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a ar te a) af a Se Rs ANA CLARA TORRES RIBEIRO por uma sociologia do presente acao; técnica e espaco yey tU ES) Poder local: riscos de simplificagao"! O poder local tem sua prépria historia e suas proprias qualida- des, E visto, entretanto, banal e simplistamente sem se levar em conta 8 riscos das aliangas estranhas, assim como a sobrevivéncia de velhas oligarquias ou novas que até animem expresses de auto-segregacao. Destas e doutras observagées percebe-se como se tém criado impen- sadamente municipios. O pacto federativo est4 em questao. Afinal, o que é poder local? Esta classe dominante empresarial-burocratico-eclesiéstica, embora exercendo-se como agente de sua propria prosperidade, atuou também, subsidiariamente, como reitora do processo de formagio do povo brasileiro. Darey Ribeiro Atualmente, existem muitas categorias banalizadas pelo discur- so politico. Entre estas categorias, esta a de poder local. A banaliza- 40, junto com a proliferacao de discursos novos, atinge nogées de grande relevancia para a aco politica, como democracia e cidadania. A explicacao deste processo encontra-se nas forgas politicas envolvi- das no equacionamento da questao social. Nao se trata de excesso de citacio, mas da tendéncia a um continuo deslocamento entre 0 sentido da agdo social e sua nomeagao. Assim, uma luta por saneamento aparece, com frequéncia, trans- formada em luta por cidadania, mesmo que aqueles que reivindicam nao se interroguem sobre a possibilidade de garantir a generalizacao do acesso Aquele bem que, para si, € reconhecido como “de direito”. Poder local: riscos de simplificag3o Poder local: riscos de simplificag3o 303 Da mesma forma, uma luta por reconhecimento e dignidade, como exemplifica a luta pela terra, é, em geral, reduzida ao bem imediata- mente reivindicado, sem que seja apreendido o sentido mais amplo da aco social. Trata-se de enredamentos pratico-discursivos que, no caso do poder local, tornam esta categoria de dificil uso na andlise da conjuntura politica do Pais. O poder local perde especificidade, ao mesmo tempo em que é naturalizado. A categoria ‘poder local’ tem sido sobrecarregada por qualida- des pressupostas, sem a correlata observacdo da experiéncia social concreta e o reconhecimento de particularidades histéricas e geogr- ficas. Estas qualidades decorrem, de forma difusa, de concepgées de democracia ou de modelos de gestao das relacdes Sociedade/Estado. Deste ultimo Angulo, s4o veiculadas certezas relativas 4 potencial maior transparéncia da administrag4o municipal, dada a proximi- dade governantes/povo, e relativas ao teor das necessidades sociais, sem que estas certezas sejam submetidas ao exame das condi¢ées econdmicas e politico-culturais do lugar. Alias, hoje, a leitura das necessidades sociais encontra-se condi- cionada por uma interpretag4o que enfatiza, com grande automatis- mo, a vida cotidiana no lugar. Trata-se de uma redugdo que acontece mesmo quando atores sociais expressam idedrios, formas de organi- zacao e caréncias que ultrapassam, de muito, a escala local e 0 quo- tidiano; demonstrando a existéncia de for¢as sociais com presenca noutras escalas da vida politica do pais. Ainda nesta direcdo, pode ser dito que, nas ultimas décadas, tanto em decorréncia da globalizagao da economia quanto pela emergéncia de novas redes sociais, tornaram-se frequentes propostas de atuagao que privilegiam os vinculos local/global (Novais, 1999), atribuindo a esses vinculos mais qualidades positivas, para a conquis- ta de direitos sociais, do que aquelas encontradas nas escalas regional ou nacional. Estas escalas, apesar de envolvidas na acdo, tendem a permanecer sem projeto, 0 que contribui para fragilizar a democra- cia e reter o fortalecimento de sujeitos sociais. Por estas observacées iniciais, constata-se que seria inadequado 304 Ana Clara Torres Ribeiro tratar o tema do poder local sem antes explicitar como é compreen- dido. Para as finalidades deste texto, entende-se poder local como dominio de formas de exercicio da politica e de meios de admi- nistracdo que permitem o alcance, no lugar, de condigées materiais e culturais de realizagio de interesses € projetos. O poder local é, portanto, uma manifestacao histérica concreta das relacées sociais e objeto de disputa. O local nao é inocente A compreensao do poder local impée a reflex4o de contextos especificos, nao necessariamente limitados ao municipio. Assim, a definig4o proposta de poder local opde-se a aceitagao de certezas genéricas sobre qualidades imanentes ao lugar, jd que este possui a sua propria historicidade. Como afirma Armando Corréa da Silva (1986, p. 30): A categoria lugar tem uma existéncia remota. Denota 0 espago como um complexo de relagées de localizagéo determinada. Essas relacées sto um produto do trabalho (...) Convém considerar (ain- da) 0 lugar natural, isso é 0 lugar suscetivel de apropriagao na natureza como recurso. De fato, da andlise de contexto depende a resisténcia a idea- g6es do poder local que desconhegam diferencas entre a experiéncia brasileira e, por exemplo, a norte-americana, onde a formag4o co- munitéria, apoiada em amplas referéncias culturais, envolve a con- cepcao de democracia. Ainda é a andlise de contexto que permite 0 reconhecimento da distancia, de fato existente, entre a configuracao do poder local no Brasil e experiéncias europeias, em que anseios de autonomia regional, como na Espanha e na Italia, exprimem a efeti- va histéria dos lugares e qualidades do tecido social. Compreende-se, com estas rapidas referéncias, que a banali- Poder local: riscos de simplificag3o Poder local: riscos de simplificag3o 305 zacao do poder local cria obstéculos ao debate da democracia no Brasil, indispensavel 4 formulacao de um projeto para a organizacao politico-juridica que favorega a distribuicdo mais justa dos recursos. Este desvendamento necessitara da revisao da histéria republicana e do enfrentamento de interesses que buscam a sua legitimidade ocul- tando a efetiva estrutura¢4o sociocultural do poder local. A associago imediata entre poder local e administragéo muni- cipal é impeditiva da observagao critica do dominio dos muni- cipios por forgas externas ao lugar. O ocultamento das dimensées social e cultural do poder reflete a submissao da andlise a necessidades imediatas da administracao. Desaparece, com mais esta reduc4o, a oportunidade para que se compreenda o convivio, que marca a histéria recente do Pais, entre a conducdo hipermoderna de politicas puiblicas e a sobrevivéncia de oligarquias, fortemente enraizadas no tecido social dos lugares. Por outro lado, a falta de andlise da estruturagao do poder local amplia as dificuldades que cercam 0 desvendamento de um novo modelo civico (Santos, 1987): um modelo que expresse o enfrenta- mento do desafio representado pelas desigualdades socioterritoriais e em formas de acesso ao sistema politico. A associacgao imediata entre poder local ¢ administracdo municipal € impeditiva, por fim, da observagio critica do dominio de municipios por forgas externas ao lugar. O clogio ao local, sem andlise de contexto, pode se transformar em apoio a auto-segregagio dos mais favorecidos; daqueles que, pela criagao de novos municipios e pelo discurso democrati- co-localista, pretendem usufruir de condigdes excepcionais de vida e do acesso privado a recursos, inclusive naturais. 306 Ana Clara Torres Ribeiro DISTRIBUICAO DOS MUNIC{PIOS POR FAIXAS DE POPULACAO POPULACAO [BRASIL] % | NORTE] NORDESTE| CClere | SUDESTE | SUL ‘até 2,000 139| 2.50] 28 21 2 32|_2 de 2.001 45.000 1274[ 23,13| 90 265[137|___249| 371 Sao 1316 23,90] 98 403 110 153] 302 ia ° 1388) 25,20] 107 590 101 342| 248 See 910] 14,59] 90 378 60 258] 124 oe” 277) 502| 23 89 15 100] 50 ced . 108] 1,96 6 2 5 s7| 19 Eee 68) 1,23 5 nN 3 35] 14 ane 16] 0,29 0 é 2 8} 0 camo 7| 0,12 2 2 1 o| 2 ean 2) 0.03, 0 1 0 a) ence 2] 0.03 ° 0 ° 2} 0 TOTAL 5507] 100,00| 449 We7| 446] _1287| 1159 Fonte: hup://wwwibgegovbr N&mero de vereadores e fixagdo de subsidio O ntimero de vereadores é fixado pela Camara segundo propor- cionalidade estabelecida na lei organica Municipal. A tabela para a fixacdo da proporcionalidade populacional esté no art. 29, inciso TV da Constituigao. POPULAGAO DO MUNICIPIO MINIMO. MAXIMO. até 1 mithéio de habitantes 9 a até 5 milhdes de habitantes 33 41 acima de § milhdes de habitantes 42 55 Poder local: riscos de simplificagdo Poder local: riscos de simplificago 307 Aceita-se, com facilidade, uma espécie de inocéncia do local, tal- vez ainda sob a influéncia dos maleficios decorrentes do planejamento centralizado. Essa ‘inocéncia’, construida por discursos que reificam 0 quotidiano e que realizam o elogio das forgas locais (ou ditas locais), favorece a manutengdo de aliangas politicas cuja natureza permanece, em grande parte, inquestionada. Estranham esta postulada ‘inocéncia’ aqueles que desconfiam da boa qualidade dos contatos primérios, por vezes tao cruéis, excludentes ou subalternizantes. A insinuada benignidade do local produz ainda espanto quan- do se observa a criacdo irresponsdvel de municipios, tao intensa na tiltima década (Adorno, 2000) e a existéncia de municipios que nada mais sao do que territérios de empresas (Piquet, 1998). Ainda ca- beria dizer que 0 elogio ao local, quando realizado sem cuidado, fa- vorece a implementagao de politicas que buscam resguardar o lugar para os seus habitantes, por meio de praticas socialmente excluden- tes (Davidovich, 1993). Alias, os exemplos norte-americano e euro- peu também precisariam ser examinados deste viés interpretativo. O elogio ao local, sem andlise de contexto, pode se transformar em apoio 4 auto-segregacio dos mais favorecidos; daqueles que, pela criagao de novos municipios e pelo discurso democratico-localista, pretendem usufruir de condigdes excepcionais de vida e do acesso privativo a recursos, inclusive naturais. Bastaria lembrar, neste sen- tido, a tentativa de criagéo do municipio da Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, na década de 1980 (Ribeiro, 1990) Na verdade, a questao do poder local envolve e excede os temas da descentralizacao administrativa e da democratizacao da admi- nistracéo municipal. Estes temas constituem, sem dtivida, uma das faces mais relevantes da democracia, a mais expressiva do reordena- mento do pacto federativo e da necessidade de bom uso dos recursos ptiblicos, Expressa, ainda, o esgotamento da adesao social as politicas conduzidas com exclusividade pelo Estado e implementadas, de for- ma privilegiada, pelo governo federal. Porém, insistimos, esta face no esgota a questdo do poder local, muito pelo contrario. 308 Ana Clara Torres Ribeiro Nota ‘Tempo Presenga, v. N. 311, maio/junho, p. 16-18, 2000. Referéncias ADORNO, L.EM. 2000. Gestéo competitiva, estratégia regional e 0 Tocantins. Tese de Doutorado, Instituto de Geociéncias/UFRJ. DAVIDOVICH, F. 1993. “Redutos de classe média, uma interpretacéo acerca da urbanizagio no Brasil”. Cadernos IPPUR/UFRJ, Ano VI, N.3. NOVAIS, P. de. 1999. “Uma critica ao conceito de espago no planejamento es- tratégico”, Salvador, VIII Coléquio Internacional sobre o Poder Local, Escola de Administragio/UFBa. PIQUET, R. 1998. Cidade-empresa: presenga na paisagem urbana brasileira, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor. RIBEIRO, C.T. 1990. “Da questio urbana ao poder local: 0 caso da Barra da Tiju- ca”, Tese de Mestrado, IPPUR/UERJ. SANTOS, M. 1987. O espaco do cidadao, Sio Paulo, Nobel. SILVA, A.C. 1986. “As categorias como fundamentos do conhecimento geogrifico” In Milton Santos e Maria Adélia de Souza (org.) — O espao interdisciplinar, Sio Paulo, Nobel. Poder local: riscos de simplificag3o Poder local: riscos de simplificag3o 309

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