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10. Classificagao étnica PINTURA DE CASTAS ‘Ao longo do século xvi, a escola mexicana de pintura desenvolveu uma série de representardes sociais de castas ou de individuos mestigos.’ O objetivo desse _género era apresentar uma versio narrativa hierdrquica do processo de mistura racial entre a tipologia diametralmente oposta dos espanhis e dos indios “selva- gens" (que viviam fora da sociedade colonial), destacando a miscura entre espa- ‘nhéis ¢ indios, espanhéis e negros, ¢ indios e negros. Jé foi catalogada mais de uma centena de séries de quadros, coma grande maioria produzida na Cidade do México, mas com algumas séries pintadas na povoac3o mexicana de Puebla e na ‘capital peruana, Lima, Bram pintadas numa superficie nica, como um caleidos- cépio de diferentes cenas, ou entio em telas ou chapas de cobre separadas. Era atribuido um néimero a cada cena das séries para indicar a hierarquia da pureza do sangue: em geral, de um a dezesseis, embora o total pudesse variar. Equanto as primeiras pinturas sobreviventes, de autoria de Manuel Arellano (1711), se con centravam em individuos, por vezes com uma erianga, todas as outras séries re [presentavam casais mistos com um tinico filho, num triunfo inesperado da familia nuclear nos trépicos, Essa representagiio visual era eficaz num sentido classifica ério: a raga ou casta do homem e da mulher, bem como a diferente casta nat sesultante da crianca, podiam ser facilmente identificadas por uma legenda, em etl inscrita na propria cena Apprimeira série completa conhecida, pintada por volta de 1715 e atibuida Juan Rodriguez Juirez, definiu um modelo que seria mais ou menos replica do, mas também complexificado, pelas experiéncias sucessivas realizadas den- todo género (ver figuras 10.1, 10.2, 10.3 € 10.4) Vou me concentrar nas legen: das de cada pintura da série, a primeira apresentando a inscrigio “Espanol ¢ india produzem mestigo” e a 144, a ultima, “Indios bérbaros". A série comeca coma disposigio mais elevada na hierarquia, um espanhol casado com uma fn- dia,e termina com a mais baixa, indios selvagens que viviam fora da sociedade colonial. O primeiro conjunto de trés pinturas que apresentavam espanhdis risturados com indios completado com “Espanhol e mestica produzem cas tigo” e "Castigo e espanhola produzem espanhol” — ou seja, um regresso a raga ‘para” original no final do ciclo. 0 tema do segundo conjunto é a mistura entre espanhOis € afticanos: “Espanhole negra produzem mulato”, "Espanol e mu: lata produzem mourisco” e "de Sspanhol e mourisco, albino”. Nesse caso no temos © regresso a um espanhol puro, mas sim uma brancura artificial e ambi 4gva (tal como veremos). Resta uma terceira série incompleta: “Mulato e mest so produzem mulato torna atris”(torna atrds, ou seja,o resultado é mais escuro do que a mestica), "Negro e india produzem lobo” dios otomi a caminho da feira’ indios mexicans” e “in ssa série ja apresenta diferentes roupas, pen: teados, toucados e, em certos casos, atividades profissionais para idemtificar as, castas. A cor da pele é obviamente considerada um modo importante de repre- sentacdo. Entre as castas mais baixas vemos ja produtos agricolas destinados a ser vendidos no mercado, Nessa fase experimental é interessante notar a ideia do embranquecimento como modelo associado & presenga consistente de um espanhol nas sucessivas geracGes resultantes da mistura de espanhéis com in- ios ou negros. Contudo, essa possibilidade é rejeitada pela presenca em ima _gens sucessivas de negros ¢ indios sem espanhéis, A série seguinte consolidou 0 formato do primeiro conjunto (espanhéis/in dios), rejeitou 0 possivel embranquecimento do segundo (espanhdis/negros) € desenvolveu o terceito (individuos de ascendéncia mista), excluindo 08 “indios birbaras”, Destacava asociedade urbana mexicana, na qual se encontrava a maior concentragio do fendmeno das castas.’A série dedicou-se cada vez mais 20s indi Viduos de raga mista e sua hierarquia, com os espanhéis ¢ os indios situados no no Figura 10.1. Espanhol ¢ india produzem smestigo, 1715, leo sobre tela ua Ror topo. © ambiente doméstico e profissional mereceu uma melhor definigio, ao mesmo tempo que se assistia ao aumento da inclusio de produtos agricolas ¢ de paisagens. A lassiicacZo tornou-se mais complexa, embora algumas das designa ges no fossem estaveis, levando ao questionamento de sua existéncia real na vida difria, mesmo sendo a vasta maioria confirmada por outras fontes. A série de misturas entre espanhdis e negros foi corrigida numa cena final: “de espanhol ¢ albino, negro torna ateis’.* Destacava-se a natureza temporiria da designacio de albino e revelavam-se os truques da natureza. O possivel regresso & pureza de sangue era entio bloqueado na descendéncia espanhol/ negto, sendo associado cexclusivamente a espanol /imio, Ao longo do século xv foram sendo acrescen tadas novas designacées para os descendentes de racas mistas: “de lobo e negra, chino”, “de chino e india, cambujo” (também genizaro), “de indio ¢ cambuja, sus penso no ar", “de cambujo e mulata,albarrazado” (também jibaro), “de albarraza dlo e india, vareino” (ou chamize), “de varcino e india, canpa mulato” (também sambaigo),e “de indio e mestica, coiote’ © vocabulirio usado nessa taxonomia social revela uma sociedade colonial preocupada com a definicio das fronteiras internas no contexto dos casamentos rmistos, Era ébvio que elite no tinha a certeza da sua prépria definicio, ja que o pertencimento eta, acima de tudo, uma questio de reputacio e de estilo de vida estabelecida. A eno de titulos nobiliérquicos ou de genealogia aristocritica loc mobilidade ascendente podia jogar facilmente com a flexibilidade do sistema, A Quem encomendava essas obras? Garcia propos o argumento de que eram os administradores superiores espanhis — vices, arcebspos, ispos,juristaseresponsiveis por éreas como a alfindega ¢ 0 correio — que encomendavam as pinturas. Embora representando apenas 10% do total, todos os patronos até agora ilentifcados provinham desse grupo minasculo da elite espanhola empossada pelo re. Normalmente, quando do rogresso & Espanha, mostravamse interessados em apontar a complena realidad éxnica com que tinham ldado, As pinturas teriam como alvoo ptbico mettopoita ro dacorte real e das elites sociaisaristocraciae administradores superiores) envok vidas na administracio da Amé.ica hspanica. A perspeticva oposta(proposta por Miguel Angel Femnndez, Ilona Katzew ¢ Jonge Klor de Alva) fsa processo end6- eno de eniagio do género, desenvolvido por pintores locaise centrado em temas Jocais,e que promovia a deia de uma sociedad de castas complexa que degenerava eameacava 0 640s, mas ao mesmo tempo servia para projetaraidentidade colonial eo ongulho dos produtos da terra." Essas duas vides nfo deve sertidas como i: compatives, pois os artistas ni teriam reccbido ordens especificas dos patronos rnem teram inventado esse sistema de representacio a partir do na interessante notar que nenhuma das pinturas apresenta a palavra “criou: Jo" ou “descendente de espanol ermo que serra para denominar 0 rosso da elite colonial, E verdade que durante oséculo xv foi cada vez maior 0 confito «qe opunha os rious, descendentes de espanhsisnascidos na América, 08 ppanhois de origem curopeia, especialmente em virtude da promocto dos stimos Jas reformas borbnicas.Os individuos que encomendaram as pinturas pode fam ter deixado a sua marca; duvida-se que os crioulos gostassem desse rotulo, poissempreenfatizaram a sua ascendénca espanhola, A palavra “espanol” seta gnais adequada & l6gica da hierarquia social colonial. Assim, a pintura de castas fo pode ser considerada uma sinples representagdo de um sistema de classifica ‘doenraizado a vida cotidiana,servindo, isso sim, para recordar ou para apontar para as fronteras internas que a lites crioulae espanhola pretendiam destacar, apoiada por grupos de individuos mestigos que tinham como intengio distancia sede outros grupos, ao mesmo tempo que reivindicavam um status superior em relagio a cles, A pintura de casts garantia uma forma global de representagio tierirquica da sociedade colonial, moldada pela visio da elite, ‘O mais recente debate em torn desse tépico Ievanta uma questo ainda mais relevante para o meu argumenco: qual o papel da pintura de eastas na histria nate raP Foram doisos elementos decsivos que me chamaram aatenglo para essa ques- to, Em primiro agar, ers 1770, uma série de pinturas de castas encomendada pelo sige rei do Peru, d Manuel de Amat y Junyent (1761-77). foi enviada como objetivo deserincluida no planejado Gabinete Real de Histéxia Natural, um organismo cra dooficialmente apenas em 1776, em 1799, a pintura Quad de histéria natural viegegrfn do vena do Pru, atasimente no Museo de Ciencias Naturales, em Ma dai, reuniu dois mapas, quatro imagens de conjuntos de peixes, 6 imagens de anima tecrestres, 92 aves (plantas) ¢ 32 tipos de sees humanos — nessec2so, in divduos identificados pelas diferentes caracterstcas isicas €roupas. Essas das re presentagdes da classficagio de estas ou de seres hurnanos surglam num contesto de historia natural. Em 2004, os onganizadores de uma exposicio de pinturas de «asta no Museo Nacional de Antropologia, em Mads, decidram reavaiar a ligacio centre a pinnura de castase a hiséria natural desde o inicio dessa forma de arte, ‘ecatando.a de uma perspectiva diferente — algo também sugerido por Katze" O resultado foi impressionante, no na série peruana, que incluiapoucos elementos decorativos, mas sim na série mexicana, bastante rica em “rutos da terra” desde a sua génese — em alguns casos com esses produtos identifcados e elencadios por escrito numa série, como sea classificacio das castasfzesse parte da classificacio seta dos “produtos da terra" Essa abordagem original justificou o titulo da expo: sigdo,Frutose Castas (ver figura 10.6). Se essa hipdteseestivercorteta, observago dos seres humanos com parte a natureza desenvolveu se precocemente na América hispinica nas primeiras alas SeaeTeiet 10.5. Quadro de historia natural, iil e goog: ‘Thiehout, 325% 115m. Ma Muco Nacional de Ciencias Naturales decadas do século xvu, muito antes da obsessio da Europa tluminista pela class ficacio sistemética de todos os minerais, flora e fauna, incluindo os seres huma- ) (wer a parte v).” A América his. pinica serviu de laboratério para a classificagio dos seres humanos e seu nos, desencadeada em 1735 por Lincu: (1707-7 desenvolvimento através do emparelhamento inter-racial, mais tarde estendido a uma escala mundial. Durante o processo inventaram-se nomes para as Facas mis: «as, com os grupos émnicos catalogados de forma hierirquica, segundo a avaliacio conveniente {elit social. Nesse periodo jd era visivel a tensio entre o desenvolvi ‘mento cientifico ¢ os estereétipos classifcativos, Nio obstante, no podemos ignorar duas questdes essenciais a0 comparar: ‘mos as castascoma construcio racial a definicio de castas é local e no universal: ela no pressupde a transmissio imutavel de caracteristicas de geragio em gers fo. A definiczo de castas nao pretende estabelecer uma hierarquia de tipos de seres humanos além das fronteiras do México (e do Peru). Ela tem relacio coma ‘istura interétnica especifica que surgiu nessas sociedades coloniais, em especial no México, onde a mistura alcangou maior complexidade devido as condigdes Tocais, Nesse aspecto, a definigio de castas nao almeja o universalismo que encom traremos nas teorias das racas, A segunda qui e relevante: @ € igualmer fica do eino do Per, 1799, deo sobre tte de ans ucos da terra no de Guadalupe 0, le sobre tla Figura 10.6. Castase Mexico com a Virges como padroeita, ¢ deLais de Mena, 119% 103. definigdo de castas nfo determina um sistema rigido; os individuos poderiam ser esclasificados ou podiam subir na hierarquia, 0 que mostrava que as castas n30 se encontravam presas a uma nocio inescapével de ascendéncia.”” Em suma, 0 sistema de castas & um caso interessante que chama a atengo para a classiicagao precoce dos tipos de humanos interétnicos relacionados com a natureza, mas nao antecipa claramente as teorias de racas. CLASSIFICAGHO NA AMERICA A verdadeira dimensio dessas criagSes interétnicas nas sociedades coloniais ainda tem de set estabelecida, pois 0 caso espanhol na América, mais conereta mente no México, é bastante singular. E preciso abordar as idealizagdes raciais portuguesas, britanicas, holandesas ¢ francesas em diferentes continentes, Os ‘seus defensores levavam consigo diferentes experiéncias europeias; viram se con- frontados com contextos esperificos; e acabaram por remodelar as suas ideas. O rome exioulo proporciona uma chave para esses mundos diferentes. A palavra fo ccumhada no século svt. nos impérios portugues ¢ espanhol, pertencendo a série de foras animais integradas na taxonomia racial, Num dicionario portugués pu: blicado no primeiro quartel doséculo xv, 0 termo “crioulo” éusado para se referit 230 Figura 10.5. Quadro de histria natural, civil e geogrifica do reino do Peru, 1799, deo sabre tla de La Thichant, 325 « 115 em. Mari, Museo Nacional de Ciencias Naturales décadas do século xvu, muito antes da obsessio da Europa iluminista pela classi- ficagdo sistemitica de todos os minerais, flora e fauna, incluindo os seres huma: nos, desencadeada em 1735 por Lineu (1707-78) (ver a parte )." A América his panica serviu de laboratério para a classificagio dos seres humanos e sew desenvolvimento através do emparelhamento inter-racial, mais tarde estendido a ‘uma escala mundial. Durante o processo inventaram-se nomes para as racas mis. tas, com os grupos émnicos catalogados de forma hierirquica, segundo a avaliagio conveniente d elite social. Nesse periodo jé era visivel atensio entre o desenvolvi: ‘mento cientifico e os esteredtipos classifcativos. Nio obstante, no podemos ignorar duas questdes essenciais ao comparat ‘mos as castas coma construcio racial: definiglo de castas é local e no universal; ela nfo pressupde a transmissio imutavel de caracteristicas de geracio em ger ‘do. A definicdo de castas nio pretende estabelecer uma hierarquia de tipos de seres humanos além das fronteiras do México (e do Peru). Ela tem relagdo coma mistura interétnica especifica que surgiu nessas sociedades coloniais, em especial no México, onde a mistura alcangou maior complexidade devido as condigdes locais. Nesse aspecto, a definigao de castas no almeja o universalismo que encom: ‘raremos nas teorias das racas. A segunda questio é igualmente relevante: @ 28 Figura 10.5, Castase futos da terra no México coma Virgem de Guadalupe ‘como padroeia,c, 1750, dea sobre tla Ae nis de Mena, 119% 103 om definigio de castas nfo determina um sistema rigido; os individuos poderiam ser desclassficados ou podiam subir na hierarquia, o que mostrava que as castas nao se encontravam presas a uma nocio inescapavel de ascendéncia."” Em suma, 0 sistema de castas é um caso interessante que chama a atengo para a classificagio precoce dos tipos de humanos interétnicos relacionados com a natureza, mas nao antecipa claramente as teoriasde racas. CLASSIFICAGRO Na AMERICA A verdadeira dimenslo dessas criagSes interétnicas nas sociedades coloniais ainda tem de ser estabelecida, pois o caso espanhol na América, mais concreta- mente no México, é bastante singular. & preciso abordar as idealizagdes raciais portuguesas, britinicas, holandesas e francesas em diferentes continentes. Os seus defensores levavam consigo diferentes experiéncias europeias; viram-se con. frontados com contextos especificos: e acabaram por remodelar as suas ideias. ‘nome crioulo proporciona uma chave para esses mundos diferentes. A palavra foi ‘cunhada no século xvi, nos impérios portugués ¢ espanhol, pertencendo a série de ‘metiforas animais integradas na taxonomia racial. Num dicionario portugués pu- blcado no primeiro quartel doséculo xvi, otermo “crioulo” éusado parase referir 29 \ { um escravo nascido na casa do dono, como uma galinha nascida em casa € nig comprada fora." A origem da palavra € dbvia, vindo do latim ereare — ereare em italiano, crear em espanol, car em portugues, créer em francés ¢ to create em in, _glés —e significando, entre outras coisas, “reproduzie". A associagSo do escravo a ‘uma galinha é marcante, mas o desenvolvimento do nome ao longo dos séculos reserva outras surpresas interessantes, Na Am ica espanhola, por exemplo, de inicio, criolocinha o mesmo significado que na América portuguesa, embora len tamente comecasse a ser usado para designar os espanhiis nascidos de pais bran. ‘cos na América. Mantém-se a ideia de reproducio, mas sobe-se na hierarquia social, do escravo para o espanol, passando a designar brancos nascidos na socie. dade colonial Embora o termo “creole” renha sido introduzido na lingua inglesa no século xu, ele ndo fo! aplicado a brancos, e nem sequer a escravos negros, na América britanica, salvo no contexto das plantacdes das ilhas do Caribe, onde se importou bastante vocabulirio das colonias espanholas e francesas. Era também usado para ddesignar os descendentes dos colonos franceses na América do Norte, especial ‘mente na Louisiana, onde, depois de osbritinicos terem tomado a colinia, elesse viram obrigados a lidar com uma lingua diferente falada pelas populagdes branca, ‘escrava enativa. Essas ¢ outras experiéncias explicam a aplicagZo do termo “criou: Io” 8 reinvencio das linguas europeias num contexto colonial. O conceito linguistico de hibridismo estava associado ao hibridismo social, J que crioulo se aplicava aos individuos nativos de ascendéncia africana ou eu. Pei ‘uma lingua crioula.” Em francés, “eréole” era um substantivo, introduzido tam: bem no século wn, que designava um branco nascido nas ihas caribenhas, tal como acontecia no contexto da América espanhola. Porém, nas coldnias france ou a individuos nativos de ascendéncia mista europeia e negra que falavam sas do oceano Indico, especialmente nas ihas Mauricio, o termo designava indivi duos “de cor". 0 termo foi usado para se referirs novas linguas criadas pelos es cravos ou pelos nativos em resultado do contato com as linguas europeias, tal como aconteceu no Senegal, onde se identificaram formas de crioulo de origem portuguesa, especialmente em Casamansa.”* No entanto, as linguas crioulas eram consideradas patois, ou linguas deturpas segunda metade do século xx. O nome crioulo evoluiu com o tempo. No Brasil ideia que s6 viriaa ser alterada na modern, crioulo designa, em termos priticos, as massas populares com pele es- cura. Os mulatos das classes média ¢ alta eram considerados brancos ¢ viam-se como tais, embora as agdes afimmativas recentes a favor dos negros tenham vindo ‘aalterar esse padrto. Essa dupla classficagio racial e social quanto a cor da pele ‘e a0 status temonta ao periods colonial, Por outro lado, na América do Norte contemporinea, o mulato ndoexiste de um ponto de vista taxondmico: em fin 40 século xvi, 0s individuos eram classificados como negros na vida diatia, com cexcegdo, mais uma vez, dasilhes do Caribe, ao passo que os mulatos eram rorula- dos coma sendo “de cor Preciso regressar ao caso portugués, a que se trata do mais proximo do caso ‘espanhol em termos de complexidade de taxonomia racial. Encontramos os ter mos cruciais “mestigo” e “mulato” a partir dos séculos wv € xu, respectivamente, usados no império para designar os filhos resultantes da unio entre brancos € {dios ou entre brancos ¢ negros. © termo "pardo”, que encontramos a partir do século siv, era usado habitualmente na vida diria, chegando a ser acrescentado ‘aos nomes pessoais para designar um mulato ou um individuo de pele escura, ‘entre 0 branco e o negro. Algumas etimologias respeitadas indicam uma origem _gecga € romana para o termo, mas um dicionsrio portugués de finais do século svi @associava a ave pardal, conhecida no s6 pelas suas penas escuras, mas tam ‘bem pelo tamanho diminuto e pela vivacidade."* 0 termo “moreno, usado na Espanha desde o século sie em Portugal desde o século xv, teve a sua origem em, ‘moro” ou “mouro”, significndo uma tez trigueira, entre o branco e o pardo, cembora em certos casos pudesse ser usado para designar uma cor escura, entre 0 pardo e 0 negro, Também indicava cabelo escuro, entre 0 castanho e 9 preto, ov simplesmente preto, sendo equivalente ao termo francés e inglés “brunette”. A palavra é hoje em dia usada habitualmente tanto no Brasil como em Portugal. CO ambiente colonial estimulou o grande desenvolvimento da taxonomia ét nica ou racial no Brasil, o descendente de pais de origem branca ¢ india era tam bém chamado de "mameluco”, uma referéncia ébvia i elite militar egipcia com- posta de escravos cristios caurasianos convertidos ao isla. A referéncia a traicio das origensera clara, ja que muitos mamelucos eram cagadores ativos de escravos indios para os portugueses. "Caboclo” significava, na sua origem, indio, mas na Dacia do Amazonas e no Nondeste do Brasil rapidamente passou a designar odes. cendente de branco ¢ india, ou um indio capaz de falar a lingua gral homoge neizada, a padronizacio levada a cabo pelos jesuitas da lingua tupi. “Carijo” era ‘uma designacio original dos indios guaranis que habitavam as regides do Sul do Brasil, Na lingua tupi designava, simultancamente, o descendente de um branco ‘© um passaro pintalgado com penas brancas e pretas. Em Minas Gerais, no século xvi, termo aplicava-se ao descendente de indio e negra. Nessa mesma regio, 0 filho de branco e india era chamado de “curiboco”,significando um mestigo com, pele acobreada e eabelo preto liso.” (Os portugueses (nascidos ou apenas residentes no Brasil) davam bastante uso a0 vocabulétio nativo, em especial nos seus conflitosinternos. Em 1708-9, em “Minas Gerais, durante a guerra civil entre os habitantes de Séo Paulo, que reivin. dicavam os direitos exclusivos 20 ouro da regio, ¢ 0s forasteiros de outras partes ddo Brasil ede Portugal, esses forasteiros eram designados “emboabas”, um termo inspirado na palavra tupi para bando de agressores. Em 1710, durante a guerra civil que estourou na regio de Pernambuco entre os senhorios de Olinda e os comerciantes do Recife, aqueles eram chamados “mazombos’, um termo retira: do diretamente do idioma africano quimbundo, que significava um individuo ta: citurno, ristico, bruto ou retrégrado, enquanto estes eram chamados “masca- tes", uma referéncia ao porto do golfo Pérsico concebida para diminuiro estatuto dos comerciantes, sugerindo que se tratava de vendedores de quinguilharias. O termo “cafuzo”, outra designacio para o filo de negro e india encontrada no Brasil oitocentista, provavelmente se inspirou no quimbundo kufinzaka, que sig: nifica descolorir e que revela a visio africana do processo de mistura racial ‘O uso constante das linguas americanas nativas e afticanas para a taxonomia racial € uma das principais caracteristica do sistema portugués, mais desenvolvi do do que o espanhol nesse aspecto, porém ainda menos estavel nos significados. Segundo estudos recentes, em finais do periodo colonial, a nomenclatura racial ‘no Brasil designava mais de 150 categorias;o problema, no entanto,ésitui-las nos seus contextos espaciais ¢ hist6ricos precisos, de forma que se compreendam a sua evolucio ou desaparecimento. Nas colénias portuguesas no houve nada de semelhante & pintura de castas, mas é difcl dizer se isso se deveu aos ambientes interétnicos dispares ou a reconhecida deficiéncia portuguesa na cultura visual no que diz respeito a temas seculares ou civis. $6 com a ocupacio holandesa da maior parte do Nordeste brasileiro, entre 1630 ¢ 1654, houve as primeiras repre sentagGes suntuosas de indios, negros e mestigos realizadas por pintores ilustres dda Europa Setentrional, como Frans Post, Albert Eckhout e Zacharias Wagener, convidados pelo conde Mauricio de Nassau, governador geral do Brasil holandés centre janeiro de 1637 e maio de 1644. No entanto, quando comparada coma me- xicana, a tipologia que vemos nessas pinturas € muito simples. Figura 10.7 Malhertapuia segarando uma rao devepadaecom um cesto conten wm pé ecepdo,c, 1641, deo sobre tel de Albert Ecklon, 272 165m. Capenkague, Colpo Binogrifica, Museu Nacional da Dinamarca, nin NIBAL, Figura 10.8. Mulher up brasileira segurando sma rian com um cesta na aber, 164, leo sobre tla de Albert Eckhout, 274 X 163 cm, Copenhague, Cole Emognifia, Musca Nacional la Dinemarea, ws. NSSAS Eckhout foi o artista que criow a série mais completa de tipos humanos, ba. seada em casais, mas com cada parceiro representado separadamente: indios sel vagens (tapuia), ‘mista de origem europeia ¢ india (mamelucos) — algumas dessas imagens estig ios integrados (tupi), africanos negros e individuos de raga reproduzidas aqui. A hierarquia era estabelecida pelas cenas naturais de fundo, pelos gesos e pela aparéncia dos sujeitos. Os tapuia eram representadosna flores ta, quase nus e sem quaisquer roupas europeias. © homem surge entre animais selvagens, como a iboia ouacaranguejera, na posse de armas indigenas traicio nis —aborduna, as angas ea zarabatana. O pénis esta visivel,decorado com um fio de material vegetal, num contraste com 0 toucado de penas de papagaio e os adornos feitos com penas de ema nas costas. Mostra dois ossos brancos trespas sando as fies ¢ uma pedra ou pedago de resina verde-azulada por baixo do lbio inferior. A mulher segura uma mio decepada eleva as costa um cesto de ibras vegetas com um pé decepado — sinais 6bvios de canibaismo (ver figura 10.7) Usa um cinto de corda com folhas verdes que Ihe cobre sexo e, tal como o ho. mem, cala sandilias de fibras vegetas. Entre os pés surge representado um cio domestcado, animal levado pelos portugueses e ue pode ser um sinal de transi- do. Ao fundo veem se 0s familiares desnudos da tribo, entre as pernas da india, enquantoa cena em seu redor é repleta de érvores, plantas ¢ frutosnativos. ‘A mulher tup, por outro lado, usa uma saia de tecido europeu, o que a dis kingue de imediato ver figura 10.8) O resto do corpo est nu, masa faixalistrada 4que Ihe prende o cabelo surge como caractersticadistintiva. Segura uma crianga no brago direito e um cesto com: o esquendo, em que transporta cabagas,caias e uuma rede de dormir. A crianca enverga uma fta semelhante na cabeca. Ao fundo surge uma quinta europeia com fleiras oneiras de érvores, vacas trabalhadores ‘labutar nos campos. Ao seu lado estdo uma bananeira importada e animais nat vos. © homem veste caleio de tecido europeu, tem uma faca europea e segura arco ¢ flechas nativos inais da sua posicdo intermedidria. Ao fundo vemos um ‘veleiro europeu e tupis lavando roupas europeias. Mais uma vez temos produtos do mundo natural familiares dos tupis representados junto ao indio integrado, (© casal negro apresentado por Eckhout é mais intrigante. A mulher esté re presentada com um cesto africano de palha com frutos, entre os quais um mamio papaia do Brasil Enverga o que provavelmente ser um chapéu javanés com pe- nas de pavdo. A saia eo elegante cinto de algodio tingido que enverga em volta da cintura sio jé um misto de roupas e formas europeias e afticanas. Tem um Figura 10.9, Mestigo brasileiro com masquetee floret mameluco), 1641, lo sobre tla de Albert, khout, 274 170m. Copenbague, Colo Ermogrifes, Museu Nacional da Dinamarca, ins NSSAS, cachimbo preso no cinto, o que sugere um hibito feminino afticano que era mos- ‘ado na imagética da cartografia holandesa seiscentista e que ainda surgia nas Fotografias e nos postais de finais do século xx, especialmente em Cabo Verde. Os ornamentos da negra sio espantosos: um colar de coral, um colar de fiada dupla de pérolas, brincos de pérola e pulseiras. O filho, curiosamente de tez mais clara do que a da mie, exibe uma espiga de milho numa mio e um periquito nativo da Africa Central e Ocidental na outra. Esto cercados por érvores ¢ frutos nativos. ‘Ao fundo temos a imagem de um porto e de navios ao largo no mar, numa refe réncia a chegada da Africa, O homem est representado com uma espada cerimo- nial afticana akan (da atual Gana) numa bainha de pele de raia, um cinto de tecido africano, uma azagaia e uma langa delgada de ponta de ferro, & semelhanga das uusadas pelas tribos da Aftica Austral. Esti rodeado pela presa de um elefante aft ‘ano, por uma palmeira e por conchas do Atkintico sul, o que indica as suas ori ‘gens, 20 mesmo tempo que introduz. um toque exdtico, jé que as conchas eram usadas tanto como dinheiro como para a adivinhagio. ceasal mestico de mamelucos, a itima criagio de Eckhout nessa série de casais coloniais,¢ilustrado com algum esplendor. © homem esta descalgo e tem cabelo encaracolado, o que significa que tem sangue afticano, além de branco e {ndio (ver figura 10.9). Dificimente estaria mais bem-vestido: camisa e saia de 25 tecido branco curopeu, além de um colete de couro. No lado esquerdo, um flore te sofisticado esta preso a um cinturio de pele de jaguar, enquanto no direito po. demos ver 0 punho de uma adaga, Com a mio esquerda segura um mosquete, Trata'se de uma disposigio que se adequaria a um comandante de mic ‘capataz de plantacdo ou um cagador de escravos que atingiut uma posigio impor tante na sociedade colonial, Note-se que a sua volta se vé a cana-de-actiear intro. uzida pelos portugueses, bem como drvores e frutos nativos. Ao fundo temos ‘uma praia impressionante e navios europeus no mar, A mulher também esti des. calga, mas envenga um elegante vestide asiitico comprido de algodio branco, um belo colar europew com joias, pulseiras ¢ um adereco de cabeca com flores. Tem ‘o mesmo tipo de cabelo do homem, o que sugere uma origem miscigenada seme. Thante. Segura um cesto de bambu com flores ¢ esta rodeada por érvores,frutos e animais tanto nativos como importados pelos portugueses). Estamos num am. biente agricola, com quintas ao fund.” Ohistoriador Peter Mason ja frisou que essas imagens sio compésitos,resul tantes de uma “montagem maravilhosa” ou encenacdo no contexto das forma: ‘des visuais exdricas.” Os pintores setentrionais como Eckhout embelezavam a realidade” racial ow érnica, ampliando a riqueza ea fantasia do retrato com pecas das suas colegGes ow provenientes dos gabinetes de curiosidades dos seus patro- nos, Isso € essencial para a compreensio das origens dispares de muitos elemen- tos das pinturas, que foram compostos pelo artista, Isso ¢ bastante notério no caso do casa afticano, jo podem ser tomadas como “documentos étnicos”, pois mas 0 mesmo se passa com o par mameluco, especialmente devido as armas so fisticadas com que o homem é representado, No entanto, temos aqui algo tam ‘bém importante para a minha tese: cinquenta anos antes da criagio da pintura de castas no México, esses artistas no Brasil holandés ja apresentavam tipos raciais ‘num ambiente natural, entre plantas, érvores e animais, como mais um impor ‘ante produto da terra CLASSIFICAGHO Na AFRICA E NA ASIA ‘A América ibérica, esse espantoso laborat6rio colonial da mistura interétn ca, da taxonomia racial e das imagens dos varios ripos humanos, tem de ser vista ‘num contexto mais vasto, Os preconceitos integrados nas formas de classificago a6 foram transferidos de um continente para outro. Os nativos americanos, por exemplo, eram designados censtantemente como negros da terra, querendo di zer que partilhavam a selvageria e 0 atraso com os afticanos. Essa transferéncia ocorreu de uma forma absolisamente oficial na Asia portuguesa: as listas de indi ‘viduos na folha de pagamentos do rei incluiam a estimativa dos habitantes de cada forte, divididos em dois grupos principais de “brancos” e “negros” casados, indicando astéticos convertides com algum clemento de ascendéncia portuguesa mestigos, basicamente) ¢ asiiticos convertidos sem ngue europe, © precon: ceito baseado na cor da pele ‘oi assim transferido da Africa para a América e da [América para a Asia; os natives, mesmo quando convertides e integradas na so: ciedade colonial, nunca deixavam de ser considerados negros (ou barbaros). A partcularidade dessa classifcagio era 0 fato de os mestigos de ascendéncia euro pia serem considerados brancos na Asia devidoa configuracio particular dom: pétio portugues na regio, bastante dependente dos recursos humanos locas" Na Africa Oriental, adiversidade mica do atual Mocambique foo resultado das frequentes migragBes de sfricanos, mas também se deveu & presenca de mut

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