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CônegoSchmid
EmmadeTanemburgo
TraduzidodoAlemãopor
FranciscaMaranhão
1
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MEUSPREZADOSPAIS
O
AMOR
paternal
e filial, pintado nesta história de
uma maneira tão verdadeira e tocante, comoveu e
encantou
meu
coração de tal sorte, que o meu mais
ardente desejo era de procurar para meus pais e minhas
jovems
amigas
o mesmo
prazer
que
eu
senti
nesta
leitura,
e
por isso tomei a resolução de a traduzir na nossa língua.
Comprazei-vos de aceitá-la como prova de meu amor e
reconhecimentofilial.
Vossaternafilha,
FranciscaMaranhão
Maceió,setembrode1857
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SUMÁRIO
MEUSPREZADOSPAIS 3
SUMÁRIO 5
ADVERTÊNCIA 1
CAPÍTULOI 3
CAPÍTULOII 23
CAPÍTULOIII 29
CAPÍTULOIV 39
CAPÍTULOV 57
CAPÍTULOVI 67
CAPÍTULOVII 77
CAPÍTULOVIII 85
CAPÍTULOIX 91
CAPÍTULOX 97
5
CAPÍTULOXI 105
CAPÍTULOXII 117
CAPÍTULOXIII 125
CAPÍTULOXIV 133
CAPÍTULOXV 141
CAPÍTULOXVI 149
CAPÍTULOXVII 161
CAPÍTULOXVIII 171
CAPÍTULOXIX 183
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ADVERTÊNCIA
Á tendo concluído esta minha tradução, e estando
pronta para ser
remetida ao
prelo,
li
num catálogo
que a mesma obra acaba de ser traduzida por
outro. Confesso que desanimei e estive por algum
tempo indecisa, receando que se não dissesse de meu
trabalho o que se tem aventurado sobre o de pessoas
literatas, a quem
eu
estou
mui
longe
de
querer
igualar. Mas
não tendo por fim fazer-me conhecida na literatura, e
somente satisfazer um desejo de meu coração para com
meus pais e minhas amigas, entrego a minha tradução ao
prelo, sujeitando-me a qualquer juízo do público, a quem
imploro todavia a necessária indulgência por meus débeis
conhecimentoseidade.
DATRADUTORA
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CAPÍTULOI
O sul da Suábia, nessa região pitoresca, semeada
de vales risonhos e de colinas cobertas de
florestas, atrás das quais as montanhas da Suíça
elevam os seus cimos, cobertos de uma neve resplandecente,
via-se desde alguns séculos sobre o cume de uma alta colina,
coberta de pinheiros, o magnífico castelo de Tanemburgo.
Um
século
ainda
depois
de
sua
destruição,
suas
torres
meio
arruinadas e seus muros alcatifados de musgo, alumiados
ou
pelos
raios do sol no crepúsculo ou pela pálida luz da lua,
produziam uma singular impressão
no
espírito
do
viajante.
Ele bendizia no fundo de seu coração as almas generosas
que o habitaram outrora e que tinham espargido a
felicidade sobre toda a região que o circundava, e com a
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alma comovida pela contingência das coisas humanas,
afastava-se maravilhado e ia repousar um pouco mais
distante.
Neste castelo, viviam antigamente, no seio da mais
doce união, Edelberto e sua esposa Matilde. Edelberto era
um nobre cavalheiro, valoroso e denodado. Mas ainda que
fosse considerado como um homem terrível na guerra,
todavia sua alma era dotada de doçura e sensibilidade.
Muitas vezes debaixo de uma couraça de ferro palpita o
mais
generoso
coração.
E ele
era
um
homem piedoso, probo
e um bom senhor para com os seus vassalos. O duque da
Suábia
o honrava
com
sua
amizade, e o imperador mesmo o
distinguia de todos os outros cavalheiros. Matilde, sua nobre
esposa, além de ser contemplada como a mulher mais
perfeitadopaís,eradeumabelezaencantadora.
Nesse tempo de continuadas guerras e perturbações,
Edelberto poucas vezes permanecia em seu castelo; ele
acompanhava o duque em todas as suas expedições e
demorava-se anos inteiros na campanha. Na ausência de
seu esposo, Matilde considerava a sua única e interessante
filha
Emma,
que
não
lhe
era
inferior em graças e virtudes, a
fonte donde emanavam todas as suas felicidades. Dar uma
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boa educação a esta menina, que oferecia as mais belas
esperanças, era todo o cuidado de Matilde. Seu
método
era
simples, porém excelente. Como seu coração era piedoso e
bem
formado,
não
lhe
era
difícil
tornar
o da
sua
filha
como
oseu.
O primeiro cuidado da terna mãe foi de ensinar à sua
filha
a conhecer a Deus e a implantar no seu tenro coração o
amor do nosso Divino Pai. A nobre dama tinha a maior
veneração para as magníficas obras da criação; ela as
contemplava com um sentimento de piedade e
concentração.
Das
janelas
de
seu
quarto, onde ela consumia
a trabalhar uma parte do dia, descobria-se uma magnífica
vista. O céu e a terra, contemplados desta altura,
representavam um painel, cuja beleza excede a qualquer
descrição, e oferecia a Matilde a mais propícia ocasião de
fazer
admirar à sua filha a sabedoria, bondade e onipotência
doEterno,queresplandecememtodasassuasobras.
Em uma manhã de um dos mais belos dias do estio,
Matilde
acordou
Emma
muito
cedo
e disse-lhe: «Vem, minha
filha, vem; olha como é risonha a aurora de hoje! Contempla,
acrescentou ela abrindo a janela, como são lindas e ofuscantes
as cores q ue vão colorindo o horizonte! Vê estas nuvens como
são brilhantes e diáfanas! e estas altas montanhas, coroadas de
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neve, como se estendem por sobre estas sombrias florestas como
um largo manto argentino! Olha, eis ali o sol! Oh! como é
poderoso aquele q ue o criou! Vê a torre da igreja, q ue se eleva
como uma pirâmide dourada sobre esta floresta de seculares
carvalhos, cuja espessa folhagem encobria a nossos olhos a
aldeia! Despertaram seus habitantes, depois de terem recobrado
suas forças com um sono tranquilo. Lá vão eles para suas
ocupações. Os pastores conduzem suas vacas à pastagem nos
profundos vales, e elas mugem de alegria; as colinas se cobrem
de ovelhas, q ue seguem seu fiel pastor. Os lavradores não
tardarão a fazer sua colheita, porque os trigos já estão maduros.
Por toda a parte se descortinam provas da magnificência de
Deus! Oh! q ue bom Pai é este q ue olha para todos os homens sem
distinção, q uer eles habitem palácios ou choupanas; Ele
deu-lhes por habitação a terra, tão rica em seus dons, e um dia
os chamará todos para seu regaço. Quem não se regozijará de
ter um tal Pai?»
Estas
palavras,
saídas do coração de Matilde,
penetraram no de sua filha. Ela ajoelhou-se, e unindo as
mãozinhas disse: «Deus, grande e bom, q uanto te agradeço de
haverescriadotantosprodígios!»
Desta maneira ensinava
Matilde
à sua
filha
como
tudo
que nós vemos na terra e no céu, desde o sol até
a simples
gota de orvalho, revela a bondade de Deus. As diferentes
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estações do ano, com suas belezas particulares e seus ricos
dons, lhes ofereciam frequentemente novas ocasiões de
admirar a ternura do Criador para com suas criaturas.
Emma sabia elevar seu espírito ao Todo Poderoso, ou
contemplando uma flor odorífera, ou apreciando um fruto
saboroso; ela dirigia seus pensamentos a Ele com
entusiasmo, e com o coração cheio do mais puro amor
agradecia todos seus benefícios, elevando às vezes
com
sua
doce voz hinos e cânticos religiosos a Deus. Matilde tinha
vastos
conhecimentos
da
História
Sagrada;
quando
bordava
ou
cosia,
ela
contava
à sua filha, que a escutava com a maior
atenção, histórias que sua infantil inteligência podia
compreender.
Emma
achava-se transportada ao paraíso, às habitações
dos patriarcas, ou ao meio do deserto com os Israelitas, ou
finalmente na terra da promissão, e sua satisfação era
inexplicável. Ela aprendia então como
Deus
se
manifestava
aos homens. Os perversos, que a História Sagrada nos
mostra, lhe representavam exemplos horríveis do vício; os
bons pelo contrário lhe ofereciam uma imagem tocante de
tudo quanto a virtude tem de agradável. Porém Emma
preferia
a tudo ouvir a História de Jesus Cristo. Apraziam-na
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os anjos e os pastores no
presépio
de
Belém;
ela
depositava
com os magos do Oriente aos pés do recém-nascido, cuja
estrela
radiosa
brilhava
no
céu, sentimentos de piedade e de
reconhecimento,
mil
vezes
mais
preciosos
do
que o ouro e o
incenso.
Ela
via
o Divino
Infante
em sua cabana em Nazaré,
ela o via obedecer à sua Santa Mãe, orar a seu Pai, e
trabalhar,
e aumentar
em
graças
perante
Deus
e os homens;
e ela tomava então a firme resolução de ser sempre
submissa
a seus pais e tornar-se mais perfeita de dia em dia.
Acompanhava no espírito o Divino Mestre em suas
peregrinações
para
Palestina;
assentava-se
com
Ele
no meio
de
seus
discípulos,
ora
sobre
o cimo
de
uma
montanha ou à
borda do mar, ora sobre a soleira da porta do Templo;
escutava
as
suas
lições
com
piedade
e devoção,
e prometia à
sua mãe observá-las fielmente. O prazer o mais puro
transbordou em seu coração quando soube como o Divino
Amigo
dos
meninos os tinha chamado a si para os abençoar,
e,
como
vendo
os
pais
inconsoláveis
pela
perda
de sua filha,
disse-lhes: «Esta menina dorme!» e a acordou. Enfim,
apercebendo um jovem morto num caixão, disse-lhe
também: «Levanta-te!» e o restituiu à sua mãe que o
pranteava.
Emma
jurou
a si mesma ser sempre boa, a fim de
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merecer sua bênção. Ela o amava de todo o seu coração;
confiava-se Àquele que sabe enxugar lágrimas, socorrer na
desgraça, transfigurar a morte e dar a vida eterna. Mas
enfim quando sua mãe lhe contava as dores que Ele — o
mais inocente dos homens — sofreu por amor da
humanidade; quando ela disse que sobre
a cruz
seus
lábios
lívidos imploravam ainda
a misericórdia
de
seu
Pai
para
os
seus verdugos, então o mais copioso pranto inundava as
faces de Emma. Ela jurou solenemente no fundo de seu
coração consagrar sua vida inteira Àquele que tinha
morrido
por
ela.
Assim
ensinava
a mãe piedosa à sua filha a
conhecereamaraDeuseaseudivinofilho.
Ao mesmo tempo que Matilde preparava o coração de
Emma para uma piedade sincera, queria também fundar
nela uma generosa caridade para com seu próximo, e
sobretudo para
com
seus
pais.
A viva
ternura
que
ela
sentia
por sua
filha,
ganhava-lhe
inteiramente
a confiança.
Emma
também consagrava a seu pai o mais vivo amor, ainda que
ele pouco se detivesse junto dela, mas porque sua mãe
semprelhefalavadelecomternura.
Se Matilde lhe dizia: «Comporta-te sempre bem, minha
filha, para q ue q uando chegar teu pai eu possa bendizer-te e
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elogiar-te;» estas palavras eram
o mais
precioso
talismã
que
a guiava sempre para o bem. E quando o cavalheiro voltava à
sua casa, Emma rivalizava em zelo com sua mãe para
aumentar sua felicidade. Edelberto apreciava muito as
frutas de um pecegueiro que havia junto aos muros do
castelo.
Um
dia Matilde trouxe-lhe os primeiros frutos desta
árvore que ela acabava de colher, e repartiu
em
três
partes,
uma para o cavalheiro, outra para ela, e a terceira para
Emma, e disse
depois:
«Eu darei a minha a teu pai,»
e Emma
respondeu:
«Eu lhe darei também a minha, e nada me obrigará
atornaraaceitá-la.»
Apressou-se, com o coração palpitando de alegria, a
coordená-los numa bonita cestinha,
e o fez
de
maneira
que
a
bela cor vermelha desses frutos ficasse patente aos olhos, e
entãolevoutudoaseuqueridopai.
Matilde tinha o hábito
de
prodigar
socorros
às
pessoas
verdadeiramente desgraçadas, e empregando Emma neste
santo mister, ensinava-lhe a liberalizá-los, a fim
de
que
ela
aprendesse a conhecer pela experiência os gozos inefáveis
que
nos
traz
a beneficência. Ela queria despertar no coração
de Emma a piedade pelos males alheios, e conduzi-lo ao
ponto de sacrificar sua própria felicidade para bem do
próximo.
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Um dia
seu
pai
prendou-a
com
uma
moeda
de
ouro
de
valor
e deu-lhe
faculdade
de
comprar
o objeto
que
mais
lhe
agradasse
para
seu
ornato,
Emma
atormentou
sua
mãe com
perguntas para que lhe dissesse o que faria ela de tal
dinheiro. Matilde nomeou-lhe um grande número de
objetos, sem que a feliz menina pudesse chegar a fixar
sua
escolha. Neste momento um criado anunciou uma pobre
viúva cuja vaca tinha morrido de uma epizootia. Matilde a
fez entrar, ouviu sua queixa, e disse-lhe: «Ah, meu Deus, é
uma grande infelicidade para vós, porém eu já tenho dado
muitas esmolas a muitos infelizes q ue tiveram a mesma perda.
Não posso dar-vos tanto como desejo, é preciso q ue eu também
guarde para as minhas esmolas costumadas.» Contudo, foi
buscar algum dinheiro e o deitou sobre a mesa para
contá-lo. Então Emma veio à pressa e juntou sua peça de
ouro ao dinheiro de sua mãe. «Tenho tudo q ue me é
necessário,
disse
ela;
esta infeliz viúva tem mais necessidade de
uma outra vaca do q ue eu de um enfeite.» A pobre mulher
derramou lágrimas de reconhecimento e quis beijar as mãos
de Emma. Quando ela saiu, Matilde abraçou sua filha e
disse-lhe: «Tu obraste bem, minha q uerida filha; tua generosa
caridade é muito mais apreciável do q ue mil peças de ouro, do
quetodososornamentosemagnificênciasdomundo.»
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Matilde acostumou sua filha desde a sua mais tenra
infância
a obedecer-lhe
com
prontidão,
porque,
dizia
ela, os
caprichos
de
uma criança são o maior obstáculo para o bem.
Um menino deve submeter-se à vontade de seus pais,
para
depois submeter-se mais facilmente à vontade de Deus;
porque se ele não obedecer a seus pais, a quem vê, como
poderáterobediênciaaDeus,aquemnãovê?
«Deve-se fazer fortificar no coração dos meninos a
inclinação para o bem, e o vício deve ser expelido, para q ue
brotemdesuaalmabelasfloresdeestimáveissentimentos.»
Matilde
proibia
à sua filha expressamente e, em poucas
palavras, tudo aquilo que lhe não podia ser permitido. A
princípio Emma, assim como todos os meninos, chorava e
empregava todos os esforços para conseguir o que queria;
mas
bem
depressa conheceu que um só — não — de sua mãe
equivalia ao maior discurso; compreendeu que lhe seria
inútil chorar e pedir, e renunciou a tais meios. Sua mãe
procurava sempre novas ocasiões de exercitá-la na
obediência, e habituá-la a vencer suas inclinações
voluntárias. Se era preciso cumprir
qualquer
determinação
que recebesse, Emma abandonava sem demora seus
brinquedos
e prazeres;
não
colhia no jardim uma flor e nem
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um fruto sem que sua mãe lhe permitisse, e esta não se
comprazia de multiplicar ordens e proibições, ao contrário
aborrecia a esses preceptores
que
gostam
de
acumular
seus
discípulos de contínuas e inúteis advertências a ponto de
enlouquecê-los. E na verdade
bastam
alguns
preceitos,
mas
é necessário segui-los; Deus apenas ordenou o cumprimento
de dez mandamentos para
tornar
os
homens
bons
e felizes,
equemosobservarpoupar-se-áadezmiloutros.
A
prudente
Matilde
achou
que
para
ensinar
à sua
filha
a submissão e a obediência era necessário empregar
recompensasepunições.Deusassimofazconosco.
Matilde tinha uma grande satisfação em repartir com
sua cara filha os mais belos frutos do jardim: porém, era
preciso que Emma os tivesse merecido. «Se tu recitares sem
errar os versos q ue eu te dei para aprender, ganharás estas
belas cerejas.» De
outra
vez
dizia-lhe:
«Se tu fizeres bem o teu
bordado, eu te darei este belo cacho de uvas.» Emma acabava
depressa
a sua tarefa, e então sua alegria era muito maior do
queseelativessecomidoestasfrutassemastermerecido.
Se Emma cometia qualquer falta, ela não tinha
permissão de ir ao jardim com sua mãe. Isto
era
suficiente
para castigá-la, e depois já não era mais necessário usar
desterigor.
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Se Matilde dizia com seriedade: «Eu nunca te julguei
capaz disto, não me dês este desgosto,» a excelente menina
não tinha sossego enquanto não via sua mãe com o ar
risonho.
Matilde, que nunca se via desocupada, esforçava-se
para que sua filha seguisse o seu exemplo. Quando ia
trabalhar,
era preciso que Emma também fosse. A boa mãe a
contemplava
então
com
prazer
e dizia a si mesma: «O zelo de
Emma não está ainda bastantemente desenvolvido para os
trabalhos domésticos, mas já é uma grande vantagem para a
sua idade. Ele a preserva de ociosidade e de maus pensamentos,
e a habitua docemente ao trabalho.» Com efeito Emma já
sabia bordar
muito
bem;
e fez
sob
a direção
de
sua
mãe
um
vestido de
cambraia
que
ela
mesma
tinha
bordado
com
um
prazerinconcebível.
Um rico pano que seu pai
lhe
tinha
trazido
de
uma
de
suas expedições, não lhe causou tanto prazer como este
lindovestido.
Como era então costume na Alemanha, Matilde
encarregava-se de cuidar da cozinha; ela esforçava-se para
conservá-la sempre limpa e asseada, e ocupava Emma
sempre em alguma coisa: ou em escolher ervilhas, ou em
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fazer pastéis. Porém a ocupação mais agradável para
Matilde era a do jardim; além disso o exercício ao ar livre
lhe era muito salutar. Emma tomou logo o mesmo gosto
pela cultura do jardim. Matilde deu-lhe uma porção de
terreno para cultivar, e para esse
fim
lhe
mandou
fazer
um
leve ancinho, um elegante regador e outros bonitos
instrumentos de cultura. E então, desde os dias em que a
primavera faz florescer o pecegueiro até ao fim do outono,
quando as árvores perdem as suas folhas, Emma tinha
sempre alguma coisa a fazer. Com o maior prazer ela
plantava as sementes, multiplicava
as
plantas
novas,
regava
os
legumes que começavam a crescer, arrancava as parasitas
que podiam embaraçar o desenvolvimento daquelas, e
trançavaasestacasdosaltospésdasplantastrepadeiras.
Quando estes legumes adubados por ela eram
apresentados pela primeira vez na mesa, sua satisfação
era
inexplicável, e parecia não ter comido ainda um prato tão
saboroso. «Eis-aí, lhe dizia sua mãe, os doces frutos do teu
trabalho. Assim Deus recompensa o zelo tanto dos pequenos
como dos grandes. O circuito deste castelo outrora não era
senão um deserto, o trabalho o tornou num rico jardim.» Mas se
Matilde
velava
sempre
para
que
sua filha nunca deixasse de
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ter alguma ocupação, se ela sobretudo aplicava-se a variar
suas ocupações, a fim de que a uniformidade a não
enfadasse,tambémpermitiamomentosdedescanso.
Ela recebia duas ou três vezes por semana visitas de
algumas meninas de
sua
idade,
pobres,
porém
bem
criadas;
uma delas chamava-se Júlia, que se distinguia
principalmenteporseubomcoração.
Emma regalava sua amiguinha de leite, maçã e doces;
empregavam algum tempo em bordar, e então iam brincar
no quarto de Emma, ou passear no jardim ou na horta.
Porém Matilde não as perdia de vista, e sem que elas a
apercebessem, ouvia todas as suas conversações. Ela
consentia nos brinquedos, mas sabia torná-los instrutivos.
Obrando desta maneira, teve a satisfação de ver sua filha
sempre alegre e contente, coisa que ela julgava da maior
importância numa boa educação.
Emma
era
sempre
feliz,
e
por consequência sempre pronta ao trabalho e disposta ao
bem.
Entretanto,
o pensamento dominante de Matilde era de
prevenir que os maus efeitos da vaidade e o prazer dos
enfeitesacorrompessem.
Um dia, Emma já era mocinha, o duque veio a
Tanemburgo
visitar
seu
amigo
Edelberto. Muitas senhoras e
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cavalheiros da vizinhança foram convidados; Emma devia
aparecer
com
a magnificência
conveniente
à sua dignidade,
e o seu vestido foi de um estofo rico,
guarnecido
de
pedras
preciosas. Os convidados elogiavam com entusiasmo a
beleza da jovem Emma e a riqueza de seu adorno, e lhe
dirigiram mil felicitações
e comprimentos,
os
quais
ela
não
ouviusemumsecretoprazer.
Depois que todos se retiraram Matilde lhe disse:
«Emma, os elogios q ue te dirigiram me afligiam sumamente;
pois essas visitas nada acharam em ti digno de louvar senão
estas brilhantes bagatelas q ue te adornavam e de q ue te vais
despir agora. Aqueles louvores foram dirigidos ao tecelão e ao
lapidário, e não a ti própria. Eles não acharam em tua pessoa
senão encantos corporais, q ue não provêm de ti, e cuja beleza
passa rapidamente, e um dia será tudo reduzido a pó. Grande
Deus! eu seria bem infeliz se esses fossem o único objeto de te
atrair louvores. Oh! minha q uerida Emma, esmera-te sobretudo
em alcançar virtudes q ue possam verdadeiramente honrar-te.»
Matilde parecia triste, guardando estes
ornamentos
em
um
bonito baú, destinado a este
mister.
«Ah! disse
ela,
como são
estas bagatelas ridículas em comparação a um nobre coração!
Elas são incapazes de nos fazer felizes. Os nobres sentimentos,
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as boas ações, são as únicas joias q ue neste mundo tem algum
valor.»
Porém seu próprio exemplo serviu mais para a
instrução de Emma que tudo o que ela lhe pudesse dizer.
Toda a sua conduta podia ser comparada a um espelho
brilhante, posto, para assim dizer, todo o dia diante dos
olhosdesuafilhaparalheindicaroqueeladeviaser.
Matilde era tão boa, tão dócil, tão modesta, que sua
conduta era um panegírico da bondade, da doçura, e da
modéstia. Nunca ela fazia sentir a alguém a superioridade
quelhedavamsuaposição,fortunaeinstrução.
Seu rosto meigo e benévolo nunca tinha sido mudado
pela
raiva.
Nunca falava mal de alguém, nunca palavras más
e
indignas
saiam
de
seus lábios; pelo contrário, sua doçura e
benevolência faziam sobre o coração de sua filha uma
impressão bastante forte para nunca durante sua vida se
apagar.
Havia no castelo uma velha capela cujos vidros
pintados
tanto
agradavam
a Emma; representavam cenas da
História Sagrada; Matilde ia ali muitas vezes ajoelhar-se e
rezar com tal fervor, que se podia dizer que nesses
momentos ela estava inteiramente no seio de Deus; seu
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rosto parecia como iluminado. O ato que apresentava sua
mãe orando, produzia um bom efeito em Emma, e a seu
exemplo elevava sua alma a Deus e dizia no fundo do seu
coração:
«O mais nobre, o mais puro de todos os sentimentos, é
a verdadeira piedade.» E o mais precioso livro não poderia
convencê-lacommaiseficáciadestaimportanteverdade.
Matilde era a benfeitora dos doentes, dos pobres e de
todos os infelizes. Um dia caiu perigosamente doente uma
pobre mulher, mãe de sete filhos pequenos, na aldeia
situadaaopédocastelo.
A nobre dama, recebendo esta notícia, deixou
imediatamente seu castelo para ir à humilde choupana
visitar a pobre doente, informar-se de seus recursos, e
levar-lhe tudo o que lhe fosse necessário, reanimá-la e
subministrar-lhe os remédios convenientes a seu estado; e
repetia a sua visita todos os dias. Emma devia
acompanhá-la, para familiarizar-se pouco a pouco com as
dores humanas, e para aprender a avaliá-las. Enfim, certo
dia, Matilde, visitando a sua
doente,
reconheceu
que
estava
salva, e quando esta declaração foi feita, os sete filhos, o
pobre
pai
e a doente
mesma,
misturaram
seu pranto, e o pai
exortou a seus
filhos
a ajoelhar-se
perante
a nobre
senhora,
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a quem eles deviam a salvação de sua mãe, que também
tocada de sentimentos diversos, precipitou-se a seus pés, e
os meninos beijavam as mãos e os vestidos de sua
benfeitora... Então Emma sentiu-se tão comovida, que
confundiu suas lágrimas com as deles, julgando-se muito
feliz de ter uma tão boa mãe, e fez votos de seguir seus
exemplos.
Uma educação tão
sólida
não
podia
deixar
de
produzir
bons frutos. Emma tornou-se um modelo de todas as
virtudes; ela
distinguia-se
principalmente
por
uma
piedade
sincera.
Sua ternura para com seus pais era extrema; uma
tocante modéstia, uma candura virginal e uma bondade
perfeita manifestavam-se nela. Estas qualidades preciosas
liam-se em sua figura graciosa e infantil. Seu vestuário,
elegante
no
asseio,
tinha
uma
candidez
igual
à de
sua
alma;
flores naturais ornavam seus cabelos e o corpinho de seu
vestido; eram os únicos atavios com que ela gostava de
enfeitar-se;
seus
olhos,
mais
azuis que o azul do céu, tinham
um brilho admirável; porém este brilho desaparecia sob a
doçura
do
seu olhar. As risonhas cores da mocidade tingiam
suas faces e as tornavam mais frescas do que a rosa
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desabrochada aos primeiros raios do sol. Em uma palavra,
Emma era de
tal
beleza
que
todos
que
a conheciam
diziam:
«Emma de Tanemburgo é sem contradição a mais bela moça
da Suábia; nada iguala a sua beleza, a sua modéstia, o seu
amor para Deus e seus pais, e a sua caridade para com os
infelizes.
21
22
CAPÍTULOII
H!
tudo
é transitório cá na terra! Emma não gozou
por muito tempo a ventura de possuir sua
carinhosa mãe! Ela entrava nos seus quatorze
anos quando Matilde inesperadamente caiu doente;
compreendendo
o perigo
em
que
se
achava,
não
o ocultou à
sua filha. O cavalheiro estava na
campanha. «Convém, disse
ela a Emma, enviar um portador a toda a pressa a teu pai; eu
desejara, acrescentou ela, vê-lo ainda uma vez; e fazei vir
também o bom padre Norbert. Foi ele q uem me batizou e
santificou minha entrada neste mundo, e não se recusará
socorrer-me q uando dele tenho de partir; ele me conduzirá
docemente a uma feliz morada ao pé de meu Criador e Salvador.
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Se eu me q uisesse preparar hoje para morrer, já seria tarde, a
vida terrestre não deve ser senão um preparo para aquela q ue
nos espera no Céu; é para isto q ue fomos lançados na terra;
entretanto q uando a morte se avizinha nada de melhor tem o
homem a fazer do q ue consagrar a Deus os derradeiros instantes
de sua vida, confessar seus pecados, reconciliar-se com Ele,
quemassimobedeceaospreceitosdaIgreja.»
O respeitável clérigo,
homem
de
toda
caridade,
chegou
logo. Matilde confessou-se e de suas mãos recebeu o Pão
Celestial. O ardor de sua piedade penetrou vivamente o
coração da triste Emma, e por um pouco amenizou sua
acerba dor. O digno sacerdote ajudou a enferma em suas
preces,
e falou
com
tal
convicção
da
vida
eterna, que Emma
desejoudetodoocoraçãomorrercomsuamãe.
Emma,
cuja
piedade,
ternura
e o mais
afetuoso
desvelo
faziam considerá-la um anjo,
não
abandonou
o leito
de
sua
mãe.
Passados alguns dias chegou o cavalheiro; era alta
noite; sua filha correu a seu encontro e desfez-se em
lágrimas ao chegar à escada. O cavalheiro, com o coração
traspassado de dor, entrou no quarto da doente, e
estremeceu ao ver aquela que ele tanto amava,
tão
pálida
e
24
tão desfigurada; não tardou que o seu desespero se
convertesse em copioso pranto, e Emma soluçava do outro
lado do leito; então a triste Matilde, com um sorriso de
inefável
ternura,
estendeu uma das mãos a seu esposo, e deu
aoutraàsuafilha:
«Meu bom amigo, minha Emma de minha alma,
disse
ela
com
voz
afável,
é chegada a minha última hora; não tornarei a
ver o sol nascer, mas não choreis dessa maneira! eu estou
satisfeita de ir para onde vou, é lá a alta e celestial morada de
nosso Pai; ficai convencidos q ue me não perdeis, eu vou somente
ocupar outro lugar nessa imensa morada. Nós nos tornaremos a
verainda,eentãonadapoder-nos-áseparar.»
Ela calou-se, sua fraqueza não
lhe
permitiu
dizer
mais
nada. «Meu Edelberto, replicou ela depois de alguns
momentos de silêncio, eis a nossa filha; eu ainda te não dei o
meu retrato; mas Emma, nossa filha tão q uerida, q ue é a minha
verdadeira efígie, far-te-á recordar sempre de mim; seja
portanto ela para ti a mais poderosa e a mais preciosa
recordação q ue eu te posso deixar; eu ta entrego nos meus
últimos instantes, como sob a proteção do próprio Deus. Eu
busquei educá-la o melhor q ue me foi possível, a ti pertence hoje
acabar o q ue eu comecei; corrige-a naquilo em q ue eu tive
25
alguma negligência, consagra-lhe todo o amor q ue me tens
testemunhado, e q ue do meu leito de morte te agradeço. E tu,
minha q uerida Emma, continuou ela, q ue me tens outorgado
tão doces momentos, tu q ue tens evitado todas as ocasiões de me
afligir, tu q ue tens sido sempre para mim uma filha devotada,
aceita nesta hora suprema os testemunhos de minha satisfação.
Sim, sê sempre piedosa, inocente e boa; ama sempre a Deus,
permanece fiel ao nosso divino Salvador; faze o q ue Ele nos
ensina, evita o mal; honra e preza a teu pai, ele vive no meio dos
perigos da guerra; talvez algum dia to tragam ao castelo ferido,
então toma tu o meu lugar ao pé dele; prodigaliza-lhe toda
ternura e desvelos em sua velhice, porque eu já o não poderei
fazer;sêsempreumaternafilha!...Adeus!
«Grande Deus! prosseguiu
ela
levantando
piedosamente
os olhos ao Céu, preserva-a do mal e mantém-na sempre em
bom caminho! ouve minhas últimas súplicas, atende aos
ardentes votos q ue te envia o coração de uma mãe q ue vai partir,
epermita-mevê-laumdialánoCéu.»
Opaieafilhasedebulharamemlágrimas.
A
piedosa
Matilde
tornou a pegar na mão de seu esposo
e de
sua
filha,
e ajuntando-as
lhes
disse:
«Nós três formamos
sempre neste mundo um só coração, uma só alma, e com a graça
26
de Deus permaneceremos assim estreitamente unidos na outra
vida. A morte não poderá prejudicar o nosso amor, e viveremos
eternamenteunidosnoCéuenosamaremosparatodosempre.»
Ela contemplou ainda uma outra vez seu esposo e sua
filha com a serenidade de um anjo, e sobre seu semblante
refulgiram os raios de sua próxima transfiguração. «Deus,
disse ela, me concede nos meus últimos instantes uma bem
grata doçura, graças lhes sejam dadas! Eu não posso apreciar
devidamente, minha filha, o ter-me Ele permitido mostrar-te
como felizes e consolados podem morrer aqueles q ue creram
sempre n’Ele, em Jesus Cristo e na vida eterna. Jesus Cristo não
deixa sem consolação a q uem n’Ele depositou suas esperanças;
eu tenho a morte em pouca consideração, a esperança da vida
eternabastaparaminhafelicidade.»
Neste momento levantou os olhos para um
painel
que
representava a morte do Salvador
e que
estava
suspenso
na
parede que ficava defronte de seu leito. Ela pôs as mãos e
disse com uma voz
fraca
e mal
articulada:
«Assim como Vós,
meu divino Salvador, recomendastes nossa alma a vosso Pai, eu
Vos recomendo a minha.» Ela calou-se, tornou-se cada vez
mais pálida, seus olhos ficaram fixos… já não existia!...
Emma permaneceu muda de dor, e Edelberto disse com
resignação:
27
«Assim como ela viveu, assim morreu, santamente. Sua
salvação é certa. Queira Deus assim nos levar docemente e
reunir-nosumdiaaelanoCéu.»
É
impossível exprimir a consternação de Edelberto e de
sua filha nesta triste noite, no dia seguinte e durante o
funeral.
Todos
os
habitantes
do
lugar
tomaram
parte na sua
dor. Em todas as aldeias, em todas as cabanas, foi tão
intenso o sentimento, que cada pessoa parecia ter perdido
suaprópriamãe.
O padre Norbert fez a encomendação religiosa. Ele
tentou falar à multidão que tinha acompanhado o enterro;
mas os soluços se tornaram tão estrondosos, que não foi
possível ouvir-se
a voz
do
venerando
padre,
e ele
próprio
se
afogava em lágrimas.
Enfim,
fez
sinal
ordenando
silêncio,
e
as palavras se lhe tolheram: «Quando as lágrimas falam com
tantaeloquência,eumedevocalar.
«Possamos nós viver de tal sorte q ue as almas
reconhecidas também venham verter o pranto de gratidão sobre
o nosso túmulo. Cultivemos sempre a virtude com o mesmo zelo
com q ue a cultivou aquela por q uem agora choramos, q ue
faremostambémumaricacolheita.»
28
CAPÍTULOIII
CAVALHEIRO tornou para a campanha, mas em
um dos dias do outono voltou ao castelo
gravementeferidonobraçodireito.
Emma ficou excessivamente consternada, e
experimentou por seu pai a mais
viva
compaixão;
nunca
se
afastou do seu leito; preparava ela mesma seus alimentos,
lhos ministrava, e ajudava a curar-lhe a ferida. A cura ia
lentamente; e mais tarde, quando seu pai com o coração
triste e cheio de mágoas, assentado no canto da chaminé,
conversava sobre a impossibilidade em que se achava de
preencher
seus
deveres
de
cavalheiro,
e de
prestar ao duque
o apoio de sua dedicação, Emma procurava meios de
acalmar
sua
inquietação, e vinha assentar-se junto dele com
29
seu bastidor a bordar; aí falava-lhe de sua boa mãe e
exprimia-lhe
palavras
agradáveis
e muitas
ações nobres que
não eram ainda conhecidas pelo cavalheiro, e o inqueria
acercadealgunsdetalhesdesuatemeráriavida.
Ela
sabia
persuadi-lo
a tornar
a encher o copo de prata,
um presente do pai de Matilde, e vazá-lo, ainda que não
fosse se não por amor do doador. Edelberto se deixou
insensivelmente enlevar pelas graças da conversação; seu
humor sombrio ia desaparecendo. Assim passava o tempo
comarapidezdeumsonho,apesardatristezadaestação.
No
princípio da primavera, chegou ao castelo um nobre
cavalheiro, amigo de Edelberto, que vinha-lhe pedir em
nome do duque o socorro
de
seu
braço.
Porém,
com
grande
desgosto,
Edelberto
sentia
seu
braço
ainda
muito
fraco
para
governar a lança e a espada. Todavia ele
convocou
todos
os
seus vassalos, e lhes concedeu três dias para
apresentarem-se a seu chamado. Na manhã do quarto dia,
no momento fixo da saída, ele reuniu-os na
grande
sala
do
castelo.
Revestido
de
seu
vestuário
de
cavalheiro,
ainda sem
suas armas, cujo peso o braço
não
podia
suportar,
o cordão
de ouro ao pescoço, ele encaminhou-se para o meio deles,
ordenou-lhes que seguissem o cavalheiro que tinha vindo
30
reclamar sua assistência, e lhes recomendou que nunca se
esquecessem de seu antigo valor. «Sede com o inimigo,
lhe-disse ele, bravos como os leões, mas com o camponez
inofensivo, brandos como as ovelhas.» Com lágrimas nos olhos
ele viu afastar-se o pequeno exército;
sua
vista
o seguiu
até
que desapareceu na espessura da mata. Edelberto
esforçava-se em vão para se tornar alegre; o sossego
de
seu
castelo, depois da partida de seus fiéis companheiros de
armas, o entristecia. Seu rosto era melancólico
e silencioso
quando vinha, depois do jantar, tomar o seu lugar
costumado junto da chaminé. O tempo estava triste e frio;
um vento terrível sibilava nas torres do castelo, e a chuva
batia contra as vidraças da vasta sala. Emma atiçava o
imenso braseiro; trouxe a seu pai um copo de excelente
vinho, assentou-se a seu
lado
e disse-lhe:
«Meu honrado pai,
conta-me a história, do bravo carvoeiro, q ue veio hoje de tarde
visitar-te. Já conheço uma parte de sua vida, pois ele morou
antigamente perto do castelo, e sua filha Umbelina era minha
companheiradeinfância;masdesejosabertudo.»
«A história do honesto Burcardo? disse o cavalheiro. Oh!
de boa vontade. Este homem não me fez hoje uma visita sem ter
um bom motivo. Ele bem conhece q uanto me é penoso ficar, não
31
poder marchar à testa de minha tropa. Ele também já sentiu
este pesar, pois era outrora um bravo soldado, q ue me
acompanhavaemtodasasminhasexpedições.
«Mas antes de começar minha narração é preciso te dizer
algumas palavras relativas ao cavalheiro Kunerich de
Fichtemburgo.
«O rico castelo de Fichtemburgo não te é inteiramente
desconhecido; pois das janelas de nosso salão avistam-se as
altas torres q ue se elevam sobre a sombria mata de pinhos; tu
nunca viste o cavalheiro, pois desde muito tempo q ue somos
inimigos, ele nunca me veio visitar. Seu ódio contra mim data de
muito tempo; em nossa mocidade nós servimos de pajens na
corte do duque; Kunerich já era caprichoso, vaidoso e colérico;
estes defeitos tornavam-no pouco estimado do príncipe, e a
preferência q ue me era concedida era a causa de seu ódio para
comigo. Depois de ter chegado à idade de poder suportar o peso
das armas, o duque exigiu q ue aparecessemos num torneio q ue
ele dava à sua jovem nobreza, à lança e à espada. Eu ganhei o
primeiro prêmio, era um punhal com cabo de ouro q ue me foi
apresentado sobre uma almofada de púrpura, diante do
concurso de todos os cavalheiros da Suábia, por tua mãe, q ue
era então a beleza a mais esplêndida de toda a corte. Kunerich
32
ganhou o segundo prêmio, q ue consistia num par de esporas de
ouro. Desde este dia seu ódio aumentou-se de maneira q ue não
podia encarar-me; e o elevou ao maior grau, no dia em q ue o
duque, depois desta memorável batalha q ue tu conheces, me
atou ao pescoço, em sinal de honra, este cordão de ouro;
entretanto q ue oprimiu com repreensões as mais duras o
cavalheiro Kunerich, cuja imprudência e temeridade tinha q uase
comprometidoosnossos.
«O bravo Burcardo, como meu vassalo e meu companheiro
de armas, possuía um pequeno sítio sobre os limites de muitas
possessões vizinhas das florestas de Kunerich; porém o
cavalheiro q ue criava em suas propriedades uma grande
quantidade de veados, era bem mau vizinho para um pobre
Burcardo; os veados vinham muitas vezes estragar os campos do
carvoeiro, os porcos montezes destruíam seus belos pastos. Eu
lhe aconselhei q ue os enxotasse. Uma tarde, depois de uma
caçada, voltava eu a meu castelo, acompanhado da minha
comitiva. O sol já estava posto e seus derradeiros raios
brilhavam através da mata, q uando de repente Mariana, mulher
de Burcardo, com os cabelos soltos e banhada em pranto,
lança-seameuspés,implorando-mesocorro.
33
«A pequena Júlia a acompanhava; ela ajoelhou-se junto à
sua mãe, estendendo as mãozinhas, soluçando. Seu olhar me
trespassou o coração, apeei-me e perguntei o q ue lhes tinha
acontecido.
«Eis aqui o fato. Burcardo, sua mulher e filha, estavam
comendo com todo sossego debaixo de uma árvore q ue
assombrava sua cabana, q uando de repente o cavalheiro
Kunerich, acompanhado de um grande número de pajens e
criados, apresenta-se. Os escudeiros pegaram Burcardo,
ataram-lhe as mãos atrás das costas, lançaram-no numa
carroça e o levaram. Este indigno tratamento lhe era infligido
por ter matado pouco tempo antes um veado, ainda q ue no
nosso terreno o tinha trazido ao castelo. Ora, Kunerich tinha
jurado prender este ladrão de caça, como ele chamava a
Burcardo,nasterríveisprisõesdeFichtemburgo.
«Burcardo será solto, respondi eu a Mariana, e destruirei
Fichtemburgo, este covil de ladrões; consolai-vos, e agora
retirai-vosdomeucastelocomvossafilha.
«No mesmo instante encaminhei-me com os meus
escudeiros para levar a presa ao inimigo, antes q ue pudesse
alcançar o seu castelo Mandei alguns cavalheiros à descoberta,
indiquei-lhes um lugar onde nos tornássemos a encontrar, e
34
dirigi-me a grande trote a Fichtemburgo. Meus espiões me
trouxeram logo a notícia q ue Kunerich tinha parado com sua
comitiva no moinho situado no fundo da mata, e q ue distraia-se
a tomar a excelente cerveja q ue ali se fabrica. A carroça sobre a
qual estava estendido o pobre Burcardo tinha parado adiante da
porta. Julguei q ue estávamos bastante perto de Fichtemburgo;
paramos num lugar favorável da mata por onde deviam passar
Kunerich e sua escolta. Nós os vimos chegar imediatamente,
cheios de confiança, alegres e cantando em alta voz. De repente
precipitamo-nossobreelescomarapidezdoraio.
«A lua, q ue já tinha saído, esclarecia este q uadro. Kunerich,
não estando preparado para este ataque, e tendo além disso
bebido demasiadamente, se defendeu mal, e depois de um
combatedealgunsminutosfugiucomsuagente.
«Não me era difícil prendê-lo; porém tive compaixão dele e
o deixei fugir. Louvado seja Deus! não morreu nenhuma só
pessoanocombate;asespadascruzavam-se.
«Nós soltamos Burcardo, substituímos sua espada por uma
que tínhamos conquistado, demos-lhe um cavalo, q ue se tinha
desembaraçado de seu cavaleiro na ação, e voltamos contentes e
alegres ao castelo. É impossível descrever a felicidade q ue sua
mulher e filha sentiram vendo-nos chegar, e Burcardo a meu
35
lado. E minha alegria não era menor, Oh! é bem doce o
sentimentodefazerbemaosoutros.
«Eu dei a esta boa gente um lugar no meu castelo, a fim de
garanti-la da cólera de Kunerich. Depois de algum tempo,
Burcardo foi ferido na guerra e achava-se na impossibilidade de
exercer seu emprego, porém não ficou inutilizado para o
trabalho; não q ueria comer seu pão sem o ter ganhado.
Descobriu num dos lugares mais afastados da minha mata um
pequeno vale, onde ele me declarou o desejo de estabelecer-se.
Mandei construir uma bonita casinha. Ele cultiva um pequeno
terreno, transformou o fundo do vale em risonhas campinas,
onde criava um casal de vacas, e com meu consentimento pôs-se
a fazer carvão. A terra q ue ele habita não é q uase nunca
visitada; além disso a fumaça do carvão pôs o seu rosto q uase
desconhecido, em outro tempo tão fresco. Desta maneira, ele se
julgou seguro contra os laços de Kunerich, e com efeito nunca
maisfoiinquietadodesdeestetempo.»
Edelberto acrescentou ainda alguns exemplos de
coragem e da fidelidade de Burcardo, de sorte que já era
muito tarde. A atenção de Emma tinha sido tão vivamente
cativada, que o copo de seu pai ficou algum tempo
vazio,
e
tinhamesmoesquecidodeatiçarofogo.
36
De repente um grito terrível ressoou no castelo. As
abobadas retumbaram com um ruído de armas e gritos de
combatentes. Aproximavam-se a passos
precipitados
à sala,
onde
estavam
o cavalheiro e sua filha. Edelberto levantou-se
e pegou sua espada; Emma ferrolhou prontamente a porta;
porém um golpe formidável a arrombou, e um homem
armadoapareceunasala.
«Edelberto, gritou ele com os olhos flamígeros e com
uma voz de trovão, a hora da vingança chegou enfim! Sou
Kunerich, a q uem tu te tens mostrado tantas vezes hostil, a q uem
tu tens tantas vezes humilhado. Tu vais-me pagar tudo! —
Então,
voltando-se
para
seus escudeiros, disse: — Agarrai-o e
vigiai-oatéanossasaída.
«A terrível prisão de Fichtemburgo, eis aqui a morada q ue
eulhedestino.Quantoaestecastelo,pertence-medesdejá!
«Vou escolher entre as armaduras e as espadas, os
vestuários e as coisas preciosas, o q ue me convém. Vós podeis
em recompensa de vossa coragem pilhar por toda parte,
enquanto vou me regalar do antigo vinho do cavalheiro. Mãos à
obra!emtrêshoraspartiremos.»
Emma precipitou-se aos pés do cruel Kunerich,
implorando sua graça. Porém este, sem dar atenção a ela,
afastou-se.
37
Edelberto foi encorrentado e dois
escudeiros
tomaram
conta da porta.
Kunerich
tinha
escolhido
o momento,
tanto
mais
que
Edelberto,
ferido
no
braço
direito,
não
podia
fazer
uso das armas; para pôr em execução a vingança que ele
alimentava contra este, também tinha esperado que os
bravos companheiros de Edelberto estivessem na
campanha,equeachasse-osemdefensores.
Entre a gente que compunha a guarnição do castelo,
havia um infame, que o cavalheiro tinha acolhido por
humanidade;foiestequeKunerichcorrompeu.
Ele lhe abria durante a noite uma porta secreta,
praticada na espessura
dos
rochedos,
oculta
pelos
abrolhos,
e
conduzia,
por
um
caminho
subterrâneo,
até
ao
interior do
castelo.
Os outros escudeiros aperceberam muito tarde a
invasão dos inimigos; apesar de sua resistência foram
vencidos num instante. Desta maneira pôde Kunerich
chegar de repente à sala de Edelberto, e prendê-lo
no
meio
mesmodocastelo.
38
CAPÍTULOIV
DELBERTO encorrentado, sinalando na fronte
uma viva dor, estava assentado
ao
pé
da
chaminé,
que
acabava
de
se
apagar.
Emma,
ajoelhada ao seu
lado, chorava e se lastimava; levantava suas mãos ao Céu e
seus
cabelos
soltos
ondeavam
sobre
seus
ombros.
Ela estava
aniquilada, erguia seus olhos banhados de lágrimas sobre
seu pai. Entretanto retinia o castelo com gritos, lançados por
uma soldadesca desenfreada e embriagada; ao passo que
tudo estava calmo e escuro na sala como num túmulo,
alcançado pela fraca luz duma lâmpada sepulcral. Só de
tempos em tempos Emma lançava profundos gemidos, e
dizia com uma voz que cortava o coração: «As mãos q ue
socorreram tantas vezes a inocência estão encorrentadas! Oh
39
meu Deus, tende piedade de nós! Ela caía de novo num profundo
abatimento.»
Enfim, Edelberto rompeu o silêncio: «Sossega-te minha
filha, lhe disse ele, enxuga tuas lágrimas, é Deus q ue nos
mandou esta aflição. Beijemos sua mão, q uando mesmo Ele nos
castigue. Ele nos aflige hoje e nos consolará mais tarde. Nós só
d’Ele dependemos, não nos pode acontecer nada sem sua
vontade; talvez q ue nossos inimigos trabalhem para nossa
glória. Fiquemos firmes em nossa confiança em Deus. Sim, creio
hoje q ue minha felicidade será mais garantida do q ue nunca.
Outrora contava muito com as graças do imperador e os favores
do duque. Porém estes estão atualmente ocupados consigo
mesmos, e podem apenas defender-se de seus poderosos
inimigos. Tinha muita confiança na pedra, no ferro, nos muros e
nos ferrolhos; de hoje em diante não me confiarei senão em
Deus.Eleserámeuúnicoamparo,minhaúnicafortaleza.
«Breve vamos ser separados, minha filha,» continuou
ele
depois de alguns momentos de silêncio, e aproximou-se
dela.
Sua
ferida,
magoada
pelo peso da corrente, lhe causava
umavivador.
«Ó meu pai, não fales de separação! exclamou Emma,
lançando-se a seu pescoço; eles não poderão me arrancar de
40
teus braços; eu te acompanharei até tua prisão, e tomarei parte
emtodosteussofrimentosatéamorte.»
«Não, minha filha, Kunerich não consentirá nunca q ue tu
fiques comigo, ele não me deixará esta consolação. Ainda uma
vez, vamos ser separados! escuta os conselhos de teu pai.
Procura sair do castelo para salvar teus dias de uma escravidão
vergonhosa.Umououtrodosmeuscriadosterácompaixãodeti.
«Este castelo todo pertence agora a Kunerich. Eis-te aqui, a
filha de um cavalheiro, infeliz, mais infeliz do q ue a humilde
filha dos mercenários q ue moram nas minhas terras. Porém,
ainda q ue te tanjam hoje da morada de teu pai, q ue te privem da
herança de tua mãe e de teus ricos parentes, não percas a
coragem, minha filha. Os bens temporários não merecem q ue
nos aflijamos demasiadamente por eles; nós não podemos
encará-los como nossas propriedades. Tu vês hoje com q ue
facilidade eles nos podem ser roubados; e se nós os
conservássemos durante a nossa vida, a morte viria
infalivelmentelevá-los.
«Não há verdadeiros tesouros senão aqueles q ue
acontecimento nenhum, nem mesmo a morte, possa tirar, em
comparação dos q uais o ouro, as pérolas e as pedras preciosas
não são nada… isto é, a piedade, a candura, a bondade e o
41
trabalho. Estas preciosas virtudes eram o mais rico tesouro e o
mais belo ornamento de tua prezada mãe. Conserva dela
somenteestaherança,eserásaindabastanterica.
«Se puderes sair do castelo, retira-te à casa do nosso bom
carvoeiro Burcardo. Ele e sua mulher tomarão cuidado de ti. Lá
poderás viver incógnita e segura, até q ue ele possa alcançar o
conduzir-te ao castelo de um dos meus amigos. Mas se fores
obrigada a morar em casa deles muitos anos, e mesmo a passar
tua vida inteira debaixo do humilde teto de sua cabana,
consola-te de tua sorte, reconhece q ue se pode viver e morrer
satisfeito numa choupana, e muitas vezes mais facilmente q ue
numcastelo.
«Não tenhas vergonha de cultivar a terra. Os calos de uma
mão laboriosa são mais dignos de respeito q ue as pérolas e os
brilhantes numa mão ociosa. Oh! q ue ventura agora não é para
ti o ter tua mãe te acostumado ao trabalho e ensinado a
procurar a felicidade fora dos ornamentos vaidosos, iguarias
delicadaseprazeresfrívolos?
«A oração deve acompanhar o trabalho. Nós temos um
corpo e uma alma. O corpo é feito para trabalhar, a alma para
elevar-se a Deus. O trabalho dá o pão ao corpo; a reza sustenta a
alma. Se tua mão for obrigada a regar a terra, teu coração deve
42
estar cheio de Deus. A reza enobrece o trabalho do mais
humilde,epodemesmomudaremouroofusoeoarado.
«Mas sobretudo conserva tua inocência. Foge de homens,
cujas propostas te façam corar. Não posso ser mais teu anjo da
guarda; guarda-te tu mesma! Lembra-te q ue Deus tem sempre
seus olhos sobre ti e lê no teu coração. Não obre nunca mal, não
tenhas mesmo um mau pensamento. Não te inquietes de minha
sorte. Roga a Deus por mim; sei q ue Ele não me abandonará. Ele
ouvirá tuas preces. Por mais penoso q ue seja meu destino, Ele
mo pode tornar suportável. Portas de bronze e ferrolhos são
nadaparaEle.
«Deus está presente em toda parte, menos no coração do
malvado. Ele esteve a meu lado na minha prisão; confia-te n’Ele
da mesma sorte q ue eu; n’Ele, o único amigo q ue nunca nos
abandona. Deus, como espero, me livrará um dia de meu
cativeiro; mas se é hoje a última e derradeira vez q ue tens de ver
o rosto de teu pai, se eu devo gemer toda a minha vida no fundo
de um cárcere, dá-me, ó filha a consolação na minha desgraça.
Minha Emma não esquecerá as recomendações de seu pai e de
seus antepassados. E se devesse na solidão de uma escura
prisão ouvir soar minha última hora e não ter um ouvido q ue
recebesse as minhas últimas palavras, uma mão amiga para
43
fechar os olhos, ficar-me-ia contudo este pensamento
consolador: Eu deixo uma filha virtuosa ou antes: eu não a deixo,
elairáreunir-seamimnoCéu.
«Eu te repito ainda as últimas palavras de tua santa mãe:
Sê piedosa, inocente, boa; ama a Deus e ao nosso divino
Salvador, e nunca obres mal. Se souberes q ue a morte tem
finalmente q uebrado as minhas cadeias, sabe outrossim q ue
estas derradeiras palavras serão também as mesmas q ue teu pai
te terá deixado por despedida. Sê fiel a Deus, e um dia Ele (cujos
decretos nós não compreendemos, mas q ue infinitamente bom e
sábio chamou a si tua mãe e também hoje teu pai) nos reunirá
todosnoCéu.
«Toma esta medalha e esta cadeia de ouro, q ue o imperador
me deu outrora em sinal de honra, como uma lembrança de teu
pai; não te desfaças delas, mesmo em caso de urgência. Elas te
podem ser um dia de grande importância, se perderes teu pai e
provares tua descendência da nobre raça dos cavalheiros de
Tanemburgo.
«Os símbolos e as palavras consoladoras q ue estão
gravadas na medalha são mais preciosas q ue o ouro de cujo
metal ela é feita. De um lado tu vês o olho de Deus, cercado de
raios luminosos, com esta inscrição: Quando Ele é por nós,
44
quem será contra nós? — Nunca te esqueças q ue o olho deste
divino Mestre vela sempre sobre nós, e q ue aquele q ue vive
continuamentenasuaOnipresençanadatematemer.
«Do outro lado, a cruz no meio da auréola resplandecente
com estas palavras: Triunfo a Ele te lembrará sempre o amor
d’Aquele q ue morreu por nós. O destino de todos neste mundo é
combater sofrer; porém confiando-nos em Deus e na sua infinita
clemência, obedecendo a seus santos mandamentos, praticando
o amor e a caridade, como Ele praticou, esperando a realização
de suas promessas, podemos vencer com coragem todos os
males.
Deus nos q uer experimentar agora por uma grande aflição;
mas o q ue é ela em comparação daquela q ue nosso divino
Salvador sofreu antes de alcançar sua morada de eterna
felicidade? Nós também tomaremos parte nesta glória, se
sairmos triunfantes desta luta na terra. E agora, ajoelha-te,
minhafilha,parareceberesabênçãodeteuPai.»
Emma, debulhada em lágrimas, ajoelhou-se, juntou as
mãos
e inclinou
sobre
o peito
seu
lindo rosto, que a piedade
eaafliçãoembelezavam.
O cavalheiro estendeu tanto quanto podia suas mãos
encorrentadas sobre a cabeça de sua filha, e disse: «Deus
45
todo poderoso te abençoe, e a graça de nosso divino Mestre e
Salvadorteacompanheparasempre!»
Emma levantou-se com mais resignação. Edelberto
apertou-a ainda uma vez nos seus braços e disse-lhe com
umavoztrêmula:
«Conservarei sempre tua lembrança no íntimo do meu
coração; não cessarei de rogar a Deus por ti. Promete-me não te
esqueceres nunca das recomendações q ue acabo de fazer-te;
jura-medeobservá-lofielmenteerezarpormim»
«Oh! respondeu Emma soluçando, farei com zelo tudo
que me disseres, menos uma coisa: não posso, não posso te
deixar, meu Pai: não exijas q ue me separe de ti; talvez q ue
minhas súplicas adocem este cruel cavalheiro, e o resolvam a me
deixar acompanhar-te e servir-te como filha dedicada e
obediente.»
Neste momento ouviram Kunerich ordenar a seus
companheiros que se preparassem para partir; alguns
somente deviam fazer a guarnição do castelo. Homens
armados entraram na sala, e um deles aproximou-se de
Edelberto.
Emma
lançou-se
nos
braços
de
seu
pai
e pediu
que
lhe
permitisse segui-lo. Foi em vão; arrancaram-na de seus
46
braços com violência. Edelberto foi conduzido a um pátio do
castelo, onde algumas tochas espalhavam uma luz
melancólica. Um grande número
de
pajens
segurando
cada
um um cavalo, estavam juntos no interior do pátio. Lá viu-se
o cavalo de batalha de Kunerich, coberto de brilhantes
arreios, e mordendo
um
magnífico
freio.
Lançaram
o nobre
e corajoso Edelberto numa miserável
carroça.
Dois
grandes
carros que lhe pertenciam, carregados de tudo o que lhes
tinham
roubado,
estavam
prontos
para
partir.
Edelberto viu
que seus cavalos tinham sido
tirados
da
estrebaria
e postos
nos carros. Apenas restabelecido de sua ferida, começou a
sofrer e tremer de frio nesta carroça, aberta e exposta ao
vento. Enfim, Kunerich chegou e montou a cavalo.
Escudeiros cercaram o comboio, e com gritos de alegria
passaramapontelevadiça.
Desceram
vagarosamente a colina íngreme sobre a qual
estava construído o castelo. Emma seguiu-os. Kunerich
cavalgava ao lado do infeliz Edelberto. Emma lançou-se
entre a carroça e o cavalo de Kunerich, e levantando suas
mãos para ele, lhe pediu que a deixasse
assentar-se
junto
a
seu pai. Porém Kunerich fez que não ouvia,
e nem
a olhou;
depois de terem descido a colina, Kunerich disse: «Agora
47
avancemos!» Todos esporaram seus cavalos; os condutores
dos
carros
fizeram
soar
seus chicotes, os cavalos se puseram
a galopar. Emma seguiu-os correndo apesar do vento e da
chuva até que suas forças foram consumidas e o comboio
desapareceunosbosquesenaescuridãodanoite.
Emma, que tinha saído raras
vezes
do
castelo,
e nunca
sem ser acompanhada, achava-se só numa noite escura no
meio
de
uma
campina,
atacada
pelo
vento e pela chuva, não
tendo
senão
o céu
para abrigo. Não sabia que direção tomar.
Procurou muito tempo em vão um lugar onde pudesse
passar a noite. Enfim achou um espesso bosque formado
por
tenros
arbustos,
abrigou-se
contra
a umidade
e a chuva.
Não teve medo
nenhum
de
estar
só.
A dor
não
lhe
permitia
refletir no horror de sua situação; só pensava em seu pai;
chorava, gemia, rezava, e seu desespero era tal que podia
comover
os
rochedos.
Via
banhada
de
lágrimas,
as
torres do
castelopaternoalumiadaspelosprimeirosraiosdosol.
«Oh! q ue vontade tenho eu de tornar a ver a habitação de
meus pais! Talvez q ue achasse ainda algum dos fiéis criados de
minha família q ue tivesse compaixão de mim, e me indicasse o
caminho q ue conduz à casa de Burcardo. Porém q uanto sou
infeliz! a casa onde nasci e fui criada me está agora fechada
48
para sempre. A habitação de meus antepassados está hoje no
poder de um inimigo de minha família!» Preocupada destes
tristes
pensamentos
entranhou-se
pelas
matas
que habitava
Burcardo.
Ela
conhecia o país pelas narrações de seu pai. No fundo
da mata, disse ele, se vêm elevar duas colinas íngremes
cobertas de pinheiros, e no meio delas acha-se a cabana de
carvoeiro, pouco mais ou menos duas léguas do castelo;
Emma
procurou com os olhos os dois cumes; descobriu-os e
dirigiu-se de maneira a poder passar pelo meio deles. Mas
não achou nem
caminho,
nem
trilho,
viu-se
forçada
a abrir
uma vereda pela espessura do bosque para evitar às vezes
pântanos, ou
passar
ribeiros.
A proporção
que
ela
avançava,
a mata tornava-se mais densa; e em pouco perdeu de vista
asduascolinas.
Era
mais
de
meio-dia, e não descobrira ainda nenhuma
montanha. De repente ouviu uma bulha pouco distante
dela, e no
mesmo
momento
apercebeu
um
veado
de
grande
tamanho, que fixou seus grandes olhos pretos sobre ela;
adiantou-se um pouco, abriu caminho na mata e fugiu.
Emma seguiu com coragem o trilho
do
veado.
Subitamente
ficou outra vez assustada pelo gemido de um javali; ela
49
virou-se e viu que o bicho monstruoso fossava num
pantano, mas assim que avistou-a parou, olhou-a e
ameaçou-a com
suas
terríveis
presas.
A este
aspecto
Emma,
recuando,correuapressadíssima.
Espessos abrolhos a fizeram parar; cansada e
arquejante,
assentou-se
debaixo
de
uma árvore, cujos ramos
pouco
elevados
pareciam-lhe
oferecer
um refúgio seguro no
caso que o javali tornasse a vir. Escutou com atenção, mas
tudo estava tranquilo. Entretanto este acontecimento lhe
tinha feito perder o caminho; não sabia mais para onde
dirigir-se, e por
cúmulo
de
infelicidade
o sol
se
aproximava
do horizonte. «Ah! disse Emma suspirando, eis-me aqui
obrigada a passar a noite nesta mata, onde tenho medo de
bichos ferozes.» A dor
pela
sorte
de
seu
pai
a tinha impedido
até agora de sentir a fome que ameaçava atormentá-la tão
cruelmente, que ela receava adoecer. Quase morta de
cansaço continuou a andar e alcançou uma altura donde
distinguia toda a região que a cercava. Densas nuvens
escureciamosol,quejáestavaapôr-se.
Emma ajoelhou-se e disse: «Meu Deus, tu disseste tu
mesmo: Venham a mim todos que são infelizes e eu os
salvarei.
Ah! cumpre em mim estas palavras consoladoras.» No
50
mesmo instante o sol, desprendendo-se das nuvens que
encobriam seu esplendor, dourou com seus últimos raios
uma
coluna
de
fumaça
que elevava-se no meio da mata. «Oh
Deus, disse Emma transportada de alegria, glória te seja
dada. Tu ouviste minhas orações; tu me salvaste! Deve ser o bom
Burcardo q ue faz seu carvão.» E, reunindo suas últimas
forças,encaminhou-seaolugardondeelevava-seafumaça.
Emma não se tinha enganado; era lá com efeito que
Burcardo tinha estabelecido sua carvoaria. Ela o achou
assentado
no tronco de uma árvore. Algumas estacas que ele
tinha fincado sustentavam uma pequena tábua quadrada
que
lhe servia de mesa. Seu machado e seu atiçador estavam
sobre a relva alguns passos distante dele. Burcardo
contemplava
naquele
instante
com religioso recolhimento o
pôr do sol, e cantava um Salmo, que os ecos repetiam.
Emma o ouviu
com
alegria
e apressou
seus
passos.
Quando
o honesto carvoeiro viu de longe a nossa heroína sem
conhecê-la, admirou-se de ver uma moça tão elegante
nestas florestas. Porém, apenas reconheceu-a, sua surpresa
redobrou,
levantou-se
rapidamente
e correu
a seu encontro:
«Como! sois vós, senhora, seis vós, e a esta hora?» disse ele
apertando sua mão, segundo o costume da Alemanha;
51
porém, logo envergonhado e confuso pediu-lhe perdão de
ter tocado com suas mãos grosseiras a mão tão alva e
delicada dela. «Seguramente vos perdestes! Porém chegastes
em boa hora, continuou ele gracejando, minha ceia está
justamente pronta, debaixo destes belos pinheiros. Assentai-vos
em meu rústico canapé, descansai e tomai algum refresco;
porque é preciso voltar ainda hoje ao castelo. Sou capaz de jurar
que a inquietação impedira vosso nobre pai de fechar os olhos
toda a noite.» — «Meu pai! interrompeu Emma, e os
soluços
não a deixaram continuar por alguns momentos. Ah! se
soubésseisadesgraçaq uelheaconteceu...
«A q uem, ao nobre cavalheiro? exclamou Burcardo com
susto. Se seu rosto não estivesse enegrecido pela fumaça e
pela
poeira do carvão, ter-se-ia visto nele a palidez da morte.
Oh,minhacarasenhora,falai,dizei-meoq ueaconteceu?
«Ele! exclamou Burcardo pegando no seu
machado, ele
que... mas não o amaldiçoarei. Porém, o nobre cavalheiro no
poder do cruel Kunerich.... ah! isto pode-se tornar fatal.
Contai-me como isto se passou, ainda nada compreendo. Deixei
meu respeitável senhor ontem à noite, e nos arrabaldes estava
tudo tranquilo. Como pôde Kunerich assenhorear-se de uma
fortalezaq uaseinacessívelemumasónoite!»
52
Emma assentou-se junto dele, e contou tudo o que se
tinha passado. Mas o bom homem não tardou a perceber
que ela sofria fome
e sede
de
maneira
que
não
podia
quase
falar; e lhe ofereceu com amabilidade as provisões que
tinha. Emma aceitou; e tendo passado muitas horas sem
alimento, teve uma excelente ceia com essas comidas
grosseiras,esaciouasedecomáguafrescaecristalina.
Burcardo viu isso com uma grande satisfação, e disse:
«A fome é o melhor cozinheiro q ue há, ela não se acha na mesa
dosricos,masnósospobresaencontramossempre.»
Acabada a ceia, Emma contou tudo que tinha
acontecido a seu pai. Burcardo escutava
com
a boca
aberta;
de
vez
em
quando
encolerizava-se
da
maldade
de Kunerich,
lamentava seu pobre senhor e passava as mãos nos olhos
paraenxugarsuaslágrimas.
Mas quando ouviu que Edelberto lhe tinha confiado
sua filha, ficou tão vivamente tocado desta grande
confiança,
que
não
pôde
deixar
de
verter
copiosas lágrimas,
edisse:
«Não, não, certamente, Deus não consente q ue um tão bom
senhor pereça. Deus o livrará dos infames cárceres de
Fichtemburgo; assim como Deus nos pode lançar num túmulo,
53
também nos pode tirar dele. Deixemo-lo obrar, e tudo irá bem.
Minha cara senhora, vedes aquela grande fogueira? Bem. Não
tendes mais do q ue dizer uma palavra, e eu me precipitarei nela,
poisporvósevossopaimeexporeiaq ualquerperigo.
«Porém deveis estar morta de fadiga. Nossa casa fica
muito longe daqui para lá irdes ainda hoje. Felizmente
tenho acolá uma choupana, como os carvoeiros têm por
costume terem, e é bastante espaçosa para uma pessoa.
Ei-la! Foi construída ligeiramente, e faltam-lhe mesmo as
quatro
paredes; o teto é bastante alto, porém tão sólido que a
chuvamaisfortenãopodepassar.
«Há lá uma excelente cama de musgo, um bonito tapete de
casca de árvore, q ue eu mesmo entrancei, e q ue serve ao mesmo
tempo de cortinado à cama, e de porta à cabana. Mas
asseguro-vos, q ue q uando uma pessoa tem, como vós, a
consciência tranquila e o corpo fatigado, dorme tão bem sobre
ela, como sobre uma cama de plumas, protegida de colinas de
púrpura.»
Ele conduziu a jovem castelã à pequena cabana, e
assentou-se debaixo de uma árvore sombria, em um
banco
de relva que havia ali. Esteve toda a noite preocupado do
que tinha ouvido; o que lhe causava mais pesar era
pensar
54
que o socorro que Edelberto lhe tinha prestado contra
Kunerich era a principal causa de seu cativeiro. Ele coçou
mais de uma vez a orelha, mais de uma vez levantou-se
agoniado; sem saber o que fizesse. Enfim, ajoelhou-se,
juntou
as
mãos
e no
fundo
de
seu
coração pediu a Deus que
salvasseocavalheiroeconsolassesuafilha.
Não
se
lembrou
esta
noite do sono; Emma ao contrário,
apenas
se
deitou,
pegou
no
sono e não acordou senão no dia
seguinte já tarde, ainda que um vento forte tivesse agitado
todaaflorestaeachuvativessecaídocomabundância.
55
56
CAPÍTULOV
O nascer do sol, o vento aplacou-se; as nuvens
acumuladas espalharam-se. Tudo era calmo na
natureza; os primeiros raios do sol douravam os
cimos dos pinheiros. Desde a aurora escutava o honrado
carvoeiro de
tempos
em
tempos
se
a nobre
menina
já
tinha
acordado. Com uma alegria inexplicável, ele a achava
sempreaindadormindo.
«Meu Deus! exclamou Burcardo, como sou feliz de a ver
gozar de um sono tão tranquilo! Oh! o sono é um grande
benefício. Um doce repouso nos faz esquecer os pesares; nos
descarrega por alguns momentos do fardo q ue suportamos e
dá-nos novas forças para o tornar a carregar. Meu Deus,
57
continuou ele tirando seu boné, graças te sejam dadas por
este dom precioso... o sono. O mesmo deve ser, penso eu, sua
irmã a morte, pois esta é ainda um maior benefício; ela nos livra
para sempre de nossos males, sendo seguida de mais feliz
acordar.»
Depois de alguns momentos, chegou à carvoaria Julia,
filha de Burcardo, uma mocinha tão boa quanto amável.
Trazia no braço um cesto, em que se achava o almoço, o
jantar e a ceia de seu pai. Ela viu logo nos olhos dele que
tinha chorado, e seu semblante indicava-lhe que tinha
grande pesar no coração. Julia lhe perguntou o que tinha,
porém ele lhe fez sinal que não fizesse bulha, para não
acordar
Emma;
conduziu-a
ao
banco
de
relva e lhe contou o
que tinha acontecido a Edelberto. Esta narração tocou
vivamenteocoraçãodaboaesensívelmenina.
Neste momento, Emma levantou-se, um raio de sol
penetrando através de uma abertura que Burcardo tinha
feito
na
cabana
para
poder
ver
sua
carvoaria
refletiu
no
seu
rosto
e despertou-a.
Lembrando-se de onde estava, começou
a chorar.
Quando
saiu
da
cabana,
Burcardo
e Julia
vieram
a
seuencontro.
58
«Acalmai-vos, minha cara filha,
lhe disse o carvoeiro, não
saudeis a vinda do dia com lágrimas; olhai como o céu está
puro, depois de uma noite tempestuosa; reparai como brilham
as gotas d’'água suspensas nas folhas das árvores; como o sol é
agradável e vivificante. Assim passará o temporal q ue ronca
neste momento sobre a cabeça de vosso pai e vossa; depois do
temporal vem a bonança, depois da dor a alegria. Fiai-vos em
Deus, q ue dispõe em sua sabedoria do belo tempo e da chuva, da
doredafelicidade.»
Emma
e Julia
abraçaram-se cordialmente como antigas
conhecidas; havia já muito tempo que não
se
tinham
visto,
elas ficaram bastante surpreendidas de se acharem tão
mudadas e crescidas. Julia abriu seu cesto; despejou o leite
de
uma
garrafa
num
vaso
e o pôs sobre a rústica mesa; tirou
também manteiga fresca e uns pães e aprontou o almoço.
Emma almoçou com apetite. Depois de ter almoçado e
agradecidoaDeuseaBurcardo,estelhedisse:
«Agora, minha senhora, ide em companhia de minha filha
para nossa casa, e ficai lá até q uando Deus q uiser. Entretanto,
quero refletir sobre as medidas q ue possa tomar para fazer
alguma coisa por vós e vosso pai. Ide, minha cara senhora. Deus
vos acompanhe. Quando meus trabalhos me permitirem, irei vos
59
ver. Não desconsolei-vos e não choreis tanto. A tristeza e as
lágrimas não mudam vossa sorte. Ouvis como os passarinhos
cantam tão alegremente? Eles sabem q ue Deus vela sobre eles;
isto os torna contentes. A solicitude do Todo-Poderoso não será
menor para convosco e vosso pai. Sede, q uando não alegre, ao
menos resignada. Quanto a ti, Julia, tem cuidado de dar a mão a
esta boa menina para não cair nos caminhos perigosos q ue
tendes de passar, e abraça tua mãe por mim. Agora ide, ainda
umavezDeusvosacompanhe.»
Emma
e Julia partiram; o trilho apenas traçado que elas
seguiram atravessava lugares de um aspecto selvagem,
áspero e inacessível, mesmo para os peões. Depois de uma
hora de penoso andar através de abrolhos e sombrios
pinheiros, chegaram perto de imensas ruínas de rochedos
cobertos
de
musgo,
arbustos e plantas alpestres. Uma rampa
natural conduzia ao cume desta montanha; depois de
bastante tempo e grandes esforços da parte de Emma, que
era menos exercitada que sua companheira, chegaram ao
declive oposto. As moças tinham agora debaixo dos pés
precipícios
tão
fundos
que
as entonteciam; enfim, depois de
uma
longa
e escarpada
descida,
Emma
viu
com
espanto
em
roda de si gigantescos rochedos, cujos cumes ameaçadores
60
suspensos sobre sua cabeça, deixaram apenas entrever o
céu.
«Ah! Julia, disse ela, para onde me conduzes? Receio q ue
não achemos mais um caminho para sair daqui e q ue nos
entranhemos para uma mata mais horrível ainda do q ue aquela
quenósatravessamos.»
Apenas ela tinha pronunciado estas palavras, quando
de
repente como que abrindo-se os rochedos se acharam em
umlindovale,semelhanteaumjardimadornadodeflores.
«Oh q ue beleza! exclamou Emma, isto me faz o mesmo
efeito q ue se do meio de um deserto me achasse transportada à
terra da promissão.» Esta vista lhe aliviou o coração e lhe
dava a doce esperança
de
que
Deus
a tiraria
dos
embaraços
em
que
se
achava,
e a conduziria
à felicidade, ainda que por
ásperoscaminhos.
Na altura do vale, cuja ladeira era quase insensível,
elevava-se a casa do carvoeiro, com seu teto largo e plano.
Era
quase
toda
construída
de
madeira
amarelada,
e esta cor
lhe dava uma aparência muito agradável; pinheiros com
suas sombrias folhagens e árvores frutíferas a cercavam. Um
regato claro como o cristal corria
diante
da
casinha.
O vale
em toda sua extensão era tapizado de uma relva fresca e
61
esmaltada
de
bonitas flores de todas as cores; altos rochedos
que o circundavam impediam a ação dos
ventos
nordestes,
de maneira que a primavera se antecipava! Duas vacas
pastavam nas campinas, e ligeiros cabritos monteses
corriam
sobre
as
colinas
cobertas
de
abrolhos. Perto da casa
via-se ainda um pequeno jardim bem cultivado, defendido
por
uma cerca feita de arbustos, e num dos cantos achava-se
um grande número de cortiços de abelhas, algumas galinhas
cacarejavam e esgravatavam a areia no terreiro da casa.
Emma entrou,
estava
tão
fatigada
de
andar
que
assentou-se
logo. Apercebeu que tudo à roda dela era de uma grande
limpeza, e extasiou-se com a vista deliciosa que oferecia o
vale.
Era meio dia. A mãe de Julia estava ocupada na cozinha,
mas correu imediatamente quando ouviu sua filha falar
com uma outra pessoa. Saudou a Emma com inexplicável
alegria, pensando que vinha ela fazer-lhe uma visita; mas
quando soube o que se tinha passado no castelo, verteu
copiosas
lágrimas.
Entretanto, procurou tranquilizar Emma,
tantoquantolhepermitiasuaprópriador!
«Minha filha, lhe disse ela, sede bem-vinda ao vosso
pequeno vale e à nossa modesta cabana. Vede esta casinha, q ue
62
vosso pai mandou construir, ele a fez edificar para vós, sem
saber.
«Tudo q ue há aqui vos pertence. Estai aqui como em vossa
casa, até q ue Deus ajude vós e a vosso pai recuperar vosso
castelo, o q ue deve acontecer logo. Quanto a nós, sentimo-nos
bemfelizesdeviverparavosservir.»
«Meu Deus! respondeu Emma com emoção, q ue doçura
encontrar na desgraça corações tão compassivos! Eu vos
agradeço a amizade q ue me testemunhais! Como sou feliz hoje,
porhavermeupaivostratadosemprecomafabilidade!»
Neste
momento,
a mulher
de
Burcardo teve um motivo
de desgosto tão grave para ela, que lhe fez esquecer por
algunsmomentosatristesituaçãodeEmma.
«Ah! disse
ela,
honra-me muito receber uma tal visita; não
sei o q ue hei de pôr na mesa. Justamente hoje não temos senão
carne cozida e um pirão tão duro, q ue se poderia dançar em
cimadele.
«Não sei o q ue vos ofereça. Se não fosse a hora do jantar...
vejamos, Julia, distraí um pouco esta senhora, q uero ir à
cozinha, ver o q ue poderei fazer com farinha, ovos, leite, e
manteiga.»
63
Foi debalde que Emma tentou tranquilizá-la; a boa
mulher não queria ouvir mais nada; foi para a cozinha e
voltou
depois
de
meia
hora
com dois destes pratos que só se
fazem no campo, mas que tinham na verdade excelente
vista.Porémtevedeapresentardesculpas.
«Meu Deus! disse ela, não temos nem vinho nem cerveja;
oferecer só água a uma senhora como vós, q ue vergonha! Estou
aflitíssima! Hoje, pela primeira vez na minha vida, sinto-me bem
infelizdeserpobre.»
«Minha boa Mariana, respondeu Emma, vós não sabeis
quanto sois rica e feliz na vossa pobreza. Não falo do vosso
alimento, a q ue deveis saúde, força e frescura, e q ue eu mesma
acho excelente; mas vós possuis alguma coisa mais apreciável
do q ue iguarias delicadas e bebidas finas, é uma vida calma e
sossegada. Como esta tranquilidade q ue se goza no vosso vale
agrada o meu coração! Que contraste com a existência no
castelo! Quantas vezes não ouvi meu pai q ueixar-se de ser
obrigado a envolver-se nos negócios de fora; q uantas vezes vi-o
importunado por príncipes em rixas uns com os outros,
entristecido pelas más notícias q ue recebia do teatro da guerra,
e enfim a derradeira e deplorável catástrofe!... Ah! regozijai-vos,
e agradecei a Deus ter-vos concedido este pacífico estado; onde
64
em lugar da bulha do mundo e das trombetas guerreiras, não
ouvis senão o canto dos pássaros da mata e os gritos dos galos,
as campainhas das vacas e os berros das ovelhas; eu q uisera
passaraquiaminhavidainteirasemeupaiestivessecomigo.»
65
66
CAPÍTULOVI
LGUNS dias se tinham passado sem ser visto
Burcardo; a última vez em que Julia lhe tinha
levado a comida
ele
lhe
disse
que
era
forçado
a ir
à cidade vender seu carvão, e que
esperava
abraçá-la
breve;
mas ainda não tinha voltado. A inquietação já se tinha
apoderado dos espíritos dos habitantes da cabana, quando
de repente ele
chegou;
trazia
um
magnífico
cabrito
montês,
que tinha caçado, depositou sua carga no chão e saudou a
pequena sociedade, que sua chegada elevava ao cúmulo de
alegria.
«Vendeste bem teu carvão, meu amigo?» lhe perguntou
suamulher.
67
«Que me importa o meu carvão, disse Burcardo, seria o
menor de meus cuidados, se minhas mais belas esperanças não
se tivessem desfeito em fumaça. Dei bem passos q ue não vos
quis contar antes; fui procurar os cavalheiros q ue à espada do
cavalheiro Edelberto tinham recorrido antigamente.
Supliquei-lhes q ue fossem destruir o castelo de Kunerich e livrar
com mão armada nosso bom senhor, ou ao menos atacar
Kunerich na caça, apoderar-se de sua pessoa e carregá-lo de
ferros até q ue soltasse Edelberto e restituísse todas as suas
riquezas. Porém todos os meus rogos foram baldados.
Responderam-me q ue Kunerich era muito poderoso, q ue a
empresa era bastante perigosa e as coisas poderiam sair mal;
que era preciso esperar q ue os outros amigos do cavalheiro
voltassem da guerra, e então talvez se pudesse fazer uma
tentativa. Ah! q ue desespero não foi o meu! Não me restou senão
dizer q ue vós estáveis na nossa casa, porém não me veio à ideia
pedir-lhes um asilo para vós nos seus castelos. Mas não, muito
melhorvosseriaficardesconosco;aomenosrefletinisso.»
«Já tenho refletido, respondeu Emma. Prefiro mil vezes
moraraqui,seq uereisterabondadededar-mehospitalidade.»
«Dar-vos hospitalidade!
exclamou
o carvoeiro comovido;
credes q ue já nos esquecemos do q ue vosso pai me fez de
68
arrancar-me das mãos do terrível Kunerich e do asilo q ue nos
deu no seu castelo? Nossa casa, nossos campos, enfim tudo o
que possuímos foi ele q ue nos deu. Seríamos as mais ingratas
pessoas do mundo, se esquecemos tais benefícios. Não, não
seremos tão ingratos. Eu substituirei vosso pai; minha Mariana
e minha Julia vos cercarão de cuidados; finalmente faremos todo
o possível para vos tornar este retiro suportável. Crede: é para
nós uma inexprimível alegria o podermos prestar alguma coisa
a uma tão boa e encantadora moça, à filha do nosso benfeitor e
senhor.»
Eletornouapegarnocabritomontêsedisse:
«Há dias tendes tido um simples alimento; eis aqui uma
boa ceia; eu mesmo preparo-a, isto me aconteceu muitas vezes
quandoestavanacaçacomvossopai.»
Dizendoestaspalavrasfoiparaacozinha.
No dia seguinte, fez muitas mudanças na pequena
habitação para dar a Emma
um
aposento
capaz.
Arranjou
e
decorou o mais belo quarto
para
ela,
e disse
com
satisfação
depoisdeterultimadosuaobra:
«Eis-vos aqui instalada, minha senhora; tendes agora um
teto e um abrigo. Quanto à comida, não vos inquieteis; toda a
caça q ue existe nestas matas pertence a vosso pai, tereis com
69
abundância cabritos monteses e lebres, patos e galinhas, e
mesmoseq uiserdes veadosejavalis.»
Depois; acompanhado de Mariana e Julia, conduziu
Emma ao vale; mostrou-lhe seus campos e suas campinas,
exaltando a generosidade de seu pai; igualmente lhe
mostrou seu jardim, e Emma alegrando-se à vista das
abelhas,
Burcardo
lhe
fez presente dos mais belos cortiços; e
como o inverno tivesse sido favorável para as abelhas, ele
lhe trouxe dois favos de cera, alvos como a neve; e donde
corria o mel que brilhava
como
ouro.
Nunca
voltava
de
sua
carvoaria sem lhe trazer alguma coisa: ora morangos
suculentos,oraumpratodetortulhos.
De uma vez
lhe
trouxe
duas
pombas,
e fez
mesmo
com
muito
trabalho
uma
gaiola
para
elas.
Uma
outra
vez
chegou
com um
cabrito
montês
muito
pequeno,
que
o seguia
como
um cão; ele
o tinha
domesticado
para
Emma;
a quem
o deu
imediatamente. Quando Burcardo passava alguns dias em
casa, sabia distrair Emma de seus pesares; falava-lhe das
nobres ações
de
seu
pai;
contava-lhe
atos
de
piedade
de
sua
digna mãe; enfim muitas coisas que lhe eram ainda
desconhecidas. Todas estas narrações eram para ela tão
agradáveiscomoconsoladoras.
70
AboaMariananãocediaaseumarido.
Cuidou logo com um zelo maternal em dar-lhe roupa
branca e tudo que lhe era necessário. Cortou algumas
camisas e lhe deu linhas para fazer meias; e só sentia que
estas coisas não fossem bastante finas para uma senhora
comoela.
Mariana tinha passado muitos meses a tecer um belo
vestido; quando acabou fez dele presente a Emma e
imediatamente
esta
o estendeu
sobre a relva perto do regato
para alvejar. Estes pequenos presentes eram muito
agradáveis para ela; primeiro porque tinha grande
necessidade, e segundo porque isso lhe dava uma útil
ocupação.
Julia era para a infeliz Emma uma amiga fiel e
agradável. Trabalhavam e recreavam-se juntas. Emma lhe
ensinava a coser e a bordar, ocupavam-se em pequenos
serviços domésticos, em cuidar do jardim, de que Emma
muito gostava, apesar que não se visse ali senão legumes
indispensáveis,
como
couve,
nabos,
ervilhas, alfaces, feijão e
cebola, e como ornamento flores amarelas,
rosas,
violetas
e
saudades. Passeavam juntas nas campinas perto do regato,
cujas águas eram mui belas e puras; contemplavam com
71
infantil prazer os ligeiros peixes que folgavam naquelas
límpidas águas, e lhes deixavam às vezes miolo de pão;
paravam também para ouvir o canto dos numerosos
pássaros, cujos diferentes nomes Julia ensinava a Emma;
colhiamamoraseoutrasfrutas.
Porém, a tranquilidade de Emma era sempre
acompanhada de muitas perturbações; a lembrança de seu
pai a seguia por toda parte. Acontecia muitas vezes que
ignorando-se para onde ela tinha ido, era
depois
de
muitas
procuras encontrada no fundo de um bosquezinho ou no
oco de um rochedo mergulhada na mais profunda dor,
orando por seu pai. Seus pesares aumentavam de dia em
dia; só era feliz quando a boa gente com quem morava
formava projetos com ela para aliviar a situação de seu pai, e
mesmo
para
terminar
sua escravidão. Um domingo estavam
todos os quatro na mesa, e o livramento do ilustre
cavalheiro era como sempre o assunto da conversação. O
modesto jantar depressa desapareceu e não restava mais
que um prato de belos tortulhos amarelos como ouro, e
fritosemmanteiga.
Burcardo, que sabia muito bem distinguir os bons
tortulhos dos maus, os tinha escolhido mesmo com um
72
cuidado particular para os oferecer a Emma que os
apreciava
muito.«Comei,
lhe disse ele, isto é um prato q ue não
nos custa nada, bem q ue as pessoas de q ualidade lhe dão a
maior importância em suas mesas. Antigamente levava eu
muito deste legume à vossa casa, assim como um de meus
camaradas q ue morava no outro lado de Fichtemburgo, os
mandava sempre a este castelo. Uma de suas filhas entrou logo
de criada na casa do porteiro, porém a mulher deste, q ue é um
verdadeiro demônio, tangeu-a depois de alguns dias, e então
meu camarada, zangado, jurou não mandar mais tortulhos a
Fichtemburgo e ao castelo; agora pedem ali por muito favor o
fornecimentodetaislegumes.»
Emma, que até então tinha escutado em silêncio,
levantou-se e exclamou com transporte: «Meu Deus,
orientai-me neste momento. Vou vestir-me como se fosse Julia,
irei levar tortulhos a Fichtemburgo; esforçar-me-ei para ganhar
as boas graças dessa mulher q ue vela nas portas do castelo,
entrarei no seu serviço e farei todo possível para ver meu pai,
aliviar sua dor e mesmo despedaçar suas correntes. Ó meu
Redentor! disse ela com as mãos postas e olhando com
entusiasmoparaaceia,a
bençoaiesteprojeto!»
73
Burcardo
abalou
a cabeça,
dizendo: «Não, não é possível!
Vós uma ilustre menina vivendo sempre no meio da grandeza,
amor e desvelo, como poderia vosso delicado corpo suportar o
grosseiro e pesado serviço de uma criada, e vossa nobre alma,
como viver em contato com pessoas q ue não tiveram a menor
educação! Ah! meu Deus, não permitais q ue meus olhos vejam a
filha do ilustre cavalheiro de Tanemburgo, esta jovem tão
virtuosa, humilhada e confundida com as mais rústicas
pessoas!»
Emma combateu todas estas dificuldades, e disse: «A
vontade de ver meu pai, de minorar seus sofrimentos, e a
esperança de salvá-lo um dia, é q ue me faz tomar esta firme
resolução, e isto me dará força para suportar o mais humilde e
pesadotrabalho.»
Ela falou com uma eloquência tão persuasiva, que
Burcardofoienfimobrigadoaceder.
Emma saiu e voltou depois de alguns momentos num
vestuário de Julia, o qual era muito próprio e ajustado. O
corpinho escarlate e a saia verde, a golinha e o avental
branco pareciam terem sido feitos para ela, e mesmo o
chapéu redondo de palha lhe assentava muito. Julia e sua
mãeficarampasmadasdeverEmmametamorfoseada.
74
«Estes trajos vos servem muito bem, disse Mariana, porém,
vosso lindo rosto tão alvo, e vossas mãos tão delicadas,
contrastam singularmente com eles. Ver-se-á infalivelmente q ue
longe de serdes a pobre filha de um carvoeiro, sois uma senhora
nobre.»
Porém Burcardo lhe ensinou um meio
de
trigueirar
as
mãos e as faces, usando
de
uma
preparação
que
facilmente
desaparecia lavando-se com água. Ela o experimentou, e
Julia
e Mariana disseram logo: «Oh! agora ninguém vos poderá
conhecer.»
Emma queria sem falta ir no outro dia mesmo a
Fichtemburgo,
e receava
que
uma
outra
não se apresentasse
primeiroqueela.
«Bem, executai vosso projeto, q ue me parece agora uma
inspiração divina,
disse
Burcardo.
Vou já procurar os melhores
tortulhos amarelos e cinzentos, e secarei uma q uantidade deles.
Julia vos acompanhará além da mata até uma pequenina colina
sobre a q ual elevam-se três cruzes de pedra, desse lugar vê-se
Fichtemburgo, e não se pode perder mais o caminho. Aí Julia
pararáparaesperaravossavolta.»
No dia seguinte, muito cedo, Emma estando pronta
para partir, ajoelhou-se no seu quarto, pôs as mãos e disse
75
com a voz trêmula de emoção: «Meu Deus, eis-me aqui em
traje de criada, por amor de meu pai; encaminhai meus passos e
ajudai-me em semelhante empresa para q ue meus mais
ardentesvotossejamcoroadosdefelicidade!»
Depois tomou a cesta cheia de tortulhos. Julia levava
uma outra com provisões de boca. Burcardo e sua mulher
abençoaramEmma,elhederambonsconselhos.
Choraramquandoavirampartir.
«Ah! boa e terna filha! disse
o carvoeiro, seu projeto deve
realizar-se, ou q ue significaria então a promessa q ue Deus vos
feznoq uartomandamento.»
76
CAPÍTULOVII
S duas jovens alcançaram sem obstáculo a
extremidade da mata, que até aí as tinham
separado do mundo inteiro. Emma sentiu um vivo
aperto de coração, avistando as altas torres de
Fichtemburgo.
«Talvez,
disse
ela
a si mesma, seja naquela torre q ue geme
meupai!
«O q ue estará ele fazendo? Não estará sua saúde
arruinada?Ospesares,asânsiasdaprisãonãooterãomorto?
«Ah, se pudesse ainda vê-lo! Meu Deus, abrandai os
coraçõesdaquelesaq uemvouimplorar.»
Emma separou-se de Julia e seguiu seu caminho.
Depois de ter subido a montanha, que cercava o castelo, e
77
entrando no pátio, cuja porta se achava aberta, o primeiro
objeto
que
se
apresentou
a seus
olhos
foi
Kunerich
a cavalo.
Estava vestido com um magnífico traje verde bordado de
ouro,
e seu capacete adornado de longas plumas de avestruz,
brancasepretas.
Estava cercado de escudeiros e caçadores a cavalo, e
parecia achar-se pronto a partir para a caça. À vista do
inimigo de seu pai, a pobre Emma sentiu seus joelhos
tremerem,
e foi
obrigada
a sentar-se
em
um
banco de pedra
que estava diante do portão para não cair sem sentidos.
Neste momento, ressoaram as carretas e a tropa avançou.
Emma levantou-se, como a polidez exigia, mas Kunerich
não fez caso de seu comprimento; apenas se
comprazeu
de
olhar para a pobre
moça
toda
trêmula,
e passou
com
seu
ar
soberbo e altivo. Depois de sua partida, Emma tornou a
assentar-se no banco. Seu coração era a presa de
inexprimíveis
agonias.
Entretanto tomou a resolução de não
esperar que alguém se dirigisse a ela. Depois de alguns
momentos viu duas crianças que pararam a alguma
distância dela e a encararam. Emma os chamou
amigavelmente
e perguntou
seus
nomes.
Eles responderam,
e a conversação animou-se. O menino chamava-se
Henrique;
ele
abriu
a cesta que estava ao pé dela, e observou
78
o que havia dentro. A menina, a pequena Berta, brincava
com as bonitas flores que enfeitaram o chapéu de Emma.
Esta lhe deu as flores e ofereceu-lhes algumas belas peras
que a boa Mariana tinha deitado na sua cesta para
refrescar-senocaminho.
Então todos os três conversaram tão familiarmente
comosefossemirmãos.
Estasduascriançaseramosfilhosdoporteiro.
Ele estava na janela, e ficou admirado de ver uma
desconhecida conversar com os seus filhos. A linguagem
doce, a voz suave, o ar distinto da jovem camponesa, não
menosalimpezadeseutrajar,excitaramsuacuriosidade.
«Na verdade, disse ele, nunca vi uma camponesa tão
asseada, nem tão bem vestida.» Saiu, e convidou Emma a
entrarnasuasala.
«Que tendes de venda?» lhe disse ele. Emma abriu a cesta
emostrouostortulhos.
Oporteirolheperguntouquantoqueriaporeles.
«O q ue q uiserdes me dar, respondeu ela; penso q ue vós
nãoospagareismalaumapobremoçacomoeu.»
«Dizeis bem, respondeu, mas esperai um momento, vou
levá-los à cozinha e advogarei por vós; faz muito tempo q ue não
79
temos disso, eu me responsabilizo pela boa venda.» Tomou a
cestaesaiu.
Depois de alguns minutos entrou sua mulher na sala,
trazendoasopaparaojantar;àvistadeEmmadisse:
«Como entrastes aqui? Quem sois? q ue pretendeis? como
ousastes sem vos anunciar entrar na nossa casa? Sai já para
fora,ouvousoltaroscãesdopátio!»
As crianças intercederam por Emma e mostraram à
mãe
as
flores
e as
frutas
que
ela
lhes
tinha
dado. Ao mesmo
tempo, o porteiro voltou com a cesta vazia e o dinheiro na
mão.
«Que tendes? disse
ele
à sua
mulher, ela é uma boa moça,
eu mesmo a mandei entrar; já pensei, temos precisão de uma
criada, ela poderia desempenhar bem nosso serviço. Mas se não
mudardes,nuncapoderemosteruma...»
«Isto é outra coisa, respondeu a mulher, ela pode ficar;
não tenhais raiva de mim, minha filha, se me zanguei, é porque
nós temos a obrigação de examinar todas as pessoas
desconhecidasq ueentramnocastelo.»
«Tendes razão,
respondeu
Emma, não podíeis adivinhar o
que me trazia aqui. Obrei mal em ficar só nesta sala; também,
em tais circunstâncias aprovo vossa cólera, e vos peço perdoeis
minhaousadia.»
80
Estas
palavras
agradaram
a esta
mulher
que
gostava de
terrazão.
«Uma vez q ue repartistes vossas frutas com meus filhos,
lhe disse ela, é justo q ue tomeis parte no nosso jantar.
Assentai-vosecomeiconosco.»
Emma
não
se
deixou
rogar,
porém
as
duas crianças lhe
deram tanta ocupação que ela apenas pôde meter um
bocado
na boca. Entretanto, longe de se aborrecer deles, lhes
falava
com
as
mais dóceis maneiras, respondendo a todas as
suas perguntas e lhes testemunhando tanta
amizade,
que
a
mãeficouencantada.
Quando Emma pegou em seu cesto para se ir embora as
duascriançasdisseram:
«Nãovosretireis,ficaiconosco.»
«Sim, e também me daria prazer se q uisesseis ficar,
acrescentouamãe;n
ãopodeisentrarnomeuserviço?»
«Oh, de todo o meu coração, respondeu Emma, e vos
servireifielmente.»
«Bom! replicou
a mulher,
voltai à vossa casa, e falai disso
a vossos pais. Se eles convierem também, podeis começar o
nossoserviçonodomingopróximo.»
Ela lhe perguntou
ainda
quanto
exigia,
e deitou
na
sua
cestadiversasprovisões,econcluiu:
81
«Levai
isto
a vossos
pais, que eu mando, e Deus vos leve
empazàvossacasa.»
Emma lhe agradeceu com efusão, e voltou com o
coraçãocheiodealegriaatomarocaminhodamata.
Julia estava assentada a alguma distância das três
cruzes debaixo de uma aveleira, onde se distraía a fazer
meias. Assim que viu Emma levantou-se e correu a seu
encontrodizendo:
«Graças a Deus q ue voltastes; deveis estar muito fatigada, e
também estareis com fome. Assentai-vos na relva, perto de
minhacesta,paravosrefrescar,econtai-meoq uesepassou.»
Emma a seguiu e Julia tirou logo da cesta alimentos
frugais.
«Minha boa Julia, lhe disse Emma, esperaste por mim
para jantar, não tocaste em nada; come agora. Quanto a mim, já
jantei; q uero me assentar alguns minutos junto de ti. Mas
apressa-te, q ue a noite não nos surpreenda neste caminho, eu te
ireicontandooq uesepassou.»
«Com prazer, respondeu Julia, e ambas seguiram,
depoisdeJuliaterjantado.
No meio da mata, quando o sol se aproximava do
horizonte,
viram
encaminhar-se
a elas
Burcardo
e Mariana,
82
que começavam a inquietar-se de sua ausência.
Regozijaram-se do bom resultado que Emma tinha obtido;
porém afligiam-se vivamente de serem obrigados a
separar-sedela.
O resto da jornada foi uma longa conversação
em
que
todos
tomaram
parte.
Quando
chegaram
à entrada do vale a
lua tinha saído, e prateava com seus raios a pacífica
habitação do carvoeiro. Emma recolheu-se ao seu quarto
com o corpo bem cansado, porém o coração muito alegre.
Antes
de
deitar-se
ajoelhou-se
para
dar
graças
a Deus de ter
abençoado o princípio de sua empresa, e para pedir-lhe o
bomêxito.
83
84
CAPÍTULOVIII
DOMINGO marcado para a partida de Emma foi
um dia de luto para toda a família de Burcardo.
Emma sentiu também uma dor inexprimível ao
separar-se da boa gente que a tinha tratado tão
generosamente; nào deixou sem saudades o lindo vale que
devia trocar agora por uma habitação no território do
inimigo
de
seu
pai,
em
quem
não
podia
pensar
sem
tremer;
e em uma condição em que muitos
desgostos
a esperavam.
Mas a confiança em Deus e o amor por seu caro pai
animavam sua coragem. O carvoeiro e sua mulher
acompanharam-na até à extremidade da mata, e não foi
senão depois de ter vertido muitas lágrimas e feito muitos
85
votos para a realização de seu projeto,
que
eles
a deixaram.
Quanto à Julia, como trazia a pequena bagagem de Emma,
acompanhounossaheroínaatéaocastelo.
A mulher do porteiro, Gertrudes, as recebeu com
afabilidade.
«É bom,
disse ela a Emma, terdes cumprido vossa palavra.
Assentai-vosaíambas,q uerovoshospedarcomodevo.»
Emma
abriu
a cesta
que
trazia
no
braço,
e lhe
ofereceu
da parte de seus supostos pais alguns embrulhos de
linhas
muitofinas.Estepresenteagradousumamenteàsuaama.
«Vossospaissabemviver,l hedisseela,comsatisfação.»
Emma não se tinha esquecido dos meninos, tinha
trazido para eles peras, ameixas e nozes, o que
lhes
causou
muitaalegria.
Acabado o jantar, Julia chorou muito por separar-se
agoradeEmma.
«Não choreis tanto, lhe disse Gertrudes; vós podeis vir nos
visitar muitas vezes, e vossas visitas me darão sempre prazer. Se
quiserdes me trazer de tempos em tempos tortulhos de vossa
mata, vos ficarei muito obrigada, e podeis estar certa de q ue
vossotrabalhoserábempago.»
Juliaprometeuirmuitasvezes,eretirou-sesoluçando.
86
Quanto à Emma, vendo-se separada de todos os seus
amigos e protetores, no recinto de um castelo inimigo,
julgou-secomoabandonadanestemundo.
Depois
da partida de Julia, Gertrudes foi assentar-se em
uma
cadeira
de
braços,
que
estava
perto da chaminé, tomou
umarprópriodecircunstânciaedisseaEmma:
«Assenta-te ali, tenho duas palavras a dizer-te. Escuta- me
bem. Sei q ue se diz q ue me conduzo mal com minhas criadas;
que sou muito raivosa, e q ue no espaço de cinco anos, mudei
vinte vezes de criadas; é o q ue se repete em todo o país. Mas não
se diz nada dos erros q ue elas cometem; q uero-te dar uma
prova.»
Então com a voz animada, começou a retratar as
anteriores criadas. A primeira era altiva e teimosa
e queria
saber tudo melhor do que sua ama. A segunda estava
descontente de tudo; sempre ralhadora, grosseira e fazia
constantemente uma cara como se tivesse mascado
absíntio. A terceira era a preguiça em pessoa. A quarta era
golosa de maneira que não deixava nada na dispensa;
nem
leite, nem manteiga, nem queijo, nem toucinho. A quinta
era porca durante toda a semana, mas aos domingos
enfeitava-se como um pavão. A sexta era esquecida e
87
descuidada de seus deveres. A sétima era curiosa e
indiscreta,eviviaescutandonasportas.
E assim continuou ainda
por
algum
tempo,
até
que
foi
interrompidaporumabulha.
«Ora, escuta, alguém toca a campainha, disse ela; que
interrupção! isto me faz raiva, poderia te contar ainda três
horas inteiras histórias semelhantes, porém guardemos o
resto para amanhã; mas repare em todos estes defeitos, e
esforça-te em te preservar deles; espero que não faremos
desarmonia.»
Emma, que estava acostumada a julgar todas com
justiça
e doçura,
e sabia
que
não
se deve condenar ninguém
sem ter ouvido suas justificações, não fez grande caso das
acusaçõesdeGertrudes.
«Todavia, replicou, farei todos os esforços para vos
satisfazereparaevitaroserrosq ueacabaisdereferirme.»
Com efeito, Emma foi o modelo das boas criadas.
Trabalhava sem descansar, era um prazer ver com que
atividade e prontidão ela fazia tudo; nunca era preciso
dizer-se-lheumacoisaduasvezes.
Satisfazia sempre à hora fixa suas
diversas
obrigações,
e
não
esperava
ser
mandada. Via mesmo o que tinha a fazer.
88
Tinha
a casa
na
maior ordem e asseio, não descansava antes
que os utensílios da cozinha estivessem bem lavados e
lustrosos, de maneira que tocassem as vistas de quem
entrasselá.
Os
bens
de seus amos eram para ela tão preciosos como
seus próprios; era muito discreta, modesta e frugal, e
quando era repreendida sem razão, como
acontecia
muitas
vezes, calava-se, mas seu silêncio e a doçura de sua
fisionomia
adoçavam
mais o mau humor de sua ama do que
se ela se tivesse justificado. Com grande admiração de seu
marido, passavam-se dias sem que ele ouvisse a mulher
ralhar.
Porém
o serviço
era
muito
pesado
para
Emma;
a maior
parte de suas ocupações presentes lhe eram inteiramente
estranhaseporconseguintebemdurasasuportar.
Era obrigada a levantar-se muito cedo para ir buscar
lenha e água, acender o fogo,
varrer
os
quartos
e a cozinha,
espanar os móveis e mais outros serviços deste gênero; o
que ela nunca principiava sem primeiro pedir a Deus que
lhe
desse
forças
e ânimo
para
cumprir tão árduos trabalhos,
para os quais ela não havia nascido. O alimento não era
muito ruim, porém a maior parte da comida lhe era tão
89
estranha, que era preciso vencer sua repugnância para
tragá-la. Sua cama era na verdade muito limpa, mas
demasiadoduraparaumasenhoratãonobrecomoela.
Quando tinha trabalhado o dia inteiro sem interrupção,
em recompensa não recebia senão repreensões, retirava-se
triste e fatigada ao seu quarto, e era então uma grande
consolação para ela achar-se só e poder confiar as suas
dores a Deus. Abria muitas vezes a janela, contemplava o
magníficofirmamentoeexclamava:
«Meu Salvador, sofreria tudo com muito prazer se os males
demeupaipudessemserumdiaaliviados.»
90
CAPÍTULOIX
MMA tinha passado bem desconsolados dias sem
achar meios de
ver
seu pai,
e sua maior aflição era
estar perto dele e não poder falar-lhe; todavia à sua
chegada ao castelo, um raio de esperança tinha luzido em
seu coração: v iu q
ue o porteiro era ao mesmo tempo
encarregado da guarda e do alimento dos presos,
informava-se sempre do
estado dos encarcerados, e por este
meio teve a felicidade de saber que seu pai estava com
saúde. Mais de uma vez tinha pedido ao porteiro que lhe
deixasse ver os detidos; mas este lhe respondia abalando a
cabeça:
«Istoseriaimprudênciademinhaparte.»
Muitas vezes Emma não podia deixar de chorar vendo
a
tigela
cheia de uma sopa ruim, o pão seco e a bilha de água
destinadaaseupai.
91
«Ah! dizia ela suspirando, o q ue eu sofro é nada em
comparação do q ue ele padece! De agora em diante não q uero
maisdarimportânciaàminhador.»
Um dia
que
a sopa
dos
presos
estava
pronta,
o porteiro
disseaEmma:
«Segue-me, é preciso q ue eu parta amanhã, por causa de
uns negócios do cavalheiro. Quero-te mostrar as prisões; deves
de agora em diante levar comida aí. Minha mulher não tem
tempoparaisso,alémdeq ueestaocupaçãonãolheagrada.»
Pegou com uma mão no tabuleiro em que estavam as
tigelas, e com a outra a um molho de chaves, e
encaminhou-seporumcorredorescuro.
A
felicidade
de
ver
breve seu pai encheu Emma de uma
inexprimível alegria, mas ao mesmo tempo misturada de
susto; e com o coração palpitante o acompanhou; ela
resolveu não se dar a conhecer a seu pai na presença do
guarda.
«Pois, pensava ela, se os laços q ue me ligam a ele forem
descobertos,nãomeconfiarammaisachavedesuaprisão.»
Depois de ter visitado dois cárceres, o porteiro abriu
umaportadeferro,dizendo:
«Este preso é muito meigo e piedoso, é o cavalheiro
EdelbertodeTanemburgo.»
92
A pobre Emma não o pôde reconhecer;
estava
pálido
e
magro, e tinha a barba comprida;
seu
vestuário
estava
roto.
Achou-o assentado num banco de pedra e preso a ele por
uma argola donde pendiam grilhões que eram bastante
compridos
para
poder
dar uma volta no seu calabouço. Uma
grande pedra lhe servia de mesa, e perto dela havia uma
bilhaeumpedaçodepãoduro.
O bom cavalheiro estava com o braço esquerdo
encostadonamesa,eamãoesquerdasustentavasuafronte.
Perto da mesa achava-se um leito de pão roído de
bichos, com um pouco de palha
e uma
grosseira
coberta.
O
interior do cárcere era espaçoso, mas horrível; as paredes
foram construídas de
pedaços
de
rochedos,
e a abóbada
era
muitaalta.
O tempo
tinha
dado
às
paredes
uma
cor
sombria.
Uma
única janela estreita e guarnecida de fortes grades férreas
era aberta na espessura das pedras; a maior parte dessa
janela estava entulhada pela parte de
fora
por
cascalhos
de
toda a espécie; o resto era coberto de ortigas, de sorte que
uma luz muito fraca podia apenas peneirar nesse horrível
túmulo.
«Cavalheiro, lhe
disse
ele, minha criada vos trará amanhã
oalimento;souobrigadoapartir.»
93
Edelberto
olhou
para
Emma.
A seu
aspecto
lembrou-se
imediatamentedesuafilha;porémnãoareconheceu.
«Grande Deus! exclamou ele chorando, eis a figura e a
idade de minha Emma! Não me podeis dar notícias dela, meu
bom carcereiro? Não descobristes onde ela está? o q ue faz? ah!
quemmedirá?»
«Deus,
respondeu
o porteiro,
sabe onde ela está; ninguém
pôdeaindadescobrirseuasilo.»
«Assim, disse
Edelberto,
não houve um só dos cavalheiros
que se chamavam meus amigos no tempo da minha
prosperidade q ue tivessem tido compaixão de minha filha, e q ue
ativessemrecolhidoaoseucastelo!»
Edelberto pensava muito em seu fiel Burcardo,
esperava que Emma se tivesse retirado para a casa dele;
porém não quis comunicar seus pensamentos, para não
causar novas desgraças ao carvoeiro, que Kunerich odiava
mortalmente.
Contentou-seemdizer:
«Espero q ue minha filha esteja em casa de boa gente, q ue
tomarão cuidado dela e a consolarão. Meu Deus! peço-te q ue me
concedas ao menos uma coisa, é ter notícias dela antes de
morrer, então fecharei os olhos tranquilo apesar do grande
desejoq uetenhodetornaravê-la.
94
«Não sabes, continuou ele, dirigindo-se ao carcereiro,
quanto minha filha era boa para comigo, q uanto me estimava,
com q ue zelo fazia tudo q ue me podia ser agradável; nunca me
causouomenorpesar!
«E tu, minha menina, disse ele voltando a Emma, segue
seuexemplo,sêsubmissaateuspaisseelesaindaexistem.»
Emma, a quem até aí o aspecto terrível da prisão e a
palidez de Edelberto tinha gelado, começou a chorar. Seu
coração estava como despedaçado; quase que não podia
resistir a lançar-se nos braços de seu pai, e só com mui
grandeesforçodominouseussentimentos.
Edelberto não ficou pouco surpreendido de a ver tão
comovida;elhedisse:
«Talvezhápoucotempoq ueperdesteteupaioutuamãe?»
Emma, sufocada de lágrimas, pôde apenas responder,
dissimulando sua voz, que havia muitos anos que sua mãe
tinha morrido e que seu pai vivia ainda, porém que era
muitoinfeliz.
«Deus tenha compaixão dele,
disse
Edelberto;minha
cara
menina, teu coração é terno, q ueira o céu te preservar da
sedução.»
«Isto é verdade, acrescentou
o porteiro;
és muito sensível
demais. Não chores assim, senão não te poderei confiar a
guardadasprisões.
95
«Sabeis, continuou
ele
falando
ao
cavalheiro,
q ue é uma
excelente rapariga, tão piedosa, tão laboriosa e tão ativa, q ue
nãosepodeacharumaigualemdezléguasaoredor.
«Eu e minha mulher lhe somos gratos pela amizade q ue ela
tem às nossas crianças, e pelo cuidado q ue ela toma por eles. Se
minha pequena Berta se parecer um dia com ela, darei disso
graçastodososdiasaDeus.»
Edelberto contemplou a Emma com inexplicável
ternura.
«Deus te abençoe, minha filha, disse ele, e lhe deu sua
mão. Sê sempre dócil e inocente, e confia em Deus. Ele ajudará a
teu pai e lhe permitirá viver muito, para gozar a felicidade de
possuirumafilhacomotu.»
«Deus assim q ueira, respondeu Emma com a voz trêmula,
beijandoamãodeseupai,q uecobriadelágrimas.»
O porteiro saiu, e era já tempo que se retirasse, pois
Emma já não podia mais suster-se.
Não
sabia
como
sair
do
cárcere. Na
retirada
mais
de
uma
vez
tropeçou
no
corredor,
tendoocuidadodeseencostaràparedeparanãocair.
96
CAPÍTULOX
MMA passou o resto do dia entregue a tristes
pensamentos.
A figura
pálida
de
seu
pai carregada
de ferros, no fundo
de
uma
horrível
prisão,
estava
sempre diante de seus olhos. Seu coração despedaçava-se
com a ideia dos sofrimentos que padecia este tão prezado
pai; a esperança próxima de se descobrir a ele e de aliviar
suaposiçãoadoçavaporémadorqueelasentia.
Apenas
recolheu-se
ao
seu
quarto,
lançou-se de joelhos
e rogou a Deus, que até ali tinha abençoado sua empresa,
que
viesse
ainda em seu socorro e a inspirasse para consolar
e
aliviar
Edelberto.
Então
deitou-se,
mas levou muito tempo
sempoderfecharosolhos.
97
Foi acordada de madrugada por sua ama; seu marido
partiria às duas horas da manhã, era preciso aquecer seu
almoço.
Emma levantou-se docilmente, acendeu o fogo e
preparou o almoço. O porteiro comeu, louvou muito o
guisado de Emma, e lhe prometeu trazer alguma coisa de
sua viagem, se
durante
sua
ausência
não
se
descuidasse
em
seuserviço.Selouentãosuamulaepartiu.
A ponte levadiça foi levantada, um escudeiro tornou
a
levar as chaves do castelo ao cavalheiro Kunerich, que as
guardavatodasasnoites.
Tendo-se retirado Gertrudes, achava-se Emma só no
seu quarto; levantou-se devagar, para tirar das chaves
aquela da prisão de seu pai; depois tomou uma lanterna
surda, que estava pendurada no armário, e esperou
pacientemente
que
o silêncio
fosse
restabelecido no castelo;
então acendeu o pavio da lanterna e cobriu-a com seu
avental, tirou os sapatos, encaminhou-se até a porta da
triste masmorra, onde gemia Edelberto, e abriu-a com a
maiorcautela.
A lanterna não dava mais que uma luz muito fraca;
todavia Emma viu seu pai assentado na pedra perto da
98
mesa, com os braços cruzados no peito. Edelberto ficou
estupefatoreconhecendoacriadadeseucarcereiro.
«És tu, minha boa menina! disse ele, q ue q ueres a esta
horaaqui?asentinelaacabadegritarduashoras.»
«Perdoai-me vir interromper vosso repouso, respondeu
Emma com a voz baixa e dissimulada; porém como vejo,
ainda não havíeis fechado os olhos, e isto me pode servir de
desculpa.
«Queria falar-vos sem testemunhas; e esta é a razão de ter
escolhidoestahora.»
«Oh! minha filha, replicou Edelberto, é bem perigoso,
pode-te acontecer alguma coisa. Uma moça honesta nunca deve
sair à noite, deve antes fechar a porta de seu q uarto do q ue estar
agoraemmeucárcere.»
«Não tenhais medo, respondeu Emma. Todos no castelo
estão submergidos num profundo sono. Não foi senão depois de
ter refletido muito q ue vim. Deus me acompanhou, Ele está
comigo. Só tenho algumas palavras a dizer-vos. Vossa dor a
respeito de vossa filha me comoveu de maneira q ue não pude
dormir;venhodar-vosnotíciasdela.»
«Conheces Emma? exclamou Edelberto. Oh! se assim
fosse, serias um anjo descido dos céus, para me trazer a alegria
99
na minha prisão. Oh! fala, fala, onde a viste? Como está ela?
Fala,tesuplico,podesmedarnotíciascertasdela?»
«Sim, respondeu Emma, olhai, conheceis essa cadeia de
ouro,essamedalha?»
«Grande Deus! exclamou Edelberto, e pegou com as
mãos
trêmulas
nas
joias.
É a medalha q ue lhe dei no momento
de lhe dizer adeus; tinha-lhe recomendado muito q ue nunca se
separasse dela. Deves ser sua amiga, e é preciso q ue ela tenha
muitaconfiançaemtiparateconfiarobjetostãopreciosos.
«Porém seguramente ela não fez isso senão para eu
acreditar em tuas palavras; sem dúvida estás encarregada de
umaimportantemensagem.Dá-masemmaisdetenção.»
«Vossa filha nunca se separou desta cadeia nem desta
medalha,nobreEdelberto...»
Incapaz de dominar por mais tempo a emoção que
sentia no coração, Emma lançou-se de joelhos aos pés de
seu pai, pegou na lanterna, abriu-a e dirigindo toda a
claridade
para
seu rosto, que tinha lavado esta noite mesma,
mostrou a Edelberto, embriagado de prazer, a encantadora
figuradesuafilha.
O amor filial, o transporte, brilhavam em seus olhos;
seus cabelos soltos em longas madeixas douradas, vinham
100
realçar
uma
fisionomia
animada
pela
tristeza e alegria, pelo
sorriso e as lágrimas, e então disse com a voz cortada de
lágrimas:
«Ah! meu q uerido pai, olhai para vossos pés, é vossa filha
queseachaaqui!»
«Emma, minha prezada filha!...
exclamou
o cavalheiro, tu
aqui; oh! vem a meus braços. Depois de te ter visto, estas grossas
paredespodemaluir-sesobremim!»
Ele a apertou em seus braços e cobriu seu rosto de
caríciasedelágrimas.Emmachoravatambém.
«Meu pai! meu pai! meu bom pai!»
era tudo que ela podia
dizer.
Passadososprimeirosinstantesocavalheirodisse:
«Como, minha filha, pudeste chegar aqui? dize-me este
segredo. Que mau destino pode forçar minha Emma a ser a
criadadoderradeiroservodocastelo?»
Emma lhe contou tudo: a hospitalidade que ela tinha
recebido de Burcardo, o estratagema que tinha empregado
para penetrar na casa do porteiro, e finalmente o modo
comopôdechegaraseucárcere.
«E agora, disse ela no fim de sua narração, Deus ouviu
meus rogos, atendeu o meu mais ardente voto; deu-me ocasião,
101
meu bom pai, de te ver muitas vezes, de te falar e de trazer de
tempos em tempos um melhor alimento, e de te cercar de mil
outros cuidados. Oh! sou a filha mais feliz! Meu único desejo de
agoraemdianteserádetetornaravidamaissuportável.»
Edelberto olhou para o céu com os olhos húmidos de
lágrimas.
«Ah! respondeu ele, não digas a mais feliz, mas a
melhor das filhas! e eu sou o mais afortunado dos pais.
Quantas vezes acusei o destino por me ter trocado as
cadeias de ouro por estas pesadas correntes! Mas neste
momento te dou
graças,
meu
Deus;
sem
estas
provas
nunca
teriaconhecidoocoraçãodeminhafilha!
«Sou hoje mais feliz do q ue no dia q ue o Imperador me atou
essas joias ao pescoço. Sim, agora, ainda q ue atormentado por
estes ferros q ue me ferem os membros, estou mais satisfeito do
quefuinaqueledia!Deuspoderoso!
«Eu não daria esta hora, em q ue te aperto em meus braços,
minha cara Emma, por todos os tesouros do mundo. Sim,
disse
ele lançando um olhar de desprezo sobre a cadeia de ouro
que tinha cabido a seus pés, o q ue é esse metal? nada em
comparação da virtude, nada em comparação da felicidade com
que Deus a recompensa. Sim, a divisa q ue está gravada nessa
102
medalha verificou-se em ti. O olho de Deus está aberto sobre ti;
Ele te vigiou e te conduziu a meus braços; ele, cujo olhar passa
através dos mais espessos muros, me viu na minha prisão e teve
compaixão de mim; foi Ele q ue nos preparou, no meio dessa
horrível solidão, este momento de celestial felicidade. Deus é
conosco; o cavalheiro Kunerich pode irritar-se contra nós, mas
ele não foi senão um instrumento da mão do Todo Poderoso para
nosprocurarestafelizentrevista.
«É pelo caminho da dor que Deus nos conduz à
suprema ventura, eu o reconheço; Kunerich me julga no
cúmulo do desespero, quando ele passa a noite
no
meio
de
uma música estrondosa, do vinho e da dança; mas ainda
que
ele
faça
ressoar
até ao meu cárcere o som das trombetas
e a bulha dos copos, como ouvi muitas vezes à meia noite,
não trocarei minha posição com a dele. Aqui neste lugar
húmido, com água e pão estou mais tranquilo do que ele nos
seus brilhantes salões, e com seus esplêndidos banquetes;
pois ele não pôde forjar a corrente que possa
impedir
meu
espírito de elevar-se a Deus, e de procurar e achar n’Ele a
minha felicidade em cada instante da vida. Ah! minha
querida filha, aceita os elogios de teu pai, por teres, jovem
ainda, compreendido a dor
de
um
pai;
por
teres
numa
hora
103
onde tantas outras se entregam ao repouso, ao jogo e à
dança, preferido vir consolar teu pobre e aflito pai. A
desgraça te ensinará a conhecer os perigos do vício e os
encantos da virtude. Emma, sê sempre boa, ama sempre a
Deus, e segue todos os seus mandamentos da mesma sorte
que praticas o quarto, e então serás mais feliz do que no
primeirotronodouniverso.»
Emma prometeu a seu pai
seguir
seus
conselhos,
e lhe
beijou a mão em sinal de despedida;
apagou
sua
lanterna
e
saiu;otoquedealvoradaanunciavaavoltadodia.
104
CAPÍTULOXI
MMA, que tinha tingido outra vez seu rosto,
acabava de se assentar na mesa com Gertrudes e os
meninos para almoçar, quando de
repente
entrou
Kunerich na sala. Emma ficou pasmada. Desde que estava
no castelo, era a primeira vez que ele vinha à casa do
porteiro. Não julgou outra coisa senão que estava
descoberta. Com uma voz imperiosa, Kunerich disse a
Gertrudes:
«Não tenhas mais cuidado da guarda da porta, eu a
entregarei a q uatro de meus escudeiros. Vai logo para a cozinha
para dirigir as cozinheiras; pois hoje e amanhã receberei um
grandenúmerodeconvidados.»
105
Essas palavras sossegaram
Emma;
todavia
o cavalheiro
tinha
percebido
seu
pavor; porém cria que só a sua presença
a tinha produzido; sorriu com um ar contente e a encarou
amigavelmente.
Emma
foi
com
Gertrudes
para
a cozinha;
viram
chegar
durante o dia um cavalheiro chamado Teobaldo com uma
numerosa
comitiva,
e no dia seguinte Sigberto, um dos mais
bravos cavalheiros da Suábia; eram os melhores amigos de
Kunerich. Além destes gentis homens e seu
acompanhamento,
viram
chegar
uma multidão de pessoas a
pé e a cavalo. Não só a parte do castelo que habitava
Kunerich, mas também todas as casas contíguas,
achavam-secheiasdesoldados.
À
noite,
acenderam
grandes
fogueiras no meio do pátio
para fazer suas comidas; comeram, beberam e fizeram
grandebulha.
Emma compreendeu logo de que se tratava; já tinha
vistotaispreparativosparaaguerra.
E com efeito, Gertrudes, pálida como a morte, vindo
à
noitedardecomeraseusfilhos,exclamouchorando:
«Oh! meus caros filhos, rezai; é a guerra. Vosso irmão mais
velhoq uechegouontemdevepartirtambém.»
106
No
outro
dia,
antes
de
nascer o sol, as trombetas deram
sinal da marcha. O porteiro, que era um bravo soldado,
estavajácompletamentearmado.
Tinha na cabeça um capacete de ferro, uma espada
pesada
suspensa
em
seu cinturão de pele de búfalo e a lança
na mão. Aproximou-se de sua mulher e de seus filhos que
choravamamargamente,elhesdisse:
«Rezai por mim; vou correr muitos perigos, suportar muitas
fadigas;porémaesperançadevostornaravermeanimará.»
Depois de ter abraçado a família, apertou a mão de
Emma, recomendou-lhe seus meninos e foi ajuntar-se aos
outrossoldadosdeKunerich.
Teobaldo
e Sigberto, ricamente equipados, os cavaleiros
com as espadas desembainhadas, os peões armados de
longas lanças, saíram em ordem pelo portão e passaram a
pontelevadiça.Kunerichfoioúltimodacomitiva.
Quando todos os guerreiros passaram a ponte, ele
parou,entregouaschavesaomordomo,dizendo:
«Meu velho servo, conserva essas chaves dia e noite
contigo; lembra-te que não deves deixar entrar nenhum
desconhecido no castelo, e que deves vigiar meus presos.
107
Justifica minha confiança e não manches tuas respeitáveis
mãoscomalgumatraição.Adeus.»
Depoisdessaspalavrasesporouseucavaloeseguiu.
Imediatamente
a ponte
levadiça
foi
levantada,
o portão
trancadoeasgradesdescidas.
Emma e sua ama, depois da partida dos guerreiros,
passaram todo o dia na cozinha do castelo ocupadas a
limpar e arrumar os utensílios. À noite Gertrudes disse a
Emma:
«Amanhã irei com meus filhos visitar minha velha mãe q ue
mora na primeira aldeia, pois tenho a cabeça cheia da bulha das
armas e o coração aflito dos adeuses de meu marido; esse
passeio me fará bem. Não voltarei senão à noite, porque o
caminho é muito comprido para os meninos; podes descansar
todo o dia, já q ue a guarda da porta não te pertence mais. Não te
esqueças do alimento dos presos, e tem cuidado de nos guardar
uma boa ceia.» No dia seguinte antes da aurora, ela partiu
comseusfilhos.
Emma ficou satisfeitíssima; não lembrou-se de
descansar. Os dias precedentes não tinha visto seu pai senão
alguns minutos, por causa das numerosas ocupações, mas
108
hoje seus mais caros votos foram atendidos, podia passar
quaseumdiainteirocomele.
Desde muito tempo que seu espírito ocupava-se
constantemente de imaginar meios para melhorar a triste
posição do cavalheiro. Tinha começado por mudar
a roupa
branca de Edelberto, servindo-se para isso do belo
pano
de
linho que Mariana lhe tinha dado. Mais de uma vez foi
surpreendidanessadifícilocupaçãoporaltanoite.
Tinha previsto até as menores particularidades; da
linha
que ela mesma tinha fiado, fez um par de meias para o
cavalheiro.
Com a maior alegria, correu à prisão de seu pai,
carregada desses objetos que lhe deviam causar tanto
prazer;
levou-lhe um vaso com água fresca, e lhe deu a chave
que abria o cadeado de suas correntes. O bom Edelberto,
que
amava
sumamente
a limpeza,
recebeu
essas
coisas
com
muita satisfação, pelas quais há tanto tempo suspirava.
«Sinto-me reviver,» disse ele a Emma quando esta voltou
depoisdeumahoraparalheprocurarnovosconfortos.
«Agora,meupai,d
isseEmma,vemrespirarumarpuro.»
Fora do sombrio corredor que conduzia à prisão,
elevava-se
uma torre no meio de um jardim que o carcereiro
109
cultivava, e de que Emma devia cuidar durante a sua
ausência. Foi aí que Emma conduziu Edelberto; a manhã
estava deliciosa, o calor
do
sol
era
temperado
por
um
vento
fresco e agradável;
o feliz
cavalheiro,
respirando
o ar
puro
e
vendo
brilhar
o astro do dia cujos raios benfazejos não tinha
gozado desde muito tempo, via-se transportado de seu
horrívelcárcereaocéu.
«MeuDeus,e xclamouele,comoistoaquiébom!»
Emma lhe trouxe então um caldo de galinha muito
bem feito; o cavalheiro assentou-se na sombra de uma
nogueira,ondehaviatambémumbancoeumamesa.
Emma lhe disse que ele podia passar ali todo o dia.
«Desejaria muito, meu pai, ficar junto de ti, lhe disse ela, se não
tivesse muito q ue fazer; porém virei te ver frequentemente.» Ela
foi-se,
e Edelberto,
para gozar melhor da frescura da manhã,
começou a passear; o calor do sol lhe fazia um bem
extraordinário
e lhe
dava
uma
nova
vida.
Com
lágrimas nos
olhos,
deu
graças
a Deus
por
este
benefício. «O sol,
disse ele,
é um dos maiores bens q ue existem; é ele q ue aquece tudo e q ue
reanima tudo; sem este astro o mundo pareceria uma sombria
prisão.»
110
Às três horas da tarde, Emma lhe levou um excelente
jantar, e depois
voltou
para
reconduzir
seu
pai
à sua
prisão.
Ele
a acompanhou, não sem vivos prazeres. Mas qual não foi
sua surpresa entrando outra vez na masmorra; pensou
que
Emma lhe tivesse enganado de caminho e que o levasse a
um quarto do castelo. As paredes e o teto, outrora tão
enegrecidos
pelo
tempo
e tão
sujos,
estavam agora caiados e
brilhantes, e o calor deste dia os tinha quase inteiramente
secado.
Os
tijolos
estavam
lavados
e semeados
de
uma areia
fina; o cascalho
e as
urtigas
que
encobriam
a janela
tinham
desaparecido; o azul celeste brilhava agora através dos
vidros
transparentes.
A cama
estava
forrada
de
palha
fresca
e de um lençol alvo, e tinha outro travesseiro.
O ar
espesso
da prisão tinha desaparecido e era substituído pelo doce
perfume de flores. «Oh! minha Emma, q uantos prazeres me
procuras! exclamou Edelberto; com efeito o amor filial é
bastante para embelezar a existência dos pais, sua ternura pode
tornar uma prisão em um paraíso! Porém, continuou ele
olhando para o teto
e as
paredes, tu só não pudeste fazer isto
tudo; q uem neste castelo inimigo teve tanta humanidade para te
ajudar?»
111
Emma
lhe
disse:
«Existe aqui um veterano q ue foi outrora
pedreiro e q ue de tempos em tempos ocupa-se ainda de seu
ofício. A semana passada este bom homem caiu doente,
Gertrudes lhe mandou por mim tudo q ue lhe era necessário para
seu restabelecimento; e q uando meu trabalho mo permitia
assentava-me junto a seu leito para distraí-lo, e consolá-lo. Um
dia me falou com o maior respeito do cavalheiro de Tanemburgo,
e lamentou muito a sua desgraça presente. Disse-me q ue tinha
sido gravemente ferido naquela batalha q ue a imprudência de
Kunerich teria feito perder sem tua coragem, ele assegurou q ue
teria ficado no campo se não tivesses tido compaixão dele.
Ontem lhe pedi muito timidamente q ue me ajudasse a tornar tua
prisão no melhor estado. Julguei q ue ele pusesse dificuldades,
porém ao contrário aprovou meu projeto, e encarregou-se dos
mais pesados trabalhos. Se Kunerich mesmo visse
isso,
disse
ele, não poderia censurar-me de honrar um cavalheiro na
suadecadência.»
«A gratidão deste soldado, disse Edelberto, me toca
vivamente; não me lembra de lhe ter feito algum serviço. Vê,
minha boa Emma, como o bem q ue fazemos pode mesmo depois
demuitosanos,jápornósesquecido,terfelizesconsequências.»
112
Emma
arranjou
então a ceia. «Hoje cearemos juntos, meu
prezado pai,» lhe disse ela, e assentou-se junto a ele. A
comida
não
era abundante, mas em compensação excelente.
A nobre filha teve a satisfação de poder reunir na mesa os
pratos favoritos de seu pai: uma sopa de ervas, um par de
perdizes assadas, uma salada de endívias e belos lagostins
guarnecidos de folhas de iapa. Serviu ainda ao cavalheiro,
que até então não tinha bebido senão água e comido pão
duro,umagarrafadobomvinhodoRenoeexcelentepão.
«Mas pelo amor de Deus, lhe disse Edelberto lançando os
olhos para a mesa e para o leito, como, tão pobre, pudeste
arranjartudoisto?»
Emma
lhe
contou
que
Mariana
lhe tinha feito presente
do
pano,
que
no
dia
antecedente
Julia tinha vindo lhe trazer
as perdizes e os lagostins, e que seu salário e os pequenos
presentes que recebia dos estranhos, aos quais ela abria o
portão, lhe tinha servido para comprar o resto. Mas não
disse
que
se
tinha
privado
de seu único travesseiro para que
elepudesserepousardocementesuacabeça.
O nobre Edelberto ceou
com
inexplicável
satisfação
ao
lado
de
sua
filha,
e disse: «Deus te recompensará, minha boa e
ternafilha,peloteuamorateupai.»
113
Emma nunca julgou ter passado um dia tão feliz; nunca
no
curso
de
sua
vida
tinha
provado
sensações
tão deliciosas
como aquelas de aliviar o estado do infeliz Edelberto. Ela
compreendeu a justiça dessa máxima: é mais doce dar do
quereceber.
«Oh! q uantas delícias podiam procurar os ricos, disse
ela
com íntima emoção, se eles q uisessem fazer de suas riquezas
um uso mais nobre, e q uanta felicidade para os filhos q uando
podem contribuir à prosperidade de seus pais! Eles alcançam o
paraísonaterra.»
Era preciso que Emma voltasse para seu serviço e
aprontasse a ceia de Gertrudes. Retirou-se depois de se ter
despedido de seu pai. A alegria e o transporte que sentiu
Edelberto de possuir uma filha tão virtuosa e afetuosa, o
impediu muito tempo de fechar os olhos; e mesmo no seu
tranquilo sono via ainda os carinhosos cuidados de sua
Emma.
Cada dia tinha Emma uma nova surpresa para fazer
a
seu
pai.
De
manhã
lhe
trazia,
em
lugar
de
água
e de seu pão
habitual, uma tigela de bom leite, ou uns ovos frescos, ou
uma
porção
de
boa
manteiga
numa
folha
de parreira. Todas
as
vezes
que
o podia
fazer,
sem
ser
vista,
dava-lhe
um
caldo
114
fortificante, e para contentar seu coração, sem ofender a
mais exata probidade, guardava seus próprios alimentos,
dava-os a seu pai e sustentava-se da comida grosseira dos
presos. Levava-lhe todas as manhãs flores para perfumar
o
ar do cárcere, e para que ele, como não gozava da
magnificência da natureza, pudesse deleitar seus olhos
nesses
lindos
dons,
com
os
que
Deus
ornou
a nossa terra. —
Tinha mandado vender por Burcardo um par de pulseiras,
único enfeite que possuía, para poder procurar a seu pai
alguns confortos, e sobretudo para lhe comprar algumas
garrafas de velho vinho de Hungria, único capaz de dar
forçasaseupai.Finalmentenãoviviasenãoparaele.
Depois de alguns dias o carcereiro voltou à sua casa,
carregado de diferentes ordens; foi visitar seus presos; sua
surpresa foi grande quando abriu a porta da prisão de
Edelberto.
Abanou a cabeça dizendo: «Se o cavalheiro Kunerich
descobrisse isso, eu correria grande risco de ser preso. Todavia
não posso deixar de sentir uma certa satisfação. O q ue há de
mais belo q ue a limpeza? um punhado de cal e de areia, um
pouco de trabalho, tornaram este sombrio cárcere um q uarto
sadioelimpo.»
115
Voltando à sua casa disse a Emma com o maior
sangue-frio: «Escuta, Emma, não censuro tua piedade para
com o cavalheiro; eu a admiro; não a impeço, mas não a
estendas a ponto de
facilitar
a sua
fuga;
seria
uma
empresa
perdida; as fechaduras e os ferrolhos das portas e a ponte
levadiça são obstáculos insuperáveis; todavia só a tentativa
de uma evasão me poderia ser muito prejudicial. Perderia
meu emprego e meu pão, e seria tangido para sempre do
castelo com minha mulher e meus filhos; Kunerich seria
mesmo capaz na sua cólera de me
trespassar
a espada
pelo
corpo; pois jurei que os encarcerados estavam bem
guardados.Nãocausesaminhainfelicidade.»
Emma lhe assegurou antes de sua volta para a guerra,
quenuncamaisseesqueceriadesuasúltimasexortações.
116
CAPÍTULOXII
NQUANTO Edelberto achava tantas consolações
na ternura de sua filha, e Emma tanta felicidade
no contentamento de seu pai, muitos
acontecimentos se tinham passado em Fichtemburgo. O
castelo de Kunerich tinha sido até ali o teatro da alegria,
porém a desgraça, que nem as portas de ferro, nem as
pontes levadiças impediam, acabava de estabelecer-se nos
seusesplêndidossalões.
As notícias da guerra, que a ambição de Kunerich
contra
um
poderoso
cavalheiro
e seus
vassalos
tinham
feito
rebentar,
eram
pouco
favoráveis. Kunerich tinha sido ferido,
toda sua bagagem pilhada, e por pouco que ele mesmo cai
nas
mãos
de
seu
adversário. Tinha-se retirado muito doente
117
de suas feridas a um castelo afastado pertencente a um de
seus parentes. Em lugar de mandar, como antes, carros
carregados
de
despojos,
mandou
pedir
dinheiro e provisões.
Sua nobre esposa não podia ir
vê-lo
por
falta
de
escudeiros
para
proteger sua viagem. Ela não ousava sair de seu recinto;
sabia
bem
que
não
era
amor,
mas
sim
medo
que
prendia
os
vassalos
de
seu
marido
a seu dever. Os inimigos vizinhos do
orgulhoso Kunerich se tinham
já
apoderado
de
abundantes
provisões, que se tinham mandado comprar numa aldeia
vizinha, de sorte que a castelã e seus filhos estavam
reduzidos
aos
alimentos
mais
comuns
e privados
de
muitas
coisas indispensáveis. A nobre
dama,
atormentada
pela
dor
epormilcuidados,caiudoente.
Emma
tinha
ouvido
todas
essas
circunstâncias
da boca
mesmo de Gertrudes, pois Emma raras vezes sabia, e não era
senão
quando
recebia
ordem
positiva que subia aos andares
superiores,habitadosporKunerichesuafamília.
A cada degrau que subia, seu desprazer tornava-se
visível, e descia o mais depressa possível. Tinha sentido
uma emoção violenta todas as vezes que via Kunerich, e
mesmo sem querer nutria no fundo de seu coração uma
aversão profunda, não somente contra Kunerich, este
118
cavalheiro desleal que tinha despojado Edelberto de seus
bensedesualiberdade,masaindacontratodasuafamília.
Emma apressou-se a contar a seu
pai
o que
se
passava
no castelo, e falando, um sorriso apenas visível radiou em
seus lábios: «Agora, disse ela, eles aprendem a conhecer pela
experiência a dor e os pesares; agora seu orgulho será forçado a
curvar-se. Esta dama q ue viveu sempre no meio do luxo e da
abundância, sempre cercada de senhoras nobres como ela, vive
agora isolada e triste, era lugar de prazeres, só tem lágrimas e
soluços. E este cavalheiro tão altivo e arrogante, q ue nos fez a
nós, e a tantos outros, um mal infinito, prova agora a verdade
dessas palavras: serás ferido com o mesmo ferro com que
feristeaosoutros!»
Mas o nobre Edelberto não aprovou o rancor de sua
filha
contra
Kunerich.
«Como, és tu minha filha, és tu q ue ouço
falar desta maneira?
lhe
disse
ele;
um riso malicioso desfigura
teu lindo rosto tão doce! Oh não! não, minha Emma: esses
pensamentos são maus! Oh! não consintas q ue o ódio envenene
teu nobre coração! Verdade é q ue este cavalheiro se comportou
comigo de uma maneira toda traidora e inumana, odiava-me
sem motivo. Mas são-te as lições e os exemplos de nosso divino
Salvador tão desconhecidos? Não devemos amar aqueles q ue
119
nos odeiam, pagar o mal com o bem? E tu q uerias fazer recair o
mal q ue nos faz sofrer Kunerich sobre sua esposa, a q uem o
caráter duro de seu marido já torna bastante infeliz? Como
queres vingar o crime do pai nos meninos, pobres e inocentes
criaturas q ue nem sabem distinguir o bem do mal? Emma,
Emma, não consintas q ue o amor q ue tens por teu pai se torne
em ódio contra seus inimigos. Vê, eu o não odeio, e mesmo, oh!
meu Deus, disse
ele,
tu sabes q ue se me achasse numa batalha,
e visse a vida deste cavalheiro ameaçada, me precipitaria para o
salvar no meio das espadas e das lanças inimigas, e sacrificaria
minha própria vida para conservar a dele! E tu mesma, Emma,
se recobrasses tu a antiga posição, e sua esposa e seus filhos
caíssem no infortúnio e viessem mendigar à tua porta um asilo,
tu os repelirias, os reenviarias sem socorro, eles q ue não nos
fizeram nenhum mal, tu os deixarias perecer sem lhes estender a
mão?»
«Não, não, exclamou Emma
com
emoção,
não o poderia
fazer.Repartiriadeboavontadetudoq uepossuísse.»
«Duvido, lhe respondeu seu pai, porque nunca lhes
dirigiste nenhum olhar, nenhuma palavra afável, como poderias
fazer alguma coisa por eles? Tu q ue evitas até ocasião de os ver,
como poderias te decidir a lhes fazer bem? Emenda tua conduta!
120
Vai francamente a seu encontro, e se achares ocasião de lhes
fazer um serviço, faze. Não te dou esses conselhos com intenção
de ganhar os poderosos inimigos q ue nos têm em seu poder, e de
os obrigar a nos restituir os bens q ue eles nos tiraram. Se isso
fosse o motivo da nossa bondade, certo, então não teria nenhum
valor, não seria mais q ue uma miserável hipocrisia, da q ual
deveríamos corar. Não, minha filha, a verdadeira caridade, esta
flor celeste, não pode florescer no terreno ingrato do egoísmo,
não brota senão nos corações humanos e generosos, não é senão
o reflexo deste amor divino q ue consiste na essência da nossa
santa religião, e q ue deve animar todos os corações piedosos e
sinceros. Deus mesmo é o amor; ama todos os homens sem
distinção como seus filhos; faz brilhar os raios do sol sobre todos
que o ofendem, e lhes distribui igualmente a chuva e o sereno.
Quer q ue eles se emendem para herdar a magnificência eterna.
Seu divino filho deu sua vida e derramou seu sangue para nos
salvar. Nós também devemos ter amor; amar a todos os homens,
qualquer q ue seja sua condição, como nossos irmãos, procurar
ocasião para lhes fazer bem e não privar de nosso amor aqueles
que nos fazem mal; devemos mesmo sacrificar nossa vida por
eles. Nosso amor deve se elevar ao Céu. Não devemos somente
amar a Deus sobre todas as coisas, mas esforçar-nos de o
121
assemelhar em amor. Só este amor por Deus e o nosso próximo é
capaz de nos fazer alcançar um dia a bem-aventurança. Uma
almacapazsemamornãopodeserfeliznemmesmonoCéu.
«O coração susceptível de ódio não vale nada. O amor é a
origem da felicidade no Céu: é ele q ue nos cria um paraíso
mesmo. Nossa tarefa aqui na terra é implantar no nosso coração
esse amor divino semelhante a uma nobre flor; devemos vigiar
sobre ele para q ue ele desabroche com todo seu esplendor. O
amor às coisas fúteis, como as honras vaidosas, prazeres
frívolos, bens passageiros, não deixam nenhum lugar no coração
do homem para o amor divino; ele morre antes de brotar, como
uma espinha estéril. É para preservar o homem do orgulho, do
egoísmo, da ambição, dos prazeres mundanos, q ue Deus lhe
manda a dor: é por isso q ue Ele nos tirou nossa brilhante
posição, nossos bens temporários e todos os prazeres da terra
que a fortuna pode procurar. Crê, minha filha, q ue se Deus nos
humilha e aflige agora, é porque temos alguma mancha q ue a
dor deve purificar. Devemos, minha Emma, reconhecer as
intenções todas paternais do Criador para conosco, e beijar a
mão q ue nos castiga, e não nos iludir nutrindo ódio contra
nossos inimigos, e não perder a recompensa q ue Deus nos
prepara.»
122
Emma
escutava seu pai com o maior respeito e atenção.
«Tens razão, meu caro pai, lhe
disse
ela
com
os
olhos
úmidos
de lágrimas. — Oh! como sou tão pouco digna de ti! Quero
agora com o auxílio de Deus trabalhar para meu
melhoramento... dou-te minha palavra. Quero esforçar-me por
amar a Deus sobre todas as coisas, e a Kunerich, sua mulher e
seus filhos, como a mim mesmo. E se a dor puder tornar-me
melhor, a sofrerei com resignação todo o tempo q ue Deus q uiser;
pois o q ue é a curta vida terrestre passada entre aflições, em
comparaçãodarecompensadafelicidadeeterna!»
Emma cumpriu sua palavra. Não afastava-se de
propósito da família de Kunerich quando a encontrava. Os
meninos vinham às vezes brincar no
pátio
do
castelo
sob
a
vigilância
de
uma
aia;
Emma
não
fingiu
mais
não
os
ver, ao
contrário ela os saudava e lhes falava com afabilidade; e
vendo que os meninos se dirigiam a ela com infantil
confiança, imaginou fazer-lhes uma pequena e agradável
surpresa; pediu a Julia que lhe trouxesse o seu cabrito
montês, que Burcardo tinha domesticado, e as duas rolas;
deu o primeiro ao menino; e as pombas às duas meninas.
Encontrou excelentes corações nestes meninos; sentido
tê-los tratado antes com tão pouca amizade. «Oh! como
123
compreendo agora, disse ela a si mesma, o q ue meu pai diz.
Satisfaz muito mais amar e perdoar do q ue odiar e vingar.»
Emma
achou
logo
uma
nova
ocasião
de praticar as lições de
seupai.
124
CAPÍTULOXIII
Um magnífico dia da primavera sucedia enfim a um
tempo
chuvoso.
O sol
estava
brilhante;
seus
raios
douravam
com
vivas
cores
os
altos
muros do castelo, e tudo parecia ter
recobrado
uma
vida
nova.
Todos
aproveitavam esse dia para
se espalharem pelos campos e trabalhar. Teresa, a aia dos
três meninos de Kunerich, estava no pátio com eles. Havia
no meio desse pátio um poço muito fundo cercado de um
muro
de
bonitas
pedras
e suas
ligeiras
colunas sustentavam
um teto igualmente de pedra, e que, segundo o uso das
arquiteturas góticas, era decorado de rica escultura. Era
quase preciso um quarto de hora para descer o balde e
subi-lo. Os estrangeiros que vinham visitar o castelo
admiravam esse poço, como a coisa
mais
notável.
Para
lhes
125
dar uma ideia de sua extraordinária profundidade, basta
saber que deitavam-se pequenas pedras, e não
havia
um
só
dos desconhecidos que
não
ficasse
admirado
do
tempo
que
levava a pedra
arremessada
para
produzir
bulha.
Deitava-se
também uma vela
acesa
no
balde
quando
descia,
e era
uma
coisa admirável ver a claridade que dava essa luz
repercutida pelas paredes reverberando era cada uma das
gotas que pingavam do longo das paredes interiores e
brilhava como uma estrela no meio dessa escuridão
profunda.
Os
pedreiros
que
de
tempos a tempos desciam no
poço para consertá-lo e limpá-lo, tinham precisão de um
grande número de escadas, que prendiam a ganchos de
ferro pregados no muro para esse fim. Havia uma antiga
tradição que dizia, que
quando
se
chegava
ao
meio
do
poço
antes de haver um teto, via-se a meio dia as estrelas
brilharem
no
azul
do
céu.
Esse
poço
era
situado
no
meio
de
uma bela relva, cuja rica verdura produzia um agradável
contraste
com
a calçada do pátio, e belas árvores frutíferas o
cercavamdetodososlados.
Nessa relva, brincavam os três meninos. Ida e Emília, as
filhinhas de Kunerich, batiam as
mãos
de
alegria
à vista
de
bonitas sorvas de um belo escarlate, que já estavam
126
maduras. Teresa lhes colheu alguns cachos e elas
enfiaram
as
frutas
numa
linha,
chamando isso colares de coral, e com
uma vaidade infantil adornaram o pescoço e os braços
muitocontentesdesteenfeitedeumnovogênero.
Quanto ao pequeno Eberard, divertia-se a passar o
tempo em lançar pedras no poço; escolhia sempre as
maiores que podia achar e escutava com atenção a bulha
que elas iam fazer ao cair na água, e quando ouvia saltava de
alegria. Enfadado desse brinquedo, afastou-se do poço,
quando
um
pequeno
pássaro
veio
voltejando pousar sobre a
borda do balde; como havia um pouco d’água no fundo
precipitou-se dentro para beber ou banhar- se. Eberard viu o
movimento
do
pássaro.
«Esperai, disse ele às duas irmãs; vou
facilmente apanhá-lo; prestai bem atenção.» Correu e
trepou-se no bocal do poço, estendeu seus braços, porém
como eram muito curtos, inclinou-se sempre mais até que
enfim
o peso
da
cabeça
o fez
pender,
e ele
rolou
no horrível
precipício!
As irmãs lançaram gritos penetrantes. Teresa estava
naquele
momento
no
castelo;
aos
gritos das meninas correu
entretanto
assustada,
e instruída do acontecimento por elas,
aproximou-se com desespero ao poço, e contra sua
127
esperança e com grande alegria ouviu Eberard gritar e
lamentar-se. Olhou para o poço e viu que ele estava,
suspenso num dos ganchos de ferro. Ela ficou em pé sem
saber o que fazer. A castelã estava deitada e doente, e a
maior
parte
dos
criados ocupados no campo. Teresa trêmula
e pálida como a morte juntou as mãos e chamou em seu
auxílioDeuseoshomens.
Neste momento, Emma, que tinha ouvido os gritos,
acudiu. Tinha
estado
em
casa
vigiando
a filha
de
Gertrudes
quetinhacaídodoenteànoiteprecedente.
«Depressa, depressa, disse Emma a Teresa, deixai-me
subir ao balde, e tomai bem cuidado em fazê-lo descer; q uando
eu gritar, parai! vós parareis; e q uando eu gritar: para cima! vós
o puxareis. Prestai bem atenção aos meus gritos e ficai
tranquila. Com o auxílio de Deus, tenho esperança de salvar o
pequenoEberard.»
Emma com os
olhos
levantados
ao
céu
recomendou-se
a Deus e subiu ao
balde.
Um
calafrio
passou-lhe
pelo
corpo
quando ela sentiu-se descer a esse abismo; o ar frio que a
cercava gelou quase seu sangue; o sol parecia encobrir-se
diante dos seus olhos, e as trevas tornavam-se de mais a
mais espessas: finalmente alcançou o lugar onde estava o
128
menino, pôs-se a gritar: — alto, — e o balde parou.
Esforçou-se a tomar o menino em seus braços, e a
desenganchá-lo;
mas
a operação era muito difícil e perigosa.
Não
podia
fazer
uso
de seus dois braços para ela mesma não
cair no fundo do abismo;
foi
obrigada
a passar
um
deles
ao
redor da corrente: a execução de sua empresa parecia
impossível! Sentiu uma inexplicável agonia; um suor frio
corria
de
sua
fronte.
Ela
rogou
a Deus
com efusão que não a
abandonassenessevexame.
Enfimseusesforçosquaseincríveisforamcoroados.
Tirou felizmente o menino do gancho, e este lançou
seus braços pelo pescoço e se agarrou fortemente para
não
tornar a cair.
Emma
gritou
com
voz
trêmula:
— Puxai puxai.
—
Teresa
sentiu com muito prazer que o peso do balde tinha
aumentadoeapressou-seemfazê-losubir.
Os gritos lançados no pátio tinham atraído a castelã
à
janela. Ouviu
pronunciar
essas
funestas
palavras
— Eb erard
caiu no poço! — A desgraçada mãe, gelada e incapaz de dar
um passo, e estupefata, encostou-se à janela; seus joelhos
curvavam-se debaixo dela com as mãos trêmulas, seu
coração
batia-lhe
a lhe arrebentar o peito. Uma das meninas
correu precipitadamente e lhe anunciou
que
Eberard
tinha
129
ficado suspenso num gancho de ferro, e que a criada do
porteiro tentava salvá-lo. Um fraco raio de esperança
penetrou no coração da infeliz mãe. Pôs-se a orar;
faltava-lhe a voz, mas
do
fundo
do
coração
suplicou
a Deus
que salvasse a vida de seu primogênito, de teu único filho;
seusolhosficaramtodootempofixosnopoço.
Finalmente Emma tornou a aparecer, segurando com
uma mão a corrente do balde, e com a outra Eberard, que
apertava-se no seu pescoço. Quando o balde chegou em
cima
Teresa
puxou
com
o gancho
destinado
para esse fim, e
queria pegar o menino; mas a fraca rapariga sempre
trêmula e comovida não teve a força e ligeireza necessária
para
segurar
o balde
com
a mão firme ao mesmo tempo que
com
a outra tomasse o menino dos braços de Emma. Fez por
muito
tempo
esforços
inúteis. Foi para a mãe um espetáculo
cruel! A cada instante parecia vê-los desaparecer todos os
três no fundo do abismo. Emma conheceu que isso era
impossível de semelhante medo, e disse a Teresa que
afrouxasse o balde. Então Emma lhe apresentou o menino,
mas em vão ela estendia os braços para Teresa, porque a
distância
era
muito
grande.
A castelã
não pôde suportar por
mais tempo o espetáculo; sua vista embaçou-se, e pôs-se a
130
gritar tanto quanto suas forças lhe permitiam. «Assim não;
pelo amor de Deus, assim não!» Emma não a ouvia, mas tinha
atinado mesmo que dessa maneira apresentava muitos
perigos. Emma ficou alguns minutos imóvel; levantou os
olhos ao Céu; refletiu um instante e bradou
então: «Teresa,
empurrai brandamente o balde com o gancho de maneira q ue se
balance devagar na boca do poço.» Teresa, obedeceu sem
saber o que Emma queria fazer. «A
gora, lhe disse, esta, e
sorriu para
lhe
dar
um
pouco
de
coragem;
assim q ue o balde
se aproximar de vós, pegai imediatamente o menino. Esperai q ue
eu indique o momento … Agora! agora!» Teresa pegou
facilmenteomeninoeodepositounarelva.
Então deu a mão a Emma, que lhe disse: «P
refiro q ue
puxeis o balde de maneira q ue possa-me aproximar das
colunas.» Teresa obedeceu, e assim que o balde
aproximou-se Emma pegou numa delas, lançou-se sobre a
boca
do
poço,
e de
lá
ao
chão.
Oh!
como
ela
foi
feliz quando
sendo
a terra
debaixo
de
seus pés! quando tornou a ver a luz
do sol e o azulado céu! Ajoelhou-se um instante, e deu
graças a Deus de a ter salvado, assim como o pequeno
Eberard.
131
«Meu Deus, eu te agradeço,» foi seu primeiro
pensamento. «Quanto meu pai não ficará feliz e satisfeito de
suafilha,»foiosegundo.
Então correu, foi buscar a chave
da
prisão
de
seu
pai
e
lhe
contar
sua
ação.
Edelberto
a abraçou
vertendo
lágrimas,
as mais doces que podem derramar os olhos de um pai.
«Ganhaste a mais bela vitória, lhe disse ele; triunfaste de ti
mesma, fizeste bem a teus inimigos. Acabas de executar uma
ação nobre q ue me deleita; salvaste a vida de um homem; mas
não te orgulhes, minha filha. Foi Deus q ue te deparou essa
ocasião e q ue te inspirou a coragem necessária, é a Ele q ue
pertenceolouvor.»
132
CAPÍTULOXIV
NTRETANTO Teresa tinha reconduzido
o menino
à sua mãe. Esta não sentia mais pena alguma em
tão feliz momento. Tomou-o em seus braços,
cobriu-o
de
lágrimas
de
alegria
e lhe perguntou mil vezes se
sentia algum incômodo. Não sentia felizmente nada; só
estava
ainda
pálido
do
susto.
Ela
ajoelhou-se
abraçando
seu
muito querido Eberard, e exclamou
chorando:
«Meu Deus, é
a segunda vez q ue mo dás; eu o educarei para ti!» Levantou-se
vencida pela fadiga, apertou seu filho contra o peito, e lhe
disse:
«Meu menino, q ue susto terrível me causou tua travessura!
Quantas vezes te preveni de tais perigos! q uantas vezes te repeti
que não te aproximasses do poço; q ue evitasses os cavalos, e não
133
subisses às árvores! Vê, tua desobediência te ia custando a vida!
Que diria teu pai se te perdesse! Oh! deixa de ser de agora em
diante tão desobediente; escapaste por um milagre! Agradece a
Deuster-temandadoumanjoparatesalvar!
«Mas o anjo q ue te salvou não foi a criada do nosso
porteiro? continuou ela olhando a redor de
si.
Esta generosa
rapariga não está aqui? Teresa, corre, vai buscá-la; q ue ela
venha receber meus agradecimentos; uma ação tal não deve
ficarsemrecompensa.»
Teresa
obedeceu.
Achou
Emma assentada junto ao leito
da
filhinha
de
Gertrudes, ocupada em fazer meias. «Vem, lhe
diz Teresa, minha ama te chama; vás sem dúvida ser bem
recompensada.»
As palavras de Teresa feriram os nobres e
desinteressados sentimentos de Emma. Não tinha vontade
de a seguir, não queria nenhuma recompensa. Todavia
refletiu que se ela não aceitasse este convite, seria pouco
conveniente, e que isso poderia afligir a ditosa mãe. Ela
seguiuTeresa.
Emma corou vivamente por diferentes sentimentos,
quando entrou no quarto de dormir da castelã. Esta
estava
assentada na cama onde dormia Eberard; correu a seu
134
encontro, apertou-a em
seus
braços
e exclamou:
«Oh! minha
filha, q uanta gratidão te devo! Que bela ação acabaste de fazer!?
Que cruel dor me poupaste! Que alegria inexplicável tu me
causas! Sem ti este pobre menino q ue agora dorme tão
tranquilamente, seria um cadáver; tu arrancaste meu filho da
morte! és sua segunda mãe, e desde já podes-te considerar
minhafilha.Nãoteseparesmaisdemim.
«Quanto a ti, disse
ela
dirigindo-se a Teresa, porém com
voz calma e sem
cólera,
não podes ficar mais em meu serviço.
Preencheste mal o teu dever, q ue era nunca perder de vista meus
filhos. Em lugar de ser seu amparo ias sendo seu algoz. Vou-te
mandarpagarteusalário,eamanhãdeixarásocastelo.»
Teresa chorou, soluçou, pediu perdão. Caiu aos pés da
dama
e disse
que
era
uma
pobre
orfã,
e não sabia para onde
ir;prometeusermaisprudenteparaofuturo.
Mas a senhora respondeu: «Já mo prometeste tantas
vezes sem cumprir tua palavra; não posso ter mais
confiança em ti; é-me penoso te despedir; mas não devo
expor
de
novo
meus
filhos
à morte,
só
para
te
agradar;
vai
e
procuraconduzir-temelhor.»
«Permiti-me, nobre dama, interrompeu
Emma, dizer uma
palavra a favor de Teresa, perdoai minha franqueza. É verdade
135
que Teresa cometeu um grande erro; sua imprudência vos
causou agonias mortais, e teria podido custar a vida a vosso
filho. Mas este acidente, q ue poderia ter tido tão funestas
consequências, lhe servirá de lição, e ela será de agora em
diante mais circunspecta. Não fez ela também todo o possível
para reparar seu erro, e não me ajudou ela com todas suas
forças, como vistes, expondo sua própria vida, para salvar vosso
filho? Atendeis somente a seu defeito, e não a seu bom proceder?
Quereis despedi-la sem piedade, e deixá-la partir chorando
lágrimas de dor enquanto vós verteis lágrimas de alegria? Vêde,
Deus acaba de ouvir vosso rogo, poupai neste momento repetir
as lágrimas e as súplicas de uma infeliz. Deus se mostrou
misericordioso para convosco, sede-o também para com os
outros.
«Deus perdoa àqueles q ue arrependem-se, e q ue prometem
se corrigir; segui seu exemplo e perdoai-lhe. Ele vos dá agora
uma boa ocasião para pagar o favor q ue lhe deveis perdoando à
pobre Teresa. Ah! q ue alegria não sentimos nós, Teresa e eu,
quando vimos o menino salvo, e com q ue doçura não
misturamosaslágrimasdeprazer?
«Quereis vós hoje, a mais feliz das mães, q uereis por vossa
severidade fazer uma infeliz. Não, senhora, vós não o podereis.
136
Quanto ao emprego q ue me ofereces, não o aceito; eu me
envergonharia de privar q ualquer pessoa de seu pão e de
assentaraminhafelicidadesobreadesgraçaalheia!»
A castelã escutava Emma com inexplicável
admiração;
quando
ela
acabou
de falar, ela lhe disse: «Na verdade não sei
o q ue admirar mais, se tua coragem, ou a elevação de teus
sentimentos. Quem poderia resistir a teus rogos? Teresa não
perderá seu emprego, e tu ficarás também no meu serviço. Não
quero q ue te afastes mais de mim, generosa menina! teria muito
pesar disso. Estou incapaz agora de te poder recompensar: meu
esposo está bem longe daqui; eu estou encerrada neste castelo
como uma pobre presa; porém espero não estará longe o dia em
que o cavalheiro Kunerich volte a seu lar e possa recompensar
dignamente tua dedicação: entretanto deixa tua ama, e vem ser
minha companheira, minha filha: mandarei fazer para ti
vestuários convenientes; nasceste para alguma coisa de melhor
doq ueparaoestadodecriada.»
Emma ficou novamente tocada do procedimento da
nobre dama, que lhe falava com tanta amizade, e que
acabavadeperdoartãogenerosamenteàculpadaTeresa.
Votou-lhe desde esse momento uma profunda
veneração, e teria
de
boa
vontade
ficado
na
sua
companhia;
137
mas pensou
em
seu
pai
que
ela
não
poderia
mais
ver,
e que
ficava
abandonado
a mãos estranhas; teve por um momento
a ideia de descobrir quem ela era; porém julgou consultar
primeiro seu pai, e respondeu: «Perdoai-me o não aceitar
vossa amável proposição: sei apreciar vossa bondade; sou-vos
infinitamente grata; porém por um lado vai melhor não aceitar
aqui na terra nenhum agradecimento, pois se nós fazemos
alguma coisa de bem, não é senão com o auxílio de Deus, e
nossa recompensa nos espera no Céu; e por outra me sinto tão
feliz no meu posto q ue não desejava trocá-lo! Não é a condição
que enobrece o homem, mas a maneira por q ue ele preenche
seus deveres e suporta o pesar: minha posição oferece-me
ocasiões de fazer algum bem aos encarcerados, não me
interrompais neste ofício, q ue a Providência me deparou.» —
«És uma menina singular! exclamou a castelã. Não te
compreendo q uando me falas da felicidade q ue gozas na tua
condição, e me surpreendes da infelicidade q ue acharias a meu
lado! Não poderei fazer nada por ti? Pede-me o q ue q uiseres, q ue
dou-te minha palavra q ue se a coisa for possível será
concedida.»
«Tomo vossa palavra em penhor, nobre dama, respondeu
Emma;
dai-me somente o tempo necessário para refletir sobre o
138
pedido q ue vos farei; julgo q ue não está longe o momento em q ue
me podereis tornar mui venturosa; entretanto deixai-me na
minha humilde condição. Permiti q ue me retire; receio deixar
pormuitotempoameninademinhaama.»
Ela saudou graciosamente a castelã, dirigindo-lhe um
olharcheiodereconhecimento,esaiu.
139
140
CAPÍTULOXV
ESPOSA de Kunerich, Hildegarde de
Fichtemburgo, tão distinta pelo coração como
pela inteligência, era muito capaz de apreciar os
nobres
sentimentos
de Emma. Interessava-se vivamente por
ela, e desejou com ardor vê-la feliz, mas não podia
compreendê-la. Achava, não sem motivos, muita coisa de
misteriosanasuapessoa.
Com a cabeça encostada nas mãos, pôs-se a refletir
sobre a causa de suas preocupações, dizendo a si mesma:
«Como pôde alcançar
uma
humilde
carvoeira
pensamentos
tão elevados, e onde aprendeu ela a arte
de
se
exprimir
tão
eloquentemente? Que digna postura quando entrou neste
141
quarto! e que graças espalhadas sobre
toda
sua
pessoa!
tem
tanta facilidade em se exprimir como se tivesse vivido na
mais elevada companhia, e recebido a mais perfeita
educação.
«Admiro mais ainda suas distintas maneiras do q ue sua
coragem e sua presença de espírito. Mas q uais são as razões q ue
a obrigam a apartar-se de mim, ela q ue podia viver tão bem na
minhacompanhia?
«Há aí alguma coisa misteriosa! Sua conduta encobre um
segredo, cuja descoberta a deve fazer corar. Mas não... q uero
observá-lacommaiscuidado.»
Encarregou
o mordomo de seguir atentamente todos os
passos de Emma. O velho preencheu sua comissão, mas
nada descobria que não fosse em louvor da
jovem.
Todavia
chegou uma manhã muito apressado para anunciar que
Emma tinha ido à noite, quando todo o mundo dormia,
visitar o cavalheiro em sua prisão, e que ela tinha passado
muitas horas com ele. «Isso é uma coisa delicada e perigosa,
acrescentou ele, pois a rapariga oferecendo ao cavalheiro
meios de evasão, pode atrair sobre nós grandes desgraças. A
empresa não é inferior à sua coragem; todavia ignoro sua
conversação. Escutei com atenção; porém só podia ouvir-se um
murmúrioconfuso.»
142
A dizer a verdade,
não
era
porque
Emma
falasse
baixo.
Se o respeitável mordomo não os ouvia era por ser ele
bastantesurdo.
Esta narração surpreendeu sumamente a castelã.
«Edelberto, disse
ela, é o nosso mais cruel inimigo; meu marido
não cessava de repetir isto todas as vezes q ue lhe eu pedia de
aliviar a sorte deste pobre preso. Kunerich me contou tanta
coisa má de Edelberto, q ue não posso duvidar mais do ódio q ue
ele nos tem. E é com este homem, com nosso mais mortal
inimigo, q ue Emma tem tanta relação? Isto me inquieta muito.
Queromesmoobservá-losparadescobrirestesegredo.»
Ordenou ao mordomo que a avisasse quando Emma
tivesse um outro encontro com o cavalheiro;
pediu-lhe
que
não falasse disso a ninguém. Ela mesma não mudou de
conduta para com Emma; a tratava com a mesma
bondade
de antes, não deixando antever alguma suspeita. Dois dias
depois,
Hildegarde,
indo
passear ao jardim com os meninos,
convidou Emma para acompanhá-la. Conversou
familiarmente
com
ela,
e lhe
ofereceu
belos
pêssegos. Nesse
mesmo
dia, uma hora depois de pôr o sol, o zeloso mordomo
correu
apressadíssimo:
«Senhora, disse ele à castelã, o preso e
a carvoeira estão neste momento apurados numa conversação.
143
Podeis certificar-vos vós mesma de q ue projetos eles estão
travandocontravósevossodignoesposo.»
Hildegarde embuçou-se para não ser conhecida, e se
dirigiu
à prisão: «O q ue estou fazendo não é bom, disse ela a si
mesma, escutar nas portas é uma ação vil e desprezível. Mas é
pela solicitude q ue tenho por esta menina, e pelo interesse de
minhafamília,q ueeunãopossoperdê-ladevista.»
Por uma abertura da porta percebia uma luz que
alumiava
fracamente
a prisão,
e ela
ouvia
tudo
que
se
dizia;
tambémnãoperdeuumasópalavradaconversação.
«Estes pêssegos são deliciosos, disse o preso, são da
mesma espécie daquele pessegueiro plantado ao pé da torre do
nosso jardim; era minha fruta predileta. O pêssego tem um
encarnado aveludado q ue encanta os olhos: seu perfume é
agradávelepenetrante,ogostosaborosoedelicioso.»
«Ah! disse
Emma,
só de vê-los me vem lágrimas aos olhos.
Por q ue não posso colher deles na árvore do nosso jardim e te
trazer como antigamente, bem arranjados com folhas de
parreiranumacestinha?»
«Agradece a Deus, minha filha, o ter-te permitido
trazer-me esses, disse Edelberto; de dez q ue produziu a árvore
144
este ano, disseste-me q ue a generosa senhora te deu três; na
verdadeelaémuitoboaparacontigo.»
«E farei bem, meu caro pai, replicou Emma, descobrir q ue
sou tua filha? seu coração, estou persuadida, saberia guardar
este segredo, e ela solicitaria de Kunerich, com mais instância, a
tualiberdade.»
«Oh! q uanto a isso, disse
Edelberto,
não espero nada; não
podes fazer ideia do profundo ódio deste cavalheiro contra mim.
Hildegarde tem o coração doce e terno como a carne deste
pecego, Kunerich o tem duro como o caroço. Perderias antes teus
dentesdoq ueq uebrá-lo.»
«Mas então, replicou Emma,
Kunerich te deixaria morrer
nesta prisão, se ele soubesse q ue é tua filha a q uem ele deve a
salvação de seu filho? Tenho convicção de q ue se fosse me lançar
aseuspés,elenãorepeliriaminhassúplicas.»
«Ah! minha Emma, não te iludas com essas vãs ideias, lhe
disse
Edelberto;
eu o conheço muito. Posto q ue ele admire uma
ação q ue lhe foi útil, mesmo admitindo q ue q ueira mostrar-te
sua gratidão, não se segue q ue perca seu ódio contra mim; é um
sentimento muito enraizado no seu coração; era o mesmo q ue se
quisessearrancarumcarvalhocomamão.»
145
«Toda via, replicou Emma, se fosse possível persuadi-lo
que tu não cessas de estimá-lo e de bem dizer dele, tu a q uem ele
pilhou tudo, e não desejas senão a ocasião de lhe fazer bem! Tu
me ensinaste a amar, a abençoar e a servir sua casa. Sem tuas
lições eu talvez não teria sido disposta a socorrer o menino com
o perigo de minha vida; se este menino foi salvo é a ti q ue
pertence a glória... Se ele o soubesse seu coração não se
derreteria como o gelo ao doce sopro da primavera? Não há
meiosdecomovê-lo?Nãoéelehomem?»
«Talvez, disse
Edelberto
devagar
e com um ar pensativo;
mas não é provável. Em todo o caso não se pode fazer nada
agora; ficarei na prisão até à volta de Kunerich. Se Hildegarde
quisesse me restituir a liberdade, não o aceitaria sem o
consentimento do seu esposo; esta condescendência poderia
custar caro à nobre dama. Não dês nenhum passo, minha filha;
ficarei na prisão até q ue Deus q ueira; não q uero causar o menor
dano à generosa castelã. Deus fará melhor; nosso destino está
em suas mãos. Porém basta disso: estes discursos enfraquecem
nossacoragem.»
Edelberto e Emma travaram uma outra conversação.
Hildegarde tinha ouvido bastante; retirou-se do seu
aposento e não pôde dormir toda a noite; a surpresa, a
146
admiração, a dor sucediam alternativamente em seu
coração. «É pois verdade, disse ela a si mesma, esta moça
suspeita até agora de ser uma pobre carvoeira, é de uma origem
nobre? Para aproximar-se de seu pai vestiu este miserável traje e
submeteu-se a um serviço tão penoso, e indigno dela? É para seu
pai q ue ela guardava as frutas e tudo q ue eu lhe tenho dado; é
por este amor por ele q ue recusou a sorte q ue lhe ofereci,
preferindo a miséria de sua condição atual? Ah, q ue elevação de
alma! Como sua mãe ficaria orgulhosa de a possuir se vivesse
ainda! e é ela, a filha de um homem q ue desfalece em nosso
poder nas correntes; é ela q ue salvou a vida do nosso filho; e é
este homem q ue a exortava a pensar e a obrar deste modo! Que
nobrezadecoração!»
Ela desfez-se em lágrimas. «Não, exclamou ela, este
homem generoso deve ser livre: é preciso q ue o pai e a filha
sejam tão felizes como merecem. Ah! por q ue não está em meu
poder restituir-lhe já a liberdade, e a seus domínios? Esta noite
mesmo deixariam a triste prisão e fariam a sua entrada em
Tanemburgo; mas é impossível. Se eu q uisesse mesmo arrostar a
cólera de meu marido, o velho intendente não obedeceria às
minhas ordens; pois ele tem por princípio, q ue as mulheres não
devem meter-se nos negócios do Estado; ele não deixaria o
147
cavalheiro sair do castelo nem da prisão; meu esposo mesmo, se
ele soubesse q ue meu único desejo é de restituir Tanemburgo a
seu senhor legítimo, não mo perdoaria nunca. Na volta de
Kunerich experimentarei o q ue minhas súplicas e minhas
lágrimas poderão valer. Deus me ajudará! Entretanto, disse ela,
como devo-me conduzir para com Emma? lhe confessarei q ue
me surpreendi com o seu segredo sob o pretexto de q ue a
inimizade de seu pai e de meu esposo não tem relação com ela?
devo tratá-la segundo sua dignidade, dar-lhe vestidos
convenientes, e um aposento no castelo? mas q ue efeito
produzirá isto? O velho e inflexível mordomo nunca mais
consentiria q ue ela visitasse seu pai, e este se tornaria o objeto
da mais estreita vigilância. Nenhuma esperança há de aliviar o
cativeiro de Edelberto; tudo q ue tentasse causaria somente
pesares à nobre filha; não... não, por ora ninguém deve saber q ue
Emma é a filha do cavalheiro; dissimularei eu mesma q ue
penetrei seu segredo, pois q ue ganharia ela e seu pai com isso? O
melhor é evitar toda a bulha, e de fazer em segredo todo o bem
possível à virtuosa Emma, e por amor dela a seu pai; e depois
esperar uma feliz circunstância, q ue não poderá tardar muito
tempo,paradescobrirosegredo.»
148
CAPÍTULOXVI
O dia seguinte de manhã, Hildegarde mandou
chamar Emma, e a recebeu ainda com mais
bondade que de costume. «Sei, lhe
disse
ela,
q ue te
interessas vivamente pelo bravo cavalheiro q ue está preso no
nosso castelo; é um sentimento q ue te faz honra, e do q ual não
posso deixar de elogiar-te. Mas, minha pobre filha, não és rica,
tens mesmo bastante trabalho para acudir às tuas próprias
necessidades; de agora em diante minhas cozinhas e minhas
dispensas estão às tuas ordens. Procurarás ali os alimentos
necessáriosparaocavalheiro.»
Ela
cumpriu
sua
palavra,
e Emma no cúmulo de alegria
recebia dela todos os
dias
as
iguarias
mais
delicadas
de
sua
mesa, o melhor vinho daquele que a castelã se servia
149
habitualmente. Hildegarde arranjava-se de maneira que o
velho mordomo nunca soube de sua generosidade, e lhe
falou de tal maneira que acabou por acalmar as suspeitas
quetinhaconcebidodeEmma.
Todo
o dia
ela
descia
com
seus filhos à casa do porteiro
para
ver aquela que tinha salvado seu Eberard. Não somente
testemunhava a Emma toda a sorte
de
consideração,
mas
a
digna castellã empregou ainda a sua autoridade sobre
Gertrudes para aliviar consideravelmente o peso
de
serviço
da
jovem. Nas horas de recreio, Emma vinha ver a castelã no
seu aposento. Hildegarde permitiu a Emma trazer-lhe
também as crianças de Gertrudes, favor de que muito
gostou a porteira. Ela cria-se feliz de ter uma criada tão
estimadapelacastelã.
Hildegarde esperava com grande impaciência a volta de
seu esposo; tinha recebido há muito tempo notícias que
Kunerich estava restabelecido de suas feridas. Enfim, ele
voltou com os dois cavalheiros e as tropas que o tinham
acompanhado na expedição. Em sinal de regozijo, os
soldados e os oficiais tinham ornado seus capacetes e suas
lanças de ramos de carvalho. Fizeram sua entrada triunfal
ao som de trombetas. Kunerich apeou-se, abraçou sua
150
mulher e seus filhos com efusão; então foi com toda a sua
comitiva
para
a grande
sala
dos cavalheiros. Não cansava de
olhar para seu filho, que se tinha tornado um belo e
interessante menino. Passados os primeiros momentos de
tão doce emoção, Hildegarde contou ao seu esposo como
Eberard tinha caído no poço e havia sido salvo por Emma;
mencionou
as
menores
particularidades
e lhe
pintou todo o
perigo que o menino tinha corrido. Kunerich tremeu
involuntariamente e bradou: «Ah! meu q uerido filho, q uase
que te afogas, e pouco faltou q ue eu não te pudesse mais ver!
Que dor para tua pobre mãe e para mim! Só a ideia faz gelar o
sangue nas minhas veias. Eberard, Eberard, sê mais prudente
paraofuturo.»
Hildegarde trouxe o traje com que seu filho estava
vestido naquele dia fatal, e que ela tinha guardado em
memória desse acontecimento. Mostrou a seu esposo o
rasgão causado pelo gancho de erro; Kunerich o examinou
com
atenção,
e disse
assustado: «O socorro foi prestado muito
a tempo; se mais tardasse, Eberard estava perdido para sempre.
Esta pobre criada nos fez na verdade um serviço imenso. Meu
Deus, isto é belo e nobre de sua parte: um cavalheiro não
poderia mostrar mais prova de heroísmo do q ue esta rapariga.
151
Sua resolução e sua coragem me encantam de maneira q ue não
possoexplicar.Recompensaste-a?»
«Quis te deixar o cumprimento desse sagrado dever,
respondeu Hildegarde. Tudo q ue lhe poderia dar me parecia
pouco; não teria sido nada em comparação do q ue ela fez por
nós. Lembra-te q ue ela expôs sua vida. Quase q ue desmaiei
quando a vi suspensa no balde sobre esse terrível abismo; e uma
tal ação não se recompensa com algumas moedas de ouro:
esperoq uenãoterárazãodecorardetuagenerosidade.»
Nunca
Kunerich
havia sido comovido a um tal ponto. O
impetuoso
cavalheiro quis ver no mesmo instante a jovem, e
mandou buscá-la. Emma entrou na sala com a graciosa
modéstia que a distinguia. «Sê bem-vinda, minha cara
heroína, exclamou Kunerich, sê bem-vinda, tu q ue salvaste
meu filho! Creio q ue já nos vimos: vi-te em casa do porteiro; mas
não te julguei capaz de tanta coragem, disse ele com
amabilidade.
Fizeste-me um serviço inapreciável; sem ti seria o
mais infortunado dos pais: este dia de festa seria para mim um
dia de desespero. Declara um desejo, q ualquer q ue seja, eu o
cumprirei. Sim, bradou na efusão de sua ternura paternal o
violento guerreiro, que nunca tinha aprendido a combater
seus
sentimentos;
sim, juro-o sobre minha honra de cavalheiro
152
que se me pedires um dos meus castelos, Fichtemburgo, ou
Tanemburgo, eu to darei.» Emma respondeu com calma e
modéstia: «Apressastes-vos muito, meu senhor: estes dois
cavalheiros aqui presentes são testemunhas de vossa promessa.
Eu poderia vos pedir um grande favor, e vós não o poderíeis
recusar; porém não q uero nenhuma graça, é somente um direito
que reclamo: restitui a meu pai e a mim o q ue vós
usurpastes-nos.»
«Como, o q ue ouço? q ue significam essas palavras?
exclamou Kunerich admirado; eu vos despojei? eu roubei
vossosbens?q uemsois?q uemévossopai?»
«Sou Emma de Tanemburgo, disse ela. O cavalheiro
Edelbertoémeupai:restitui-lhesualiberdadeeseusbens.»
Os dois outros cavalheiros, os escudeiros, os pajens,
todos
arranjados
na
sala,
ficaram
atônitos.
Kunerich
recuou
alguns passos, e parou como petrificado.
Tanto
se
tinha
ele
comovido poucos momentos antes da nobre ação da
moça,
quanto sentiu nesse momento reacender seu antigo ódio
contraopai.
Uma luta violenta de sentimentos os mais opostos
levantou-se
no
seu coração. Ficou pálido como a morte; seus
olhos fogosos lançaram olhares terríveis ao redor de si, e
153
murmurou
entre
os dentes: «Ah! sim, daria voluntariamente
um dos meus castelos, se uma outra, do que a filha desse
homem,metivessefeitoesseserviço.«
Todos os assistentes ficaram assustados desta súbita
mudança de Kunerich, e olharam-se silenciosamente e
pasmados. Hildegarde com sua doçura acostumada, tomou a
palavra e disse: «Foi somente desde alguns dias q ue soube q ue
debaixo deste humilde traje se escondia a filha do cavalheiro
Edelberto. Sua ternura filial não recuou diante de nenhum
sacrifício para poder ver seu pai, consolá-lo na sua triste
solidão, servi-lo, e repartir com ele os alimentos q ue recebia.
Apresentou-se sob estes miseráveis vestuários; fez o q ue a mais
pobre rapariga do país não q uereria fazer; entrou no serviço do
porteiro e suportou com a paciência de um anjo todos os
caprichos de sua mulher; submeteu-se sem murmurar aos
trabalhos os mais duros q ue deviam-lhe parecer vinte vezes
mais penosos do q ue a q ualquer outra. Meu coração vertia
sangue q uando a via de minha janela. Ela, uma senhora nobre,
cujo nascimento iguala ao nosso, carregar água e lenha e varrer
os pátios do castelo, como a mais humilde criada. Todavia, não a
deixei suspeitar q ue conhecia seu nascimento, não ousei decidir
nada sem o consentimento do cavalheiro Kunerich. Esperava
154
sua volta com impaciência dolorosa; mas agora; caro Kunerich,
escuta as inspirações de teu coração; cede à voz da humanidade.
Quando mesmo Emma não tivesse salvado teu filho, a ternura
filial q ue ela ostentou deveria-te obrigar a reconciliar-te com o
paidetãonobrefilha.»
«Por minha adaga, bradou Sigberto, um dos dois
cavalheiros, o q ue esta moça fez para seu pai é ainda mais
admirável do q ue o q ue ela fez para esse menino. Isso é uma
prova de coragem de q ue certas organizações menos nobres q ue
as de Emma são igualmente capazes por momentos; mas o q ue
denota verdadeiramente uma grande alma, é a admirável
constância q ue ela mostrou, suportando por seu pai tão longos e
duros sofrimentos: o coração desta moça é uma pérola preciosa.
Noteulugar,Kunerich,nãohesitariamais!»
«Kunerich, disse Teobaldo, o segundo cavalheiro, se
verdadeiramente Edelberto te odiasse como pretendes, ele
poderiater-tefeitoummalindizível.
«Graças a Deus, enquanto estavas na campanha e
combatias com teus inimigos, aquele q ue consideras como o
mais cruel entre eles estava no seio de tua habitação, e sua filha
tinhaachavedesuaprisão.
155
«Dentre dez, nove teriam aproveitado a ocasião para deitar
fogo à noite no castelo e fugir com o favor do tumulto. Kunerich,
Kunerich,nãotensmotivodeseroinimigodeEdelberto.»
Kunerich ficou mudo, respirava apenas e passava de vez
em quando a outra mão sobre sua fronte quente; parecia
que
não
tinha
ouvido
as
palavras
que
lhe
tinha
dirigido sua
esposa e os dois cavalheiros; todos os olhares fixaram-se
comansiedadenele.EmmaolhavaparaoCéususpirando.
Um
silêncio
funesto
estabeleceu-se
na
sala.
Hildegarde
aproximou-se ao
esposo
e com
a voz
cortada
de
emoção
lhe
disse:
«Meu Kunerich, escuta-me uma derradeira vez; eu te
suplico, Kunerich, tu crês q ue Edelberto é teu mais cruel inimigo;
oh!tens-teenganadomuitoatéhoje.
«Oh! se ele nutrisse contra ti os sentimentos dos q uais tu o
julgas capaz, como poderia eu tua fiel esposa te pedir sua
liberdade! Deveria antes me empenhar para o fazer vigiar com o
maiorcuidadopossível;masrepitoq ueteenganasmuito.
«Eu só surpreendi o segredo de Emma; até hoje, q ue ela
mesmo acaba de confessar, ninguém o sabia; sem mim ninguém
teria descoberto q ue Emma ia visitar o cavalheiro à noite.
Queria conhecer o fim de suas visitas, e confesso, não sem corar,
156
na presença de todos os assistentes, q ue me abaixei a ponto de
escutar na porta da prisão para prestar ouvido à conversação
que o pai e a filha tinham juntos. Mais inquieta por ti e por
nosso castelo q ue por minha segurança pessoal, tomei a
resolução de dar um passo q ue eu mesma reconheço é
censurável. Vê até onde me levou minha solicitude por ti.
Desejava me convencer se eles tramavam alguma conspiração
contra ti. O pai e a filha não sabiam q ue cada palavra deles
chegava a meus ouvidos. Mas, grande Deus! o q ue ouvi? q ual
não foi minha vergonha! Oh! como essa gente tem a alma
elevada! O pobre preso está bem longe de alimentar sentimentos
de ódio e de vingança contra ti. Não somente louvou a ação de
suafilha,masaindafoieleq ueamoveu.
«Foi sua voz paternal q ue animou Emma a nos amar e a
nos fazer todo bem possível; sem essas generosas intenções ela
não teria talvez salvado teu filho. É ao bravo Edelberto q ue deves
a vida de teu Eberard, como poderia ele então ser teu inimigo?
Seria possível q ue conserves por mais tempo tua ira contra ele?
ainda estás irresoluto? Não, Kunerich, tu não poderias consentir
que Emma saísse daqui sem satisfazeres suas súplicas. Deus
queiratocarteucoração.»
157
Passados alguns instantes Kunerich disse com voz
baixa e sombria: «Que Emma tome Tanemburgo e todas suas
dependências, não me oponho; mas q uanto a Edelberto, ficará
ondeseacha.»
Pronunciando essas
palavras
não
dignou
de
olhar
para
sua esposa. Esta então dirigindo-se a seu filho exclamou
com um acento profundamente comovido, e com a voz
cortada
de
soluços:
«Ah!
vem
meu
Eberard,
implora
tu a teu
pai por aquela que te salvou, a fim
de
que
ele
não
satisfaça
somente a metade de seu pedido. Prostra-te, estende a ele
tuas mãos suplicantes. Vê, eu me lanço contigo a seus pés;
quero te ajudar a pedir esta graça.
Repete
cada
palavra
que
vouproferir.»
O
gracioso
menino
vendo
sua
mãe e Emma, a quem ele
muito amava, abismadas na tristeza, pôs-se a chorar. A
fisionomia
austera
de seu pai o assustava: compreendeu que
se tratava de uma coisa muito séria. Ajoelhou-se, levantou
tremendo suas mãozinhas e repetiu com emoção e com uma
voz que penetrava os corações as palavras que sua
mãe
lhe
dizia: «Meu q uerido pai, não sejas tão duro! não hesites por
mais tempo a restituir a liberdade ao pai da boa Emma. Ela não
hesitou expôr também sua vida para me salvar. Vê, esta
158
generosa moça me tirou do poço; faze igualmente sair da prisão
o cavalheiro Edelberto. Eu teria perecido na água, se ela não me
tivesse arrancado dessa morte horrível; oh! não permitas q ue
seu pai morra tristemente nos ferros; ela te restituiu um filho,
restitui também a uma filha q uerida seu pai a q uem tanto ama;
ah! não arredes teus olhos, meu pai; olha para teu filho; sem
Emma tu não terias tornado a ver meu rosto, nem estes olhos
que te imploram neste momento, cheios de lágrimas. Estas mãos
queestendoati,seriamagoraapresadosvermes.»
«Parai! isto é de mais!»
exclamou
Kunerich.
Esforçou-se
em vão para sufocar as lágrimas, às quais, segundo seus
princípios, nenhum cavalheiro deve ser acessível.
Dirigindo-seaEmmalhedisse:
«Emma, vosso pai está livre. Restituo-lhe seu castelo e
todos os seus bens. Reconheço q ue fui injusto com ele. Aquele
queeducouumatalfilha,deveserumhomembomejusto.»
«Graças, meu Deus, te sejam dadas!» exclamou a nobre
Hildegarde com transporte. Abraçou soluçando seu
esposo,
e também Eberard beijou a mão do pai. Emma não
pertencia naquele momento à terra. O excesso de alegria a
tornou incapaz de proferir uma só palavra. Levantou
somente seus olhos cheios de entusiasmo
e gratidão
para
o
159
Céu.
Sigberto
e Teobaldo não se envergonharam de misturar
suaslágrimascomasdelas.
«Desde agora, lhe
disse
Teobaldo,
conquistastes um lugar
muitomaisvastonomeucoraçãoenaminhaestima.»
«Obrastes, disse
Sigberto,
como um valoroso cavalheiro. A
justiça vale mais do q ue a coragem, É muito mais difícil vencer
cadaumasimesmoq uetriunfardeseusinimigos.»
Um
grito
de
aprovação
e de
alegria se fez ouvir entre os
escudeiros e os outros guerreiros. Muitos não puderam
conter suas lágrimas. Enfim, todos reuniram-se gritando:
«VivamKunericheHildegarde,vivamEdelbertoeEmma!»
160
CAPÍTULOXVII
ESDE que a humanidade e a sensibilidade
tomaram posse do coração de Kunerich, ficou
transformado por assim dizer em um outro
homem. A consciência de ter resistido a seu ódio e de ter
obedecido à voz da razão, o enchia de uma alegria pura,
como nunca tinha
sentido.
Semelhante
à calma
que
sucede
à tempestade, a paz se tinha restabelecido em seu coração,
que pouco antes era a presa de todas as paixões
atormentáveis. Sua fronte tornou-se serena e o
contentamento brilhava nos seus olhos. Mesmo o pequeno
Eberard percebendo isso aproximou-se dele com mais
confiançaeternuradoquenunca.
161
Emma dirigiu-se agora ao cavalheiro para
agradecer-lhe; mas ele a interrompeu imediatamente
dizendo: «Minha nobre senhora, desenganado agora de meu
erro de tantos anos, não consinto q ue me agradeçais um ato q ue
não foi mais q ue justiça; era preciso ser um monstro para obrar
de outra maneira. Vinde comigo ver vosso pai; agora eu
cometeria um crime odiando-o por mais um instante na prisão.
Vinde, vós lhe deveis anunciar sua liberdade; peço-vos q ue lhe
digais também algumas palavras em meu favor, para q ue ele me
perdoeainjustiçaq uelhetenhofeito.»
Kunerich ia descer quando sua esposa o chamou,
dando-lhe a mão. Conversaram alguns momentos em voz
baixa, e de vez em quando Kunerich
inclinava
a cabeça
em
sinaldeaprovação.
Quando acabaram, Hildegarde disse, dirigindo-se a
Emma:
«Minha cara filha, antes de ires ver teu pai, vem um
instante aqui.»
Dizendo
estas
palavras
conduziu Emma a um
aposento onde se tinha depositado vestuários e diversos
objetos destinados a orná-la
no
dia
que
ela
recuperasse
sua
posição.
162
Emma começou por lavar a cor fingida
com
que
tinha
coberto sua linda cutis. Então Hildegarde penteou seus
cabelos em longas madeixas flutuantes, vestiu-a com um
belovestidobrancoguarnecidodericasrendas.
Vestida assim, Emma era de uma beleza encantadora;
seu lindo rosto tinha as ternas cores da flor de macieira, e
sua
espessa
madeixa
descia
em
cachos
ondeados
sobre seus
ombros; tudo respirava nobreza na sua pessoa e elegante
atitude. Hildegarde a contemplava com um sorrir de
satisfação,
sem
o exprimir, sabendo que não se deve avivar a
afetaçãonaalmadessasjovenslouvandosuabeleza.
Foi então buscar uma caixa de ébano, guarnecida de
ouro. «Vê, minha cara menina, disse-lhe ela, eis aqui as joias de
tua finada mãe. Meu esposo mas deu de presente; mas eu teria
corado se me enfeitasse com joias obtidas pela violência.
Continuei a considerar este ornato como tua propriedade, foi
um bem sagrado a meus olhos, suspirei sempre pelo momento
em q ue pudesse te restituir. Recebe-as de minhas mãos, não
faltanenhumapedra,nemumasópérola.»
Emma aceitou a caixa, e com vivos agradecimentos
contemplou as belas pedras, porém não mostrou a
satisfação e a alegria que Hildegarde esperava encontrar
163
numa
moça:
«Oh! minha q uerida mãe,
disse
ela com lágrimas
nos
olhos,
como essas joias me recordam a tua presença! É por
ver nelas uma lembrança tua q ue elas me são caras. Minha
senhora, disse ela a Hildegarde,
vedes este anel de diamantes,
é o anel nupcial de minha mãe; este cinto de pérolas foi presente
da duquesa no dia do seu casamento, e estas argolas de
brilhantes, meu pai lhe deu no dia em q ue pela primeira vez
meusolhosviramaluzdosol.
«Oh meu Deus! parece-me q ue vejo minha q uerida mãe
diante de mim ornada com todas essas joias. Oh! como a
humanidade é passageira! estas pérolas existem ainda; estas
joias brilham sempre com o mesmo lustre, q uando já há muito
tempo o corpo desta nobre senhora é a presa do túmulo! O q ue
seria o homem, a obra prima da criação, se não tivesse uma
almaimortal?»
«Minha filha, lhe disse Hildegarde, estas lágrimas q ue
brilham em vossos olhos, valem mais do q ue estas pérolas;
vossos nobres sentimentos são mais preciosos do q ue todos os
enfeites. Quando vosso corpo se tornar em pó, e a mão do tempo
tiver reduzido em poeira estes diamantes incorruptíveis, os
sentimentos elevados q ue desenvolvestes aqui na terra ornarão
ainda a vossa alma, e serão para ela um ornamento mais belo do
queestasjoiasosãohojeparavossocorpo.»
164
Falando
assim
Hildegarde
trançou
as pérolas no cabelo
e deitou o colar; pôs-lhe os brincos e deitou-lhe o anel no
dedo. Emma hesitou em ornar-se tão ricamente, dizendo
que era ainda muito moça para essas coisas; porém
Hildegarde sentia um prazer particular em ornar
esta
filha
tão dedicada para com seus pais com as joias com
que
sua
dignamãeseornavaoutrora.
Hildegarde acompanhou sua protegida até a porta da
prisão. Emma a abriu com um transporte inexplicável
exclamando:
«Meu bom pai, estás livre!» Mas uma grande surpresa
a
interrompeu,
quando viu seu pai diante dela revestido como
antigamente
nos dias de festa com um traje de cavalheiro de
veludopreto.SigbertoeTeobaldoestavamaseulado.
Foi isso que Hildegarde tinha lembrado a seu marido
para que Edelberto aparecesse entre tanta gente conforme
suadignidade.
Os
dois
cavalheiros
o tinham
preparado
pouco
a pouco
a uma mudança de sua sorte, sem porém anunciar a
restituição
de
sua
liberdade;
esta
notícia
ele não devia saber
senãodabocadesuafilha.
165
Foi
com
uma emoção impossível de descrever que o pai
apertou sua filha ao coração; ela lançou-se nos
seus
braços
comovida por um sentimento de felicidade, que a
lembrança de tantos sofrimentos passados tornava
inexprimível. Passadas
as
primeiras
violentas
emoções,
que
ostinhamtornadomudos,Edelbertodisse:
«Oh, minha q uerida Emma, com o auxílio de Deus ganhaste
uma vitória q ue um exército inteiro não poderia ter obtido. A
força das armas teria podido vencer Kunerich no seu castelo;
mas isto não seria mais do q ue um triunfo material; enquanto
que tua piedade filial e tua benevolência para com todos
ganharam por seu doce poder um triunfo muito mais nobre,
tocando o coração de Kunerich e ganhando um amigo no nosso
mais cruel inimigo. Agradeçamos a Deus; sua providência tem
caminhos misteriosos. Foi Ele q ue abençoou teu amor filial e
coroouteusesforçoscomavitória.»
Edelberto sentiu grande satisfação em ver sua filha
vestida conforme sua posição; cada vez que a via nos
miseráveis vestuários de criada, seu coração trespassava-se
de dor. A encantadora beleza de Emma tocou vivamente
SigbertoeTeobaldo.
166
«Na verdade, lhe disse Sigberto, sabeis, minha nobre
senhora, q ue por amor de vosso pai fizestes um raro sacrifício
cobrindo vossas lindas faces com feias cores e disfarçando vossa
belaestaturanoshumildesvestuáriosdeumacarvoeira?»
Emma corou, e na sua modéstia tomou esse
comprimento por uma lisonja que não merecia. Porém
Sigberto disse: «A beleza desta senhora é a menor de suas
qualidades; seu mais belo ornamento é sua ternura filial e seus
sentimentos piedosos. Semelhante a um anjo, desceu à prisão de
seu pai para o consolar nos seus sofrimentos; apareceu de novo
hoje como um anjo para lhe anunciar a liberdade q ue ela obteve
porseusesforços.»
Emma deu então parte a seu pai da missão de que
Kunerich a tinha encarregado. O arrependimento do
cavalheiro tocou vivamente Edelberto: «Tu vês minhas
lágrimas, disse ele a Emma, e sabes q ue já lhe perdoei há muito
tempo.»
No mesmo instante abriu-se a porta da prisão e
Kunerich apareceu com o pequeno Eberard. Hildegarde os
seguia. Os dois cavalheiros estenderam as mãos e
precipitaram-se
com
emoções
inexprimíveis
nos
braços
um
do outro. Todo seu ressentimento se tinha apagado; gozavam
167
a felicidade celeste da reconciliação e seguravam uma
eternaamizade.
O
bravo Edelberto contemplava com particular prazer o
pequeno Eberard, aquele menino
que
Emma
tinha
salvado.
Fatigado de todas as emoções. Edelberto assentou-se no
banco de pedra, tomou o menino sobre seus joelhos e o
abençoou dizendo: «Deus q ueira, caro menino, q ue sejas
sempre um objeto contínuo de alegria para teus pais, e q ue com
otempotetornesumnobreevalorosocavalheiro.»
«Deus permita, continuou Hildegarde dirigindo-se a
Edelberto, q ue ele tenha por nós o mesmo amor q ue vossa filha
vos testemunhou, e dê provas um dia dos nobres sentimentos
que vos distinguiram! Então seríamos os mais felizes pais da
terra.»
Odiaterminou-seporumgrandebanquete.
A grande sala do castelo estava magnificamente
iluminada. Edelberto e Emma ocupavam os lugares de
honra, Kunerich assentou-se ao lado de Edelberto, e
Hildegarde ao lado de Emma. A alegria e satisfação
resplandeciam sobre todos os rostos. Há muito tempo que
não se tinha visto Kunerich tão
contente. «Nunca,
disse
ele,
me senti tão feliz como hoje. A louca inimizade q ue te tinha
168
dedicado, meu caro Edelberto, envenenou meus mais belos dias;
o q ue há de mais doce do q ue a união e a paz? Bem conheço
agora q ue o ódio e a inveja são fúrias q ue surgem dos abismos; o
amor e a amizade descem do Céu.» Para festejar este grande
dia, serviram-se de grandes copos de ouro e de prata, e
cheios de um precioso vinho, todos os assistentes fizeram
saúdes análogas à ventura do dia.
Eis
as
que
acharam
mais
aplausos:
«Que todos os filhos da Alemanha, disse
Edelberto,
vivam
em paz e em boa harmonia, e eles nunca se separem por
bagatelas.»
Teobaldo: «Que todas as filhas da Alemanha tenham as
mesmas virtudes e doçura q ue a nobre Hildegarde, Emma e
Matilde, q ue vê do Céu com uma alegria divina vossa
reconciliação.»
«Que todos os pais, disse Sigberto, eduquem seus filhos
como Edelberto e Matilde educaram sua filha, e q ue todos os
filhos venerem e amem seus pais como a nossa muito q uerida
Emma.»
Kunerich fez a última saúde: «Que todos os pais sejam
tãofelizescomseusfilhoscomoEdelbertocomsuafilha.»
169
170
CAPÍTULOXVIII
O dia seguinte ainda cedo, Kunerich, no seu
vestuário de viagem, entrou no quarto de
Edelberto: «Cavalheiro, lhe disse ele, os cavalos
estão selados, e meus escudeiros prontos a partir; tencionava ir
contigo a Tanemburgo e restituir-te teu castelo e teus bens; mas
Hildegarde julga q ue desde q ue uma habitação é unicamente
ocupada por soldados, não deve apresentar um agradável
aspecto. Nisso ela tem muita razão, disse ele sorrindo, é uma
ideiadaq ualnãometerialembrado.
«Ficarás ainda aqui algum tempo com tua filha, caro
Edelberto; visto q ue passaste tantos dias tristes nestes muros,
devestambémconsagraraquialgumtempoàalegria.»
171
Edelberto aceitou a proposta com prazer: Sigberto e
Teobaldo, que tinham saudades de voltar a seus lares,
despediram-se de Kunerich e de Edelberto,
e partiram
com
suacomitiva.
Kunerich
convidou
a Edelberto
para
correr com ele seu
castelo, e depois do almoço fazerem uma caçada juntos.
Conduziu-o
às
vastas
salas
onde
estavam
os retratos de seus
antepassados. Edelberto olhava não sem interesse para os
antigos cavalheiros representados
com
suas
armaduras
e as
senhoras no traje das épocas passadas. Foram então
para
o
arsenal, onde armas de toda espécie brilhavam pela sua
limpeza. Fora as armaduras completas de homem, havia
também armaduras de cavalo. Voltaram então à cavalariça;
Edelberto admirou os magníficos cavalos de seu amigo;
desceram
mesmo
até
as
adegas, onde Edelberto foi obrigado
por condescendência a provar de todas as diferentes
qualidades
de
vinho.
A última
visita
foi ao memorável poço;
os
dois
cavalheiros olharam para o abismo com sentimentos
de horror. Na alegria que
sentiram
um
a nobre
ação
de
sua
filha, o outro a salvação de seu filho, abraçaram-se
agradecendo a Deus o feliz acontecimento pelo qual a
Providênciasetinhaassinalado.
172
Entretanto Hildegarde mostrava a Emma os arranjos de
sua casa; os armários cheios de roupa, resplandecente de
alvura, ricos bordados; às cozinhas onde tudo luzia de
asseio, e mil
outras
coisas
dignas
de
ser
vistas
por
senhoras
que se interessam por uma boa administração de casa, na
qual já
naquele
tempo
na
Alemanha
as
moças
iniciavam-se
cedo.
Emma quis visitar então mais uma vez a casa do
porteiro, onde ela tinha cumprido mui penosas obrigações
por amor de seu pai. Hildegarde a acompanhou.
Atravessando o pátio, Edelberto e Kunerich ajuntaram-se a
elas.
O porteiro
estava
assentado
na
sua
cadeira de braços, e
repousava
das fadigas da última expedição. Assim que ouviu
a voz de Kunerich, levantou-se imediatamente para lhe abrir
aportaeencaroucomEmma.
«Ah! exclamou ele, é Emma! Perdoai, q ueria dizer a
senhora Emma, peço-vos q ue entreis com esta senhora e os
senhores. Não, não, é-me ainda incrível! minha criada a senhora
deTanemburgo?
«Ficaria menos pasmado se visse o céu cair sobre a terra.
Uma senhora tão nobre foi obrigada a varrer o chão q ue eu piso!
Todavia admiro ainda mais o não ter eu desconfiado q ue era
173
filha do cavalheiro Edelberto. Não soube senão ontem no pátio
do castelo pelos soldados, entre os q uais essa admirável
dedicação causava grande sensação; então pude explicar a mim
mesmo o interesse q ue tínheis pelo preso, e um regozijo de q ue
Deus recompensou o amor filial. Mas não podeis imaginar o
susto de minha mulher, q uando lhe contei tudo q ue se tinha
passado; q uase q ue perde os sentidos. Ela não deseja senão vos
pedir perdão, minha senhora, de todas as grosserias com q ue
vostratou.»
Os dois filhos do porteiro estavam num canto todo
envergonhados. Emma aproximou-se deles com sua
bondade costumada, e eles tomaram coragem. A pequena
Berta lhe disse: «Como estais enfeitada, Emma; tudo é novo e
beloemvósmesmovossorosto.»
O menino Henrique acrescentou: «Emma me agrada
ainda muito mais assim. Se ela q uisesse ficar conosco!» Todos
riram-sedestalembrança,
Emma perguntou às crianças por sua mãe. Berta
respondeu:
«Ela acaba de servir a sopa; a sopeira ainda está na
mesa.»
«Sim, acrescentou Henrique, apenas ela viu entrar os
senhorescorreuparaaquelaportaq ueconduzàcozinha.»
174
Emma entrou lá e reconduziu
sua
antiga
ama.
A pobre
mulher apareceu muito confusa e envergonhada. «Preferia,
disse ela, estar vinte pés abaixo da terra. Meus senhores
conhecem agora minhas belas maneiras e os bonitos nomes com
que gratificava a Sra. Emma. Se tivesse conhecido sua origem e
previsto a q ue honras ela seria elevada um dia, certo minha
condutaparacomelateriasidooutra.»
«Gertrudes, lhe
disse a castelã, aprende nesta ocasião, q ue
o mortal, o mais miserável, é de uma divina origem; sua
qualidade de homem é o seu mais belo título; essa nobreza
excede todas as outras, O mais infeliz mendigo se foi virtuoso
neste mundo é chamado no outro a honras com as q uais as
mundanassãoincomparáveis.
«Infeliz é aquele q ue se esquece q ue o mais inferior dos
homens tem direitos à nossa estima. Hoje q ue descobres na
criada q ue te serviu ainda ontem uma nobre senhora,
arrependes-te da tua conduta passada e coras da maneira com
que a trataste. Bem! lembra-te do arrependimento e da vergonha
que sentiremos q uando tornarmos a ver no meio dos esplendores
celestes os pobres e os inferiores q ue tratamos aqui na terra com
injustiça,desprezoedureza.»
175
Essas palavras tocaram o coração de Gertrudes, pediu
perdão a Emma vertendo copiosas lágrimas: «Minha boa
Gertrudes, lhe disse a jovem, eu teria muitas vezes ocasião de
vos fazer exortações; porém não as julguei convenientes naquele
tempo. Esperara por um melhor ensejo, q ue finalmente chegou.
Sois uma excelente mãe de família, ativa e infatigável,
cuidadosa em vossa casa, econômica sem ser avarenta,
generosa para com os pobres, serviçal para com todo o mundo,
contanto q ue a cólera não vos perturbe. Mas então não sois
senhora de vós mesma, e esse grande defeito vos arrebata ações
e palavras q ue são muito indignas de uma mulher. Vossa ira
enche de amargura vossa vida e a de todos q ue vos cercam, e vos
dá a reputação de uma muito má mulher. Dizem q ue sois louca,
enganam-se; mas esta suposição parece fundada q uando se vê o
pouco uso q ue fazeis da vossa razão; e em lugar de vos dirigir
segundo suas inspirações, não seguis senão as da cólera.
Corrigi-vos desta funesta paixão. A cólera é uma loucura
momentânea e q ue pode causar grandes injustiças. Lembrai-vos
queapaciênciaeadoçurasãoasvirtudesdocristão.»
«Apoiado! exclamou Kunerich, é uma exortação sobre a
qual muitas pessoas devem meditar. Quanto a mim tomarei
também minha parte. O q ue acabais de dizer me faz lembrar das
176
lições de meu pai; ele as resumiu numa curta sentença dizendo:
Kunerich, Kunerich, mais reflexão e menos paixão, este
é o
melhormeiodecadaumviver.»
Alguns dias depois Kunerich e sua mulher partiram
com Edelberto e Emma para Tanemburgo. Uma grande
comitiva ricamente vestida os acompanhava. Como a fama
tinha espalhado em quase toda a região a notícia do que
havia
acontecido
em
Fichtemburgo,
todos
os
habitantes
das
aldeias por onde atravessava o cortejo saiam de suas casas
para festejar a reconciliação dos dois cavalheiros; cada um
queria
contemplar
a nobre
jovem
que
se
tinha
dedicado tão
santamente
a seu
pai,
e que
tinha
mostrado
tanto
heroísmo
salvandoEberard.
Desde que saíram do território de Kunerich, o
espetáculo mudou; um silêncio profundo parecia dominar
nas habitações. Edelberto, surpreendido, entregou-se a mil
conjecturas
até
sua
chegada
ao
castelo,
onde achou todos os
seus
vassalos
juntos no pátio para festejar sua tão desejada e
feliz chegada. Todos estavam postos em ordem segundo a
idade, a um lado os meninos, os moços e os homens; de
outroladoasmeninaseasmãestodasemseutrajedefesta.
177
Burcardo, o bom carvoeiro, tomou a palavra em nome
dos homens, e Mariana em nome das mulheres. O mordomo
de Tanemburgo tinha composto um discurso longo e vão,
segundo
o estilo
daquele
tempo,
para
ele
recitar:
começou
a
oração
com
ar
e postura,
a mais séria. «Esperai, disse ele, q ue
segundo o costume consagrado em todos os tempos, e em razão
das circunstâncias atuais, aconteceu q ue... q ue... q ue...» parou,
poisestavanofimdeseulatim.
Depois tranquilizou-se e replicou: «Perdoai-me, senhor;
vossa presença me fez perder o fio das ideias q ue tinha
aprendido de cor e q ue são muito belas; agora tudo q ue vos
poderei dizer é q ue depois de vos ver tornar a tomar posse de
vossocastelo,possomorrerempaz.»
A boa Mariana aproximou-se e fez sua reverência;
porém, como não tinha tomado lições da bela linguagem,
não soube exprimir-se senão por lágrimas. A emoção
tinha-se apoderado de tal maneira dos assistentes, que
apenaspodiamdargritosdealegria.
Edelberto e Emma, profundamente comovidos,
atravessaram
a multidão entusiasmada e chegaram ao paiol,
onde acharam Sigberto e Teobaldo, e outros amigos de
Edelbertocomsuasfamílias.
178
Julia, a filha do carvoeiro, vestida de
branco,
com
uma
grinalda
de
flores
naturais,
saiu
do
círculo e veio apresentar
a
Emma
sobre
uma almofada de veludo carmezim as chaves
do
castelo
adornadas
de
borlas
de
ouro. «Minha senhora, lhe
disse ela, não salvastes somente vosso pai da prisão; vossa
piedade filial lhe tornou a abrir as portas deste castelo. Recebei
aschaveseasapresentaiaele.»
Emma apresentou a almofada a seu pai, que
tomou
as
chaves levantando os olhos ao Céu; lembrou-se daquela
noite terrível, chuvosa e tempestuosa, em que via-se
encorrentado numa carroça elevado para fora de seus
domínios. Pensou em sua filha que o tinha seguido
soluçando e abandonada por todo mundo. Esta lembrança
contrastou sumamente com a recepção que lhe foi
preparada por Hildegarde. «Antes de tocar a soleira da porta,
disse Edelberto, entremos primeiro na capela. Deus velou por
nós tão misericordiosamente, mudou as lágrimas de dor em
lágrimas de alegria. Ofereçamos-lhe ações de graças.» Todos
aprovaram
e o seguiram
à capela.
Dirigiram-se
então
para a
mesa, posta na grande sala. O povo foi banqueteando no
pátio. Edelberto não pôde esperar o fim do banquete dos
nobres, desceu e foi unir-se a seus vassalos com o coração
cheiodealegria,comoumpainoseiodeseusfilhos.
179
O bravo carvoeiro e sua filha foram os primeiros aos
quais ele dirigiu-se. «Burcardo, lhe disse ele, meu fiel criado,
não me esqueci da bondade com q ue tu e tua mulher tratastes
minha filha. De agora em diante não deixareis mais meu castelo,
nomeio-te meu escudeiro-mor. Dou-te um emprego; espero q ue
cumprirás tão bem como o de carvoeiro. Tua boa Mariana, q ue
durante meu cativeiro me proveu de roupa branca, encarrego-a
da administração do castelo. Quanto a esta boa Julia q ue tomou
tanta parte em todos os sofrimentos de minha filha, q uero
também q ue ela participe da sua prosperidade. Emma nunca
acharáumaamigamaisdedicadaemaisligadaàsuapessoa.»
Edelberto passou
então
de
uma
mesa
a outra
dirigindo
a cada um algumas
palavras
afáveis.
Na
impossibilidade
de
banquetear a todos os vassalos de Edelberto, Hildegarde
tinha convidado sem distinção de rico ou pobre
os
anciões
pais de família com todos seus filhos e netos. Aos outros a
castelã tinha prometido que Edelberto os convidaria um
outrodia.
A
alegria
foi
geral;
haviam
poucos senhores que fossem
tão estimados por seus vassalos como Edelberto, e cuja
desgraça fosse tão sentida e tão lamentada como a dele.
Kunerich,
que
o tinha
seguido ao pátio, disse a Edelberto: «A
180
bondade prevalece à força; vale mais fazer-se amar do q ue
fazer-setemer.»
Edelberto
acrescentou:
«Um senhor q ue os maus temem e
osbonsestimaménaminhaopiniãoohomemporexcelência.»
181
182
CAPÍTULOXIX
DELBERTO e Kunerich frequentavam-se
muito.
O
antigo
ódio
de
Kunerich
tinha-se
mudado
num tal
respeito e amizade, que ele não fazia nada de
importância sem primeiro ouvir a opinião de seu amigo, e
recebia
sempre
conselhos
úteis
para seus interesses e para o
bem de seus vassalos. Entre Emma e Hildegarde tinha-se
formado uma
íntima
e terna
união.
Emma
honrava
a nobre
dama como sua segunda mãe, e esta a amava com
verdadeiros sentimentos maternos. A intimidade destas
duas famílias contribuía muito
a comprazer
sua
existência.
Contudo, havia algum tempo que Kunerich não vinha a
Tanemburgo, e sob diversos pretextos tinha impedido as
visitasqueEdelbertoeEmmalhequeriamfazer.
183
Um dia porém chegou Kunerich muito apressado a
Tanemburgo
e pediu-lhes
que o seguissem imediatamente a
Fichtemburgo. Edelberto e sua filha aperceberam logo que
se passava uma coisa extraordinária no espírito de seu
amigo.
Quando chegaram a Fichtemburgo, deixou apenas o
tempoaseushóspedesparasaudarsuaesposa.
«Edelberto, disse
ele,
vinde um instante aqui comigo, e vós
Emma, tende a bondade de me acompanhar.» Dizendo isso deu
o
braço
a Edelberto;
Emma
e Hildegarde os acompanharam.
Foram assim para a sombria galeria que conduzia à prisão
ondetinhagemidoEdelbertotantotempo.
«Porém, disse este agitado, para onde me conduzis?» —
«Tremo, disse Emma, o q ue vamos fazer naquele lugar de
horror?» Kunerich não disse
nada;
abriu
a porta
da
prisão,
e
com
grande
admiração
viram
uma
magnífica capela ornada
ao gosto do tempo. A luz penetrava por uma grande janela
através de magníficos vidros coloridos; o teto e as paredes
estavam pintadas de azul celeste e semeadas de estrelas
de
ouro, o altar ornado de ricos dourados cujo delicado
trabalho igualava as obras dos ourives. Edelberto e Emma
manifestavam sua admiração e alegria. «Julguei, disse
184
Kunerich
alegremente,
q ue esta transformação vos regozijaria,
queria vos fazer uma surpresa agradável, e esta é a razão de ter
impedido vossas visitas. Não é verdade q ue esta capela é bela? A
honra da invenção pertence à minha piedosa Hildegarde.
Escutai como foi. Quando no último outono voltamos a nosso
castelo, depois de vos ter acompanhado a Tanemburgo,
Hildegarde me pediu q ue lhe mostrasse o cárcere onde sofrestes
tanto tempo; recusei, dizendo q ue não podia vir a este lugar sem
sentir uma cruel emoção; mas como ela renovou suas instâncias,
cedi. Assim q ue entramos, ela me disse: Olha
como
a piedade
filial soube mudar este lugar de horror em um suportável
domicílio. — É verdade, respondi eu, isso
era
antes
um
lugar
terrível,
porém
agora
está
limpo
e claro como o coro de uma
igreja.
«A estas palavras Hildegarde bradou: Tu me dás uma bela
ideia,
de que já me lembrei quando visitei a bonita capela de
Tanemburgo. É fácil converter essa alta abóbada numa
capela; é conveniente fazer isso para testemunhar nossa
gratidão
ao
Céu
pela salvação de nosso filho. A edificação de
uma capela
é o melhor
que
podemos
fazer,
e além
disso
é o
que falta no nosso castelo. Somos sempre obrigados a ir à
aldeia para assistir ao serviço divino. Edifiquemos uma
185
capela no nosso castelo, é um monumento que não pode
deixar de atrair a bênção de Deus sobre nossos
descendentes.
Tais foram suas palavras q ue eu aplaudi de todo
meucoração.
«Tens
muita
razão, lhe disse eu, isso se fará. De agora em
diante esta prisão não ouvirá mais os gemidos dos presos;
aqui
viremos
dar
graças
a Deus
pela
sua misericórdia e pela
sua bondade de ter salvado nosso filho com a coragem de
Emma, e de me ter reconciliado com o cavalheiro
Edelberto.»
«E amanhã, disse a boa
Hildegarde, virá o piedoso padre
Norbert para consagrá-la. Sigberto, Teobaldo e outros
cavalheiros ainda com q uem temos muita amizade, nos
prometeram de vir com suas esposas e filhos assistir a esta
festa. Porém, os hóspedes q ue mais estimamos e amamos sois
vós, caro Edelberto, e esta encantadora Emma. Estamos
persuadidos q ue tomareis uma sincera parte na consagração
desta capela, q ue vos deve a existência, e q ue não assistireis a
estabelacerimôniasemumapiedosaemoção.»
A consagração da capela foi com efeito uma bela e
tocante solenidade. Os convidados chegaram à hora fixa
com suas famílias; todas em traje rico, mas conveniente a
umafestareligiosa.
186
O pequeno Eberard e suas irmãzinhas, estavam
ajoelhados diante do altar-mor com as mãos postas com
tantadevoçãoquepareciamanjos.
0 venerável padre Norbert entrou, acompanhado de
alguns outros sacerdotes; lançou um olhar de satisfação
sobre a reunião, cujas religiosas disposições se
manifestavam no seu exterior, dirigiu aos assistentes uma
curtaexortação;ei-laaqui:
«Caros irmãos, a ternura paternal de um nobre senhor e de
uma nobre dama q ue viram salvar seu filho de um perigo
iminente, a ternura filial de uma nobre senhora para com seu
pai, q ue neste lugar mesmo recebeu dela os mais extremos
desvelos, eis o motivo conveniente pelo q ual esse recinto horrível
se transformou numa pacífica capela, em q ue não se ouvirão
mais do q ue as palavras de adorações dirigidas ao Senhor e
açõesdegraçasporseusbenefícios.
«O acontecimento q ue deu lugar à solenidade atual me
forneceu o assunto deste discurso. Porém, veio magoar a
modéstia de meus honrados ouvintes; não narrarei as
circunstâncias, elas são bastante conhecidas: limitar-me-ei a
tirar daqui algumas lições, alguns preceitos de q ue esta história
é o exemplo; e visto q ue à roda deste altar se acham reunidos
187
muitos pais de família com seus filhos e filhas, terminarei por
algumaspalavrasaospaiseaosfilhos.
«É uma preciosa instituição de Deus cuja sabedoria e
bondade brilham por toda a criação, o duplo fenômeno da
ternura paternal e filial. A q uem os afetuosos pais prodigam sem
cessar os mais caros desvelos? às mais amáveis, e às mais
débeis criaturas q ue existem, os meninos. A q uem dirige-se o
amor q ue Deus plantou no coração dos meninos? a centelha do
amor universal q ue Deus uniu ao mundo? aos pais. Em
consequência, por via de q uem os primeiros benefícios q ue Deus
distribuiu na terra, ao corpo e à alma do homem, chegam a ele?
por um bom pai, por uma mãe amante e sensível! Por q ue meio o
amor infinito do Ente invisível se revela? pelo amor q ue sentem
os virtuosos pais por aqueles a q uem deram a vida. É necessário
que os pais e as mães se esforcem a não oferecer neles a seus
filhos senão exemplos puros e irrepreensíveis da virtude. É
mister q ue eles imitem a Deus, q ue não dá somente ao homem
pão e vestido; mas q ue vela paternalmente por nós, nos instrui e
nos guia para o bem, variando as recompensas e os castigos, e
que firma a moral do homem pelas tribulações e provas. O amor
dos pais aos filhos, esta flama celeste, não deve ser alterada e
escurecida pelo fumo dos enleios terrestres, isto é, ela não deve
188
degenerar em uma afeição cega q ue não reconhece os defeitos
que costumam perder os meninos, não deve apagar-se pelo
amor do mundo, pelos prazeres sensuais e voluptuosos q ue
gastão nossa a atividade, finalmente pela impetuosidade
desenfreadadaspaixões.
«Ó mães! reconhecei toda a importância da
responsabilidade de q ue Deus vos encarregou. Sois vós q ue
tendes a maior influência sobre vossos filhos, é de vós q ue eles
recebem as primeiras impressões, impressões tão fortes q ue
raras vezes se extinguem da vida. Oh! compreendei q ue para vós
não existe uma maior felicidade, uma mais deleitável alegria,
que a de educar vossos filhos para a virtude e para a piedade, e
que no cumprimento desta santa tarefa vós criais para vós
mesmas uma fonte de inesgotáveis prazeres. A recompensa não
vos faltará aqui na terra, pois os filhos educados desta maneira
não recuaram diante de nenhum sacrifício q ue serão forçados a
fazer para o bem e felicidade de seus pais, como tivemos há
pouco o exemplo; e na morada celeste uma maior recompensa
vos espera. Lembrai-vos com q ue sossego e consolação podeis
fechar vossos olhos na hora da morte, q uando tiverdes a
convicção de deixar filhos q ue têm em si uma garantia contra as
seduçõesdomundo.
189
«Bem-aventurados são aqueles q ue podem dizer um dia
perante o trono de Deus:
Aqui
estamos
nós
e aqueles
que nos
confiastes.
«O dever dos filhos é saber apreciar e avaliar a felicidade
de ter bons e piedosos pais. Filhos e filhas q ue acabais de sair da
idade da infância, lançai um olhar para esse tempo de ouro o
mais feliz de vossa existência. Deliciosa época em q ue vossos
pais dirigiam todos os vossos passos para o bem, satisfaziam a
todas as vossas necessidades. Vossos pais não recuaram diante
de nenhuma fadiga e dispensaram muitos prazeres por vosso
interesse. Vossas mães tão ternas como sacrificaram-se
inteiramente por vosso bem e não viveram senão para vós. São
estes os desvelos ativos de um pai, essa afetuosa vigilância de
uma mãe q ue vos garantiram de mil perigos. Nos vossos
pequenos embaraços, ao pé de q uem procurastes um refúgio?
junto deles. Quem enxugou vossas lágrimas? foram eles. Sua
superior sabedoria vos deram úteis lições; eles substituíram o
que vos faltava em experiência, esta sabedoria tornou-se vossa;
eles desenvolveram vosso espírito e vos ensinaram a conhecer o
que é verdade, o q ue é bom, e vos excitaram a segui-los. Árbitros
em vinte pequenas disputas entre irmãos e irmãs, eles
familiarizaram-vos com a tolerância, com a paz e reconciliação.
190
A satisfação causada a vosso pai por vossa boa conduta, o doce
sorrir nos lábios de vossa mãe, eram para vós as mais belas
recompensas. Oh! como Deus vos vigiou com um cuidado terno e
paternaldesdeomomentoq uevossosolhosviramaluzdodia.
«Reconhecei, caros filhos, nesta disposição do Altíssimo
sua afeição e sua benevolência para convosco. Honrai-o na
pessoa de vossos pais, pelas mãos dos q uais Ele vos faz tanto
bem. Amai esses pais q ue Deus vos deu; sede dóceis a suas
palavras, obedientes a seu primeiro sinal! Que a mais terna
gratidão inunde vosso coração. Longe de vós esta
monstruosidade revoltante, a ingratidão filial. Tende uma
sincera confiança em vossos pais, e guardai-vos de dissimulação
e de mentira; esses são os dois primeiros passos q ue conduzem à
perdiçãodaalma.
«Vossa tarefa seja fazer a felicidade dos autores de vossa
vida. Não podendo recompensá-los dos inúmeros benefícios de
que eles vos acumularam, buscai ao menos agradecer-lhes pelo
reconhecimento, da mesma maneira com q ue eles protegeram
vossa infância, socorrei-os na sua velhice onde eles precisam de
umapoio,eadoçaiseusúltimosmomentos.
«Só assim cumprireis o q uarto mandamento; e assegurais
vossa felicidade neste mundo e no outro. A bênção de Deus vos
191
seguirá até o túmulo, e além do túmulo tereis em recompensa a
glóriaeterna.
«Agora afasto meus olhos da reunião engrupada ao redor
deste altar, e os elevo a Deus, a q uem este altar é consagrado, a
Deus q ue é nosso Pai, e q ue nos ama, de q uem somos filhos e a
quem devemos amar sobre tudo. Vós todos q ue amais vossos
filhos com um amor profundo, sede na vossa ternura o penhor
daquela q ue Deus tem por vós. Que consolação para um pai,
para uma mãe, q ue se pode dizer nas tribulações: Deus me ama
muito mais do que eu amo meus filhos! Como não velaria
Elesobreminhasorte?ComopoderiaEleesquecer-me?
«E vós, filhos cujo coração habituou-se a respeitar e
estimar vossos pais, a ter confiança neles vós somente podeis
dar a Deus na plenitude e sinceridade do coração o doce nome
de pai. Deveis amá-los sobre todas as coisas e ficar firmes na
obediência de suas leis, q uando a atração do mal vos q uiser
seduzir; tornai-os verdadeiramente virtuosos. São também
aqueles sós q ue foram educados longe do ódio, da inveja e da
discórdia, q ue olham para todos os homens como filhos de um só
pai; e os amam como irmãos. Quando eles forem assaltados por
essas tribulações de nenhum humano será isento, terão o feliz
privilégio de achar na confiança de Deus um apoio firme e não
192
temer a morte — pois a morte nos leva justamente junto a Ele, a
essamoradapaternal,amelhorq ueseusfilhospodemhabitar.
«Oh, Deus nosso Pai q ue estais no Céu, dignai-vos fazer
com q ue todos os homens se amem como irmãos; q ue eles
protejam a sorte do órfão e da pobre viúva; q ue eles se
preservem das manchas do mundo q ue perturbam o amor
sincero!
«Se eles obrassem assim, ó meu Deus, eles vos adorariam
no espírito e na verdade; todas as famílias da terra formariam
só uma, sobre a q ual repousariam vossos olhos com satisfação e
benevolência. Comprazei-vos de q ue o serviço divino a q ue vai
ser consagrada esta capela, hoje e por muito tempo contribua
para este resultado; q ue vossa graça nos ajude a alcançar esse
fimemnomedeJesusCristoNossoSenhor.Amém»
Depois da consagração da capela e da celebração da
missa, os assistentes foram para a grande sala do castelo,
onde os esperava um esplêndido banquete. Apenas
acabaram de se assentar na mesa, de repente, ressoaram
trombetas no pátio do castelo. Kunerich e os outros
cavalheiros levantaram-se
precipitadamente
e foram
para
a
janela; viram o pátio cheio de muita gente armada. Muitos
criados entraram no mesmo instante
na
sala
anunciando
o
Duqueempessoa.
193
Os cavalheiros queriam correr ao seu encontro,
quando
ele
entrou
na
sala,
cercado
de
um
cortejo
brilhante.
Era um homem distinto por suas maneiras nobres e sua
postura majestosa, ainda que os cabelos mostrassem sua
idade avançada. Começou por saudar Edelberto, e,
dando-lheamão,disse:
«Meu caro Edelberto, q ueria-vos anunciar eu mesmo a
notícia do restabelecimento da paz, e vos agradecer em meu
nome e no do Imperador o socorro q ue nos destes e q ue
contribuiu também ao feliz resultado das armas; q ueria
igualmente restituir pessoalmente vossos bravos vassalos.
Cheguei ontem muito tarde a Tanemburgo e soube q ue estáveis
em Fichtemburgo. Desde q ue o dia amanheceu pus-me a
caminhocomminhacomitivaparavosfalaraqui.
«Aposto,
disse
ele
a Kunerich, q ue não estáveis preparado
para uma tal surpresa? O Imperador me encarregou
especialmente de testemunhar sua satisfação sobre vossa
reconciliação com o excelente Edelberto. Não posso dissimular o
prazer q ue me causa a reunião e a boa inteligência de dois
bravoscavalheiros.»
Kunerich
estava elevado ao cúmulo de prazer pelo favor
queoImperadoreoduquelhefaziam.
194
Depois de ter cumprimentado o venerável padre
Norbert,
e ter
expressado
sua satisfação de o ter encontrado,
dirigiu-se à esposa de Kunerich. «Nobre dama,
lhe
disse
ele,
permite q ue conte bastante com a vossa bondade e ouse
assentar-me na vossa mesa, e vos saudar como a amável castelã
a q uem eu e todos estes senhores devemos uma graciosa
hospitalidade.
«Quanto a vós, minha encantadora senhora, disse ele
dirigindo-se a Emma, estou encarregado de uma mensagem
para vós; porém, não desempenharei minha missão senão
depois de jantar, e agora não q uero reter por mais tempo os
senhores cavalheiros e suas damas; peço q ue eles aceitem em
comum meus comprimentos; pois a dizer a verdade, o curso q ue
acabamos de fazer excitou meu apetite. Vou dar o exemplo,
assento-me na sua mesa amigavelmente e sem cerimônia. Rogo
à senhora de Fichtemburgo e à jovem senhora de Tanemburgo
que me deem o prazer de assentar-se a meu lado; ainda q ue faço
mentir o provérbio q ue diz, q ue a virtude ocupa sempre o meio.
Vós, venerável padre, assentai-vos defronte de mim, entre os dois
cavalheiros reconciliados; o restabelecimento da concórdia foi
sempre vossa preocupação predileta; este lugar deve vos
agradar. Teremos, além disso, a nosso lado as q uatro pessoas
195
que tomaram parte no acontecimento q ue nos reúne todos aqui,
e nós poderemos conversar assim mais a nosso gosto. Os outros
convidadosconhecemseuslugares.»
Nomeiodobanqueteoduquetomouapalavra:
«Soubemos na corte do Imperador da discórdia e da
reconciliação dos dois cavalheiros, e a parte q ue tomaram nisso
a amável Emma de Tanemburgo e a nobre Hildegarde; mas
desejo conhecer todas as particularidades deste acontecimento,
noq ualtomoomaisvivointeresse.»
Então o duque fez diversas perguntas. Edelberto e
Emma, Kunerich e Hildegarde foram convidados
alternativamente a contar. O duque escutava com uma
atenção notável, e durante as narrações testemunhou
muitas vezes profunda compaixão pelos sofrimentos de
Edelberto, e manifestou sobretudo sua admiração por
Emma. Elogiava igualmente a conduta de Hildegarde, e
louvou os sentimentos atuais de Kunerich. Edelberto e
Emma, por amor deste último, queriam omitir algumas
particularidades; porém Kunerich as contava ele mesmo
comamaiorfranqueza:
«Fui muito culpável, disse ele mesmo, eu o reconheço; mas
enfim o erro foi feito e o silêncio não o poderá apagar; é mais
196
honroso confessarmos nossos erros para os corrigir; creio ter
feito isto; e desejo q ue todos os pecadores façam o mesmo, pois
sóassimreconquista-seosossegoeapazdocoração.»
No fim desta narração, o duque saudou a todas as
pessoaspresentes,cominexplicávelsatisfação,edisse:
«É a esta virtuosa senhora q ue devemos esta reunião de
paz e de amizade; sem sua dedicação estaríamos neste momento
uns contra os outros em um combate sanguinolento; pois não
teríamos deixado por mais tempo o cavalheiro Edelberto nesta
terrível prisão. Já se tinha ajustado na corte do Imperador q ue
logo q ue a paz fosse restabelecida deveria dirigir-me com
numerosas tropas ao castelo de Kunerich para me apoderar
dele. Kunerich sem dúvida oporia uma resistência obstinada e
muito sangue teria sido derramado. Graças a Deus q ue isso
conseguiu-se de uma outra maneira por meio de uma terna
jovem,anobresenhoraq ueestáaomeulado.»
AmodestaEmmadeTanemburgocorouedisse:
«Ah, meu senhor, tanta honra não me pertence. Foi Deus
que fez tudo. O pássaro q ue pousou sobre a boca do poço
contribuiu muito para o restabelecimento da boa inteligência
entreocavalheiroKunerichemeupai.»
Ovenerávelpadredissecomprofundaemoção:
197
«A ingênua e modesta observação q ue acaba de fazer
Emma de Tanemburgo é muito justa. Verdade é q ue todos os dias
acontecem mil pequenas circunstâncias às q uais não prestamos
atenção, e q ue têm não obstante as mais sérias consequências,
que decidem mesmo às vezes a sorte de muita gente; e isto se
manifestou justamente na história q ue nos ocupa. Se por
exemplo no dia em q ue o belo sol do outono esclarecendo o
castelo com seus mais brilhantes raios, houvesse chovido, o
pequeno Eberard não teria descido ao pátio, e Emma não teria
tido ocasião de o salvar e comover o coração do pai, e talvez q ue
um grande número de valorosos guerreiros tivessem perdido a
vida no ataque deste castelo, deixando em lágrimas viúvas e
órfãos. Quem poderia prever q ue um prato de legumes fosse
suficiente para mudar a sorte de uma família? Entretanto, se
não se tivesse servido tortulhos na mesa do carvoeiro, talvez
Emma não se tivesse lembrado de entrar para o serviço do
porteiro deste castelo. Deus permitiu q ue estes tortulhos
servissem de preservar este castelo da ruína q ue o ameaçava, e o
tornasse neste dia um lugar de alegria e de festa, em vez de um
teatro de desolação e horror. É assim q ue se manifesta a
Providência nas circunstâncias menos significantes na vida do
homem. Da mesma sorte q ue um hábil músico sabe misturar
198
com mil sons divinos alguns desarmoniosos para compor uma
bela harmonia, o poder e a sabedoria divina formam o curso de
nossa vida de mil acidentes agradáveis e tristes, mas q ue
harmonizam todos juntos. Se nós examinássemos muitas vezes a
nossa vida neste ponto de vista, q uantos motivos não
acharíamos para louvar a Deus por suas disposições admiráveis
epaternaisparaconosco...»
Todos aplaudiram o discurso do bom padre; então o
duquelevantou-se,pegounoseucopodeouroeexclamou:
«À saúde do Imperador!» Este brinde foi repetido com
entusiasmo por todos os assistentes. O duque pondo seu
copo na mesa voltou-se para Emma, e disse: «É neste
momento solene q ue devo desempenhar a mensagem de q ue o
Imperador me encarregou para convosco, minha cara senhora.
Foi com a maior admiração e satisfação q ue ele ouviu falar da
vossa piedade filial, q ue o tocou vivamente, e sua sabedoria o fez
tomar uma resolução de q ue vos q uero dar parte, assim como a
vossonobrepaieatodososassistentes.»
O duque fez sinal a um dos cavalheiros que o tinha
acompanhado. Este trouxe uma grande carta escrita sobre
pergaminhos com muitos ornamentos; uma tira de veludo
escarlate a cercava, e fitas bordadas de ouro sustinham o
199
grande
selo
imperial,
trancado numa caixinha de marfim. O
duqueapresentouestacartaaEmmaelhedisse:
«Nobre senhora, como vosso pai não tem filhos, e
Tanemburgo como feudo masculino devia recair um dia nos
domínios do Imperador e do império, sua Majestade, com o
sentimento dos príncipes do mesmo império, decidiu q ue a
possessão deste feudo vos seria transmitida; esta carta contém
os títulos dessa doação. Podeis escolher segundo a inclinação de
vosso coração entre os filhos das mais nobres e ilustres famílias
de vossa antiga Alemanha um esposo q ue seja digno de
possuir-vos. Ele não terá outra condição q ue a de tomar o nome
de Tanemburgo. Que essa gloriosa mudança do nome de
Tanemburgo se transmita de idade em idade a vossos filhos e
netos, e os descendentes dessa nobre raça sejam por muito
tempoaindaosbenfeitoresdaterra.»
Edelberto
estava
profundamente
comovido
e tocado do
favor
inaudito
que
o Imperador
lhe
concedia. Emma, que se
julgava pouco digna de uma tão alta distinção, não pôde
acharumasópalavraparamanifestarsuagratidão.
O
voto
do duque foi mais tarde inteiramente cumprido,
muitos jovens cavalheiros solicitaram a mão de Emma; ela
escolheu
o mais
virtuoso
e o mais
nobre de todos, foi Carlos
o
mais
moço
dos
filhos
do
duque.
Esta
união
foi
coroada de
200
toda felicidade que a virtude e a elevação da alma gozam
aquinaterra.
Ao sair da mesa, o duque quis ver o poço e a capela,
Hildegarde ordenou que cercassem o balde de velas para
quesepudessefazerumaideiadaprofundidadedoabismo.
O duque foi com todos os convidados para o poço;
elogiou a bela construção, e contemplando o círculo de luzes
quedesaparecianopoço,nãopôdedeixardedizer:
«Na verdade, Senhora de Tanemburgo, não sei como
tivésseis a coragem de descer a este horrível abismo. Fizestes
deste poço um monumento q ue não é inferior àqueles q ue se
elevamagrandesheróis.»
«Oh não, senhor, disse Emma confusa, este poço é antes
um monumento do poder supremo e da misericórdia de Deus.
Creio q ue q uando desci, a coragem q ue me determinou a isso
nãoestavaemmim.»
O duque visitou a capela, ajoelhou-se alguns minutos
sobreosdegrausdoaltar,levantou-seedisse:
«Foi o terno amor de Emma por seu pai q ue mudou este
horrível cárcere em uma capela elegante; é mister deitar sobre o
altarestainscriçãocomletrasdeouro:—Àpiedadefilial.»
Emma respondeu, não
sem
corar
muito:
«Não, não; isto
seria honra demais para um pobre mortal. É ao Todo Poderoso,
201
que se serve de nós para preencher grandes coisas, q ue devemos
consagrarestealtarparasempre.»
O venerável Norbert elogiou Emma pela sua
humildade. «Eu proporia, disse ele, q ue em lugar desta
inscrição, se fizesse uma outra q ue a modéstia desta senhora
não recusaria: Honra teu pai e tua mãe para gozares dias
felizes.»
Fez-se segundo as palavras do venerável padre, e o
preceito divino resumido nestas palavras realizou-se
inteiramenteemEmmadeTanemburgo.
FIM.
202
“Bem-aventuradososmisericordiosos,
porquealcançarãomisericórdia!”
Mt5,7
203