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PARA UMA POLITICA DAS FORMAS Coabitagoes Notas sobre algunas extensdes possiveis de uma estética relacional Sistemas visuais Antes tinhamos de levantar os olhos para o icone: que materializava a presenga divina sob a forma de uma imagem, ‘No Renascimento, a invengao da perspectiva mono- cular central transformou 0 observador abstrato em indivi duo coneteto; o lugar que The atribuia o dispositivo pictérico também 0 isolava dos outros. Evidentemente, cada um po- de olhar 08 afrescos de Piero ou de Uccello a partir de va- rios pontos de vista. No entanto, a perspectiva atribui um lugar simbélico ao olhar e confere ao observador seu lugar numa socialidade simbélica. 112 NICOLAS BOURRIAUD A arte moderna modificou essa relagao, ao permitir miiltiplos olhares simultneos no quadro ~ mas nao seria 0 caso de falarmos em importagaa, visto que esse modo de lei tura existia, sob formas diferentes, na Africa e no Oriente? Rothko e Pollock inscreveramn em suas obras a neces- sidade de um “envelope” visual, cabendo ao quadro en- globar, ow melhor, submergir o espectador num ambiente cromatico. Jé foi bastante apontada a semelhanga entre 0 efeito “envolvente” do expressionismo abstrato ¢ 0 efeito buscado pelos pintotes de (cones: nos dois casos, 0 que se tem é uma humanidade abstrata, jogada no espago pict6- ico. A propésito desse espago que envolve o espectador num meio ou ambiente construido, Erie Troncy fala num efeito all around, em oposigao ao all over, que se aplica sa- mente as superficies planas. A imagem & um momento Uma representasaio é apenas um momento M do real; toda imagem é um momento, assim como qualquer pon to no espago é a lembranga de um tempo x, bem como © reflexo de um espaco y. Essa temporalidade é parada? Ou, pelo contratio, produz potencialidades? © que é uma ima- gem que nao contém nenhum futuro, nenkuma “possibili- dade de vida", sendo uma imagem morta? O que mostram os artistas A realidade & aquilo que eu. posso comentar com ou- trem. Ela se define apenas como um produto de nego= ESTETICA RELACIONAL 113 ciagio. Sair da realidade é “louca’: fulano vé um coelho alaranjado em meu ombro, eu néo vej9; af a conversa se fragiliza e se retrai, Para encontrar um aspago de negocia- «<0, devo fizer de conta que vojo esse coatho alaranjado em ‘meu ombro; a imaginagao aparece como uma prétese que se fixa no real para criar mais intercdmbio entre os inter- locutores. A arte tem por finalidade reduzir a parte mecd- nica em nés: ela almeja destruir todo acordo aprioristico sobre o percebido. Da mesma maneita, 0 Sentida € o produto de uma ln teragio entre o artista e o espectador, e nao um fato auto- ritdrio. Ora, na arte atual, eu, enquanto espectador, devo trabalhar para produzir sentido a partirde objetos cada vez inais leyes, mais volateis e intangiveis. Antes, o decoro do quadro fornecia formato e moldura; hoje muitas vezes te- mos de nos contentar com fragmentos. Nao sentir nada é nao ter trabalhado o suficiente. Os timites de subjetividade ‘O que ha de apainonante em Guattari é sua vontade de produzir méquinas de subjetivagéo, de singularizar todas as situagdes para lutar contra “a usinagem mass-medistica’, aparato de nivelamento a que estamos submetidos. ‘A ideologia dominante quer que oartista seja sozinho, sonha com o artista solitério e indémito: “36 se escreve so- zinho", “é preciso se afastar do mundo’, blablabla... Essas imagens de Epinal confundem duas idéias distintas: a re- cusa das regras comunitérias vigentes ¢ a recusa do co- m4 NICOLAS BOLRRIAUD letivo, Se for 0 caso de rejeitar qualquer comunitarismo imposto, é precisamente para substitui-lo por redes rela- cionais inventadas. Segundo Cooper, a loucura nfo esté “na” pessoa, e sim no sistema de relagées do qual ela participa, Nao se fi- ca “louco” sozinho, porque nunca se pensa sozinho, exce- to para postular que o mundo possui um centro (Bataille). Ninguém escreve, pinta ou cria sozinho, Mas é preciso fa zer de conta. A engenharia da intersubjetividade Os anos 1990 viram 0 surgimento das inteligéncias coletivas e do modo “rede” no manejo das produces artis- ticas; a popularizacdo da rede da internet, as préticas cole- tivistas vigentes no meio da miisica tecno e, de modo mais geral, a crescente industrializagdo do lazer cultural produ- ziram uma abordagem relacional da exposigdo. Os artis- tas procuram interlocutores: visto que o péblico continua a ser uma entidade bastante irreal, eles incluem esse intezlo- cutor no préprio proceso de produgdo. O sentido da obea nasce do movimento que liga os signos emitidos pelo artis- ta, mas também da colaboracdo dos individuos no espago expositivo. (Afinal, a realidade é apenas o resultado transi- trio daquilo que fazemos juntos, como escrevia Marx) FSTETICA RELACIONAL 15 ‘galerias e dos centros de arte, estariam sontradizendo esse desejo de socialidade que funda o sentido delas. Assim sao criticadas por negar os conilitos sociais, as diferengas, a im- possibilidade de comunicagao num espago social alienado, e por favorecer uma modelizagao iluséria e elitista das for- mas de socialidade, limitada ao meio attistico. Mas a pop art deixa de ser interessante por reproduzit os cédigos de alienagao visual? Deve-se criticar a arte conceitual por ter ‘uma visio virtuosa do sentido? As coisas ndo sao tao sim- ples assim, A principal queixa contra a arte relacional é que ela tepresentaria uma forma edulcorada de critica social. O que esses criticos esquecem € cue o contetido des- sas proposigées artisticas deve ser jurgado formalmente: em relagio & historia da arte e levanco em conta 0 valor politico das formas (o que chamo de “critério de coexistén- cia”), a saber, a transposi¢ao dos espacos construidos ou representados pelo artista para a experiéncia vivida, a pro- jecao do simbélico no real, Seria absurdo julgar o conteit- do social ou politico de uma obra “telacional” descartando pura e simplesmente seu valor estético, como querem 0s que enxergam numa exposigdo de Tiravanija ou de Carsten Holler apenas uma pantomima falsamente ut6pica, e como ontem queriam 0s defensores de ume arte “engajada’, is- to é, de propaganda. Uma arte sem efeito? Essas priticas artisticas relacionais tém sido objeto de uma critica constante: como elas se limitam ao espaco das ois essas iniciativas ndo provém de uma “arte social ‘ow sociolégica: elas visam a construgéo formal de espagos- tempos que nao representariam a alienagao, nao transpo- 116 NICOLAS BOURRIALD riam a divisio do trabalho para as formas. A exposigio 6 um intersticio que se define contra a alienagao reinante em todos 0s outros lugares, Por vezes ela reproduz ou desla- ca as formas dessa alienagao ~ como na exposicao de Phi lippe Parreno, Made on the I of May (1995), cujo centro era uma linha de montagem de atividades de lazer. A exposi Sao, portanto, ndo nega as relagdes sociais vigentes, mas ela as distorce e projeta num espago-tempo codificado pe- lo sistema da arte e pelo préprio artista. Pode-se perceber numa exposigio de Titavanija, por exemplo, uma forma de animagao ingénua, e deplorar a fragil de do momento de convivio proposto: a meu ver, isso seria ‘um equivoco quanto ao objeto da pratica. Pois sua finali- dade nao & 0 convi seja, uma forma complexa que alia uma estrutura form: objetos colocados a disposigao do visitante e a imagem efé- mera nascica do comportamento coletivo, De alguma ma- lade e a artificialida- , € sim 0 produto desse convivio, ot neira, 0 valor de uso do convivio mescla-se a seu valor de exposigio dentro de um projeto plistico, Nao se trata de representar mundos virtuosos, mas de produzir as condi- ‘ses para tanto, O futuro politico das formas Nao falta um projeto politico & nossa época, mas cla aguarda formas capazes de encarné-lo. Pois a forma pro- duz ou modela o sentido, orienta-o, leva-o a repercutir na vida cotidiana, A cultura tevolucionéria criow ou popula- izou varios tipos de socialidade: a assembléia (sovietes, ESTETICA RELACIONAL 17 Agoras), 0 sit-in, a manifestagdo e seus cortejos, a greve € suas derivacdes visuais (bandeirolas, panfletos, organiza- gio do espago ete). fossa cultura explora > dominio da estase: paralisa- des, como a de dezembro de 1995, em que o tempo é or- ganizado de outra maneira; free parties que se prolongam, pot varios dias, ampliando, assim, a nogdo de sono e vigi lia; exposigdes que podem ser vistas durante o dia inteiro e sio desmontadas aps 0 vernissage; virus informéticos que bbloqueiam milhares de programas ao mesmo tempo... E no congelamento das maquinas, na pausa sobre a magem, que nossa época encontra sua eficacia politica Oinimigo que primeiro devemos combater se encarna numa forma social: a generalizacao das relagées fornece- doricliente em todos os niveis da vida humana, do traba- Tho & moradia, passando pe'o conjunto de contratos técitos que determinam nossa existéncia privada, ‘A sociedade francesa é tanto mais afetada por sofrer de um duplo bloqueio: as instituigbes nacionais apresen- tam um déficit democratic, ea economia mundial tenta Ihe impor modos de reificagio que afetam todos os aspec- tos da existéncia Pode-se ver o relativo fracasso de maio de 1968 na agi da Franca por meio do baixo indice de institucion: liberdade, © fracasso global da modernidade evidencia-se na transformagao das relagdes inter-humanas em produtos, 118 NICOLAS BOURRIAUD na pobreza de alternativas politicas e na desvalorizacio do trabalho enquanto valor nao econdmico, & qual nao corres- ponde nenhuma valorizagao do tempo livre. A ideologia glorifica a solidao do criador e zomba de qualquer comunidade, Sua eficécia consiste em promover @ isolamento dos autores, revestindo-os com um produto de segunda mio € louvando sua “originalidade’, mas a ideologia é invis(- vel: sua forma é nao ter forma. A falsa multiplicidade é sua astiicia suprema: diariamente, reduz-se 0 leque dos pos- iveis, enquanto proliferam os nomes que recobrem essa realidade empobrecida. Aquem se pretende enganar com a idéia de que seria bom e itil voltar a valores estéticos baseados na tradigéo, no dominio das técnicas, na respeito as convensdes his- torieas? Se hd um campo onde nao existe o acaso, 6 0 da criagdo artistica": quando se quer matar a democracia, co- megase arquivando a experimentagdo e termina-se acu: sando a liberdade de hidrofobia, Estética relacional e situagdes construidas ‘O conceito situacionista de “situagtio construtda” pre- tende substituir a representagao artistica pela realizagao go, Lina ver ox FSTETICA RELACIONAL 19 experimental da energia artistica nos ambientes do coti- diano. Se 0 diagndstico dé Guy Debord sobre 0 processo de producao espetacular nos parece implacével, a teoria si- tuacionista negligencia o fato de que 0 espeticulo, ao ata- car prioritariamente a3 formas das relagdes humanas (ele “uma relagio social entre pessoas intermediada por ima- gens”), s6 poderd ser pensado e combatido por meio da produgdo de novos modos de relagdes entre as pessoas. (Ora, a nogio de situagao nao implica obrigatoriamente ‘uma coexisténcia com meus semelhantes: pode-se imagi- nar “situagGes construfdas” para uso pessoal, com exclu- sio deliberada dos outros. A nogio de “situacao” reconduz a unidade de tempo, lugar ¢ ago para um teatro que ndo supde necessariamente uma relago com 0 Outro. Ora, a pratica artistica é sempre a relagio com 0 Outro, ao mesmo tempo em que constitui uma relagio com o mundo. A situa- fo construida nao correspande forgosamente a um mundo relacional, que se elabora a partir de uma figura da troca Serd pot acaso que Debord divide o tempo espetacular em dois, 0 “tempo intercambidvel” do trabalho (“acumulagao infinita de intervalos equivalentes”) e o “tempo de consu- mo” das férias, que imita os ciclos da natureza, mas nao passa de um espetéculo “a um graui mais elevado”? A no- Gao de “tempo intercambiavel” mostra-se aqui puramente nogativa: o elemento negativo ngo é 0 intercambio em si, que é fator de vida e sacialidade; so as formas capitalistas da troca que Debord identifica, talvez indevidamente, com © intercdmbio humano, Essas formas de troca nascem do 120 [NICOLAS BOURRIAUD “encontro” entre a acumulagao do capital (o empregador) & a forga de trabalho disponivel (0 empregado), sob a forma de um contrato, Elas representam nio a troca no absolu- to, e sim uma forma histériea de producao (o capitalismo) © tempo do trabalho, portanto, é menos um “tempo inter- cambiavel” em sentido estrito do que um tempo comprével por um salério, A obra que forma um “mundo relacional”, um intersticio social, atualiza o situacionismo e o reconei- ia, na medida do posstvel, com o mundo da arte. paradigma estético (Félix Guattari e a arte) A obra prematuramente interrompida de Félix Guat- tari no constitui um conjunto claramente recortado, com ‘um subconjunto que tratasse especificamente da questdo estética. Para ele, a arte era um material vivo, mais do que uma categoria do pensamento, e essa distingZo define a propria natureza de seu projeto filoséfico: para além dos generos e das categorias, escreve ele, “o importante € sa- ber se uma obra concorre efetivamente para uma producao mutante de enunciagio’, e nao delimitar os contornos es- pecificos de tal ou tal tipo de enunciado, A psykhé de um Jado, 0 socius de outro, ambos se constroem sobre arranjos produtivos, ea arte, mesmo que privilegiada, é apenas um entre outros, Os conceitos de Guattari sio ambivalentes, maledveis, a ponto de ser poss{vel traduzi-los em miiltiplos sistemas: € 0 caso, portanto, de discernir af uma estética ———EEEEE————— ESTETICA RELACIONAL 121 poten caso de se entregar a uma constante transcodificacéo. Pois que adquire uma consisténcia real somente no o psiquiatra da clinica de La Borde sempre concedeu um lugar de destaque ao “paradigma estético” no desenvolvi- mento de sua reflexdo, mas escreveu pouqui imo sobre a arte propriamente dita, exceto o texto de uma conferéncia sobre Balthus ¢ algumas passagens de suas obras princi- pais, no émbito de um assunto mais geral. Esse paradigma estético, porém, jé é exercido na pré- pria escrita, O estilo, na medida em que podemos empre- gar esse termo ~ ou melhor: o fixo da escrita guattariana — cerca cada conceito com varias imagens: os processos de pensamentos sio descritos, na maioria das vezes, como fendmenos fisicos, dotados de consisténcia especifica: as lacas” que andam a deriva e os “planos” que se encai- xam, as “maquinarias” ete. um materialismo sereno, em que os conceitos, para ter eficdcia, devem revestir os con- tomos da realidade concteta, devem se lerritorializer em imagens. A escrita de Guattari é trabalhada por um cui- dado pléstico evidente, e até escultural, mas com pouca preocupacao pela clareza sintética, Sua linguagem as ve- zes pode parecer obscura: ele nao hesita em formar neo- logismos (‘nacionalitério”, “refranizar”) ¢ palavras-valise, em usar termos em inglés ou alemao tal como Ihe vém ao papel, em encadear as proposigées sem consideragio pelo leitor, em jogar com significagdes secundérias de um ter- mo corrente, Seu fraseado é totalmente oral, castico, “de- lirante”, espontaneo, repleto de abreviaturas enganadoras, 122 ICOLAS BOURRIAUD a0 contrario da ordem conceitual que reina nos escritos de seu colega Gilles Deleuze. Se Guattari ainda nos parece muito subestimado, fre~ giientemente reduzido aa papel de acélito de Deleuze, ho- € mais fécil reconhecer sua contribuicdo especifica nos textos a duas maos, desde LAnti-Ocdipe (1972) a Quest-ce que (a philosophie? (1991)... Da conceito de “refrao” as pas sagens magistrais sobre os modos de subjetivagao, a marca guattariana destaca-se nitidamente, ressoando com forca crescente no debate filosélico contemporaneo. Por sta ex- trema singularidade, pela atengdo que concede 8 “produgéio de subjetividade” e seus vetores privilegiados, as obras, 0 pensamento dle Félix Guattari ligam-se diretamente as ma- quinarias produtivas que constelam a arte de hoje, No atual estado de peniiria da reflexdo estética, cremos ser cada ver qualquer que seja o grau de arbitrariedade enval- vido em tal operagéo, proceder a uma espécie de enxerto do pensamento de Guattari no campo da arte contemporanea, criando, assim, um "enlagamento polifénico” cheio de pos- sibilidades. Agora, trata-se de pensar a arte com Guattari, com a crixa de ferramentas que ele nos deixou, A subjetividade conduzida e produzida Desnaturalizar a subjetividade A nogdo de subjet cipal fio condutor das pesquisas de Guattari. Ele consagrou ‘dade certamente constitui o prin- ESTETICA RELACIONAL 123 sua vida a desmontar e reconstruir os mecanismos ¢ redes tortuosas da subjetividade, a explora: seus componentes e modos de funcionamento, chegando a converté-la na pe- dra que sustenta o edificio social, Psicandlise e arte? Duas modalidades de produgdo de subjetividade interligadas, dois regimes de funcionamento, dois mentais privilegiados que se unem para a possivel solugdo do “mal-estar na civilizagdo"...A posigaa central que Guat- {ari atribui a subjetividade determina de ponta a ponta sua concepgio da arte e seu respectivo valor. A subjetividade como produgao, no dispositivo guattariano, desempenha 0 papel de piv6 ao qual os modos de conhecimento e agio podem se engatar livremente e se largar em busca das leis do socius. Aliés, € isso que determina o campo lexical em- pregado para definir a atividade artistica: nao resta nada do fetichismo habitual nesse registro discursivo. A arte 6 definida como um processo de semiotizagiio nao verbal, endo ‘como uma categoria separada da produgao global. Extir~ par o fetichismo pata afirmar a arte como mado de pensa- mento e “invencao- de possibilidades de vida” (Nietzsche): temas de instru: a finalidade dltima da subjetividade é a conquista inces- sante de uma individuagao. A prética artistica forma um territério privilegiado dessa individuagdo, fornecendo mo- delizagdes potenciais para a existéncia humana em geral. E nisso que o pensamento guattariano pode ser definido: como um vasto empreendimento de des-naturalizagio da subjetividade e seu desdobramento no campo da produ-

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