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Historia Social da Criancga e da Familia SEGUNDA EDICAO <3 ty og % I Philippe Ariés @|LTc ‘O autor ea editora empenharam-se para citar adequadamente e dar o devido crédito a todos ‘0s detemiores dos direitos autorais de qualquer material wilizado neste livo,dispondo-se a possiveis acertos cso, inadvertidamente, a identificagio de algum deles tena sido omitid, 'Nio€responsabilidade da editoranem do autor cventuais danos ou pendasa pessoas ou bens ‘que tenham origem no uso desta publicasio. Titulo orginal: L'Bnfant et ta Vie faniliate sous Ancien Régime Traduzido da tereeraedigo, publicada em 1975, pela Editions du Seuil, de Pais, ranga, na séic Points Histoire, diigida por Michel Winoc Copyright © 1973 by Ealtions du Seuit Exiga para o Brasil. [Nao pode cireular em outros patses. Primoiraedigio brasileira: 1978 Direitos exclusives para Lingua portguess Copyright © 1681 by LTC — Livros Teenieos ¢ Clentificos Editora S.A, ‘Uma editors integrante do GEN | Grupo Editorial Nacional Reservados todos os direitos, E proibida a duplicagdo ou reprodugdo deste volume, no todo ‘ouem parte, sob quaisquer fcrmas ou por ualsqucr mcios (cleirOnico, mectnico, gravasao, forocépia,cistibuiglo na internet ou outros), sem permissio expressa da Eira. ‘Travessa do Ouvidor, IL Riode laneiro, RJ — CEP 20040040 Tel 21-3970-9480 Fax: 21-2721-3202 ‘ue@ grupogen.com.br wow:lteeditora.com.br CIP-DRASIL. CATALOGACAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RI. A746 2ed. ‘Arig, Philippe, 1914-1984 istGri social da crianca e da familia / Philippe Ariés ;tralugo de Dora Flaksman, - 2eed. - Rio de Janeiro : LTC, 2006 ‘Tradupio de: L’enfant eta ve familiale sous Ancien Régime, 3.ed ISBN 978-85-216-1347-3, 1. Criangas -Franga, 2. Famfia- Franga, 1. Thulo, 05-3898. cop 392.13, DU 3923 CONCLUSAO Os Dois Sentimentos da Infancia N: sociedade medieval, que tomamos como ponto de partida, o sencimento da infin= cia nio existia —o que no quer dizer que as criancas fossem negligenciadas, abando- nadas ou desprezadas. O sentimento da infincia nio significa o mesmo que afeigao pelas cri- angas: corresponde 3 consciéneia da particularidade infantil, essa particularidade que distin- _gue essencialmente a crianga do adulto, mesmo jovem., Essa consciéncia nao existia. Por essa razio, assim que a crianga tinha condigSes de viver sem a solicitude constante de sua mie ou de sua ama, ela ingressava na sociedade dos adultos ¢ nJo se distinguia mais destes. Essa soci- edade de adultos hoje em dia muitas vezes nos parece pueril: sem davida, por uma questio de dade mental, mas tambéin por sua questio de idade fisica, pois ela era em parte composta de criangas e de jovens de pouca idade. A lingua nfo atribufa A palavra enfant 0 sentido do restrito que lhe atribuimos hoje: em francés, dizia-se enfant como hoje se diz gars na lingua~ gem corrente. Essa indeterminagio da idade se estendia a toda 2 atividade social: aos jogos € brincadeiras, as profissées, as armas. Nao existem representagdes coletivas onde as ctian- as pequenas ¢ grandes nio tenbam seu lugar, amontoadas num cacho pendente do pesco- 0 das mulheres,’ urinando num canto, desempenhando seu papel numa festa tradicional, trabalhando como aprendizes num atelié, ou servindo como pajens de um cavaleiro. A crianga muito pequenina, demasiado frigil ainda para se misturar 4 vida dos adultos, “niio contava”: essa expressio de Moliére comprova a persisténcia no século XVII de uma mentalidade muito antiga. © Argan de Le Malade imaginaire tinha duas filhas, uma em ida- de de casar¢ a outra, a pequena Louison, mal comegando a falar e a andar, Argan ameacava por a filha mais velha num convento, para desencorajar seus amores. Seu irmo The diz: “De onde tirastes a idéia, meu irmao, vés que possuis tantos bens e tendes apenas uma filha — pois no conto a pequena — de mandar a menina para um convento?”® A pequena nio cc porque podia desaparecer. “Perdi dois ou tésfilhos pequenos, nfo sem eristeza, mas sem deses- 3B, Michauk, Dacia da tomps présente Th. Walton, 1991 p. 119: Pa wey ae femme gous, (7 Porat dens nf 14 owe. Pintara de Van Lae (1502-1642) reprodtds em Berd, 0! 468, Le Malad magna, 0 TI, cena I 100 OS DOIS SENTIMENTOS DA INFANCIA pero”, reconhece Montaigne.’ Assim que a crianga superava esse periodo de alto nivel de mortalidade, em que sua sobrevivéncia era improvével, ela se confundia com os adultos. As palavras de Montaigne e Molidre comproyam a permanéncia dessa atitude arcaica com relagio 3 infincia. Era uma sobreviéncia tenaz, porém ameacada. Ji desde o século XIV, uma tendéncia do’ gosto procurava exprimir na arte, na iconografia e na religiio (no culto dos mortos) a personalidade que se admitia existir nas criangas, ¢ 0 sentido poético © familiar que se atribnia 3 sua particularidade. Acompanhamos a evolucio do putto, do retrato da crianga, até mesmo da crianca morta em pequena. Essa evolugo terminou por dar 3 crianga, § criancinha pequena — ao menos onde esse sentimento aflorava, ou seja, nas camadas superiores da sociedade dos séculos XVI e XVII — um traje especial que a distinguia dos adultos. Essa especializago do traje das criangas, e sobretudo dos meninos pequenos, numa sociedade em que as formas exteriores 6 traje tinham uma importin- cia muito grande, é uma prova da mudanga ocorrida na atitude com relagio as criangas: elas contavam muito mais do que 0 imaginava 0 irmio do Malade imaginaire. De fato, nessa peca que parece ser tio sever para com as criancinhas quanto certas expresses de La Fontaine, hi uma conversa entre Argan e a pequena Lowison: “Olha para mim, sim? — Que &, papai? — Aqui. — O qué? —Nio tens nada a me dizer? — Se quiserdes, eu vos contarei, para distrair-vos, a histéria da Pele de Asno, ow entio a fibula do Corvo ¢ da Raposa, que aprendi hi pouco tempo”. Um novo sentimento da inffincia havia sur- gido, em que a crianga, por sua ingentidade, gentileza e graca, se tornava uma fonte de distragio ¢ de relaxamento para o adulto, um sentimento que poderiamos chamar de “paparicagio”. Originariamente, esse sentimento pertencera as mulheres, encarregadas de cuidar das criangas — mies ou amas. Na edigio do século XVI do Grand Propribtaire de toutes choses, lemos a propésito da figura da ama: “A ama se alegra quando a crianga fica alegre, e sente pena da crianca quando esta fica doente; levanta-a quando cai, enfiixa~ a quando se agita ea limpa quando se suja”. Ela eduea a crianga “e a ensina a falar, pro- nunciando as palavras como se fosse tatibitate, para ensiné-la melhor e mais depressa... ela carrega a crianga nos bragos, nos ombros ou no colo, para acalmé-la quando chor mastiga a came para a criang2 quando esta ainda nao tem dentes, para fazé-la engolir sem perigo € com proveito; nina a crianga para fazé-la dormir, e enfiixa seus membros para que nio fique com nenhuma rigidez no corpo, ¢ a banha e a unta para nutri sua pele..." ‘Thomas More detém-se longamente nas imagens da primeira infincia, do menino que & enviado & escola por sua mie: “Quando 0 menino nao se levantava a tempo, demoran- do-se na cama, ¢ quando, jd de pé, ele chorava porque estava atrasado, sabendo que Ihe bateriam na escola, sua mie Ihe dizia que isso s6 acontecia nos primeiros dias, e que ele teria tempo de chegar na hora: — Vai, bom filho, juro-te que eu mesma jé preveni teu mestre; toma teu pio com manteiga, pois nio seris surrado.” E assim ela o enviava a escola, consolado o suficiente para-nio cair em prantos ante 2 idéia de deixé-la em casa Montaigne, Bs, I, 8 *Le Grad Props de ites hoses, eaduzido para o flancés por J. Catbichon, 1556 (OS DOIS SENTIMENTOS DA INFANCTA wer ‘Mas ela ni tocava no fimndo da questio e a crianga atrasada seria realmente surrada quando chegasse 4 escola ‘A maneira de ser das criangas deve ter sempre parecido encantadora as mies e is amas, ‘mas esse sentimento pertencia 20 vasto dominio dos sentimentos nio expressos. De agora em diante, porém, as pessoas no hesitariam mais em admitir 0 prazer provoeado pelas maneiras das criangas pequenas, © prazer que sentiam cm “paparicé-las". M™ de Sévigné conféssa, nio sem uma certa afetagio, que passava longo tempo se distraindo com sua ne~ tinha: “Estou lendo a histéria da descoberta das Indias por Crist6vio Colombo, que me diverte imensamente; mas vossa filha me distrai ainda mais. Eu a amo muito... Ela acaricia ‘vosso retrato ¢ © paparica de um jeito tio engracado que tenho de correr a beijé-la”.* “HA uma hora que me distraio com vossa filha, ela é encantadora.” “Mandei cortar seus cabe- Jos, Ela agora usa um penteado solto. Esse penteado foi feito para ela, Sua tez, seu colo © seu corpinho sio admiriveis. Ela faz cem gracinhas, fala, faz carinho, fiz 0 sinal da cruz, pede desculpas, faz reveréncia, beija a mio, sacode os ombros, danca, agrada, segura 0 queixo: enfim, ela é linda em tudo que faz. Divirto-me com ela horas fio”. E, como se temesse alguma infeceZo, acrescenta com uma leviandade que nos surpreende, pois para nésa morte de uma crianga é um assunto grave com © qual mo se brinca: “Nao quero que essa coisi~ nha morta”. Isso se explica, no entanto, pelo fato de que esse primeiro sentimento da in- ffncia se combinava — como vimos em Moligre — com uma certa indiferenga, ou, me- Thor ainda, com a indiferenga tradicional. A mesma Mv de Sévigné descreve o luto de uma mie da seguinte maneira: “M** de Coetquen acabara de receber a noticia da morte de sua filhinha; ela desmaiou. Ficou muito aflita e disse que jamais teria outra tio bonita”. Mas talvez M™ de Sévigné achasse que essa mile ndo tinha muito coragio, pois acrescenta: “Mas seu marido ficon inconsolével”? Esse sentimento da infincia pode ser ainda melhor percebido através das reages criticas que provocou no fim do século XVI e sobretudo no século XVI. Algumas pessoas rabu- gentas consideraram insuportivel a atengio que se dispensava entio 3s crianas: sentimento novo também, como que o negative do sentimento da infincia a que chamamos “paparicagio”. Essa imritagio é a base da hostiidade de Montaigne: “Nao posso conceber ‘essa paixdo que faz com que as pessoas beijem as crlangas recém-nascidas, que nio tm ainda nem movimento na alma, nem forma reconhecfyel no corpo pela qual se possan tomar amiveis, e munca permiti de boa vontade que elas fossem alimentadas na minha frente” Ele nfo admite a idéia de se amar as criangas “como passatempo, como se fossem maci~ cos”, nem de se achar graga em “seus sapateados, brincadeiras e bobagens pueris”. E que, em tomo dele, as pessoas se ocupavam demais com as criangas.® Um outro testemunho desse estado de espirito seria dado um século mais tarde por Coulanges, o primo de M* de Sévigné.? A maneira como seus amigos e parentes papari~ Scitado por Jarman, Landnads nthe Hinary of Even, Londres, 1951 "a de Sevigné, ates, I de abril de 1672, DM de Sévign®, Lames, 19 de agosto de 1671 "Montaigne, Bsa I, 8 "Coulanges, Chansons hoses, 1694, 102 OS DOTS SENTIMENTOS DA INFANCIA cavam as criangas evidentemente o exasperava, Ele dedicou aos “pais de familia” uma can- ao que dizia: our bien dlever vos enfants N arenes présspieur ni mie; Mais, jusques de guile soent grands, Faates-les tie em compagnie Cor rien ne donne tant enna Que d'or Vnfant denen Le Pore avmgle crt toujours Que som fede choses exguises, Las autsesvoudraient re snrds Qui nentendent que des stties, Moisi faut de ness Apploudir Venfant gasté Quand on vous a dit un bow ton Quiet jly,au'il ext ben sage, Quion tuy a dorm dic bon bon ‘Nien exige paz davantage, Faiesluy faire serviteut “Aussi ben qu’ ron Prdeptewr, Qui aviraitqu’avee de bn sens Quolqu'un put saver drive A ties mammousess de trois ans Qi de quate ans ne saurone le Din pize encor dernitvement Je vie fade anes ‘Sche= encor, mes bonnes gens (Que re est pus insupportable Que de voir 20s petits enfans En rang d'oignan & Ia grande table Des morveux gui, le menton gras ‘Merton ies dojts dans tows fx plas Quis mange dn aut cost Sous les yous d'une gouvernante (Qui teur presce ta propreé Et qui ne soit point indulgente (Car on ne peut pen top promptement Apprendre & manger prprement.* ars bem educar vows crangas, / Nio poupeis o preceptor; / Mat aé que elas cresam, / Fare-ascalae quando ‘stiverem entreadulos,/ Peis nade abortee ato / Come ecitar a cana dos outos. // © Pa ce acces sempre 7 Que sew ilo diz coi ineigentes, / Mass euros, que s6 ouvein bobagers, / Gestaviam de ser sutdos; / Eno ‘entanto & preciso / Aphuir 0 eyfin! itt. // Quando alguem vos disee por pohes / Que vost flho € barito ¢ bem

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