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reira do Nascimento - Universidade do Rio de Janeiro (UFRR)) SAIR DA = GRANDE Ensaio sobre a Africa descolonizada Dados Internacionais de Catalogagao na Publi (Cimara Brasileira do Livro, SP, Bras ACHILLE MBEMBE RJ: Vores, 2019. — ginal: Sorte de rand nites suru ecoionsée Bibliografia ‘Tradugio de Fabio Ribeiro ISBN 978-85-326-6052-7 6, Pos-colonalismo Attics T. 19-23464 cpp-325.09 ara catflogo seman ‘ y EDITORA V vores Petropolis INTRODUGAO O meio século mo esteve longe de ser u jtua gigante diante da qual, amedrontadas ou fascinadas, mul- les se prosternavam — mas que na realidade escondia ser oca. Carcaca de metal engastada cor ias espléndidas, era, por outro lado, como o diabo eo estrume’. Braseiro vagaroso que disper sava por todo lugar sua fumaga, ele buscou se instituir ao mesmo tempo como rito e como fato; como palavra, gesto e sabedoria, conto ¢ mito, assassinato e E é em parte devido a sua poderosa capacidade de proliferagao e de metamorfose que ele fez tremer tanto o presente daqueles que a ele se submeteram, ‘rando-se até em seus sonhos, enchendo seus pesadelos mais horriveis, antes de lhes arrancar lamentagdes atrozes*. A colo- izagfio, enquanto tal, ndo foi apenas uma tecnologia, nem um Ela nao foi apenas ambi do que as outras: a poténcia do falso. Um complexo mével, certamente, mas também, em muitos aspectos, um entroncamen- \6vel. Habituada a vencer sem ter razdo, ela ios néio apenas que eles mudassem suas razées de viver, também que mudassem de razio — seres em falha perpé- tua‘, E.é enquanto tal que a Coisa e sua representagdo suscitaram a resisténcia daqueles que viviam sob seu jugo, provocando ao mesmo tempo indocilidade, terror e sedugo, assim como, aqui e ali, grande ntimero de insurreigdes. to fixo colori No entanto, este livro trata da descolonizagéo enquanto expe- rigncia de emergéncia e de revolta. Ele 6 uma interrogago sobre a comunidade descolonizada. Nas condigées da época, a revolta consistiu em grande parte numa redistribuigéo das linguagens. Esse nfo foi o caso somente onde foi preciso pegar em armas. Como que tomados pelo fogo do Paréclito, os colonizados, em varios nfveis, desvanecem-se falando diversas linguas em vez da gua tinica. Nesse sentido, a colonizagdo represent de nossa modernidade, um grande momento de des-li bifurcagao das linguagens. A partir deste ponto nfo ha mais nem orador nem mediador dnicos. Nao hé mais mestre sem contra- mestre. Nao hé mais univocidade. Todos podem se exprimir em suas pr6prias linguas, e os destinatérios dessas propostas podem recebé-las nas stias Iinguas. Como os nés foram desatados, a par- tir de agora ha apenas um imenso feixe de cordas. No espfrito da- qucles que se livraram dela, descolonizar jamais quis dizer passar novamente, num tempo diferente, pelas imagens da Coisa ou de seus substitutos. © desenlace sempre teve como objetivo fechar 5 parénteses de um mundo composto por duas categorias de pessoas: de um lado, os sujeitos que agem, do outro, os objctos sobre os quais se intervém, Ele buscava uma metamorfose radical dda relago. Os antigos colonizados criariam a partir deste ponto seu proprio tempo, enquanto construiriam o tempo do mundo. 4, KANE, CH. ZAventure ambigué, 10/18, 2005. 18 Sobre o humo de suas tradiges ¢ de seus imagindrios, ¢ apoiados seu longo pasado, eles poderiam agora se reproduzir em sua propria hist6ria ~ ela mesma uma ilustragdo manifesta da hist6- de toda a humanidade. Reconhecerfamos entao o advento de um modo onde tudo comecaria novamente. O poder de criagao se oporia ao jogo da repetigdo sem diferenga, as forgas que, no tempo da servidao, buscavam esgotar ou encerrar a duragéo. E isso que Frantz Fanon chamava, numa linguagem prometeica, de saida da “grande noite” anterior 4 vida’, ao mesmo tempo que Aimé Césaire evocava 0 desejo “de um sol mais brilhante ¢ de estrelas mais puras”®. Retomar o sentido primitivo da descolonizagao da grande noite anterior vida exigia uma atitude consciente de “provineializagio da Europa”. Era preciso, dizi iia Fanon, dar as costas a essa Europa que “ndo para de falar do ser humano ao mesmo tempo em que o massacra sempre que O encontra, em todos os cantos de suas préprias ruas, em todos ‘os cantos do mundo”, Sobre essa Europa, que nunca cessa de falar do ser humano, ele continua: “sabemos hoje quantos sof mentes a humanidade pagou por cada uma das vit6rias de seu espftito”?, Fanon ndo propunha simplesmente no “seguir” essa sropa; ele propunha “abandoné-la”, porque seu jogo termina- . Chegara a hora de passar a “outra cois . Dat aneces- sidade de retomar a “questo do ser humano”. Como? Andando “o tempo todo, noite e dia, em companhia do ser humano, de todos os seres humanos”®. E isso que fazia da comunidade des- 5, FANON, F. Les damnés de la terre. Paris: La Découverte, 2005 [1968], 301 CESAIRE, A. Les armes miraculeuses. Paris: Gallimard, 1970, p. 15. J. FANON, F. Les damn de la terre. Op. cit. p. 502. 8. Ibid, p. 305-304, 19 colonizada uma comunidade em marcha, uma comunidade de inhantes, uma vasta caravana universal. Para outros, essa vasta companhia universal poderia ser obtida nao se divorcian- do da Europa, mas pousando sobre ela um olhar de solicitude e de compaixio que reinsuflasse nela o complemento de humani- dade que perdeu. Para além da compilagéo dos detalhes histéricos, estas sio as significagdes primitivas do acontecimento que é preciso saber retomar, Elas se encontram na propria matéria da experiéncia colonial, na lingua, na palavra, no discurso, nos escritos, nos cantos, nos atos e na consciéncia de seus protagonistas, ¢ na histéria das i igdes das quais eles se aproveitaram, assim como na meméria que eles forjaram desses acontecimentos”®. preciso compreender que a revolta organizada (particularmente a armada) para acabar com a dominagio colonial ¢ com a lei da raga que era seu sustentéculo no teria sido possfvel sem a produgio consciente, de parte dos insurretos, de um poder es- tranho —ilusio sublime ou poder do sonho? ~, de uma poténcia cenergética e incendiéria, de uma estrutura de afetos feita de razio calculista e de cGlera, de f€ e de oportunismo, de desejos € de exaltagio, de messianismo, até de loucura, e sem uma tra- fio desse fogo em linguagem e em praxis: a praxis do apare- imento, da manifestagio, da emergéncia!’, Inverter os velhos e ocupar um novo lugar no tempo e na estru- tura do mundo — esse era 0 horizonte. E se, no decorrer dessa escalada na direcio dos limites, deva se impor a explicagio com a morte, que, acima de tudo, nfo se morra de jeito nenhum & maneira de um rato ou de um animal doméstico, preso por uma DAK SENOHOR, L.. Chants d’ombre. Paris: Seuil, 1956. + WILDER, G. reason, impasse: CSsaire, Fanon and the Legacy of Emancipation’. In History Review, n. 90, outono 2004. ir des mortes et langages des vivant ratoeira num gelinheiro, numa pocilga, num curral, sob marte- ladas — ¢, simplesmente, ao ar livre!!? Para muitos dos atores da época, tratava-se mesmo de um combate maniqueista’’. Uma interpretagio da vida e prepara- cdo para a morte, a luta pela descolonizagio revestia-se, em muitas ocasi6es, da aparéncia de uma procriagéo postica. Para os herdis da luta — em particular, aqueles lembrados pelo canto popular ~ ela exigia a renincia de si, uma capacidade impres- sionante de ascese c, em certos casos, a agitagio do éxtase. ‘A colonizagao havia trancado uma parte importante do globo numa rede imensa de dependéncia dominagéo. O combate para acabar com ela tomou, em compensagio, um aspecto pla~ netério, Por ser um movimento de repotencializagao, alguns ‘© imaginaram como uma festa da libertagao universal, a ele- \go do ser humano ao mais alto degrau de suas faculdades mbélicas, a comegar pelo corpo inteiro, agitado ritmicamente em seus membros ¢ sua razao pelo canto ¢ pela danga — riso estridente e superabundancia da vida. E isso que conferia ao combate anticolonialista sua dimensfo ao mesmo tempo onf- rica e estética. Cinquenta anos depois, que tragos, que marcas, que restos permanecem dessa experiéncia de revolta, da paixio que a per- rmeava, dessa tentativa de passagem de estado de coisa a estado de sujeito, da vontade de retomada da “questo do ser huma- no”? Ha realmente qualquer coisa a se comemorat, ou, pelo contrério, seria preciso tudo recuperar? Recuperar quem, por que, como e sob quais condigées? Em qual nova lingua, cultu- rae discurso, neste caos nebuloso do presente? Se, como dizia Frantz Fanon, a comunidade descolonizada se definia por sua relago com o futuro, a experiéncia de uma nova forma de vida 12, Sobre esse tema de uma morte aceita livremente, ef. MANDELA, N. Long Wale 10 Freedom. Londres: Litle Brown, INH, H.C. Doun with Colonialism. Londres: Walden Belto/Verso, 2007. 24 jo nova com a humanidade'*, quem entao redefiniré © contetido original para o qual uma forma nova deve ser cria- da? Se 6 preciso empreender de novo a viagem extraordingria para um nove mundo, isso serd feito através de qual novo saber? Em suma, como restituir a vida Aquilo que nao é mais que uma estétua? Ou, jf que a matéria é aparentemente inerte € hoje o assunto 6 embaragoso, seria preciso simplesmente desmonté-la? Pois, meio século mais tarde, no lugar de uma verdadeira retomada da posse de si e em ver, da instdneia fundadora, 0 que vemos? Um bloco aparentemente sem vida que manifesta tudo, exceto a forma de um corpo vivo ¢ jovial, desaparecendo sob uma camada dupla de célera e de fetiches. Alguns objetos cintilam no meio de um rio que retrocede. E, no fundo do vuleao, jazidas ilegiveis & espera de escavagées. Por que a Africa est esburacada ¢ perfurada? Por que essa plenitude de deselegiincia esse baru- Iho que, sem cessar, ultrapassa o sujeito ¢ parece afundé-lo num estado inominavel? E esse furor que envolve a calma aparente des coisas, que s6 escapa de sua genealogin muda para desmoronar mais do que nunca no vazio? Em que momento a coisa seré tra- balhada? Para onde vamos entio? Uma restauragdo autoritéria aqui, um multipartidarismo ad- ‘ministrativo ali, magros avangos, de resto reversiveis, acolé — e, Por quase todo lado, niveis muito elevados de violéncia social, até situagdes de enquistamento, de conflitos latentes ou de guer- ra aberta, com base numa economia de extrago que, conforme a légica mereantilista colonial, continua a enfatizar a predagio: essa 6 a paisagem geral. Um turbilhao realmente destrutivo, irre- fletido e brusco, passando por tantos desastres — aos quais é pre- nar azéfamas sem objetivo, a improvisagao cr6 disciplina, a dispersio ¢ o desperdicio, e um peso de indignida- de, desprezo e humilhagio ainda mais tenaz do que na época co- Jonial. Na maioria dos casos, os afticanos no so sequer capazes 14, FANON, F. Les damnés de la tere. Op. cit 22 le escolher livremente seus dirigentes. Paises demais continuam |: mercé de déspotas cujo «nico objetivo ¢ ficar no poder por toda Por conseguinte, x maioria das eleigSes € manipulada, Os aspectos procedurais mais elementares da concorté jos, mas mantém-se o controle sobre as cas da burocracia, da economia ¢ especialmente das forgas arma- das, da policia e das milicias. Como a possibilidade de derrubar © governo através das urnas praticamente nfo existe, apenas 0 inato, a rebelido ou a revolta armada podem contradizer ncfpio da continuagio indefinida do poder. Com a ajuda das ipulagGes eleitorais e sucessdes de pai para filho, vive-se, de -10, sob chefes tribais disfargados. Para onde vamos? Cinco tendéncias pesadas circunserevem o futuro, envolven- do horizonte imediato com uma cerca tempestuosa. A primeira wuséncia de uma ideia de democracia que sirva de base a uma verdadeira alternativa ao modelo predat6rio em vigor por quase todos os lugares. A segunda é 0 reco de qualquer perspectiva de wvolugéo social radical no continente, A terceira é a senilidade crescente das poténcias negras. Essa situagao lembra, guardadas las as proporgbes, os arranjos que prevaleciam no século XIX, uando, sem conseguir gerenciar de modo vantajoso a pressio ‘externa, a maioria das comunidades politicas se autodestruiu em guetras de sucesso intermindveis. A quarta € 0 enquistamen- de partes inteiras da sociedade eo desejo itreprimivel, para centenas de milhées de pessoas, de viver em qualquer lugar do mundo que ndo 0 seu pafs — uma vontade geral de fuga, aban- dono ¢ desergo; uma rejeigéo da vida sedentéria por no poder considerd-la nem residéncia nem repouso. A essas dinaimicas es~ tvuturais junta-se uma outra: a institucionalizagio de préticas de extorsdo e predagio, de espasmos bruscos, de motins sem futuro 23 nalmente, transformam-se com facilidade em guerras pilhagem. Essa espécie de Kimpen-radicalismo — na verdade, na violencia sem projeto politico alternative — n&o € carrega~ da somente pela “ralé social”, da qual a “crianga-soldado” e o “desempregado” das favelas constituem simbolos tréigicos. Essa espécie de populismo sanguinolento também ¢ mobilizada, quan- do preciso, pelas forgas sociais que, apés conseguirem tomar 0 controle do aparelho de Estado, transformam-no no instrumento para o enriquecimento de uma classe, ou simplesmente num re~ curso privado, ou ainda numa fonte de monopolizagio de qu: ‘quer coisa. Com o risco de utilizar 0 Estado para desteuir o Esta~ do, a economia e as instituigdes, essa classe esté disposta a tudo para preservar o poder — e, isso, aos seus olhos a politica nada mais é do que uma maneira de conduzir a guerra civil ou a uta étnica e racial por outros Mas é no plano cultural e do imagindrio que as transforma~ ‘gdes em curso esto mais vivas. A Africa néo é mais um espago circunscrito cujo lugar pode ser definido e que esconderia um segredo ou um enigma, ¢ que, além disso, pode ser demarcado, ‘Mesmo que 0 continente ainda possa ser chamado de lugar, ele & para muitos, um lugar de passagem ou de trénsito. & um lugar em vias de se desfazer num modelo némade, transitério, errante ¢ de asilo. O sedentarismo tende a tornar-se a excegio. Os Es- tados, onde existem, so nés mais ou menos justapostos que as pessoas tentam ignorar; so como entroneamentos, espagos de passagem. Uma cultura de trilhas, entfo — especialmente para aqueles que esto a caminho de outro lugar. Entretanto, hé mui- tos obstéculos a superar num mundo hoje rodeado de barreiras e coberto de murathas. Para milhGes dessas pessoas, a globali- zagdo ainda nao representa o tempo infinito da circulagéo. Ela é © tempo das cidades fortificadas, dos acampamentos e dos cor- dées, das clausuras e dos cercados, das fronteiras contra as quais fas pessoas batem e que, cada vez mais, setvem como estelas ou obsticulos tumulares — a morte delineada em contato com 0 pé 24 © corpo-objeto arremessado Id, estendido diante do v ‘a Africa é em sua maioria povoada de passantes em poteneial. Diante da pithagem, clas varias formas de rapacidacle, corrupgio © doenga, da pirataria e das muitas experiéncias de siolagio, eles esto dispostos a afastarem-se de seu lugar nat 1m a esperanca de reinventarem-se ¢ reenraizarem-se em outro igar. Alguma coisa esté brotando, aos borbotées, violenta, da toda de fiar que constitui a ociosidade das forgas vivas do conti- J, a fuga alucinada diante da alternativa terrivel: ficar lé, no 10 da magreza extrema, ¢ correr o risco de se tornar simples ine humana, ou se deslocar, partir, a qualquer prego. Essas observagGes ésperas nfo significam que nao existe qualquer aspiragéo sadia 8 liberdade ¢ a0 bem-estar na Africa esse desejo tem dificuldade de encontrar uma lingua- , prticas efetivas ¢ especialmente uma traducio em des novas ¢ numa cultura politica nova, onde a luta pelo io seja mais um jogo de soma zero. Para que a democracia se ‘aize na Africa, seria preciso que ela fosse carregada por forcas igdes e redes fundadas tamente pelo génio, pela criatividade e principalmente pelas Hianas das préprias pessoas e de suas tradigdes de so- ‘dade, Mas isso no € o bastante, Também é preciso uma 1a da qual tudo isso serd a metéfora viva. Assim, por exemplo, rearticular a politica e o poder em torno da erftica das formas morte, ou mais precisamente em torno do imperative de nutrir servas de vida”, poderiamos abrir o caminho para tm novo nsar da democracia num continente onde o poder de matar ido, e onde a pobreza, a doenga, € cos de todo tipo tornam a existéncia incerta e precéia, No ndo, esse pensar deve ser uma mistura de utopia € de prag- imo, Ele deve ser, necessariamente, um pensar daquilo que ‘da emergéncia e da revolta. Mas essa revolta deve ir muito im da heranga dos combates anticolonialistas ¢ anti-imperia- 25 = cuos limites, no contexto da globlizagoe tendo em vst que ocorreu desde as independéncias, sto hoje evidentes. Entretanto, trés fatores decisivos constituem freios a uma de- mocratizagao do continente. Primeiro, uma certa economia poli- Em seguida, um certo imaginario do poder, da cultura e da E, por fim, estruturas sociais que tém como uma de suas caracteristicas salientes a conservagio de sua forma aparente ede seus disfarces antigos enquanto se transformam profundamente sem parar. Por um ledo, a brutalidade das coergSes econdmicas ue os paises africanos sofreram no iiltimo quarto do século XX ~ ® que prosseguem sob a autoridade do neoliberalismo — contri- buiu para a fabricagio de uma multidao de “gente sem lugar”, cuja aparigao na cena piblica ocorre cada vez mais sob a forma de tumultos, ou, pior, de matangas por ocasio de explosdes xe~ néfobas ¢ lutas étnicas, principalmente logo apés eleigdes mani- puladas, no contexto de protestos contra o eusto de vida, ou tam- bém no quadro de guetvas pela monopolizagdo de recursos raros. Em sua maior parte deslocadas para favelas, sem escolarizagio, privadas de qualquer certeza de casar ou de constituir uma fami. lia, essas pessoas objetivamente nfo tém nada a perder, e além disso esto mais ou menos estruturalmente abondonadas — condigéo da qual muitas vezes elas 6 podem escapar através da migragi », da criminalidade ¢ de todo tipo de ilegalidades. E uma classe de “supérfluos” com a qual nem 0 Estado (onde existe), nem o prdprio mercado sabem o que fazer; gente que néo se pode mais vender como escravizados, como no comego do ismo moderno, nem reduzir a trabalos forgados, como na oe colonial ¢ sob 0 apartheid, nem armazenar em instituigdes penitencidrias como nos Estados Unidos. Do ponto de vista do capitalismo que funciona nessas regides do mundo, essa gente constitui carne humana vergada sob a lei do desperdicio, da vio- lencia e da doenga, entregue ao evangelismo norte-americano 40s cruzados do Isl € a todo tipo de fendmenos de feitigaria & de iluminag&o. Por outro lado, a brutalidade das coergSes eco- 26 icas também esvaziou completamente 0 projeto democrat reduzindo-o a uma simples formalidade — um atificio sem ido ¢ um ritual privado de eficécia simbélica. A tudo isso ‘ém adicionar, como acabamos de sugerit, a incapacidade de do ciclo de extragio e predagao cuja historia, além disso, data ntes da colonizagdo. Esses fatores, em conjunto, tém enorme cia sobre as formas que a luta polftica assume em muitos 1es pés-coloniais. Junta-se a esses dados fundamentals o evento que foi a gran- de difragiio social que iniciou no comego da década de 1980. Kissa diftagdo da sociedade levou, em quase todos os lugares, @ nformalizagio das relagSes sociais ¢ econémicas, @ uma mentagéo sem precedentes do campo das regras ¢ das nor- itucionalizagéio que nfo poupou ea um processo de desi ovocou um quer 0 proprio Estado. Essa difragio também pr ide movimento de abandono da parte de varios atores sociais, indo 0 caminho para novas formas de luta social ~ por baixo, luta sem piedade pela sobrevivéncia e centrada em toro do ‘cesso a recursos bésicos; pelo alto, a marcha das privatizagoes. jc em dia, a favela tornou-se 0 ponto nevrélgico dessas novas formas de “secessfio” sem revolugao, de confrontos sem Kideres nntes, de tipo molecular ¢ celular, ¢ que combinam elemen- os da luta de classes, luta das ragas, Iuta Gtnica, milenarismos religiosos e lutas de feitigaria. Além disso, eonhecemos a fraqueza das oposigdes. © poder posigéo operam em fungi de um curto prazo marcado pelo proviso, por arranjos pontuais e informais, por compromissos © comprometimentos diversos, pelos imperativos da conquista ta do poder ou da necessidade de conservé-lo @ qualquer .go, Aliangas sio feitas e desfeitas constantemente. Mas, acima ido, a Africa permanece sendo uma regifio do mundo onde ler, qualquer que séja e sob a chancela dos déspotas, con- ‘automaticamente a imunidade. As coisas na verdade sio iles, O potentado é uma lei em si mesmo. Sua lei, em muitos 7 casos, é a da extragio © da monopolizagéo e, eventualmente, do assassinato. Ossatura pesada opressiva e nodosa, sua funcio 6 urdir um lago finebre entre a vida e 0 terror. Ao tomar a morte pela vida a0 manter os dois termos numa relag&o de troca in- fernal e quase permanente, cle pode assim renovar, quase a seu : iclos predatérios que, de um em um, enfiam cada vez mais a Africa no m Democratizagio e internacionalizagao A descolonizago da Africa nfo foi somente uma questo africana, Tanto antes quanto durante a Guerra Fria, ela foi uma Questo internacional. Muitas poténcias externas $6 a aceita- ram da boca para fora, Algumas opuseram uma recusa as vezes izagaio ou, como no exemplo da Afri- com um grau substancial de desracial exatamente aos regimes que deram as costas & causa africana. H4 duas raz6es para isso: por um lado, as condigées hist nas quais se efetuaram a descolonizago e o regime de impostos ue cimentaram os acordos desiguais “de cooperagao defesa” assinados na décade de 1960; por outro lado, a fraqueza revo- lucionéria, « impoténcia e a desorganizagio das forgas sociais ernas. Os acordlos secretos — onde certas cléusulas tratavam. do direito de propriedade 20 solo, ao subsolo e ao espaco aéreo das ex-colénias ~ ndo tinham como objetivo liquidar a relagiio 15. CHAFFARD, G. Les camets seeets dela décolo in0 ion. Pais: Ca 28 itador, esses tiltimos dispunham, nao obstan ma autonomia relativa da qual s vezes souberam desinu de se constituirem, meio século mais tarde, numa verda- “classe” com tentéculos hoje transnacior Os Estados Unidos mocratizagfo da Africa. Em grande parte, o cinismo, a hipo- a e a instrumentalizagio foram o suficiente — ainda que, des- indlo © moralismo, evangelismo ¢ anti-intelectualismo, va- ‘6es privadas americanas tenham enviado apoio de \s formas para a consolidago das sociedades civis africanas. fato fundamental do meio século vindouro serd a presenga da na Africa — uma poténcia sem Ideia. Se essa presenga nfo ‘como um contrapeso, cla é a0 menos um recurso contra comércio desigual téo caracterfstico das relagdes que o cont afticano trava com as poténcias ocidentais ¢ as insti eiras internacionais. Entretanto, por ora a relago com a do sai do modelo de economia de extrago ~ modelo que, ga base material das tiranias negras. Assim, ndo se deve ter a expectativa de que a China seja de gran- ajuda nas lutas futuras pela democracia. A influéncia da outra por enquanto irris6riz 2. no tenham se oposto a sténcia em ascensao, a Indi Quanto 2 Africa do Sul, ela no pode, sozinha, romover a democracia na Africa. Ela nao tem nem os meios, avontade, nem os recursos de imaginacio, De qualquer for- ela precisa primeiro aprofundar @ democracia nela mesma antes de pensar em promové-la para os outros. Diante da auséncia de forgas sociais internas capazes de im- se necessério pela forga, uma transformagdo radical das re- is, & preciso imaginar outras vias para Blas sero longas e sinuosas. Entre~ 1m, mesmo que est idas de formas perversas de retertitorializagio"®. Logo sair da alternativa perversa: fugir ou perecer. O que -onseguir € uma espécie de “New Deal” continental ne- gociado coletivamente pelos diferentes estados africanos e pelas iternacionais — um New Deal em favor da dem do progresso econémico que venha completar e concl de uma vez, por todas capitulo da descolonizagao. Sobrevindo mais de um século depois da famosa conferéncia de Berlim que a da Africa, esse New Deal receberia um sub- sidio econémico para a reconstrugao do continente. Mas também envolveria uma parte juridica e penal: mecanismos de sangao ¢ até de banimento, cuja aplicagao seria necessariamente multilate- ser encontrada nas transformagdes ternacional. Isso implicaria a possibilidade de regimes culpados de crimes contra scus povos serem depostos legitimamente pela forga ¢ dos autores desses crimes serem pro- cessados perante a justiga penal internacional. A prépria nogao de “crime contra a humanidade” deve ser s1 pretagdo estendida que inclua nao apenas os massacres e viola- Oes graves de direitos humanos, mas também os delitos graves de corrupgao ¢ de pilhagem dos recursos naturais de um pais. evidente que atores privados locais ou interné igualmente ser visados por E fundidade hist6 igfio e do. progresso econdmico na Africa, Certamente, a democratizagéo da Africa é, antes de tudo, uma questio africana, Ela claramente passa pela constituigéo de forgas soc cer, de apoié-la e defendé-la. Mas ela 6 igualmente uma questo inter ‘ional. Area in the Neoliberal Wor ‘as mobilizagoes tas. Por um lado, é preciso dar conta do fator icidade de ident lades e normas — e, a partir dele i rangas. Por outro lado, intelectual jamai I do continente. A criago dessa mais-va- 14 unicamente obra do Estado. Ela € a nova tarefa das, icanas. Para alcangar isso € preciso sair a qual- da urgéncia e das as do subsolo africano, no registraremos muito progresso. po de capitalismo que favorece essa I6gica retine muito bem © locais, o menor Estado possi A descolonizagio sem a democracia € uma forma la retomada da posse de si —ficticia. Mas se os africanos des a democracia, séo eles que devem imaginar suas formas e pagar 0 prego por elas. Ninguém o fard por eles. Nada seré obtido a eré- dito. Apesar disso, seré necessério que eles se apofem em novas redes de solidariedade internacional, uma grande coalizio moral por fora dos Estados que retina todos aqucles que acreditam que, sem sua parte africana, nosso mundo no apenas seré mais pobre em espitito ¢ humanidade, mas também que sua seguranga seré, mais do que nunca, gravemente hipotética. A partir do crénio de um morto: trajetérias uma vida ‘A noite do mundo deve ser pensada como um destino que © préximo ao pessimismo e ao otimismo. Talvez a noite ido esteja se aproximando de sua meia-noite. Talvez. esta ¢ tornar agora, por completo, © tempo de pentirias. Mas io, ainda nao, jamais, apesar da necessidade incomen- apesar de todos os sofrimentos, apesar da miséria sem ipesar da caréncia incessante de descanso e de paz, apesar fio erescente.” Assim fala Heidegger num texto intitulado que poetas?” Nessas linhas, Heidegger discute e prolon- ia de Hélderlin intitulada “Pao e vinho”, esforcando-se nente para responder & pergunta: “Para que poetas em de pentirias?” Como o “tempo de pentirias” é longo, H estima que mesmo 0 terror, “tomado por si mesmo como possfvel de uma mudanga, nada pode enquanto nao houver mudanga nos mortais”, Ora, ele continua, “s6 hé uma mu- 108 mortais quando eles passam a habitar seu prdprio M, “Pourquoi des pobtes?” In: Cet is: Gallimard, 2006 [1962]

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