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Metodologia Cientifica e Decolonialidade
Metodologia Cientifica e Decolonialidade
Mentes Abertas
EDITORA MENTES ABERTAS
OBRA
CIENTÍFICO DA
COMITE
Copyright
Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser repro-
duzida ou transmitida ou arquivada, desde que levados em conta os di.
reitos dos autores.
Marcos dos Reis Batista (Marcos Eduardo Dimitri Reis); Rafael Lemes
de Aquino (Organizadores)
ISBN: 978-65-87069-09-8
2017, p. 69-85.
engendrados por um fazer científico colonizado passa pela buscar cepção da permanência de estruturas sociais, políiticase culturais
de alternativas morais e procedimentais para a atividade científica erigidas no período colonial, e, na adoção de posturas engajadas
e seu ensino. Dentre as alternativas oferecidas pelas correntes teó- e comprometidas com a luta pelo fim de tais estruturas. A com
ricas de resistência ao sistema-mundo capitalista, volto-me à críti- preensão é a seguinte: a divisão internacional entre centros e peri-
ca decolonial com o objetivo de extrair dos próprios conceitos de ferias, assim como a hierarquização étnico-racial das populações
decolonialidade e ciência algumas diretrizes gerais para o método não se modificou substancial e significativamente com o fim do
cientifico e seu estudo/ensino - a Metodologia Científica?. colonialismo, as antigas hierarquias e o modo como elas operam
Para tanto, apresento os conceitos de colonialismo, colonia- apenas assumiram outros formatos havendo, na verdade, não o fim
lidade, decolonialidade e ciência a fim de elucidar suas conexões. do colonialismo e o início de uma era pós-colonial, mas sim ape-
Em seguida falo de algumas alternativas decoloniais de ciência e nas uma transição do colonialismo moderno para o colonialismo
metodologia cientifica com a intenção de demonstrar a proposta global (CASTRO-GÓMEZ e GROSGOGUEL, 2007). O conjunto
que julgo mais coerente. E, feito este percurso, aponto as impli- dessas estruturas e o seu modo de operação é chamado de colo
cações do conceito de decolonialidade à disciplina Metodologia nialidade.
Científica. A colonialidade, por sua vez, está dividida em pelo menos
três matrizes: a colonialidade do poder, a colonialidade do saber e
2 Colonialismo, colonialidade, decolonialidadee ciência a colonialidade do ser. poder consiste em um
A colonialidade do
moderna
padrão mundial de poder capitalista baseado na imposição de uma
O colonialismo é definido como a dominação classificação étnico-racial das populações do mundo, esse é o ele-
política, mili mento constitutivo da divisão de classes e da exploração
no mundo
tar e/ou cultural de uma nação/povo ou sobre
país outro com fins
moderno colonial capitalista (QUIJANO, 2007).
de obtenção de vantagens materiais. Essa relação de subalterniza- Por outro lado, a colonialidade do saber
diz respeito aos
do saber em função do
Sigo as definiçöes de Becker (1999). paradigmas de pensamento e organização
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colonialismo. As características fundamentais desses paradigmas Logo, como atividade de conhecimento baseada na razão e
com as hierarquias
e a hierarquização do conhecimento de acordo alicerçada em evidèncias
empíricas, a ciência se estrutura a partir
SOCiais (étnico-raciais) estabelecidas de
modo que o padrão é o eu- de necessidades da natureza dos fenômenos e da
de pensamen-
capacidade sen-
destruição de paradigmas sível e racional dos seres humanos (KANT, 1987). Porém, o uso da
rocentrismo, a negação e
dos
povos subalternizados ciência, bem como o seu ensino não são definidos pela natureza
to e organização dos saberes próprios
esse processo (LANDER, mesma da ciência, mas sim por fatores éticos corolários. Uma lei-
(epistemicidio) e a violência que permite
2005). tura rápida da resposta de Kant (2012) à pergunta 'o que é esclare-
de Maldona- cimento? é suficiente para perceber que a dimensão ética do pro-
Por conseguinte, segundo proficua definiço
a
padrão de poder e exploração sempre estiveram imbricados a dife logia científica sustentada principalmente por Grosfoguel, Cas-
renças étnico-raciais, de modo que tentar explicaro surgimento e tro-Gómez e Dussel é não apenas eclética, mas radical. As raízes
desenvolvimento do sistema-mundo capitalista moderno descon- de sua epistemologia estão no pós-estruturalismo, o movimento
siderando a racialização que lhe é própria é uma tarefa fracassada. de desconstrução encabeçado por Derrida e o Pós-Modernismo.
Ainda que Quijano não tenha rompido epistemicamente Toma corpo nessas raizes a indignação de povos tradicionais, gru-
com a ideia de ciência social, seu rompimento foi com o ideal posi pos religiosos e populações minoritárias que desejam que seus sa-
tivista que ainda se abatia sobre muitos marxistas. Ele seguia o mé- beres sejam reconhecidos como possuidores do mesmo status do
todo materialista histórico e dialético; reconhecia as necessidades conhecimento científico. Esse desejo foi alimentado por anos de
metafísicas sem as quais o conhecimento científico não é possível; violência sofrida por essas populações. Ao violentá-las, os colo-
restaurou na ciência a dimensão ética eliminada nizadores tinham como instrumento a ciência, por esse motivo a
pelo Capital e as-
Sumiu uma postura engajada e
comprometida com a decoloniali- experiência que esses povos têm com a ciência foi sempre marcada
pela colonialidade.
Falo de "conhecimento porque, em Filosofia, existe Tal proposta de ciência e metodologia cientifica é proble-
entre conhecimento (um saber
uma distinção precisa
lógico, de conteúdo verdadeiro e fundamenta- mática porque, para permitir que existam várias maneiras de fazer
do em demonstrações lógicas elou
empíricas) e uma
simples noção/opinião ciencia negra, etc.), toma-se
ou um saber de experiência vivida. ciência (uma ciência indigena, uma
José Carlos Mariátegui foi um dos mais influentes e como pressuposto a ausência de principios necessários e transcen
originais intelectuais
marxistas latino-americanos do séc. XX. Seus trabalhos valorizam o dentais para o fazer científico. Esses autores caem em um sociolo-
mento dos povos tradicionais do Peru, o resultado é uma pensa-
voltada para a realidade local concreta. De nacionalidade
teoria socialista gismo, é como se toda teoria científica, social, histórica, filosófica,
1894 e faleceu precocemente em 1930. peruana, nasceu em
econômica ou crítica se baseasse exclusivamente na experiência só-
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visão de mundo
de homens das potêéncias euro- De modo
cio-histórica e na
Alemanha, Itália) e os Estados
geral, os estudos de Metodologia Científica se con-
peias ocidentais (Inglaterra, França, centram entorno de questões
específicas do uso e desenvolvimento
tudo é uma questão de contexto social
de métodos,
Unidos. O argumento é que e daí existência de
inverter a direção do
a
seções deMetodologia Cientifi-
de poder, sendo assim, é possível conselhos e associações de
e relações ca em
pesquisadores profissionais, por
produzir ciências baseadas
processo e, contra-hegemonicamente,
mundo dos povos su-
exemplo, ou, entorno do ensino de métodos básicos e avançados
sócio-histórica e na visão de de pesquisa científica, daí a existência de
na experiência departamentos de Meto-
GROSFOGUEL, 2016),
balternizados (CASTRO-GÓMEZ, 2005; dologia Cientifica e/ou das disciplinas Metodologia Científica em
proposta éo que Lukács (1959) cha- de
Outro problema nessa cursos graduação e pós-graduação nas universidades. Contudo
mou de irracionalismo, pois, ao rejeitar a metafisica, a lógica e a aqui quero pensar em alguns princípios decoloniais que sirvam
"ocidentais" e "colonj-
epistemologia filosófica considerando-as tanto para quem pesquisa quanto para quem ensina/aprende Me
zadoras, as produções decoloniais ditas "cientificas" que seguem
todologia Cientifica.
essemodelo desprezam o entendimento e a razão, caracterizando- Fanon (2005)
lembra que na descolonizaço há a necessi-
-se pela arbitrariedade, afirmações contraditórias, precariedade dade integral e contínua de questionamento da situaço colonial.
dos fundamentos, argumentações falaciosas, baixo nível filosófico, Na verdade, o sucesso da barbárie colonial
depende da ausência de
glorificação da intuição, mitomania, e outros caracteres irraciona- reflexão contínua sobre a situaço vivida. Logo, o primeiro
princí-
listas. Em suma, o conceito de ciência é incompativel com essa
úl pio da descolonização da Metodologia Científica é a reflexão con-
tima proposta que dá origem a quase tudo, menos à ciéncia. tínua do metodólogo acerca da relação direta e indireta entre sua
atividade e a realidade social em que está inserido. Isso resultará
4 Descolonizando a disciplina de Metodologia Cientifica na tomada de uma postura consciente em relação à colonialidade
do poder em sua atividade de metodólogo
A maneira como concebemos a Metodologia Cientifica está pesquisador/docente
discente. O exercicio da consciência é condição indispensável da
intimamente marcada pelo contexto social e politico em que este
retomada da dimensão ética do fazer científico que torna
campo do conhecimento foi construído, qual seja, o sistema-mun-
o
meto
dólogo um homem totale não uma coisa colonizada que age como
doeuro-norteamericanocapitalista/racista/ patriarcal / moderno
colonial. E, a depender da situação ou do lugar, a colonialidade
mero operador do método a despeito de quaisquer consequências.
Outro princípio é o comprometimento e engajamento ético-
da metodologia cientiífica torna-se mais ou menos evidente. E cla-
ro que ao reconhecer isso
-político com a decolonialidade, pois permite o combate tanto da
não recomendo o fim da Metodologia
colonialidade do ser quanto da colonialidade do saber. O metodó-
Cientifica, porém, acredito ser mais do que busca por
urgente a
logo engajado busca maneiras de fazer ciência que estabeleçam la-
alternativas decoloniais que, sem
romper com os principios que ços humanos entre os sujeitos, laços que gerem respeito e horizon-
mantém a ciência em pé,
possam livrar nossas reflexões e ensino talidade em detrimento da violência e das hierarquias presentes
do método científico da
carga de racismo, sexismo, classismo e ou-
violências que historicamente foram a
tras processos de ensino-aprendizagem via colonialidade do saber.
ele atreladas, como bem Além disso, as hierarquizações da colonialidade se con-
denunciam os teóricos decoloniais.
solidam em uma barreira que impede tanto o reconhecimento e
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humana, como também por seus
respeito pelo outro como pessoa quétipo do colonizador
que reafirma
conhecimentos. Castro-Gómez e Grosfoguel (2007, p.21), tradu- os
padrões racistas, sexistas,
classistas e eurocêntricos de nossa sociedade é a própria colo-
digo a ciência
-
-e eu
ção minha) observam que "a ciência social nialidade do ser. O importante cientista é a
em geral- "ainda não encontrou a
forma de incorporar o conhe-
uso do método, a criatividade firmada
no ser
rigorosidade no
cimento subalterno aos processos de produção
de conhecimento. princípios cientificos e
nos
a
conciliação de tudo isso com uma existência humana total e, por
do conhecimento
Sem isto não pode haver decolonização alguma isso, ética, que só é possível via
descolonização.
nem utopia social mais além do ocidentalismo'.
Em contrapartida, o metodólogo engajado coma descoloni Considerações finais
zação busca soluções para esse problema e valoriza procedimentos
de pesquisa que, respeitando o limite da verdade, criem diálogos Em suma, existe um modo correto de se fazer ciència, e,
entre o conhecimento cientifico e os saberes dos sujeitos pesquisa- tanto a ciência quando
Metodologia Cientifica não apresentam
a
dos ou que moram nos espaços geográficos onde as pesquisas são problemas originados na essência da própria ciência, mas sim na
realizadas. E devo dizer que diferente do que supõem os preconcei- organizaçâão em função da colonização a que por muito tempo fo-
ram e vêm sendo sujeitadas. E isso que caracteriza a colonialidade
tos positivistas, o comprometimento e engajamento não compro-
metem os resultados da pesquisa ao aproximar sujeito e objeto. O da ciência e da Metodologia Científica. Para descolonizá-las não é
distanciamento entre ambos deve necessário assumir uma postura irracionalista em que tudo passa
ser operado no campo da lógica
e não no campo da ética. a ser considerado ciência, é preciso apenas resgatar/ restituir a di-
Por fim, saliento o caráter que Becker (1999) chama de "pro- mensão ética da ciência que foi eliminada pelo Capital e, nesta fei-
selitizante" na Metodologia Cientifica. E bem verdade que a disci- ta, produzir uma ciência e uma Metodologia Cientifica engajadas e
plina é útil para explicar e aperfeiçoar a prática da pesquisa, elu- comprometidas com a decolonialidade.
cidar que tipo de método é mais útil, mas, não raramente, muitos
metodólogos tolhem a criatividade na defesa de uma dita "maneira Referências
certa de fazer as coisas";
exigem que os pesquisadores, especial- BECKER, Howard. Métodos de pesquisa em Ciências Sociais. 4. ed.
mente alunos, convertam-se a estilo de trabalho
um e a
aplicação São Paulo: Editora HUCITEC, 1999.
inflexível de algumas regras e
procedimentos que são dispensáveis.
Uma postura decolonial elimina esse BERNARDINO-COSTA, Joaze; GROSFOGUEL, "Ramón. Deco-
proselitismo, pois valoriza o
protagonismo dos pesquisadores em prejuízo do colonizado auto- lonialidade e perspectiva negra'. Revista Sociedade e Estado, Brasí-
ritarismo acadêmico. lia, v. 31, n. 1, p. 15-24, jan./abr. 2016.
Ademais, minha experiència acadêmica
em
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