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‘Toquei para fora nfo valia. nem gritava Joao de Insolente! Veio di quinhentos cruzeiros, — 0 conserto? vespondeu la de cima a vox da mulher, — Nao. O piano! E ainda sain rindo — Tinha graca!... Vocé ndo vé que isso é jogo! O que ele queria é ficar com 0 piano dado, para depois vendé-lo por qualquer preco. & assim que essa gente Rosilia e Sara desceram assustadas. E a fami se com respeito do velho mével como @ que! ressentimento deixado pel — Havemos de vendé-lo ainda por bom prego, vocé vai ver, anunciou Oliveira, fitando-a com emocio confusa. Nao se fabrica mais desse tipo. — Bota antincfo, que esta casa vai fie tendentes, disse Ro: ssim de pre- para ele « gente ouve Ihe a caixa de carvalho. — Entdo vamos Custear 0 saleta em quarto para futuro casal, — teriam que dispor del |, — teri le de qualquer maneira, " © velho piano amanhecera engalanado fo, e a casa preparada para a recepeao dos pretendentes. " O pri candidato a aparecer foi uma senhora acom- panhada da filha. Esta, mal avistara 0 mével, avangou logo ara ele, abriu-o, tentou uma frase no teclado. — Ih, mamée, mas esta todo estragado. A senhora levantou-se, olhou para as teclas descascadas. ___ Nao houve tempo de a familia Oliveira magoar-se, porque mesma porta por onde safram a muther com a filha chega- ram outros pretendentes: uma senhora de idade, cheirando a uma mocinha de éculos escuros com a sua pasta um judeu ruivo, de roupa sovada. O didlogo — Eu néo faco questio, alegava a moca. Vim porque mame me pediu, Hi de haver outros a venda. O que queria Alize ¢ que i estava atendo na campainha da porta quando senhora desceu do Onibus. Entramos j a seer smos juntas, mas eu cheguei A discussio pela conquista do piano lisonjeava os Olivel- ras, Entretanto, acharam prudente por termo ao mal-enten- dido, oferecendo eafé e sorrindo a todos. ‘A moca dirigit-se em seguida ao piano, que o judeu avalieva de longe com 0 olhar frio. Entrou, nesse momento luma senhora conduzindo uma colegial. Sentaram-se descon- fiadas. De repente, toda a sala ficou suspensa as notas que a mocinha tirava do teclado. Sons desafinades, metélicos, hor- ‘A recém-chegada fez uma areta, aper- ; mostrando-se mais tolerante, a dama Perfumada mandava um olhar indulgente para a velha caixa de misica. Os Oliveiras procuravam ler com ansiedade na fisionomia dos o judeu conservava-se impassivel. As vezes, todos se entendiain pelos olhos. 204 \gumas teclas nao existiam, outras radas. Nem as cordas vocais de cantora decrépi de velho cardiaco soariam com aquele timbre. Quando Doli investiu aos latides, percebia-se que era o pronunciamento da cachorrinha. E 0 mal-estar culminou. Havia como que um riso difuso pela sala, Entretanto, ninguém estava rindo. A moca parecia agora tocar por maldade, acentuando caco- fonias, martelando teclas mortas. Situacéo aflitiva, — Esse piano tem uma coisa, tentava explicar Joao de Oliveira. 1 muito sensivel, muda muito com a temperatura "A moca largou-o de repente, parou, de pé, para repintar 08 labios, e tomou a pasta: — Nem sei como 0 senhor teve coragem de r6r antincio para essa carcaca, disse lancando olhar de desdém para Rosé- Jia, como se fosse Rosalia a carcaca. E saiu. Josio de Oliveira suportava tudo calado. Era como se fossem para si as ofensas ao velho mével. Sentia-s via, nna obrigacao de declarar que se tratava de uma reliquia de familia. — No se const faz mais Houve um siléncio perfurado logo pela pergunta do judeu, pergunta que fora feita no momento em que mais clatidicava a reputacio do pobre piano: — Quanto pede por ele” “Avista do acontecido, Joao de Oliveira receou dizer 0 que pensava. Baixou 0 prego que em mente, — Quinze mil cruzeii spondeu com ti E olhou para todos, a ver o efeito. Ninguém ri disse nada. Mas tinha-se a sensacio de hilaridade geral. Foramse preparando os pretendentes para sair. Era a resposta muda, Oliveira esfrio. Teria dito alguma monstruosi- dade? $6 a velha fora delicada: disse que ia pensar. Mas por que aquele ar tio piedoso que deixava transparecer o seu verdadeiro juizo sobre 0 piano? perguntava a si mesmo, Oliveira, 6i hoje igual, acentuava. Igual nao se 205 Na porta da rua os que desistiram cruzaram com um senhor que queria entrar. — Veio pelo piano? perguntaram. Ih! o senhor vai ter uma. ‘Mas a voz animada de % — Entre! ele esta a . Ja tem vindo muita gente. Era um homem de meia-idade, cabeleira grisalha e abun- dante. Abriu a tampa da maquina, examinou-a demorada- mente. Devia ser professor. No pediu prego, disse que ia pensar, e despediu-se: — Depois conversaremos.... A casa ficou vazia. Os moradores se entreolharam decep- cionados. — Ninguém esta compreendendo 0 valor dele, comentou Joao de Oliveira com tristeza. A vendé-lo por qualquer preco, Prefiro deixar como est. — Eo enxoval de Sarita? objetou Rosalia. — Farei um empréstimo. — Como? Se teu ordenado nao da pra nada? — Adiaremos 0 casamento, — Mas eles estdo apaixonados, Joao! Querem se casar de qualquer jeito ‘Ouvia-se nese momento a voz de Sarita gritar do quarto que se casaria apenas com duas combinacdes novas, e mais algumas roupinhas indispensaveis. — A questio, prosseguia Rosélia, é que esta casa é uma caixa de fésforos. Onde iremos alojar o casal? Teremos que Wr 0 piano de qualquer maneira para dar espaco. Nossa ‘odo mundo hoje quer espaco, precisa de espaco! — Nao, ndo! gritou a filha 1a de dentro. Deixe quieto 0 nosso piano. To bonito que ele é. — Tio silencioso, atalhou a mae, Tu mesma o abando- naste. Vives na vitrola, A velha abriu a porta do quarto para falar mais de perto a filha. Estranhava que ela se pronunciasse dessa maneira. Langou-the 0 dilema: — Um marido ou um piano? Escolhe. — Ah, um marido, respondeu Sarita com voluptuosa conviecio. Légico. eira interrompeu loy 206 oli. veira foi indagando: — Muita gente hoje, Ros — Sim, alguns pedidos de informacao pelo tel eum senhor que veio pessoalmente e ficou olhando muito para ele. E também o judeu de ontem: — Disseram alguma coisa? — Nada. — Prometeram? — Também néo, Mas olharam muito, muito mesmo — Ah! olharam? Com interesse, com admiragao? — Isso nao sei di — Olharam sim, mame, interveio Serita. O velho prinei- palmente. Sé faltava comer 0 piano com os olhos. Joso de Oliveira comoveu-se. Jé nfio fazia questéo do preco, Queria apenas que seu piano fosse tratado com certa atengao. Ao menos isso. Podia nao valer muito dinh merecia consideracao espec' 1as pelo que a filha disse fentiase consolado da ma impressio da véspera. Devi set alguém sensivel a alma dos . — Deixou endereco, Sarita? Nao? Ah... mas voltaré nna certa. E se levantou para rondar a peca antiga. Namorou-a longo tempo. — Meu piano! disse baixinho, correndo-Ine a mao pelo verniz da madeira, como se acariciasse o pélo de um animal, Nenhum candidato no dia seguinte. Apenas uma voz de sotaque estrangeiro queria saber se era novo. Rosalia tespon- deu que néo, mas era como se fosse, tio conservado estava, 207 com certeza hii de — Amanha é sabado, pensou O} vir muta gente, No dia seguinte, descou de um uma menina. Defrontando com ras, perdeu a vontade de ent: informando-se na porta mesmo da marca e da idade do objeto, tratou de voltar sem querer vé-lo, — Muito obrigado. Nao é preciso, respondia as insistén- clas do dono, Eu pensava que fosse coisa moderna. Passar bem Joao de que recebera. aqui ouidado, sem per tomava as dores pelo seu piano. Desde ia, guardava-a com que seria forcado, num momento extremo como esse, a abrir mao dele, Ninguém, entretanto, queria reconhecer-the o valor. Ninguém! Mas... ¢ aquele individuo que apareceu na quarta-feira, ¢ lhe fez tantos elogios arrebatados, disse que era uma mara. vilha e se rectsou a adquiri-lo declarando que teria remorsos de compra-lo por tao baixo preco, e que ele Joao, e mais Dona Rosalia cometiam um crime abrindo mao de tio preciosa coisa? Oliveira no entendeu 0 que pretendia esse homem, Estaria zombando ou falando sério? perguntou a mulher. — Parece um gaiato, observou a companheira. — Talvez néio, Rosalia. Mais depressa que seu marido, perdera Rosilia as espe- raneas. Sua preocupagio agora, quando o via entrar, era atenuar-Ihe 0 aborrecimento, — Quantos, hoje? — Ninguém. Dois telefonemas. Nao deram os nomes mas ficaram de vir, disse-lhe a mulher com voz calma, — Eo judeu? — Acaba voltando na certa, Durante dias ficara esquecido o piano. ‘Como quem gosta de ver pessoa amiga perder o trem s6 elo prazer de gozar-Ihe mais tempo a companhia, assim 208 a gente fez sonhar, fez dane: - O piano fieava. O tinieo objeto que falava da Presenca dos antepassades. Meio eterno. Ele © 0 oratorio. — Vem, Sarita. Aquele trecho de Chopin, vé se te recordas, — Ab, pay ossivel; para se tocar nele é uma desgraca. Nao dé mais nada — Nao , sussrrou Rosalia, N&io vés camo anda teu pai Tota. vex que o olhar de Sarita pousava sobre o piano, ‘{wansfo-mava-o em cama de casal em que ela se revia abrac da. ao seu tenente de ai Durante dias e dias no apareceu nenhum pretendente, Apenas, de vez em quando, o telefonema espacado do judeu, itimas pulsacdes de um mi a para breve, de ser, Joao? — Como ha de ser 0 qué, Ros — 0 piano! — Nao vou vendé-lo m canalhas quevem 6 explo1 alguém que o preser Andava agitado pel se-lhe no rosto. — Escuta, Ros: Tijuca — Pronto! Chame 0 Messias. Ja Othe, venho oferecer-Ine 0 nosso pi Presente... Nao estou doido, tel... B isso mesmo... Nao s sim. Muito pequeno mesmo. Ei nfo 6?.., Absolutamente. Voltou-se depo 209) — Veja sé! Pensou que fosse primeiro de abril. Nao acreditou. Rosilia exultou com a idéia. Jodo encaminhow-se depois para o velho mével, como a consulté-lo sobre 0 que viera de fazer. — ‘Minha consciéncia esta tranqiiila”, pensou. “Tu nao serds rejeitado, ficarés na familia, no mesmo sangue. 4s filhas de minhas filhas te respeitardo, ainda tocaras para elas. Sei que nao ficarés constrangido na cass do Mesias, continuagao da nossa..." — Quando virao buscé-lo? intern J a arrumar o quarto nupcial de No dia seguinte, Messias, pelo telefone, pede contirmacto aos parentes de Ipanema. Um piano de presente era muito, era demais. Estava perturbado e agradecido. Nem tinha acreditado. — Mas é a verdade, Messias. Vocé sabe, nao é? a nossa easinha & uma casca de noz. O piano nao. pode continuar aqui, e Joao nao quer que ele peu Rosalia, disposta casal Oliveira estranhou o si — Houve alguma coisa. Telefona, Rosélia. Atendeu a prima, Estava embaracada. Cobravam uma fortuna pelo carreto. — Vocés compreendem... Com essa falta de gasolina néo €?... Esperem mais alguns dias, o Messias providenciando. Estamos contentissimos. $6 pensamos nele, Rosi A tltima frase soou falso aos ouvidos da mi de uma semana, Joao de Oliveira interpelou telefone: — Quer ou nfo quer, Messias? wa chegara a ri lica em palavras — © parente, nao imaginas como estamos desolados aqui. Ganhamos 0 presente e nao podemos recebé-lo. Pedem um dinheirao pelo transporte. E por cima de tudo, nés aqui também no temos espaco. & um desespero essa falta de 210 , nfo 6? , mas: Jofo de Oliveira desligou secamente. Jé estava compre- endendo. — Esta vendo, Ré nosso piano, nem dado! — Que se ha de fazer, Jodo! Todas as coisas acabam assim Ficaram tristes os dois. sufocado. A mae amparou-a: nha? Nao faz mal, havemos de vendé-lo 0. — Eu quero que ele saia quanto poucos dias e mett quarto nem esta vejo nada para 0 casamento. S6 esse piano enjoado pa palhar a minha vida, esse piano que ninguém quer ~- Fala baixo, minha filha, teu pai esta ouvindo, — E para que ouca mesmo, exclamou a moca no tiltime soluo, enxugando os olhos. ja! Nem dado querem saber do Sarita abriu-se num pranto © peso. Seriam prey iIha tomaram-se de esp: 211 -~ Nao, mulher; n&o ha comprador para esse piano. nfo ha mais quem queira recebé-lo de — Endo, que 6 que vai fazer, Joao? Que é que esta fazendo? interrogou Rosélia, pressentindo-lhe o gesto. © resto de Joao de Oliveira endureceu, enquanto seus Os homens esperavam. — Que coragem, Jo’o! Que crueldade! Nao havera outra salda? intervelo a mulher. Pense bem. Fica esquisito um piano langado ao mar. — Que é que voc? quer, Rosélia! Nao se afundam lnando para o mével, , 86 para ser dono go de um objeto de luxo — ele que 19 era dono de coisa alguma, senao de sua vida. Era sonho ie podia ser realidade imediata. Mas para onde leva-lo mbém? E para qué? Nem tinha casa, nem sabia tocar. . iia encostou-se, chorosa, aos ombros do marido. Jo de Oliveira tinha uma expressio de crueldade no olhar n2 — Agora é voc que esta sentimental, Rosalia! A mulher olhou para 0 marido: Na praia do Pinto e na Latolandia agrupam-se casebres miserdveis donde partem negrinhos para incursées nos bai thos, mas alegres. Assim facil encontra-los ora a pedir tostéo para sorvete, ora rando cartazes de cinemas, ora se espojando nas areias do Leblon. Aquele dia 0 Att saca. O piano estava tran severidade de suas linhas. Faziam-se os aprestos para o saimento. Joao de Oliveira pediu a mulher ¢ a filha que o despissern das pecas que podiam ser aproveitadas. Foram retirados os castigais de bronze. Arvanearam-se depois os pedais ¢ ornatos de metal, Em seguida, a tampa de carvalho, — Eu acho que nao se devia tocar nele, 0} amanhecera enfurecido pela res- ilo como sempre. E imponente na Eram quatro e vinte da tarde quando comecou o sa to. Uma multidao de gente abria alas na caleada. O piano vinha vindo com certa dificuldade. Alguns curiosos avanca- vam para yé-lo de mais perto. Rosalia e a filha ficaram con- a3 templando da varanda de cima, abracadas. Tristes. Nao tiveram &nimo de acompanhé-lo. A cozinheira enxugava os olhos com o avental, Ao chegar a procissio & esquina da rua transversal, inda- garam os moleques: — Para onde? ‘Todos queriam segurar 0 esquife ao mesmo tempo. E 0 piano quase tombava, — Para onde? perguntava-se de novo. — Para 0 mar! gritava Joao de Oliveira num assomo de comandante. E apontava o Atlantico, — Para o mar! para o mar! repetia a meninada, em coro. Dai por diante os moleques perderam o respeito. Com- preendendo que iam dar sumico a uma coisa respeitavel, to ram-se de sibita excitacao e faziam algazarra. A todo moms to tocavam a cachorrinha Doli, que saltava em cima e latia furiosa. Das sacadas apinhadas de gente os moradores se espan- tavam: — Que sera aquilo, Mae do Céu? Um piano!... Ele ja vinha voltando para o lado da praia donde soprava © sudoeste, — Saiu do noventa ¢ um! gritou um pretinho informan- do as familias. — Oh! 6 da casa de Sara. — E da casa de Jodo de 01 Um conhecido sai a rua iterpeld-lo: — Que foi isso? Sera possivel, Joao? — Nao é nada, nao é nada! Eu sei o que estou fazendo. Nao me atrapalhem. — Mas por que nao o vendes? — Vou vendé-lo, sim... ao mar... olha la... ao mar... E afobado, com ar de carrasco, retomava a tarefa, dando ordens. — Mais para a esquerda, pessoal... cuidado, senda ele tomba... fiquem s6 os mais fortes. 24 ia aos baques, exalando gemidos, De vez um moleque metia o brago no labirinto @ mao pelas cordas, provocando-lhe os tltimos ‘Uma senhora, da sacada, para Jodo de Ol — O senhor néo 0 vende, por acaso? — Néo senhora, nao vendo, Dou de graca. Quer? A senhora enrubesceu, sentiu-se ofendida e entrou logo, Joao de Oliveira, como um louco, oferecia de um modo geral: — Nao havera por af quem queira um piano? Aceitou-o mais adiante, no quarenta e trés, uma f de exilados poloneses. Aceitou, cheia de espanto. — Entdo podem ficar de uma vez com ele, gritou Joao de Oliveira, Os poloneses desceram, acercaram-se do velho mével, hesitantes: — Nés ficaremos com ele... isso nao ha dtivida, mas hossa casa é muito pequena, queriamos um prazo. = Ou agora ou nunca! Ele ja esta na rua, Nao querem, nao 6? Pessoal, toca o bonde!. Os moleques se assanharam de novo. £0 piano cada vez mats se aproximava do mar. Balan- sava como barata morta levada por formigas. Jodo de Oliveira mal percebia que das portas e janelas, de todas as residéncias partiam exclamacées confusas, — Mas isto ¢ uma Joucura! bradava alguém de outra sacada, — Loucura, nao é? volveu Joao de Oliveira sarcdstico, olhando para cima, Entao fica com ele, fica... janelas, repetia-se a wundo achava que era loucura, todo mundo queria o piano; bastava, porém, que o dono o oferecesse de graca, assim & queima-roupa, para que todos se descartas- sem, embaracados. Quem esta preparado para receber de supetdo um Jao de Oliveira ja nao dava mais explicagées a nin Prossegula resoluto, acompanhado por um s: vozes © lamentacdes. A procissio parou por ordem de da policia cerearam 0 velho mével. Jo: ‘am-lIhe os documentos, Foi a casa buscé-los. Achou que cram naturais as exigéncias a policia, devido a0 estado de guerra; com relacdo, porém, *ndo, ponderau que era em virtude de decisao .. uma coisa intima, de que nao tinha que dar satisfacdo a ninguém. Estava fazendo uso de um direito: jogai itendesse, I pondo a mao sobre o seu piano como quem ae: a testa de um amigo morto, comoveu-se, comecou a discorrer sobre a vida dele: — © uma peca antiga, das mais antigas que existem. Tinha sido de seus avés, gente que prestara servigo ao Império, Ficou a contemplé-lo, — Bom piano, podem acreditar. Musicos famosos toca ram nele, Diziam que para Chopin nao havia igual. Mas que vale isso? Ninguém o aprecia mais. ,, Os tempos esto muda- dos. Sara, minha filha, vai casar-se, morar comigo. A casa € pequena... Que se pode fazer? Ninguém o quer. Nao ha outra solucao, E acenava para o mar, Estava acabrunhado. Os pacientavam-se com essas ito antes afundar-se nas aguas. Carrocinhas de pio, entregadores de volumes, estafetas, senhoras e criancas completavam a massa dos acompa, nhantes, Os pol ram de gra i0 08 papéis ao dono, recomendaram- Ihe que andasse depressa com aquilo, 0 transito néo podia ser perturbado, Formou-se um grupo e um fotdgrafo bateu a chapa, Joo de Oliveira saiu ao lado numa pose triste. Acabou impacientando-se também com essas paradas que prolon- gavam os momentos finais do seu piano. A Um guarda observou que depois ito horas nao era permitido. $6 no dia seguinte. Eo ut esperando. Dispersaram-se os pretinhos. Seriam gratificados depois. ices demoradas, E) regadores improvisados ipcdes. Queriam vé-lo das mar 216 Estranhou-se que no bairro, a tantos moleques com teclas nas mos, oss Piano. Ficara 0 mével na rua, tal como 0 entre 0 meio-fio ¢ 0 asfalto. Posicéo ridicula Jogo os transeuntes, rapazes e mocas do foot comentarios. Joo de ‘a voltou para ¢: Alguinas amigas de Sai im perguntar havido, Pela madrugada, Joio de Oliveira e a mulher aco: ao barulho forte da chuva, Vento e chuva juntando-se Tugido da ressaca, Acenderam a luz. Entreolharam-se, — Eu estava pensando nele, Roséi rrezinho! Desabrigado, — Eu também, Joio... 0 apanhando chuva... Com esse tragarem gue coisa horrivel, hein, 0 nem pensar, Rosalia. . © vento fustigava as frondes que os relmpagos desco- briam. Jodo de Oliveira adormeceu de novo num sono agitad), seguida, E comecou a contar a mul redo de méos, Rosali As de minha av6, as de 'S tias, as de Sara. Mais de vinte maos, mais de cem dedos brancos ferindo o teclado. Nunca ouvi miisicas to bonitas. Uma coisa sublime, Rosdlia. Cer acordes as maos mortas tiravam melhor que as vivas. Muitas mocas de outras geracées estavam atras, a ouvir. Perto, nossos parentes se namoravam, pediam-se em casamento, Nao sei por que, todos olhavam para mim com certo desprezo, De repente, os dedos se retiraram; ouviu-se a Marcha Piine- bre; o piano.se fec'ni.’a si mesmo... tomou a enxurrada deslizou para i me atendeu mais. Parece que partiu ressentido, Ros: E me deixou na rua, s6, com vontade de solucar. ‘Joao de Oliveira arquejava. O misterioso concerto deixa- ra-w extasiado. E com remorsos. Esperou que a madrugada rompesse. Cessada a chuva, saitia recrutar de novo os moleques. Desejava agora que tudo Se consumasse depressa, © vento agitaa a bandeira vermelha do posto ¢ o Oceano rumorejava como se fizesse a digestio do temporal da noite. Os meninos compareceram em niimero menor. Havia homens grandes, no mei com voz rouca, reassumiu 0 comando. Na areia, o plano rolou com mais difi, culdade. Finalmente o lambeu a lingua comprida das ondas, calcada, assistiam ao espe- is, até que a forea da arre- lo para o fundo. Dois vaga- resultado sobre ele; o ter- quarto levou-o para sempre, Joao de Oliveira, acabrunhado, permaneceu boquiaberto, em tempo de ser Jevado também. Sentiu um siléncio enorme no mar. Ninguém percebeu que chorava, tanto as légrimas no seu rosto borrifado se confundiam com as gotas do mar. Viu Sara de longe reclinar-se nos ombros do tenente. Doli estava ao lado, de focinho suspenso; dormia sempre debaixo daquele piano. Foi bom que Rosal Muita gente se juntava depois na magies. Que teria havido? Constou a pr ia inteira de poloneses se havia afogado; depois, que fora uma crianca. Alguns afirmavam que nao: era uma senhora que se sucidara, desiludida do amor. Sé tarde se soube que se tratava de um piano, A vizinhanga de Joao de Oliveira postara-se a janeta: — La vem 0 homem! anunciou alguém, Oliveira passou olhando para o cho, cercado de un respeito geral. Entrou em casa, — Ele se foi, Rosélia. Dessa vez, definitivamente! — Vai primeiro mudar a tua roupa, Joao. — O nosso piano nunca mais voltara, Rosélia!. . — Claro que néo; foi para isso mesmo que o atiraste ao mar. 218 — Sabe 1d se ainda vai dar em alg ‘ut a voz de Sara, — Nao se pensa chegou a ver de arruni Houve uma pausa, Joo de ra lamentagao: — Eu vi as ondas engolirem-no. — Chega, meu marido. Chega! — ...ele ainda voltou a tona duas vezes! — JA aeabou! Nao se pensa mais, Joao. — ...Eundo queria dizer, par todo o mundo agora deu par eu seja 0 homem mais eq} mas, nessa hora, eu perc Marcha Fiebre — Isso foi no feu sonho desta noite, lembrou — Nao, foi ali no mar, agora hd pouco, & luz do Tu nao ouviste também, Sara? Depois.... depois espumarada horrivel cobriu-o todo, Fez com a cabeca um aceno de quem defronta dlavel. E ficou conjeturando: — “Deve estar longe a estas horas, Sempre del aguas... Passando por coisas estranhas. Destrog vios... submarinos... peixes, Um movel desta sala... Daqui a anos vai dar nalguma Sara, Roséilia e eu estivermos mortos, dando as misicas antigas. Em que Sarita passeava o olhar pela s s pedaco de cho ha quase trinta anos ocupado pelo piano. Toda vez que o fazia, as linhas do velho mével se estiravam € convertiam-se em macia cama de easal. Comecava a per- turbar-se com esses devanei indo alguém bateu a porta. Entrou um sujeito com uma intimacao, Havia suspeitas que dentro do piano afundado se escondesse alguma estacdo de Tédio clandestina, a que seu pai quisesse dar sumico. Que ele comparecesse ao distrito policial para prestar esclareci- ‘mentos. Era medida aconselhada pelo estado de guerra, que se podia fazer? iveira prosseguiu aw Oliveira consumiu o resto do dia rio interrogatério, Voltou tarde. ! disse, caindo desanimado na pol- ! Nao se tem o direito nem de atirar fora 0 trona. Que vi que & nosso, Permaneceu calado, sentindo a opressdo de tudo. Fez-se como a gente custa a se desembaracar das coisas antigas? Como elas — Nao s6 as coisas antigas, ponderou Rosai as velhas idéias. Doli farejava o antigo local do piano. Uivou surdamente € dormiu, Tocou de novo a campainha. Entrou um cavalheiro que tirava papéis da pasta. Disse vir da parte da Capitania 23 Porto. — Osenhor ¢ Joao ak — Sim, sou Jodo de que o senhor at sstupefato: — Mas isto aqui néo é mais porto, meu senhor. 6 oceano. . — Por acaso 0 senhor pretende me ensinar a diferenga? 0 homem renovou a pergunta ¢ acrescentou-lhe uma adverténcia para ajudar a resposta: » — Hoje ndo se pode estar assim dispondo do mar para «alquer coisa. O senhor tinha licenga? Oliveira humildemente perguntou se tinha sido mal aquilo que fizera. — Pois 0 senhor néo sabe que estamos em guerra? Que as nossas costas precisam ser protegidas? Que os naziscas ‘aéo dormem? — Mas foi um simples piano, meu senhor!. — Pouco importa. E teria sido mesmo um piano? O senhor est bem certo disto? — Eu acho que estou, balbuciou inseguro de si mesmo, a olhar para a filha e para a mulher, Nao fol um piano, Rosdlia? Nao foi, Sara? — Onde é que esta com a cabeca, Joao? exclamou, Kx:silia, Entéo no sabes que foi o piano? também ira? ao mar esta manha? 220 A ditvida do marido surpreendeu a todos, 0 “isiqando. Depois — Eu pensava poder jogar non osso? — Isso depende, respondeu © homenr da Capitania. — Depende de quem? $6 de mim, ora essa! Eu sou livre, Disponho de minha vida luito menos do que parece. Bem. Nao estou a ices. Compareca amanha & Capitania do i para Treze r 0 tenente e corre a abracé-lo. — Olha onde vai ser 0 nosso quarto, querido. Ficau bom agora, nao ¢, Luis? Bom mesmo. bom. E onde vao botar 0 novo? a fazer novas exigéncias? escondido de toda mundi , protegida pela vis cidade!.. Para que fora bulir nele? Estava longe agora, viaj mithas... Longe... A caminho dos mares do Sul... E) Mais que ele, que Sara, que Rosilia. Quem se donado agora era ele, Joao de Oliveira. Ele & piano, nao. Partira para a aventura. Mudara de ambiente. De carter, com certeza... Antes, era de casa, sO para a Agora, j4 nao é mais seu piano. Uma coisa mundo. Cheia de vida, de orgulho... Que se move Gos mares, Que ressoa, .. Que é abracada por todas e pode ir para qualquer direcao. Para que fora bulir nele? ‘Na sombra do arvoredo, em frente, os negrinhos esp: vam gratificagdo suplementar. Fizeram muita forca dia. Mal se Ihes distinguiam na escuridao as cabecinha: Gaz. No meio deles, 0 vulto de alguém que nao era desco- tnhecido e que, abrindo o portao do jardim, pedia licenca para entrar. “Jodo de Oliveira a custo reconhecera naquele vulto 0 judeu, mas nada percebera da proposta que ele the fazia ¢ fem que se falava de um piano. — Um piano!... Que piano?... 222, a ec AT eeu

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