade contemporanea de expressdes como fenémenos étnicos, etnicidade, grupo étnico, etc., pren- de-se, entao, com dois tipos de causas intimamente ligadas. Por um lado, com as transformagdes observadas no mundo social e politico: a luta pelos direitos civicos dos negros ameri- canos, a descolonizagao, a afirmagéio nacionalista de grupos anteriormente percebidos como étnicos, a conflitualidade entre grupos que nao se enquadram no quadro teérico-poli- tico da nagéo, as migragées, etc.; por outro lado, com as mudangas operadas nos modos de olhar para esse mundo. Se, para a Antropologia e Sociologia classicas, étnicos eram os outros, mais ou menos «exéticos» mas representantes da Gemeinschaft, hoje pode dizer-se que existe apenas outros. Isto €, que os que se reclamam da Geselischaft — como os WASP" americanos, ou as nagdes modernas — possam também ser considerados enquanto ethnic e pensados em termos de etnicidade. A partir das aquisigdes paralelas da Antropologia e da Sociologia, tem vindo a redesenhar-se novas formas de perspectivar os fendmenos étnicos. Tornou-se definitivamente assente que a etnicidade 6 um fenémeno eminentemente relacional, que se constrdi por oposigao. O que quer dizer que a identidade étnica de determinado grupo ou colectividade depende das relagées oposicionais — nao necessariamente no sentido de antagonismo, mas no sentido semialégico — com outros grupos ou colectividades. A emergéncia e permanén- cia das identidades étnicas nao resultam da separa¢&o socio- cultural dos grupos em causa, mas, pelo contrario, so fruto da comunicag&o e interacgado reciprocas. Como escreve Eriksen, «se uma comunidade é totalmente mono-étnica, entdo nao ha etnicidade, uma vez que nao ha ninguém a quem comunicar a diferenga cultural». E a comunicagao entre grupos que permite a delimitacao de fronteiras simbd- licas entre in-group e out-group, entre nds e os outros. No registo da contemporaneidade, pode mesmo afirmar- -se que foi precisamente o incremento dos contactos cultu- rais caracteristico da modernidade avancada que produziu uma maior relevancia da etnicidade. A andlise dos fenémenos €tnicos passou entao da questao do contetdo cultural objec- tivo dos grupos para a analise da emergéncia e manutencao da identificagao e categorizagao em situagdes de relacao. Como corolario da posigao anterior, tornou-se insustentavel a concepcgao segundo a qual os individuos que possuem caracteristicas socioculturais comuns constituem automatica- mente um grupo étnico. E hoje aceite de um modo unanime que a questao da etnicidade nao se coloca no plano da cul- tura partilhada pelos membros de um grupo, nem no plano das diferencas culturais observaveis entre grupos. A diferenciag&o étnica é fungéo de uma determinada forma de organizagéo social da diferenga cultural — como diria Barth — e da utilizagéio de alguns tragos culturais instaura- dos enquanto simbolos dessa diferenga. A cultura partilhada constitui 0 resultado de um processo social de longo prazo, nao um facto da natureza ou uma caracteristica «substan- cial» dos grupos étnicos. Do que resulta que, na definigao ‘© Sigia popular para white anglo-saxon protestant. Racismo, etnicidade e nacionalismo 117 118 Joao Filipe Marques de um grupo étnico sao, por um lado, a dimensdao subjectiva da pertenca étnica e, por outro, a atribuigéo de um determi- nado rétulo étnico por parte dos outros grupos que devem merecer a atengao. A diferenciagao étnica constitui uma seleccao social de tragos culturais considerados significan- tes que, em determinados contextos, sao manipulados pelos individuos — frequentemente através de um processo de bricolage — para marcar a diferenga entre os que pertencem a0 grupo e os que Ihe sao exteriores. Neste processo, a visibilidade somatica que referi acima pode, por exemplo, constituir um desses tragos significantes, tornando-se, ento, num factor de etnicizacéo. Um potente factor de constituigdo de fronteiras, uma vez que se funda na percepgao de uma suposta «natureza» partilhada. A cons- trugao social da «diferenga racial» pode, deste modo, ser pen- sada em termos étnicos; quer a partir do processo de cate- gorizagdo exégena de certos individuos em termos de per- tenga a determinada «raga», quer a partir da utilizagao de cri- térios raciais na auto-identificag&o comunitaria. E neste sen- tido que David Goldberg (1993) fala em etno-raga (ethnorace). Como exemplifica Eriksen: Um exemplo [...] pode ser o aparecimento dos Negros Britani- cos («Black British»). Eles nao sao nem africanos nem caribe- hos, nao tém outro pafs sendo a Gra-Bretanha, nem outra lingua a no ser 0 verndculo que os linguistas classificam como inglés dos Nogros Britanicos. Possuem clubes, associagdes e, frequen- temente, um sentido de solidariedade. Neste sentido, podem ser considerados como uma categoria étnica. (Eriksen, 1993: 63) Esta ultima distingéo conduz-nos a outra contribuigéo das teorizagdes contempordneas da etnicidade, j4 aqui implicita- mente aflorada: a questéo da atribuicado categorial («attri- bution catégorielle»), para utilizar a designagao de Poutignat © Stroiff-Fenart. Se, como vimos, a relagao com outros é uma das condigdes de emergéncia e de manuteng&o da eitnici- dade, o papel desses outros, nomeadamente através do pro- cesso de rotulagem, 6 um factor preponderante da consti- tuigo de identidades. A identidade étnica 6 construida pelos membros do grupo, mas também imputada de fora, num pro- cesso dialéctico que envolve, entre outros factores, as rela- goes de poder: As definigdes exogenas e endégenas nao podem, de facto ser analiticamente separadas uma vez que estéo em relagao de opo- sig&o dialéctica, Elas raramente so congruentes mas estéo ne- cessariamente ligadas: um grupo nao pode ignorar © modo pelo qual 6 categorizado polos néo membros ©, na maior parte dos casos, 0 modo pelo qual se defini a si proprio sé tem sentido atraves da referencia a essa exo-definicao. (Poutignat e Streift- Fenart, 1995: 156) Em situagdes de dominacao e, concretamente, nas que so marcadas pela presenga do racismo, a atribuigdo de uma determinada designacao a uma minoria possui frequente- mente um efeito simbdlico, no sentido de Bourdieu. Isto é, tem 0 efeito de transformar uma categoria — uma representacao da realidade — numa comunidade.'' As designacoes atribui- das pelos grupos dominantes operam, regra geral, por sinédo- que, isto 6, sao globalizantes, amalgamando numa so cate- goria de caracter étnico varias colectividades que, entre si, se percebem como distintas. Os exemplos classicos do poder performativo do /abeiling globalizante, enquanto fonte de iden- tidade e de mobilizagao étnicas, sao a etnicizacao de indivi- duos de proveniéncias geograficas e culturais diferentes mas que sao categorizados por meio da «raga» pelos grupos domi- nantes, bem como, de um modo geral, a etnicizagao dos imi- grantes. Estes ultimos sao, na maior parte dos casos, indis- criminadamente incluidos pelos autéctones numa mesma categoria étnica: arabes ou maghrebins, para os individuos de origem marroquina, tunisina ou argelina, no caso francés; south Asians, para os paquistaneses e indianos, no caso bri- tanico, ucranianos para todos os imigrantes provenientes da Europa de Leste, no caso portugués. De qualquer modo, o que é simultaneamente um dado empirico e uma posigao operatéria é que a identidade étnica resulta sempre duma negociagao entre as designagoes exte- riores @ interiores, uma negociagao entre constrangimento e escolha. Veja-se, apenas a titulo de exemplo, a actual dis- senso acerca da «melhor» maneira de designar, sociologi- camente, a categoria que engloba os descendentes portugue- ses dos imigrantes de origem africana: «novos luso-africanos» segundo a conceptualizacdo de Machado (1994) e «jovens * De qualquer forma, ¢ util distinguir conceptualmente categoria éinica — conjunto de individuos que s&o percebidos como semeihantes a partir do exterior (cientistas sociais incluidos), de comunidade étnica ou grupo étnico — conjunto de individuos que se concebem a si préprios como idénticos e se organizam em tomo dessa identidade. Na minha perspectiva, contudo, os pro- cesso identitirios 880 marcadamente ambivalentes e consistem, quer na trans- formagao de uma comunidade numa categoria, quer na transtormacao de uma categoria numa comunidade, Racismo, etnicidade e nacionalismo 119 120 Joao Filipe Marques negros portugueses», na designacdo preferida por Contador (2001). Apesar de «politicamente mais correcta», os indi duos em causa parecem nao se identificar com a primeira, nao deixando outra escolha ao socidlogo senao a utilizacao, certamente a contragosto, de uma designac¢ao «racial». Curio- samente, os descendentes dos emigrantes portugueses em Franca, por seu turno, parecem identificar-se bastante bem com a qualificacao «luso-descendentes». Seguindo Poutignat e Streiff-Fenart, podemos, entao, definir etnicidade como «uma forma de organizagao social baseada numa atribuicao categorial que classifica as pessoas em fung&o da sua suposta origem que se torna valida nas interacgées sociais através da utilizag&o de signos culturais socialmente diferenciadores» (1995: 154). A organizacao social baseada em atribuic6es categoriais pode, por um lado, actualizar-se sob a forma de exclusao diferencialista ou de discriminag&o desigualitaria construidas na base de um sis- tema de crengas deterministico ou, por outro lado, ser o resul- tado cultural destes processos de racizagao. Concebida em termos de détice politico ou de experién- cia de privagao, a etnicidade constitui mais um resultado do racismo do que uma fonte de racismo. Isto é, a identidade étnica e a mobilizagao dos individuos em torno dessa identi- dade tem condigdes para emergir quando os grupos mino- ritarios so vitimas dos preconceitos, da discriminagao, ou da segregacao espacial, tornando-se, entaéo, numa forma de resisténcia ao racismo. Os movimentos da negritude, do black power nos Estados Unidos, ou a mobilizagéo em tomo de uma identidade religiosa de pendor fundamentalista (como a que é descrita no romance The Black Album, de Hanif Kureishi), constituem exemplos desse processo. A propria ideia de «raga» 6, entdo, frequentemente utili- zada, nao apenas nos processos de dominagao e exclusdo por parte dos grupos dominantes de determinada formagao social, mas também como meio de resistir a essa dominagao ou exclusao. Ou seja, a «raga» 6, frequentemente, uma com- ponente da etnicidade dos dominados ou, segundo o neolo- gismo de Oommen, da sua racidade («racity») «definida como a propensdo dos individuos que partilham o mesmo tipo fisico (raga, cor da pele) para estabelecerem contactos e lagos a fim de se apoiarem, de se socorrerem uns aos outros face a uma forga de opressao» (1994: 102). A etnicidade pode, contudo, ser também factor de racismo. Quando constréi comunidades diferenciadas (percebidas como essenciais — baseadas num parentesco ficticio, na comunidade de «sangue», na histéria partilhada, etc.) na base de sistemas de crengas deterministicos relativamente ao com- portamento ou aos atributos psicolégicos e morais dos indivi- duos categorizados e se encerra num diferencialismo racista O fechamento numa identidade étnica no seio de uma socie- dade nacional pode levar a um circulo identitario e a uma forte naturalizagao dessas identidades abrindo assim espaco para 0 desenvolvimento de comportamentos e discursos racistas mituos: «para sobreviver num ambiente hostil e preservar a sua identidade, a vitima do racismo reage etnocéntrica — e racisticamente — para combater a miséria e 0 estado de rejeigao com que é discriminada» (Pereira, 1993: 13). Aqui, © racismo perde a cor, encontra-se do lado dos dominantes como do lado dos dominados, conduzindo a uma espiral que, com facilidade, desemboca num tipo de violéncia que os motins racializados de Brixton, em 1985, ou de Los Angeles, em 1992, na sequéncia do caso Rodney King tragicamente ilustram. Quando contempla e defende firmemente um projecto politico e reclama para si um territorio, a etnicidade desem- boca frequentemente em nacionalismo. E, nesta situagao, os seus modos de racizagao sao comuns aos do nacionalismo. Na perspectiva aqui adoptada, o nacionalismo refere-se a uma forma de acgo e de discurso que releva de um tipo particular de etnicidade. Ou seja, o que foi dito acerca da etni- cidade aplica-se, de um modo geral, ao nacionalismo. Mas 0 que 6 particular no nacionalismo, para além das questdes de escala, é a ligag&o que ele exige entre um grupo étnico, um territério e um projecto politico, assumindo este ultimo, na maior parte das vezes, a forma estatal. Como sublinha Eriksen, o nacionalismo constitui uma forma de etnicidade que exige que um grupo étnico domine um Estado (1993: 99). Isto 6, os nacionalismos defendem que as fronteiras politicas devem ser coincidentes com as fronteiras da identidade cul- tural"? Seguindo 0 pensamento de Eriksen, um Estado-nagao 6, consequentemente, «um Estado dominado por um grupo * Ou, na formulagao de Gellner: «0 nacionalismo & uma teoria da legitimi- dade politica que exige que as fronteiras étnicas nao atravessem as fronteiras politicas e, especialmente, que as fronteiras étnicas dentro de um mesmo Estado [...] nao separem os detentores do poder do resto da populacao» (1993: 12). Racismo, etnicidade e nacionalismo Nacao valente 121 122 Joao Filipe Marques €tnico, cujos marcadores de identidade (como a lingua ou a religiao) estéo, frequentemente, infiltrados no simbolismo Oficial e na legislagaéo» (1993: 99). Ver no nacionalismo uma forma especial de etnicidade nao implica defender as origens étnicas das nagdes no sen- tido substancialista, isto é, com base numa esséncia cultural perene.'? Em primeiro lugar, porque, como vimos, nao é a comu- nidade de cultura que origina as identidades colectivas mas sim uma forma de organizagao social em torno de certos tragos culturais. Em segundo lugar, porque o poder simbé- lico do Estado pode fazer aparecer as fronteiras étnicas das nagées onde elas nao existiam, inventando a «substancia cul- tural» trans-historica, a comunhao de passado e de destino de que necessita. A homogeneizagao cultural das nagdes que muitas vezes possibilita © fundamenta a homogeneidade étnica e a «ima- ginag&o comunitaria» 6 construida historicamente através de processos politicos, econémicos o ideolégicos (onde se inclui © racismo) que simultaneamente criam a imagem virtual da unidade nacional e constroem as fronteiras simbélicas relati- vamente aos outros. Como salientam Anthias e Yuval-Davi Quer seja o Estado que homogeneiza a etnicidade ou qualquer outro processo socioeconémico e politico |...}, ¢ importante reco- nhecer [...] que existe uma estreita ligagdo entre os projectos nacionais ¢ étnicos. Embora as especificidades histéricas da construgao de cada colectividade sejam importantes, nao ha nenhuma diferenca de fundo (embora, por vezes, haja diferencas de escala) entre as colectividades etnicas e nacionais: ambas sao «comunidades imaginadas» no sentido de Anderson. (Anthias e Yuval-Davis, 1993: 25) No entanto, para além da discussao em torno do cardc- ter étnico das nagées, o problema que nos ocupa é€ a arti- culago entre nacionalismo e racismo. Como forma de etnicidade, o nacionalismo emerge no registo opositivo, mas uma vez que esto em causa projectos politicos efectivos e jd nao situagdes de défice politico, esta oposigao nem ® Segundo Balibar,

You might also like