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Studies in Sophoclean Tragedy; Word and Action: Essays on the Ancient Theater; Essays Ancient and Modern (ganhador do prémio Pen/Spievogel-Diamonstein de 1989); The Oldest Dead White European Males and Other Reflections on the Classics e Backing into the Future: The Classical Tradition and its Renewal. Knox foi também o editor responsavel pelo The Norton Book of Classical Literature e colaborou com Robert Fagles em sua traducdo para o inglés da Iiada, da Trilogia tebana de Séfocles e da Eneida de Virgilio. Morreu em julho de 2010, aos 95 anos. HOMERO Odisseia Traducao e preficio de FREDERICO LOURENGO Introdugao e notas de BERNARD KNOX PENGUIN ComPannia Das Letras Canto xvir Canto xvii Canto xxr Canto xxi Canto xxi Canto xxiv Notas Genealogias Referéncias bibliogréficas 493 436 442 463 477 493 sur 524 543 563 567 Introdugdo BERNAED KNOX “Odisseia” é uma palavra comum a varias linguas, com suas respectivas variagSes, ¢ significa, em uma definigio de aventuras ¢ eventos inesperados”. J a palavra grega Odusseia, a forma da qual o termo deriva, significa meramente “a historia de Odisseu” fem latim, Ulisses], heréi grego da guerra de Troia que levou dez anos para regressar ao seu lar na ilha de ftaca, ao largo da costa oeste da Grécia continental. A Odisseia de Home- ro de fato nos apresenta “uma longa jornada” e inesperados”, mas é também narrativa épica do retorno de um herdi que encontra em sua casa uma situagdo mais pe- rigosa do que qualquer outra que tenha enfrentado nas pla- nicies de Troia ou em suas viagens por mares inexplorados. 0 filosofo grego Aristoteles, escrevendo no século 1v a.C., apresenta-nos, em seu tratado conhecido como Poética, ‘0 que considera a esséncia da trama. “Um homem encontra- ‘se no estrangeiro h4 muitos anos; est sozinho e o deus Po- séidon o mantém sob vigildncia hostil. Em casa, os preten- dentes de sua mulher estio esgotando os recursos da familia genérica, “uma longa jornada chei -ventos ¢ conspirando para matar seu filho. Entdo, apés enfrentar tempestades e sofrer um nau‘régio, ele volta para casa, dé- -se a conhecer ¢ ataca os pretendentes: ele sobrevive ¢ os pretendentes sao exterminados.” Esse resumo conciso é 0 esqueleto de um poema épico que consiste em 12 109 versos hexdmetros, escritos, provavelmente, em fins do século vii 8 ODISSEIA u inicio do vit a.C., por um poeta conhecido nas geracées posteriores como Homero, de quem nao nos chegaram in- formagées confidveis a respeito de sua vida e atividades. Em outras palavras, 0 poema tem cerca de 2700 anos. Como, 0 leitor pode muito bem perguntar, a obra sobreviveu tanto ‘tempo? Por quem, para quem, como e em que circunstancias foi composta? Talvez a melhor maneira de iniciar a explora~ cao de tais questdes (ninguém pode prometer uma resposta completa ¢ indiscutivel) seja uma abordagem retrospectiva — ou seja, a partir do texto deste livro. Trata-se de uma tradugao do texto grego. A primeira edi- ao impressa de Homero, publicada em Florenga em 1488, era composta em uma tipologia que imitava a caligrafia grega da época, com todos os seus ligamentos e suas abreviagdes complicadas. Os antigos tipégrafos tentavam assemelhar seus livros a manuscritos escritos & mao, pois nos circulos eruditos 105 livros impressos eram considerados produtos vulgares e in- feriores — brochuras baratas, por assim dizer. a partir da queda do Império Romano, o conhecimento do grego praticamente se perdeu na Europa ocidental. No sé- culo x1v, ele foi reintroduzido na Itélia a partir de Bizan- cio, onde um império cristdo de lingua grega manteve-se desde que Constantino fez da cidade a capital da metade oriental do Império Romano. INTRODUGAO ° ‘Os precursores diretos da edicao impressa de Florenca foram os livros ma- nuscritos atados, escritos em velino ou papel, em letra cur- siva mimiscula, que incluia acentos e pausas para respira- gio. Esses livros representaram a fase final do processo de cépia 4 mao que remonta ao mundo antigo. A nova escrita miniiscula fora adotada no século 1x; por incluir espagos entre as palavras, era mais facil de ler do que sua ante- cessora, uma caligrafia que consistia em letras maitisculas separadas, sem divisio entre as palavras — a escrita padrio do mundo antigo. Do século 11 ao século v, 0 formato € 0 material dos livros mudaram: o pergaminho, de vida mais longa, substituiu o papiro, e 0 cédice, o formato do nosso livro — cadernos de papel costurados na parte de tras —, substituiu o rolo. No mundo antigo, a Iliada consistia em varios rolos de papiro, com o texto escrito em colunas na face interna. Os rolos nao podiam ser muito grandes (ou se quebrariam quando abertos para serem lidos); um longo poema como a Odisseia podia consumir até 24 rolos — na realidade, é possivel que os assim chamados cantos da versio atual do texto representem a divisao original em rolos de papiro. Nesse formato, o poema tornou-se conhecido de es- tudiosos, que o editaram e comentaram em Alexandria, cidade fundada por Alexandre, antes que este se pusesse ‘a caminho de sua épica marcha rumo a {ndia em fins do século 1V a.C. E foi nesse formato — ainda que, antes, os estudiosos de Alexandria tenham produzido uma edigio padro, com muitas variagGes de um texto para outro — que surgiram varios exemplares da obra em todo o mundo grego dos séculos rv e v a.C. Também devia haver textos em circulacéo no século v1 a.C., pois temos conhecimen- to de recitagdes oficiais em Atenas ¢ encontramos ecos de Homero nos poetas da época. Por volta do século vit a.C., voltamos & escuridao. Nos poetas desse século (cuja obra sobrevive apenas em fragmentos), ha epitetos, expresses até mesmo fragmentos de versos comuns a Homero, Em- bora tais poetas — Tirteu, Calino, Aleman e Arquiloco — pudessem estar apenas usando expressdes comuns a uma tradigio épica como um todo, parece mais provavel que esses ecos revelem o conhecimento da obra que conhece- mos como pertencente a Homero. Além disso, hd um vaso, descoberto na ilha de {squia, ao largo da costa de Napoles, datado de antes de 700 a.C., que possui uma inscri¢ao que parece se referir 4 famosa taga de Nestor descrita na Ilfada. Ecos como esse também sao encontrados na arte do inicio do século vir a.C. — ilustragdes de cenas da Odisseia, por exemplo, em vasos datados da década de 670 a.C. Mas nao podemos recuar para além de cerca de 700 a.C. Provas materiais referentes a esse periodo sio raras; na realidade, sabemos muito pouco a respeito da Grécia do século viii a.C., menos ainda, se € que isso é possivel, a respeito da Grécia do século 1x a.C. Possuimos apenas re~ gistros arqueolégicos — vasos geométricos, sepulturas, al- gumas armas, Em virtude da nossa quase total ignorancia a seu respeito, esse periodo da hist6ria grega é conhecido como Idade das Trevas. Tudo que possuimos é a tradic&o, o que os gregos dos tempos hist6ricos acreditavam saber a respeito de Homero. Herddoto achava que ele havia vivido quatrocentos anos antes, nio mais, de sua propria época; isso 0 situaria no sé- culo 1x a.C. Aristarco de Alexandria, grande estudioso de Homero, acreditava que o poeta havia vivido cerca de 140 anos depois da guerra de Troia; considerando que a guerra de Troia era em geral datada (em nossos termos) por volta INTRODUGAO u de 1200 a.C., o Homero de Aristarco foi muito anterior a0 Homero de Herédoto. Apesar das discordancias quanto & data em que ele viveu, todos acreditavam que ele era cego ¢, embora alguns o considerassem natural de Quios (um suposto hino homérico menciona um cantor cego oriundo de Quios), outros associam suas origens a Esmirna. Tam- bém € geralmente aceito que Homero, embora mencionas- se 0 canto ¢ provavelmente cantasse nas apresentagées, foi um poeta que empregou os mesmos meios de composigao que seus sucessores do século v a.C. — isto é, a escrita. Mesmo aqueles que achavam que seus poemas fundiram- -se para assumir a forma atual apenas muito depois de sua morte (que, por exemplo, a tltima parte da Odisseia é um actéscimo posterior), mesmo aqueles que acreditavam que poetas distintos escreveram a Iliada e a Odisseia, os assim chamados separatistas — todos aceitavam que Homero foi um poeta que compés como todos os poetas subsequentes: com 0 auxilio da escrita. E essim ocorreu em todos os sé- culos posteriores até o século xvitt. Pope, cuja tradugio da jada é a melhor ja realizada para o inglés, fala de Homero como se este fosse um poeta como Milton, Shakespeare ou cle mesmo. “E universalmente aceito” — assim comega seu Prologo — “que HOMERO teve a Imaginagdo mais notavel do que qualquer Escritor.” Homero, ¢ isto é um fato consu- mado, escreven. Houve apenas um cético no mundo antigo que pensava de forma diferente. Nao era grego ¢ sim judeu, Yosef ben Ma- tityahu. Escreveu em grego (para 0 que, como admite, teve uma pequena ajuda) uma historia da rebeliao judaica contra o dominio romano no século 1 ¢ sua violenta repress por parte do imperador Tito — azontecimentos nos quais havia desempenhado importante papel. Mas também escreveu tum panfleto que contrariava a afirmagao do escritor grego Api6n, de que os judeus nao possuiam historia para contar, visto que as obras dos historiadores gregos mal os mencio- navam. Além de defender a aistoricidade das Crénicas do Antigo Testamento, Josefo (para chamé-lo por seu nome sgrego) contra-atacou ao assinalar que os gregos aprenderam a escrever de forma tardia em termos historicos. Os herdis da guerra de Troia “ignoravam 0 modo atual de escrever”, declarou, e mesmo Homero “no deixou seus poemas por escrito”; suas cangées foram “transmitidas de memoria” in- dividualmente e “unificadas apenas muito mais tarde”. E verdade (com uma excegao importante, que sera dis- cutida mais adiante) que ninguém na Iliada ou na Odisseia sabe ler ou escrever. Os escribas de Micenas haviam usado 6 complexo silabario Linear B — 87 sinais para diferentes combinagdes de consoantes € vogais. Era um sistema com 0 qual apenas os escribas profissionais conseguiam lidar; de qualquer forma, todos os vestigios dessa espécie de escrita se perderam com a destrui¢ao dos centros de estudos de Micenas no século x11 a.C. Os gregos s6 reaprenderam a escrever muito mais tarde. Dessa vez, apoderaram-se do alfabeto de pouco menos de 25 letras dos fenicios, um povo semitico cujos navios mercantes, navegando a partir das cidades de Tiro e Sidon, na costa palestina, alcangavam todas as ilhas ¢ portos do mar Mediterraneo. O alfabeto fenicio possuia sinais apenas para as consoantes. Os gregos apropriaram-se de seus simbolos (alfa e beta eram palavras sem sentido em grego, mas seus equivalentes fenicios, alef ¢ bet, significavam “boi” e “casa”), ¢ ao atribuir algumas letras as vogais criaram o primeito alfabeto eficaz, um sis- tema de letras que fornecia um, ¢ apenas um, signo para cada som da lingua. Exatamente quando essa adaptagao criativa ocorreu 6 objeto de controvérsia académica, Alguns dos formatos das letras das primeiras inscrigdes gregas parecem ter sido copiados de escritos fenicios de data tao remota quanto 0 século x11 a.C. Por outro lado, os primeiros exemplos de escrita alfabética grega, riscados ou pintados em cerami- ca quebrada ¢ encontrados em todo o mundo grego, desde Rodes, a leste, até {squia, a0 largo da costa napolitana, a INTRODUGKO 5B este, datam, segundo estimativas arqueoldgicas, da iilti- ma metade do século vit a.C. Apenas no século xviit 2 possibilidade do analfabe- tismo de Homero foi proposta novamente. O viajante in- glés Robert Wood, em seu Essay on the Original Genius of Homer {Ensaio sobre o génio original de Homero} (1769), sugeriu que 0 poeta era tio analfabeto quanto seus per- sonagens Aquiles e Ulisses. O académico alemao F. A. Wolf desenvolveu a teoria era um discurso erudito intitu- lado Prolegomena ad Homerum, ¢ assim teve inicio a ex- tensa e complexa Questo Homérica. Pois se Homero era analfabeto, declarou Wolf, nio poderia ter escrito poemas tao longos quanto a Iliada ¢ a Odisseia; devia ter deixa- do poemas mais curtos que, preservados pela meméria, foram mais tarde (muito mais tarde, na opinio de Wolf) reunidos em algo parecido com a forma que hoje conhe- cemos. A tese de Wolf foi quase universalmente aceita tio logo foi publicada. Surgiu na hora certa. Quase um século antes disso, 0 fil6sofo napolitano Giambattista Vico ale- gara que 0s poemas homéricos eram a criagio nao de um tinico homem, mas de todo o povo grego. O espirito da época agora tentava encontrar obras de talentos incultos, cangdes ¢ baladas, expressdes da imaginacdo conjunta de um povo — um contraste com a cultura e literatura artifi ciais da Idade da Razio. A rebelido romantica estava prd- xima. Em toda a Europa, estudiosos comecaram a reunir, gravar e editar cancdes populares, baladas e épicos — a Nibelungentied alema, a Kaievala finlandesa, as Reliques of Ancient English Poetry de Percy. E foi essa a época que viu a popularidade, sobretudo na Alemanha e na Franga, de um falso épico poético coletivo: a histéria de Ossian, heréi galés, traduzido do gaélico original e recolhido nas Highlands por James Macpherson, Apesar do fato de Ma- cpherson nunca ter sido capaz de apresentar os originais, “Ossian” foi elogiado por Goethe e Schiller; era o livro fa- vorito de Napoledo Bonaparte. Eles deveriam ter ouvido 4 opisseia Samuel Johnson, que descreveu o livro como “a fraude mais grosseira com que o mundo jé se inquietou”. Em tal atmosfera de entusiasmo pela poesia popular, a descoberta de um Homero primitivo foi mais do que bem- -vinda. E os estudiosos, convencidos de que a Iiada e a Odisseia consistiam em antigos poemas mais curtos reu- nidos mais tarde por compiladores ¢ editores, voltavam- -se com prazer 8 tarefa de desconstrucao, de reconhecer os alinhavos ¢ isolar as “canges” ou “baladas” em sua beleza primitiva, pura. Essa pratica manteve-se durante todo o sé culo xix e adentrou o século xx. E prosseguiui porque, naturalmente, os estudiosos ja- mais concordavam no que diz respeito & divisdo dos poe- mas. Isso era compreensivel, uma vez que os critérios que empregavam — inconsisténcia do personagem, desequili- brio da estrutura, irrelevancia do tema ou incidente, im- pericia da transic3o — eram notoriamente subjetivos. A principio 0 assunto gerou um vale-tudo indiscriminado; parecia haver quase uma competi¢ao para ver quem desco- bria o maior niimero de baladas distintas. Karl Lachmann, em meados do século x1x, apés afirmar que suas recém- -descobertas Nibelungenlied eram um mosaico de bala- das breves (teoria na qual hoje ninguém acredita), passou a dividir a Iliada em dezoito cangdes heroicas originais. Teoria semelhante sobre a origem da Chanson de Roland foi popular por volta da mesma época. A ideia no era t3o impossivel quanto hoje parece; de fato, um contempora- neo de Lachmann, o poeta ¢ estudioso finlandés Lonnrot, compilou baladas finlandesas em suas viagens como mé- dico rural as partes mais remotas do pais e reuniu-as para formar o grande épico finlandés, a Kelevala, poema que, desde entio, tem sido o alicerce da consciéncia nacional finlandesa. Mas os métodos analiticos de Lachmann nio produziram nenhum consenso, apenas disputas académi- cas, conduzidas com o veneno habitual, a respeito da ex- tenso dos fragmentos e de onde exatamente passar a faca. RODUGKO 45 A Iliada, na qual a ago confina-se a Troia e a planicie troiana e nao dura mais que algumas semanas, prestava-se com menos facilidade a tais operagdes cirdrgicas do que a Odisseia, que abrange dez anos e vastos espacos. Nao foi dificil para os empolgados analistas detectar épicos ori- ginalmente separados ¢ baladas curtas. Havia uma Tele- maquia (Cantos 1-1v), a nartativa do desenvolvimento do timido jovem principe até seu total estabelecimento como homem e guerreiro. Continha o que a principio eram trés baladas distintas do tipo conhecido como Nostoi (Retor- 1nos) — as viagens e o regresso a patria de Nestor, Menelau ¢ Agamémnon. Havia a longa narrativa da viagem de um heréi através de mares lendérios e distantes, como a saga da nau de Jasio, 0 Argo, um canto, alias, mencionado na Odisseia (x11.70). Incorporado a essa narrativa de viagem havia um canto breve, porém brilhante, a respeito de um escindalo sexual no Olimpo — Ares e Afrodite surpreendi das in flagrante delicto por seu furioso marido, Hefesto. E um dos cantos do bardo cego Demédoco, que, na corte de Esquéria, narra também a hist6ria da contenda entre Aqui- les e Ulisses e outra de Ulisses e do cavalo de madeira que provocou a queda de Troia. Havia, além disso, um Nostos integral, o regresso de Ulisses, a acolhida que recebeu e sua vinganga contra os pretendentes. ‘As dimensées exatas desses componentes supostamente distintos e os estagios do processo que conduziu a sua com- icos eminentes ainda sio) matéria de especulagdo e controvérsia, Haveria cia do épi- co (as andangas e o regresso de Ulisses), outro que cantou a chegada 4 maioridade ¢ as viagens de Telémaco, e um terceiro que uniu os dois e forjou os vinculos que os uni- ram? Ou haveria apenas dois — o poeta das viagens e do regresso para casa, € 0 outro que acrescentou a Telemaquia € 0 Canto xx1v (que, seja como for, muitos estudiosos con- sideram um acréscimo posterior)? binagdo foram (e nos escritos de muitos ci trés poetas principais — um que compés a ess 16 opisseta ‘A fraqueza mais evidente dessa linha de argumentagéo 6 0 fato de a historia de Telémaco nao ser tema compativel com um canto heroico; nela nada ha de heroico até Telémaco assumir seu lugar, de langa na mao, ao lado do pai no pa- licio de ftaca. Como poema épico distinto, o material dos Cantos r-1v é algo dificil de conceber no contexto histérico — um Bildungsroman, a histéria de um jovem oriundo de ‘uma ilha pobre atrasada que se impde em casa e visita a corte sofisticada de dois reinos ricos poderosos para voltar para casa homem feito. Um tema como esse esta a léguas de distancia das cangdes apresentadas pelos bardos na Odisseia ena Iliada, Demédoco, na corte de Esquéria, narra a histéria da disputa entre Ulisses e Aquiles e, mais tarde, a pedido de Ulisses, a do cavalo de madeira que ocasionou a queda de Troia. Fémio, no palacio de fraca, canta o retorno dos aqueus de Troia eas catastrofes que Ihes foram impostas por Atena, ¢ quando Penélope pede-the que escolha outro tema menciona 6 conhecimento que possui das “faganhas de homens e deu- ses, como as celebram os aedos” (1.338). E na Iliada, quando 5 embaixadores de Agamémnon pleiteiam com Aquiles que se junte a eles na linha de combate, encontram-no tocando a lira, “cantando os feitos gloriosos! dos homens” (1x.189- -90). Nao ¢ facil inserir um canto exaltando as viagens de Telémaco no contexto de um piblico masculino acostumado a narrativas de aventura ¢ feitos de armas. Como come o bardo? “Fala-me, Musa, da entrada de Telémaco na maiori- dade...”? Parece muito mais provavel que a Telemaquia tenha sido uma criagio do poeta, que decidiu unir uma narrativa de aventuras em mares lendarios — uma viagem ocidental nos moldes saga da viagem do Argo para o Oriente — com um Nostos, 0 regresso & patria do her6i proveniente de Troia, neste caso para defrontar-se com uma situacdo téo perigosa quanto a que aguardava Agamémnon, Essa decisio 0 obrigou a um desvio radical do processo tradicional de narrativa do canto heroico, ¢ trouxe & tona um problema para o qual a Telemaquia era uma solugio magistral. ia inTRODUGAO y ‘A narrativa épica em geral anuncia o ponto da hist6- ria em que ela comega e prossegue em ordem cronol6gi- ca até o fim. A Iliada princigia com o pedido do poeta a Musa: “Canta, 6 deusa, a célera de Aquiles, o filho de Pe- Jeu” ele entio Ihe diz por onde comegar: “desde 0 momen- to em que primeiro se desentenderam/ o Atrida, soberano dos homens, ¢ o divino Aquiles” (1.1-7). Ela assim faz, ¢ a historia é contada em rigorosa ordem cronolégica até o f- nal: “E assim foi o funeral de Heitor, domador de cavalos” (xx1v.804). Na Odisseia, quando Ulisses pede a Demédo- co, bardo de Esquéria: “Mas muda agora de tema e canta- -nos a formosura do cavalo/ de madeira, que Epeu fabricou com a ajuda de Atena” (vi.492-3), 0 bardo, [...] incitado, comegou por preludiar 0 deus, revelando depois o seu canto, Tomou como ponto de partida (© momento em que tinham embarcado nas naus bem construidas iniciado a navegacio (depois de queimadas as tendas) os Aqueus. (vitt.499-503) E da prosseguimento & hist6ria até a queda de Troia. Mas o prélogo & Odisseia renuncia ao tradicional pedi- do a Musa ou ao poeta para que inicie em determina- do ponto. Ela comega, como a Iliada, com um pedido a Musa para que toque um tema — a ira de Aquiles, as andancas de Ulisses, mas em lugar de the dizer onde comecar — “desde 0 momento em que primeiro se de- sentenderam/ o Atrida, soberano dos homens, ¢ o divino Aquiles” — deixa a escolha a seu cargo. “Destas coisas fala-nos agora, 6 deusa, filha de Zeus” (1.10). E ela assim © faz. Comeca nao com a partida de Ulisses de Troia (que € onde ele inicia quando conta sua histdria aos fedcios), mas no vigésimo ano de sua auséncia de casa, quando Atena compele Telémaco a empreender viagem a Pilos ¢ 8 ODISSELA Esparta e promove a fuga de Ulisses de seu cativeiro de sete anos na ilha de Calipso. ‘A razdo para esse afastamento surpreendente da tradi- gio nao é dificil de encontrar. Se o poeta tivesse comegado do principio e observado uma cronologia rigida, teria sido forcado a interromper a sequéncia da narrativa assim que seu herdi houvesse voltado a ftaca, a fim de explicar a si- tuagao extremamente complicada com a qual ele teria de lidar na propria casa. A Telemaquia o habilita a preparar o terreno para o retorno do herdi e apresentar os protago- nistas das cenas finais — Atena, Telémaco, Penélope, Euri- cleia, Antino, Eurimaco —, bem como um grupo de atores secundarios: Madon, o criado que ajudou a educar Teléma- co; Dolio, 0 criado de Laertes; Haliterses ¢ Mentor, dois ancidos de ftaca que desaprovavam os pretendentes; o pre- tendente Lidcrito e Fémio, o bardo de fraca. E as deseri das viagens de Telémaco fazem mais do que mapear seu avango, sob a orientagio de Atena, da timidez provinciana a autoconfianga principesca nas suas interagdes com r. clas também nos oferecem duas visdes ideais do regresso do heréi, muito diferentes do destino reservado a Ulisses — Nestor entre seus filhos, Menelau com a mulher ¢ a filha, ambos governando reinos abastados e siiditos leais. ‘A divisio em cantos separados de poetas distintos nao foi a tinica abordagem usada para dissecar 0 corpo da Odisseia. O século x1x foi o periodo que testemunhou © nascimento do espirito cientifico histérico. E também o da histéria da lingua — as disciplinas da linguistica, Tudo isso teve influéncia na questo. Se de fato algumas segdes da Odisseia fossem mais antigas que outras, deveriam conter atributos linguisticos caracteristicos de um estagio anterior do idioma, e nao aqueles encontrados em acréscimos mais recentes. Da mesma forma, as partes mais novas do poema deveriam conter alusdes a costumes, leis, objetos ¢ ideias pertencentes a0 periodo hist6rico mais recente, ¢ vice-versa. No fim do século, surgiu um novo critério para aferir a an- ITRoDUGao 9 tiguidade das diferentes segdes do poema — o critério ar- queolégico. Com as escavagées de Heinrich Schliemann em Troia e Micenas e as de Sir Arthur Evans em Cnossos, uma civilizagdo até entao desconhecida foi revelada. Se havia al- guma historicidade nas descrigées de Homero do mundo aqueu que organizou o ataque a Troia, devia ser uma re- feréncia a esse mundo — um mundo de mascaras de ouro, armas de bronze, palacios e fortificagées —, nao a Grécia arqueologicamente atingida pela pobreza da Idade das Tre- vas. Ora, ao encontrar nas descrigdes de Homero objetos correspondentes a algo escavado em um lugar da Idade do Bronze, o pesquisador poderia datar uma passagem, pois estava claro que com a destruicao dos palicios miceniano € minoano todos os vestigios daquele perfodo haviam desa- parecido da Grécia. Schliemann e Evans descobriram coisas das quais Herddoto e Tucidides nao faziam ideia, Dentre essas trés abordagens, a linguistica parecia a mais promissora, a mais propensa a gerar critérios obje- tivos. Estudos sobre as origens do grego na familia indo- -uropeia de linguas haviam progredido segundo critérios geralmente aceitos e cientificos: a historia da lingua grega e dos dialetos gregos tornara-se uma disciplina exata. A ané- lise linguistica do texto certamente confirmaria ou refuta- ria teorias de estratos anteriores e posteriores nos poemas. A LINGUA DE HOMERO A lingua de Homero é, naturalmente, um problema em |. Uma coisa é certa: trata-se de uma lingua que ninguém nunca falou. f uma lingua artificial, poética — como pro- poe o estudioso alemao Witte, “a lingua dos poemas ho- méricos é uma criagao de versos épicos”. Era também uma lingua dificil. Para os gregos da era dourada, 0 século v a.C., no qual inevitavelmente pensamos quando dizemos “os gregos”, 0 idioma de Homero estava longe de ser claro ao ODIssEIA (eles precisavam aprender o significado de longas listas de palavras obscuras na escola), ¢ era repleto de arcaismos — no vocabulério, na sintaxe e na gramética — ¢ incongruén- cias: palavras e formas extraidas de diferentes dialetos e estagios distintos de desenvolvimento da lingua. Na reali- dade, ninguém nem sonharia em empregar a linguagem de Homero, a excegao dos bardos épicos, sacerdotes oracula- res e parodistas eruditos. Isso nao significa que Homero fosse um poeta conhe- cido apenas de eruditos ¢ estudantes; pelo contrario, os épicos homéricos eram familiares como as palavras do cotidiano na boca dos gregos comuns, Conservaram sua influéncia na lingua e imaginagao dos gregos por sua ex- celente qualidade literaria — a simplicidade, rapidez ¢ ob- jetividade da técnica narrativa, a genialidade e emogao da acdo, a grandeza ¢ a tocante humanidade dos personagens —e por conceder aos gregos, de forma memoravel, ima- gens de seus deuses ¢ do saber ético, politico e pratico de sua tradigao cultural. A contextura dos épicos homéricos foi para 0 periodo clissico na Grécia 0 que a dos Mar- mores de Elgin representou para nés — desgastada pelo tempo, mas falando-nos diretamente: majestosa, impositi- va, uma visdo da vida para sempre gravada nas formas que parecem ter sido moldadas por deuses ¢ no por homens. ‘A lingua de Homero é também a “criagdo do verso épico” em sentido estrito: foi criada, adaptada e moldada para ajustar-se 4 métrica épica, o hexametro. Este éum verso, como aponta o nome, de seis unidades métricas, que podem, grosso modo, tanto ser dactilos (um longo ¢ dois curtos) como espondeus (dois longos) nas quatro primeiras posigdes, mas deve ser dactilo e espondeu, nessa ordem, nas tiltimas duas (raras vezes espondeu e espondeu, nunca espondeu seguido de dactilo). As silabas sio literalmente longas e curtas; a métrica é baseada no tempo de pronin- cia, e ndo na entonagdo. Mas a métrica nao permite des- vios das normas basicas — fendmenos como as variagdes INTRODUGKO a shakespearianas no verso branco, menos ainda as sutilezas de Eliot na prosédia em The Waste Land. Ainda que metricamente sempre regular, ele nunca se torna monétono; sua variedade interna é uma garantia disso. Essa regularidade imposta a variedade € o grande segredo da métrica de Homero, a arma mais poderosa de seu arsenal poético. Independentemente do quanto varie na abertura eno meio, o verso longo termina da mesma forma, estabelece seu efeito hipndtico canto apés canto, impondo a objetos, homens ¢ deuses 0 mesmo padrao da faria de Aquiles e das viagens de Ulisses, de todos os fend- menos naturais e de todos os destinos humanos. ‘A métrica propriamente dita exige um vocabulério es- pecial pois muitas combinagbes de silabas longas ¢ cur- tas, comuns a lingua falada, ndo sao admitidas no verso — quaisquer palavras com trés silabas curtas consecutivas, por exemplo, quaisquer palavras com uma silaba curta en- tre duas longas. Esta dificuldade foi solucionada por meio da livre escolha entre as muitas variagdes de proniincia e prosédia proporcionadas pelas diferencas dialetais gregass a linguagem épica é uma mistura de dialetos. Sob a leve patina das formas dticas (facilmente removiveis e, claro, em virtude da importancia de Atenas como centro litera rio e, a seguir, no comércio de livros), hd uma combinagéo indissolivel de dois dialetos distintos, 0 e6lico e o jénico. Mas as tentativas dos linguistas de usar tal critério para os primeiros (e6licos) € os mais tardios (jénicos) esbarraram no dilema de as formas eélicas e jOnicas por vezes surgirem inextricavelmente enredadas no mesmo verso ou meio verso. As tentativas de dissecar a Odisseia em termos hist6- ricos ndo foram mais satisfatdrias (a nfo ser, é claro, para seus autores). Havia de fato passagens que pareciam indi- car diferentes origens historicas, mas ndo so reconheciveis como anteriores ou posteriores pelo critério da diferenca linguistica ou da andlise estrutural. Ao longo de todo 0 poema, as armas e armaduras sao confeccionadas em bron- aa ODISSEIA ze — pontas de langas, pontas de flechas, espadas, capace- tes e peitorais; os homens s4o mortos pelo “bronze impie~ doso”. Nos paldcios mais luxuosos, como os dos deus 6 do rei Alcino de Esquéria, as banheiras e caldeirdes e até mesmo as soleiras do prédio eram feitas de bronze. O fer- ro, por outro lado, era empregado em machados e enx6s; é um elemento tio rotineiro que é constantemente empre- gado em metaforas e comparacdes — “coragio de ferro”, por exemplo, Porém, no ha como separar as camadas da Kdade do Bronze ¢ da Idade do Ferro; os dois metais esto lado a lado, e mesmo a distingao entre bronze para armas ¢ ferro para ferramentas € muitas vezes ignorada — “é que © ferro atrai o homem” é uma frase proverbial, duas vezes citada por Ulisses (xv1.294, X1X.13), € um homem que esta ‘mergulhando ferro incandescente na agua é chamado de chalkeus, 0 trabalhador que lida com bronze ou cobre. No inicio do poema, Atena, disfarcada de Mentes, anuncia que esté navegando rumo a Témese com uma carga de ferro, que pretendia trocar por bronze. ‘Mas as eras arqueolégicas nao foram o tnico assunto a ser tratado pela Musa com despreocupacao impensada. Pa- rece haver dois sistemas distintos de casamento no universo da Odisseia: em algumas passagens a familia da noiva esta- belece um dote, mas em outras 0 pretendente da presentes valiosos a familia da noiva, “£ mais provavel”, afitma um critico recente da Odisseia (West, Commentary, 1, p. 111), “que os costumes homéricos de matriménio representem um amalgama de praticas oriundas de diferentes periodos hist6ricos e locais, possivelmente complicados, além disso, por interpretagdes equivocadas.” Eles sem divida de pouco servem para darar as passagens nas quais aparecem. ‘Nao é de estranhar, tendo em conta resultados tio frus- trantes, que no inicio do século xx as opinides tenham comecado a se afastar da and qualidades do poema propriamente dito e enfatizar a uni- dade da aco principal mais do que as digressdes ¢ incon- ise para concentrar-se nas inTRODUGAO 23 sisténcias, sobretudo a fim de explorar as elaboradas cor- respondéncias de estrutura que muitas vezes vinculam uma cena a outra. A arquitetura do poema é magnifica e sugere vigorosamente a mao de um compositor, mas de fato ha certa desigualdade nos detalhes € na execugdo. O poema contém, em um amalgama indissoltivel, material que pare- ce abarcar, linguistica ¢ historicamente, muitos séculos. E inclui longas digressdes e algumas inconsisténcias de certantes, certas falhas de construcao. Que tipo de poeta 0 compés, ¢ de que forma trabalhou? A resposta foi fornecida por um estudioso norte-ameri- cano cujo nome era Milman Parry. Natural da California e professor assistente em Harvard quando morreu em tenra idade em um acidente envolvendo armas, Parry realizou seu trabalho mais importante em Paris; na verdade, escreveu-o em francés e publicou-o por Id em 1928. A obra s6 surgi em inglés em 1971, quando, traduzida por seu filho Adam Parry, passou a fazer parte de sua colecdo de estudos ho- méricos. Seu trabalho s6 foi reconhecido ¢ totalmente en- tendido muito depois de sua morte, em 1935, mas, uma vez assimilado, modificou por completo os termos da questo. O feito de Parry foi provar que Homero era mestre herdeiro de uma tradigdo de poesia épica oral que remon- tava a muitas geragées, talvez até mesmo séculos. O estu- dioso atraiu atengdo para os assim chamados epitetos or- namentais, aquelas qualificacdes longas e altissonantes que acompanham todas as aparigbes de um heréi, um local ou mesmo um objeto familiar. Ulisses, por exemplo, é “sofre- dor”, “homem de mil ardis”, “divino” e “magnanimo”; a iha de ftaca é “rochosa”, “redeada pelo mar” e “soalhei- 1a”; as naus so “concavas”, “velozes”, “bem construidas”, para listar apenas alguns dos epitetos, muitas vezes polis- lébicos, que os acompanham. Claro que esses epitetos re- correntes foram percebidos antes de Parry, e sua fungio, entendida, Apresentam, para cada deus, her6i ou objeto, uma escolha de epitetos, cada qual com uma métrica dis- ea opisseta tinta, Em outras palavras, 0 epiteto especifico escolhido pelo poeta pode nao ter nada a ver, por exemplo, com 0 fato de Aquiles ser “brilhante” ou ter “pés ligeitos” naque- le momento particular do poema — a escolha depende do fato de o epiteto se ajustar a métrica. Parry insistiu na descoberta de analistas alemies até seu esgotamento l6gico e demonstrou que de fato havia um intricado sistema de alternativas métticas para os nomes recorrentes de heréis, deuses e objetos. Era um sistema eco- némico — raras vezes empregava uma alternativa desne- cesséria —, mas possufa uma notavel esfera de ago: havia uma maneira de encaixar os nomes no verso em quaisquer das formas gramaticais usuais que estes assumiriam. Parry demonstrou que o sistema era mais abrangente ¢ organi- zado do que se imaginara, e também percebeu 0 que isso significava. Concluiu que o sistema fora desenvolvido por € para 0 uso dos poetas orais que improvisavam. Em Pa- ris, conheceu especialistas que haviam pesquisado bardos improvisadores analfabetos que ainda se apresentavam na Tugoslavia, E foi até la para estudar seu trabalho. (Os epitetos homéricos foram criados para atender as de- mandas da métrica da poesia heroica grega, o hexametro dactilico. Oferecem ao bardo improvisador formas distin- tas de encaixar o nome de seu deus, heréi ou objeto em qualquer parte restante do verso depois que ele, por assim dizer, completou a primeira metade (também esta, muito provavelmente, com outra frase feita). Ulisses, por exemplo, é muitas vezes descrito como “sofredor e divino Ulisses” — politlas diés Odisséus — um final de verso. No Canto v, Calipso, que manteve Ulisses consigo em sua ilha por sete anos, recebe ordem dos deuses para liberté-lo ¢ o informa de que pode partir. Mas ele desconfia de uma armadilha e estremece. “Assim falou”, diz Homero. “Estremeceu” — hos phatd rigésén dé —e encerra com a formula “o sofre~ dor e divino Ulisses” — pdliitlas dids Odisséus — para for- mar um verso hexametro. Pouco depois, Calipso pergunta intRopuGho. 25 a Ulisses como pode preferir sua mulher em casa aos en- cantos imortais dela, e a resposta diplomatica de Ulisses & introduzida pela formula: “Respondendo-lhe assim falou astucioso Ulisses” — tén d’ dpdméiboménos proséphé. Mas © verso nao pode terminar com “sofredor e divino Ulisses”; a formula é longa demais para esta passagem. Entdo, nesse momento, Ulisses deixa de ser “sofredor” “divino” para transformar-se em alguma coisa que se adapte ao padrio métrico: “astucioso” — pélimétis Odasséus. O nome do heréi é especialmente adaptivel. Homero emprega duas grafias diferentes — Odusseus e Oduseus —, 0 que confere a ele duas identidades métricas. Muitas vezes, no entanto, © poeta precisa empregar 0 nome em um caso gramatical diferente do nominative — o genitivo Gdits@ds, por exem- plo —e quando isso ocorre, o her6i torna-se “irrepreensi- vel” — Odiiséds dmiiménés — ou, com a grafia mais longa de seu nome, “magnanimo” — Odiisséds mégdlétdrds. No dativo, ele torna-se “divino” — antithés Odiiséi — ou “ar- diloso” — Odiisei daiphroni. A escolha do epiteto é ditada pela métrica. Assim que também a ilha de ftaca é “rocho- sa”, “rodeada pelo mar”, “soalheira” ou fica “debaixo do monte Nérito”, dependendo de seu caso gramatical ¢ da posi¢do no verso; , sob os mesmos imperatives, 0s fedcios se fazem presentes como “magninimos”, “célebres pelas suas naus” ou “amadores do remo”. Quanto as naus, ob- jetos tdo essenciais & historia de Ulisses quanto as lancas € espadas a de Aquiles, so “céncavas”, “velozes”, “escu- ras”, “bem construidas” e “recurvas”, para citar apenas os principais epitetos passiveis de serem usados pelo poeta em qualquer caso gramatical ou posi¢ao métrica. Tal sistema, claramente fruto da capacidade de criag0, do refinamento ¢ da climinagio dos supérfluos ao longo de geracdes, s6 poderia ser obra de bardos orais, e de fato fe- némenos semelhantes, embora infinitamente menos sofisti- cados, sdo encontrados na poesia oral, viva ou extinta, em outras linguas. O sistema, é claro, comportava mais do que 26 ODISSEIA epitetos titeis. Versos inteiros, uma vez afinados a perfeicdo pelos bardos da tradigao, tornavam-se parte do repertérios eles sio especialmente visiveis em passagens recorrentes como descrigdes de sacrificio e refeigdes comunais. Tais passagens conferem ao cantor tempo para concentrar-se no que vem a seguir e, caso se trate de um poeta oral criativo, ‘elaborar mentalmente as proprias frases enquanto recita sem esforco as formulas, Ele é ajudado, além disso, pela na- tureza formulaica de temas inteiros, extensas cenas-tipicas —o armamento do guerreiro para a batalha, o langamento ¢ a amarragao das naus. Existem padrées tradicionais j4 esperados pela plateia, que o bardo pode até variar, mas nao mudar radicalmente. Ha um aspecto da descoberta de Parry, entretanto, que modificou toda a questio da natureza do texto homérico que conhecemos hoje. © bardo oral que faz uso dessa lin- guagem formulaica nao é, como presumiam os estudiosos no século x1x que se debatiam com a questo dos bardos analfabetos, um poeta recitando de cor um texto prede- terminado. Ele est improvisando com versos conhecidos, valendo-se de um imenso estoque formulaico de frases, versos e até mesmo cenas inteiras; mas estd improvisando. E, a cada vez que canta 0 poema, pode fazé-lo de forma diferente. As linhas gerais permanecem as mesmas, mas 0 texto, 0 texto oral, é flexivel. © poema é novo a cada vez que é apresentado. Se a poesia de Homero é 0 auge de uma longa tradi¢ao desse tipo de composicao oral, muitos dos problemas que confundiam os analistas esto resolvidos. Ao longo do cur- so de geracdes de tentativas e erros, as formulas sio intro- duzidas, rejeitadas ou mantidas por sua utilidade a impro- visagao, sem levar em conta a consisténcia linguistica ou a precisao histérica. A linguagem dos poetas torna-se um repositorio de todas as combinagdes que se provaram iiteis. Nio é de admirar que formas eélicas e jonicas aparecam no mesmo verso, que um capacete micénico de presa de javali INTRODUGAO Ps surja em uma passagem da Ilfada repleta de formas lin- guisticas posteriores, que as pessoas na Odisseia por vezes deem dotes e por vezes exijam pagamento pela mao de suas filhas, que a cremagao e a inumagao sejam praticadas lado alado, A medida que cada nova geragao de cantores recria © canto, novas férmulas s2o inventadas, e novos temas ¢ cenas introduzidos; reflexos da realidade contemporanea infiltram-se nas descrigdes dos combates, especialmente nas analogias. Mas a dedicagio da poesia épica ao passa- do e a prolongada fungio de tanta fraseologia tradicional retarda 0 processo de modernizagio e produz o amélgama anistorico de costumes, objetos ¢ formas linguisticas que encontramos no texto homérico que conhecemos hoje. E destino de grande parte das descobertas novas ¢ va- liosas ser desenvolvida para além dos limites da evidéncia, ‘ou mesmo da probabilidade, e a demonstragao de Parry de que a poesia homérica possufa uma base oral nao escapou a esse destino, Frases ¢ até mesmo versos inteiros que se repetem com frequéncia suficiente para qualificar-se como formulaicos sao, na realidade, caracteristicos da dic¢io do poeta, porém nao representam mais do que parte dela —cerca de um tergo do total. Em uma tentativa de algar 0 elemento formulaico a um plano superior, Parry conside- rou formulas as expressdes cujo padrao métrico posicao no verso eram idénticos e que continham uma palavra em comum: por exemplo, téuché étheké; alge” étheke kidds Ethéké — ele “pas no mesmo balaio” armas, tristezas e glorias. Nao satisfeito com isso, Parry sugeriu, de forma hesitante, a inclusio no sistema de expresses semelhan- tes, mas que ndo continham uma palavra em comum: dékén hétdird, por exemplo, ¢ téuché kiindssin — “ele dew a seu camarada”, “ele o deu de comida [aos cies)”. Alguns dos seguidores de Parry foram menos hesitantes, ¢ por esta ¢ outras extensdes do significado “formula” amplia- ram o contetido herdado dos versos de Homero a 90%. Isso, é claro, deixa muito pouco espago para Homero 7 opisseia como poeta criativo individual. Parece, na realidade, um retorno ao pensamento de Giambattista Vico: 0s poemas sio criagdo de um povo, de uma tradigao, de geragdes de bardos andnimos. ‘Mas o argumento a favor do formulismo total e irrestri- to tem pés de barro. O poeta que compe em uma métrica rigorosa, exigente, é obrigado a repetir combinagées sint: ticas em posigdes idénticas e, quanto mais rigida a métrica, maior a incidéncia de tais padroes repetidos. ‘As alegagdes extravagantes a favor da predominancia da formula na poesia homérica hoje em geral jé foram ignora- das, e até mesmo as teses fundamentais de Parry demonstra- ram necessitar de modificagdes a luz de analises posteriores. HA muitos casos, por exemplo, em que um epiteto formulai- co de fato parece poeticamente funcional em seu contexto. HA casos em que a repeticdo verbal é tao poeticamente eficaz {que deve ser resultado de uma concepgio poética, nao obra de um sistema quase mecinico. A investigagio cuidadosa de cenas tipicas — a ceriménia de sacrificio, o armamento de ‘um guerreiro e assim por diante — revelou que, embora por ‘vezes versos inteiros se repitam em uma cena e outra, nao ha duas cenas que sejam exatamente iguais. “Cada ocorréncia”, para citar uma avaliagao recente (Edwards, p. 72), “€ tinica, € muitas vezes especificamente adaptada a seu contexto.” ‘Até mesmo 0 conceito basico de economia, a limitagdo rigo- rosa dos epitetos de um deus ou herdi aqueles necessarios em diferentes casos e posiges, foi questionado: um estudo re- cente mostra que em sua anélise dos epitetos de Aquiles, por exemplo, Parry considerou apenas as frases que incluiam 0 nome do herdi, ignorando outras formas de identificar Aqui- les, tais como “o filho de Peleu” (Shive, passim). Tudo isso, juntamente com a escala monumental e a magnifica arquite- tura da Ilfada, ¢ a complexa estrutura da Odisseia, faz com que a imagem de Homero como bardo analfabeto, depen- dente de fOrmulas prontas e cenas fixas para melhorar seu desempenho, seja dificil de aceitar. INTRODUGKO 29 Existe, todavia, um conserso bastante difundido de que Parry tinha razdo em uma coisa: o estilo singular de Homero mostra claramente que ele era herdeiro de uma longa tradigao de poesia oral. Existe, contudo, um problema que Parry le- vantou, mas no resolveu: Homero pode, ou nao, ter sido to analfabeto quanto seus precursores, mas em algum momento a Iliada e a Odisseia foram escritas. Quando, por quem, com que finalidade e em que circunstancias isso foi feito? (Glennon se AAD BR Tera Homer taco proveito da nova técnica a fim de registrar para futuros cantores 0s imensos poemas que havia criado sem o auxi- lio da escrita? Teria a escrita desempenhado um papel na composigao dos poemas? Para ambas as perguntas, 0 cola- borador e sucessor de Parry, Albert Lord, forneceu uma en- fatica resposta negativa. “As duas técnicas sao (...] mutua- mente exclusivas [...]. E concebivel que um homem tenha sido poeta oral na juventude e tena feito uso da escrita mais tarde na vida, mas no & possivel que tenha sido tan- to poeta oral quanto ter usado a escrita em determinado ‘momento de sua carreira” (p, 129). Lord baseou essa afir- magao em sua experiéncia com os poetas orais iugoslavos que entraram em contato com sociedades urbanas alfabeti- zadas e perderam o dom para a improvisacai Foi naturalmente assim que as can- ges dos bardos iugoslavos analfabetos foram registradas (por vezes com 0 auxilio de um equipamento de gravacao sofisticado para a época) por Parry e Lord. Essa explicagdo nao satisfer a todos. A analogia com a Iu- goslivia moderna, por exemplo, era falha. Quando os bardos locais aprenderam a ler e escrever, viram-se imediatamente 30 opissel expostos & influéncia corruptora de jornais, revistas e ficgao barata, mas, se Homero aprendew a escrever em fins do século vin, dispunha de pouco ou nada para ler. A generalizagio de Lord a respeito da incompatibilidade das duas técnicas foi questionada por investigadores da poesia oral; em outras partes do mundo {sobretudo na Africa), eles nao encontram_ tal dicotomia. “A questao principal (...] é a continuidade da literatura oral escrita. Nao existe nenhum abismo profundo entre as duas: elas matizam uma A outra tanto no presente {quanto 20 longo de muitos séculos de desenvolvimento hist6- rico, e hé incontaveis casos de poesia que possuem elementos ‘orais’ e ‘escritos’ (Finnegan, p. 24).” Além disso, os exempla- res existentes de escrita alfabética do século viii a.C. € inicio do século vit a.C. tornam dificil crer que um escriba desse pe- riodo conseguisse registrar um ditado na velocidade de uma apresentacdo, ou perto disso: as letras so maitisculas e sepa- radas, grosseira e arduamente compostas, escritas da direita para a esquerda, ou da direita para a esquerda e da esquerda para a direita em linhas alsernadas. Um critico inclusive che- ou a invocar, de forma ireverente, uma imagem de Homero ditando o primeiro verso (ou melhor, o primeiro meio verso) da Iliada: “Ménin aeide thea... Vocé pegou isso?”. Uma explicagao diferente para a transi¢ao da apresen- tagio oral para o texto escrito for desenvolvida por Geof- frey Kirk. Os épicos eram a criagao de um “monumental compositor” oral, cuja versao impunha-se aos bardos ¢ as plateias como a versio definitiva. Eles “passavam entdo por pelo menos duas geragdes de transmissdo por cantores ¢ rapsodistas decadentes e semialfabetizados” (Kirk, The liad: A Commentary, 1, p. XXV) —=1St0 € artistaS(Gue HAO eram poetas. A objecdo de Lord a isso, ao fato de que a memorizagao néo desempenha nenhum papel na tradi¢ao oral viva, baseava-se na experiéncia iugoslava, mas em ou- tr0s locai)— na Somilia, por exemplo —(poenas bastante longos sio recitados de cor por declamadores profissionais que, em muitos casos, sdo poetas. a E b INTRODUGKO 3 ‘© que nenhuma dessas teorias explica, entretanto, é a iiMiensa extensao do poems Por que um poeta oral, analfabe- to, cuja poesia existe apenas durante sua apresentagio diante de uma plateia, criaria um poema to longo a ponto de levar varios dias para ser declamado? Além disso, se sua poesia existia apenas durante suas apresentagdes, como ele conse- ‘gui criar um poema de tal extensio? Se, por outro lado, ele apresentava diferentes segdes do trabalho em momentos e lo- cais distintos, como poderia ter elaborado as variagdes sobre tema, as formulas e as correspondéncias estruturais internas que distinguem com tanta intensidade os épicos homeéricos dos textos iugoslavos coligidos por Parry e Lor. Niio causa surpresa o fato de que muitos estudiosos re- centes nesse campo tenham chegado a conclusio de que a escrita de fato desempenhou um papel na criagio desses poemas extraordindrios, que os fendmenos caracteristicos do €pico oral demonstrados por Parry e Lord sio contra- balanceados por caracteristicas peculiares 4 composi¢ao literdria. Eles concebem um poeta oral altamente criativo, mestre do repertorio de material e técnica herdados, que uusou novo meio da escrita para produzir, provavelmente ao longo de uma vida, um poema épico de dimensoes que ultrapassam a imaginagao de seus precursores. Foi na segunda metade do século vir a.C. que a escrita passou a ser usada em todo o mundo grego. Homero devia saber de sua existéncia, mas ea evidente que o cardter tra- dicional de seu material impedia o aparecimento da esc no mundo inexoravelmente arcaico de seus heréis, que per- tenciam a uma época em que os homens eram mais fortes, ‘mais corajosos e maiores do que so hoje, um mundo no qual homens e deuses conversavam frente a frente, Ainda assim, Homero demonstra, em um caso particular, que ¢s- tava ciente da nova técnica. No Canto vi da Ilfada, Glauco conta a historia de seu av6 Belerofonte, a quem Preto, rei de Argos, enviou com uma mensagem ao rei de Licia, sogro de Preto; a mensagem instruia o rei a matar 0 portador: “e ODISSEIA 3 ones noma abi de aa dpa vast. en havido muita discussao a respeito da natureza desses sinais, ‘mas a palavra que Homero emprega — grapsas, literalmen- te “raspar” — é mais tarde a palavra usual empregada para “escrever”, e pinax — “tabua” — é a palavra empregada pelos gregos para descrever as placas de madeira revestidas de cera usadas para mensagens curtas. Se sabia escrever, no que Homero escrevia? Obvia- mente, as tabuinhas nao seriam adequadas. Nao sabemos quando o papiro, o papel do mundo antigo, tornou-se aces sivel na Grécia, embora saibamos que ele vinha, a princi- pio, no de sua fonte quase exclusiva, o Egito — que s6 foi aberto aos comerciantes gregos depois do século vi a.C. —, mas do porto fenicio que os gregos chamavam de Biblos (a palavra grega para livro era biblion sddios das viagens da Odisseia (0 Ciclope) ou de Ulisses (0 massacre no saldo) precisariam ser aperfei- coados na apresentagio oral, possivelmente combinados com outros episédios para formar unidades mais longas para ocasides especiais (Ulisses entre os feacios, 0 mendigo 1no palicio) e por fim consignados a escrita, Aos poucos, setia forjado um texto completo, detalhadamente redefi- nido ¢ ampliado por insercdes, criando ganchos entre as INTRODUGRO oO ‘Ses mais longas. Ninguém, a despeito das repetidas e engenhosas tentativas, jamais conseguiu produzir uma planta convincente do pa- acio de Ulisses; as pessoas entram e saem de aposentos que parecem mudar de posigéo de um episddio para o outro. Também hé inconsisténcias na localizagao dos persona- gens. No Canto xv, por exemplo, quando Telémaco e Teo- climeno, o fugitivo que ele colocou sob suas asas, chegam a Itaca, vao a praia e Teoclimeno vé um falcdo carregar um pombo, sinal que este interpreta como uma profecia de vitéria para Telémaco. Porém mais tarde, quando faz refe- réncia a esse incidente, diz.que viu o falco enquanto estava “a bordo da nau/ bem constryi assinaladas em comentarios scadémicos, hoje raras vezes atrapalham o leitor comum, ¢ é ébvio que as plateias ori- ginais de Homero, mesmo que houvessem tido uma ten- déncia critica, teriam encontrado dificuldade em citar ca- pitulos e versos para dirimir suas dividas, Na verdade os ouvintes do poeta nao cultivavam uma atitude mental cr tica. A palavra que Homero utiliza para descrever a teagdo da plateia ao maior recital épico na Odisseia — a narrativa do herdi de suas andangas desde Troia até a corte do rei de Esquéria, em cuja mesa esta sentado, tomando parte em um banquete — é kéléthmos, “enlevo”. “Assim falou, e to- dos ficaram em siléncio,/ como que enfeitigados no palécio cheio de sombras” (x1i1.1-2). Muitos séculos mais tarde, no didlogo fon de Plato, um rapsodista, declamador pro- fissional dos épicos homéricos, repete as palavras de Ho- mero ao descrever a reacio do piblico a sua apresentacao. “Vejo-os a cada vez, do alto do estrado, chorando e me 34 op! olhando de maneira terrivel, unindo-se a mim em meu as- sombro ante as palavras ditas.” xe Home hhouvesse ditado seu poema, o escriba dificilmente deixaria de noté-las e corrigi-las. Lord, alias, registra tais corregdes no decorrer do ditado na lugoslavia. E parece dificil imagi- nar versos nao corrigidos na explicagio proposta por Kirk, de um poema monumental preservado por uma ou duas sgeragdes pela recitagao antes de ser registrado. Qualquer rapsodista (e na geragao anterior também ele teria sido um poeta oral) teria corrigido os versos sem esforgo e nao teria visto motivos para nao o faze , como no modelo. Isso é pura especulagao, claro, assim como todas as ou- tras tentativas de explicar a origem do texto que chegou até 1nés. Nunca seremos capazes de responder com certeza as perguntas que gera esta hipdtese € devemos nos contentar com o fato de um grande poeta ter ordenado os recursos de ‘uma arte tradicional milenar para criar uma coisa nova — as narrativas da célera de Aquiles ¢ as andangas de Ulisses, que foram os modelos da poesia épica desde entio. A ODISSEIA EA ILIADA Sempre se presumiu que a Odisseia tenha sido escrita de- pois da Ilfada. Um critico antigo, autor do tratado Sobre © sublime, considerava a Odisseia 0 resultado da idade avangada de Homero, de “uma mente em declinio; era uma ‘obra que podia ser comparada ao sol poente —a dimensio permanecia, mas sem a forca”. Ainda assim, ele modera 1a dureza desse julgamento ao acrescentar: “Estou falando INTRODUGKO as de velhice — mas é a velhice de Homero”. © que motivo © comentario “sem a forca” foi sua clara preferéncia pelo plano heroico prolongado da Iliada sobre que ele chama de apresentacao “do fabuloso e do incrivel” na Odisseia, assim como a descricio realista da vida nas propriedades rurais ¢ no palicio dos dominios de Ulisses, a qual, afirma le, “cria uma esp. de comédia de costumes”, E claro que esse julgamento é determinado pela concepgao de “su- blime” que é o foco do livro do autor, que nao acolhe favo- ravelmente cenas como as apzesentadas no Canto xvi da Odisseia — a briga entre os dois mendigos esfarrapados, por exemplo, ou a premiagao do vencedor com tripas de cabra fritas recheadas com sangue e gordura. Sobre o sublime foi escrito por volta do século 1 d.C., mas uma outra formulacao para a relagdo da Iliada com a Odisseia j4 havia sido proposta no século 11 a.C. Alguns es- tudiosos, conhecidos como chorizontes — “separatistas” —, afirmaram que a Odisseia havia sido composta depois da Iliada, mas por um autor diferente. Essa é a posigao ado- tada também por muitos pesquisadores modernos, que ob- servam diferencas significativas entre os dois poemas nao apenas em termos de vocabalirio e no emprego da gra- matica, mas também no que consideram evolugao, desde a Ilfada até a Odisseia, nas concepgoes e atitudes morais e religiosas. As consideragdes a respeito da validade dessa evidéncia entretanto variam, 2 ha aqueles que acham dificil aceitar a ideia do surgimento de dois grandes poetas épicos em tao curto intervalo de tempo. Dificilmente se pode duvidar que a Odisseia tenha sido escrita depois da Iliada. Antes de mais nada, embora pres- suponha o conhecimento da plateia nao s6 da saga da guer- ra de Troia, mas da forma especial como esta foi contada na Iliada, ela prudentemente evita a duplicago desse mate- rial. Muitos incidentes da hist6ria de Troia sio recordados, por vezes em detalhes e em toda a sua extensio, mas todos fora do intervalo de tempo que a Iliada abarca, ocorrendo Pal opIssEtA antes ou depois do periodo de 41 dias que teve inicio com a célera de Aquiles e terminou com o funeral de Heitor. De- médoco, na corte de Esquéria, canta a briga entre Ulisses Aquiles (incidente no mencionado na Ilfada nem, por si nal, em qualquer outra parte na literatura grega existente) ¢ mais tarde menciona o cavalo de madeira que pés fim ao cerco, No palacio de fraca, o tema do menestrel Fémio é 0 sofrimento dos heréis a caminho de casa, vindos da guer- ra, Nestor, em Pilos, conta a Telémaco como Agamémnon ¢ Menelau desentenderam-se depois da queda de Troia ¢ ramaram para casa por caminhos separados. Em Esparta, Helena e Menelau contam histérias a respeito de Ulisses em Troia, nenhuma delas familiar a Ilfada, Mesmo quando Ulisses encontra os fantasmas de seus companheiros Aga- mémnon e Aquiles no Hades, 0 material pertencente a Ilia- da € evitado: Agamémnon conta a historia de sua morte ‘nas maos de sua mulher e do amante desta, Ulisses narra a [Aquiles as faganhas heroicas do filho deste, Neoptélemo, e mais tarde conversa com Ajax a respeito da concessao das armas de Aquiles. Que 0 poeta da Odisseia conhecia a Iliada em sua for- ma contemporanea também é fortemente sugerido pela continuidade do delineamento de personagens de um poe- ma pata 0 outro. Na Odisseia, esto todos mais velhos, os que ainda vivem, mas so reconhecidamente os mesmos homens. Nestor continua régio, meticuloso e prolixo. A generosa reagéo de Menelau ante a recusa diplomatica de Telémaco da carruagem ¢ dos cavalos com que o primeiro © presenteia evoca sua nobre reagio ao pedido de desculpas de Antiloco por sua manobra antiesportiva na corrida de carruagens nos jogos finebres de Pétroclo. Helena conti- nua a ser em Esparta, assim como 0 foi em Troia, uma mu- ther sensata em situagio dificil. E Ulisses ainda é o orador fascinante do qual se recordava Antenor no Canto 1 da iiada, com “palavras como flocos de neve em dia de inver- no” (111.222); é 0 “conhecedor de toda a espécie de dolos e puree InrRoDUGKO ” planos ardilosos” que Helena identificou para Priamo na mesma passagem (111.202). E é 0 homem “que esconde uma coisa na mente, mas diz outra” (1x.313) — a descrigao de Aquiles do tipo de homem que detesta (ele dirige-se a Ulis- ses, que chegou como embaixador de Agamémnon). Ulisses continua a ser o lider de pensamento rapido e engenhoso que, por meio da aco imediata, impediu a precipitagao em diregdo as naus causada pela decisao imprudente de Aga- mémnon de testar o moral das tropas ao sugerir-lhes que rumassem para casa, Mas na Odisseia ele no é mais um dos muitos herdis gue lutam entre os navios atracados na praia e as muralhas de Troia. Esta s6, primeiramente como almirante de uma pe- quena frota, depois como capitéo de uma nau isolada, e por fim como néufrago agarrado aos escombros do navio. As cenas de suas ages e padecimentos ampliam-se para incluir no apenas as costas illhas do mar Egeu e da Grécia conti- nental, mas também, nas falsas narrativas de viagens que ele desfia em seu disfarce como mendigo, Creta, Chipre, Fenicia ¢ Sicilia e, nas historias que conta aos feacios durante 0 ban- quete, o mundo desconhecido dos mares ocidentais, repletos de maravilhas e monstros. As naus, que na Ilfada atracam na praia atrs de uma paligada ¢,com Aquiles fora do combate, enfrentam a fiiria do ataque de Heitor, na Odisseia retor- nam ao seu elemento natural, o mat cor de vinho. (OS MARES OCIDENTAIS “Nem o prazer que sentia com meu filho”, diz 38 opisseta ele no Inferno, “nem a reveréncia por meu pai idoso, nem ‘© amor que devia a Penélope e que deveria té-la feito feliz prevaleceu a paixdo que eu sentia por obter experiéncia do mundo, dos vicios ¢ do valor humano.” Ele zarpa rumo a Gibraltar e langa-se ao Atlantico, seguindo o sol “em dire- 40 a0 mundo onde ninguém vive”, Esse enredo foi levan- tado no “Ulises” de Tennyson, em que 0 herdi anuncia seu propésito de “navegar para além do pér do sol, e do banho/ De todas as estrelas do Ocidente...”. ‘Mas tais visdes de Ulisses como explorador incansavel, vido por novos mundos, tém pouco a ver com o Ulisses de Homero, que deseja, acima de tudo, encontrar 0 caminho de casa e nela permanecer. £ verdade, como Homero expli ca na introdugio, que “muitos foram 0s povos cujas cida- des observou,/ cujos espiritos conheceu” (1-5-4); navegando por mares desconhecidos, ele apresenta uma curiosidade tipicamente grega a respeito dos habitantes dos continentes dos quais se aproxima, mas a viagem nao é escolha sua. Ele “tanto vagueou,/ depois que de Troia destruiu a cidadela sa~ grada” (1-1-2), € longe de perseguir a “vivéncia do mundo”, {...] foram muitos no mar (08 sofrimentos por que passou para salvar a vida, para conseguir o retorno dos companheiros a suas casas. (03-5) As andancas de Ulisses pelo Ocidente inspiraram mui- tas tentativas de tragar seu percurso e identificar seus por- tos de escala. Essa perseguicéo ao impossivel teve inicio no mundo antigo, e dela tomamos conhecimento a partir da severa rejeicao de tais identificagdes por parte do gran- de ge6grafo alexandrino Eratéstenes, que afirmou ser ¢a~ paz de mapear a trajetoria das andancas de Ulisses apenas aquele que encontrasse 0 sapateiro que costurara 0 saco no ‘qual Bolo confinara 0s yentosy Isso, obviamente, nao dis- suadiu os pesquisadores e diletantes modernos de tentar; INTRODUGKO. Pal suas suposigdes vao do posstvel — Caribdis como a perso- nificagéo mitica dos furacdes nos estreitos situados entre a Sicilia e a ponta da bota iteliana — ao fantéstico: a ilha de Calipso como a Islandia. G@gund inl GOs investIgAdoD res do assunto, “Cerca de setenta teorias foram propostas desde que Homero escreveu a Odisseia, com as locacdes limitadas apenas pelos polos Norte e Sul e estendendo-se, ‘no mundo habitado, da Noruega 4 Africa do Sul e das ilhas (Canarias a0 mar de Azoy” (Clarke, p. 251). ‘Mas mesmo as identificagdes que nao sao claramente ri- diculas parecem implausiveis 4 luz das obscuras nogdes geo- grdficas de Homero de dreas muito proximas de seu lar. Ele conhece a costa da Asia Menor e as ilhas do mar Egeu: Nes- tor, nos caminhos alternativos que saiam de Troia através do Egeu, dé a impressao de ser um navegador experiente. Mas o conhecimento que Homero possui do Egito, onde Menelau se demorou devido a ventos contrérios e onde Ulisses, em suas narrativas mentirosas, muitas vezes aporta, é no mini- mo vago. Menelau descreve a itha de Faros, a 1,5 km da cos- ta, como distante um dia inteiro da praia se a nau estivesse navegando com vento de popa. E, quando os personagens de Homero deslocam-se para a Grécia continental ¢ as ilhas da costa oeste, a confusio reina. Sua descrigéo de ftaca ¢ to cheia de contradigdes que muitos pesquisadores moder- nos sugeriram Leucas ou Cefalénia como o verdadeiro lar de Ulisses, e nfo a ilha que hoje apresenta esse nome {HOD mero também revela total igrorancia da geografia da Gré- ia continental; Telémaco e Pisistrato vao de Pilos, na costa este, a Esparta, em uma carruagem puxada por cavalos ¢ transpdem uma dificil barreirs montanhosa que nos tempos antigos no era cortada por estradas. ‘Mas a vaga nocio que Homero possua das areas exter- nas ao Egeu é apenas uma das objegGes 8 ideia de assinalar locais no Ocidente para a ilha de Circe e a terra dos lot6- fagos. Um grande mimero de ocorréncias nas andangas de Ulisses obviamente se baseia em uma viagem distinta, a via- 40 OpIssEIA gem do Argo, que singrou ndo os mares ocidentais, mas os orientais, com uma tripulacao de herdis capitaneados por Jasdo. Os lestrigones que atacam as naus de Ulises com pe- ‘dras possuem seus congéneres na saga dos argonautas; Cir- ce é irma de Aetes, guardia do velo dourado, e o proprio Homero situa sua ilha ndo no Ocidente, mas no Oriente — onde o sol se ergue. As rochas ingentes séo também uma caracteristica da viagem de Jasio, ¢ 0 poema que a enaltece é explicitamente mencionado por Homero nesse momento. Eas sereias se fazem presentes no poema de Apol6nio, Argo- nautica, que, embora escrito no século 11 a.C., seguramente se inspirou no poema anterior, ao qual se refere Homero. O que Homero fez foi transferir episédios de uma viagem épica mitica em aguas orientais para os mares ocidentais. ébvio que era um imperativo geografico que, se Ulis- ses tinha de perder 0 rumo a caminho de casa, 08 ventos 0 Tevassem para oeste. Mas esse imperativo deve ter sido re- cebido com entusiasmo por Homero ¢ seu piblico, pois os primeiros anos do século vir a.C. viram o comego do que se tornaria um movimento em grande escala de comercian- tes gregos e, mais tarde, colonizadores em direcao ao Medi- terraneo ocidental, Quando recusa o convite de um jovem fedcio para participar de uma competicao atlética, Ulisses € desdenhosamente tratado como alguém pouco atlético: Pareces-me mais alguém que vai e vem na nau bem constrnida, comandante de marinheiros que sio eles prOprios mercadores: alguém que s6 pensa na carga e esta sempre muito atento 0s lucros do regateio. [..] (vur.164-4) ‘Aos comerciantes logo seguiram os colonizadores. O pri- meio povoado parece ter sido Pitecusa, na ilha de fsquia, na baia de Napoles; nao era uma cidade, mas um entreposto co- inTRoDUgko re mercial e data, segundo indicios arqueolégicos, de antes de 775 a.C, No ano 700 a.C., havia cidades gregas na Itélia: Cuma, no continente em frente a isquia; Régio (Reggio Cala- bria), na ponta da bota italiana; e a proverbialmente rica ci dade de Sibaris, mais acima, assim como Taranto, na mesma regido. Na ilha vizinha da Sicilia, Siracusa e Messina foram fundadas por volta de 725 a.C. Mais tarde viriam os assenta- mentos na costa meridional da Franga: Marselha, Antibes ¢ Nice, assim como Cirene, na costa do que é hoje a Libia. Muito antes de os primeiros colonizadores se estabelece- rem, deve ter havido imimeres viagens de comerciantes-ex- ploradores, que sem divida voltavam com historias de pro- digios e perigos, aumentados no ato da narrativa, Caribdis, por exemplo, talvez seja uma versio fantastica das correntes e dos tornados por vezes encontrados nos estreitos entre a Sicilia e o continente, E, embora 0 gigantismo do Ciclope € seu tinico olho qualifiquem-no como mitico, sua econo- mia pastoril e sua ferocidade para com estranhos podem ser uma reminiscéncia das populagdes nativas, que se opunham ao desembarque de invasores em suas costas — uma visio demonizada dos nativos, como o Caliban de Shakespeare. A tempestade foi escrita em um periodo semelhante de ex- ploracio e, embora Préspero ¢ Arie! tivessem poderes que nio sio deste mundo, nao resta divida de que os prodigios da pega so uma reorganizacio imaginativa das narrativas exageradas de marinheiros e piratas que, durante meio sécu- lo, percorreram os mares da América Central a procura de terras para colonizar, naus espanholas para abordar, cidades espanholas para saquear, ou compradores espanhéis para seus carregamentos de escravos africanos. Na realidade, sa- bemos que Shakespeare deve ter lido relatos do naufragio do Sea-Venture, a nau capitania de uma frota a caminho da co- lonia da Virginia, em uma “tempestade terrivel hedionda” ao largo das ilhas Bermudas, da sobrevivéncia da tripulagao € por fim da chegada & colénia — uma série de acontecimen- tos que um dos relatos chama de “tragicomédia”. ra opissera E ha uma passagem na Odisseia que constitui uma cla- ra reminiscéncia das viagens gregas de exploracao no Oci- dente. Quando chega A terra dos ciclopes, Ulisses vé uma pequena ilha ao largo da costa, fértil e bem provida de ca~ bras selvagens, porém desabitada, Os ciclopes, explica ele a sua plateia fedcia, [...] ndo tém naus de vermelho pintadas, ‘nem tém no seu meio homens construtores de naus, tl homens esses que teriam feito da ilha um terreno cultivado, pois a terta ndo é més tudo daria na época propria. Hi prados junto as margens do mar cinzento, bem irrigados e amenos, onde as vinhas seriam imperecfveis. [A terra é facil de arar; e na altura certa poder-se-ia ceifar excelentes colheitas, de tal forma rico é 0 solo por baixo. (1x.125-35) fa auténtica voz do explorador a avaliar um local para assentamento. «.* VIAJANTE ‘A viagem de Ulisses aos lendarios mares ocidentais tem inicio no mundo real, quando ele deixa as ruinas de Troia a caminho de casa, com as naus carregadas dos despojos oriundos do saque & cidade. Como se tais despojos nao Ihe bastassem, Ulisses ataca primeiro povoado com que se depara no caminho, a cidade de Ismaro, na costa da ‘Tracia, no lado oposto a Troia: “ai saqueei a cidade e cha- cinei os homens./ Da cidade levei as mulheres e muitos tesouros, que dividimos” (1x.40-1) {1880 € pled PiRAEAr® —Ismaro nao era aliada de Troia —, mas obviamente ‘indo é uma ago incomum em seu tempo e lugar; um dos epitetos de Ulisses é ptoliporthos, “saqueador de cidades”. INTRODUGAO a Nestor, em Pilos, pergunta educadamente a Telémaco ¢ Pisistrato se: com destino certo, ou vagueais a deriva pelo mar como piratas, que poem suas vidas em risco ¢ trazem desgracas para os homens de outras terras: (172-4) E Polifemo faz a Ulisses a mesma pergunta (1X.253-5). Foi provavelmente pensando em passagens como estas que Tucidides, escrevendo no século v a.C., a0 mencionar as medidas adotadas por Minos para conter a pirataria no Egeu, enfatizou que, nos tempos antigos, “essa era uma ‘ocupagao honrosa, e nao deploravel. Prova disso [...] si0 108 restemunhos dos antigos poetas, em cujos versos sempre se pergunta aos visitantes recém-chegados se sio piratas, pergunta que nao implica nenhuma desaprovagao de tal cocupacio, seja da parte daqueles que respondem com uma negagio ou daqueles que pecem essa informagao”. \ pira- taria era endémica no Egeu — um mar de ilhas grandes ¢ pequenas, de costas recortadas repletas de portos escondi- dos — sempre que nio havia uma poténcia naval central dominante forte o suficiente para conté-la. Muito tempo depois de Minos, no século v, uma frota ateniense, sob comando de Cimon, esvazioa um ninho de piratas na ilha de Ciro. Muitos séculos mais tarde, o jovem Jilio César foi capturado por piratas perto da pequena ilha de Farmacusa, proxima a costa jénica, ¢ mantido como refém. Os mares tornaram-se téo perigosos que em 67 a.C. foi concedida a Cheu Pompeu autoridade suprema para lidar com o proble- ma, ¢ foi o que ele fez ao tripular 270 navios de guerra € mobilizar 100 mil soldados (Séiipee quelhavia Wil vacuOUe poder no Egelia piratabialHessurgiay js na década de 1820, corsérios arabes sequestraram os habitantes da ilha grega de Citera para serem vendidos no mercado de escravos em Argel. “4 oprssera Citera é a ilha a0 largo do cabo Maleia pela qual passou Ulisses em sua tentativa de rumar para norte, em diregao a ftaca, tendo-se desviado para oeste e se afastado da rota por nove dias em razio dos ventos, ¢ penetrado em um mundo de maravilhas e horrores, de gigantes ¢ feiticeiras, deusas ¢ canibais, perigos e tentagdes. Os relatos de suas chegadas em terra e a forma como foi recebido diferem amplamente em termos de contetido ¢ abrangéncia, mas conectam-se por um tema comum, do qual todos consis- tem em variagées. (Elum tema fundamental jparalalOMis3 seia como um todo, predominante nao apenas na trajeto- ria errante do heréi, mas nos cantos de abertura, que se ‘ocupam de Telémaco em casa e no exterior, € na iiltima ‘metade do poema, que nos brinda com Ulisses disfarcado de mendigo esfarrapado, por fim em sua patria e na pré- pria casa. O tema é, de forma concisa, a relagao entre 0 anfitrido e o convidado, em especial a obrigagao moral de receber bem € proteger 0 forasteiro, obrigacao imposta humanidade civilizada por Zeus, do qual um dos muitos atributos € xeinios, “hospitaleiro”.“E Zeus”, diz Ulisses ‘a0 Ciclope na caverna deste, “que salvaguarda a honra de suplicantes ¢ estrangeiros” (1X.270). Zeus € invocado como patrono ¢ agente divino de um cédigo de conduta que ajuda a tornar as viagens possi- veis em um mundo de pirataria no mar, ataques ao gado e guerras locais por causa de terra, de rixas anarquicas en- tre familias rivais — um mundo desprovido de uma auto- ridade central que imponha a lei e a ordem. Em um mun- do assim, um homem que sai de casa depende da bondade de estranhos. Sem um cédigo de hospitalidade universal- mente reconhecido, ninguém se atreveria a viajar para 0 estrangeiro; sua observancia é, portanto, uma questdo de interesse proprio, Um de seus componentes quase rituais €0 presente de despedida oferecido pelo anfitriao. Assim, quando Atena, na forma de Mentes, despede-se de Telé- maco, este declara: intRopUugko 45 ppossas com um presente na mao voltar para a tua nau: ‘um presente belo ¢ valioso, que sera para ti um tesouro oferecido por mim, uma dadiva de amigo para amigo. 31-3) Atena nao deseja atribular-se com o presente naquele instante; pede-Ihe que o guarde, para que o leve quan- do voltar. “E escolhe um belo presente: dele receberas recompensa condigna” (1.318). A recompensa no é uma quantia em dinheiro; € a hospitalidade reciproca o pre- sente que Telémaco receberé quando for visitar Mentes. Assim Ulisses, na mentira que conta a Laertes no final do poema, finge ser um homem que o acolheu certa vez em suas viagens e o enchen de presentes. Este entéo parou em ftaca para visitar Ulisses. O velho diz-lhe que Ulisses jamais retornou e deve estar morto. [...] Se o tivesses encontrado vivo em ftaca, ele ter-te-ia retribuido 0 que ofereceste, com excelente hospitalidades pois isso é devido a quem primeiro oferece. (xxiv.284-6) presente do anfitrido é um componente tao estabe- lecido do relacionamento que o héspede pode até mesmo pedir outra coisa se 0 oferecido nao for apropriado. Assim Telémaco, que recebe de Menelau uma espléndida car- ruagem ¢ uma parelha de cavalos, recusa o oferecimento, “pois cavalos nao levarei para ftaca” (1v.601), onde “no hé amplas estradas nem pradarias” (1v.605). Sua terra “€ terra apascentadora de cabras, mais belas que as terras/ que apascentam cavalos” (1v.606-7). Menelau, longe de te perturbar, reconhece-Ihe na franqueza sinal de bergo e educacao aristocraticos — *Por tudo 0 que dizes é exce- lente, querido filho, o sangue/ de que provéns” (1v.6r1-2) = oferece-Ihe, em vez disso, “uma taga cinzelada, toda feita de prata,/ mas as bordas sio trabalhadas com ouro” 46 ODISSEIA (1v.615-6). A taca, ele continua a explicar, foi presente de um anfitrido, Fédimo, rei da cidade fenicia de Sidon, em cuja casa se hospedara em sua sinuosa viagem de retorno de Troia. ‘Ao longo de sua viagem, Ulisses contaré com a bonda- de de estranhos, com sua generosidade como hospedeiros. Alguns deles, como 08 feacios e Eolo, rei dos ventos, serio perfeitos anfitrides, recepcionando-o prodigamente ¢ des- pedindo-se com presentes valiosos. Outros seréo barbaros, ameagando-Ihe a vida e tirando a vida de sua tripulagao. E outros ainda sero anfitrides inoportunos, adiando a par tida do convidado — uma infrago a0 cédigo. “Nao se rei eu a reter-te aqui por mais tempo/ se desejas regressar” (xv.68-9), diz Menelau a Telémaco. “Censuro antes 0 ho- mem que,/ como anfitrido, ama os héspedes em demasia” (xv.69-70). E formula a regra de ouro: “Deve estimar-se 0 héspede quando esta presente,/ e manda-lo embora quan- do quer partir” (xv.73-4). (Muitos dos anfitrioes de Ul- ses parecem ter tomado conhecimento apenas da primeira metade dessa exigéncia. Circe é uma anfitria encantadora, mas priva seus convidados de sua forma humana e os retém para sempre. Também Calipso poderia ter retido Ulisses para sempre, mas sem obrigé-lo a deixar de ser humano e mantendo-o eternamente jovem. As sereias também 0 te- riam retido para sempre, porém morto. Entretanto, quan- do chega a hora de despachar o héspede que esta de par- tida, Calipso ¢ Circe oferecem os obrigat6rios presentes. Calipso envia ventos favoraveis que ponham a jangada a caminho, e Circe Ihe da instrugdes valiosas — como lidar ‘com as sereias, 0 aviso para ndo matar o gado do Sol Tame bém Telémaco tem de lidar com um anfitrido inoportuno. No caminho de volta de Esparta a Pilos, consegue evitar ‘© que reme ser um atraso intoleravel caso fosse ao palé- io de Nestor, “Para que o ancido teu pai”, diz ele a seu companheiro Pisistrato, “ndo me retenha a minha revelia/ no palacio, desejoso de ser amével: rapidamente tenho de i % v intRoDUGAO ” partir” (xv.200-1). (GleHaee RetOHiatala iia casa ORGS pretendentes de Penélope representam uma viola¢ao pouco comum do cédigo: sao convidados indesejados que abusam €consomem os bens de sua relutante anfitria. Demonstran- do absoluto desprezo pela ideia de que andarilhos, mendi- {gos e suplicantes contam com a protecao especial de Zeus, eles brindam com insultos e violéncia a Ulisses, o mendigo maltrapilho que, como acabarao por descobrir da pior ma- neira, € seu relutante anfitrido. O primeiro desembarque de Ulisses ap: Maleia dé-se na terra dos lot6fagos, que oferecem a trés de seus homens alimento que os teria mantido como convida- dos permanentes — cruzar 0 cabo [eles] j4 nao queria{m] voltar para dar a noticia, ou regeessar para casas mas queriam permanecer ali, [.. mastigando o lotus, olvidados do seu retorno. (1x.95-7) — se Ulisses no 0s houvesse arrastado, aos prantos, de Volta, AS HAUS, Segundo relzta, “ndo OcoFFEN aos Lotola> {gos matar os nossos companheiros” (1x.92), mas seu anfi- trido seguinte, o Ciclope, nio apenas mata, como devora Seis deles © apelo de Ulisses a Zeus como protetor dos estrangeiros é encarado com desprezo — “Nés, 0s Ciclo- pes, no queremos saber de Zeus [...] nem dos outros bem- sayenturados” (1x.275-6) — e a solicitagao de Ulisses do presente devido aos visitantes é rebatida com a ameaga de que Ulisses seria comido por tiltimo, depois de toda a tri- pulacao. Ulisses escapa apenas em virtude da astdcia pela qual é conhecido, mas a fim de enganar o Ciclope tem de ocultar sua identidade e se apresentar como Ninguém. O logro é indispensavel se ele e sua tripulacao querem escapar e, embora Ulisses seja mestre em todas as artes do embuste, sua natureza rebela-se contra esse subterfiigio em 8 Oprsseta particular. E por seu nome e tudo o que ele significa para si € seus pares que Ulisses luta para seguir vivendo e retornar a0 mundo onde é conhecido e honrado. Quando, mais tarde, na corte do rei Aleino, Ulisses revela sua identidade, nos diz, ‘ea seus comensais, nao apenas seu nome, mas a reputacao (que tFAZEGHSIED) “Sou Ulisses, filho de Laertes, conhecido de todos os homens/ pelos meus dolos. A minha fama jé chegou ao céu” (Ix.19-20). EIG\ReHeIona sta ama aeFOr, ma totalmente objetiva, como se esta fosse separada dele; suas palavras ndo so ostentagao, mas uma afirmacio da reputagao, das qualidades e dos feitos aos quais ele precisa manter-se fiel)Uma vez livre da caverna dos ciclopes, ele in- siste, com grande risco para si proprio e seu navio, em con- tar ao Ciclope quem o cegou: “diz que foi Ulisses, saqueador de cidades, filho de Laertes, que em ftaca tem seu palicio” (1x.504-5). © que habilita Polifemo a invocar a firia de seu pai, o deus do mar Poséidon, para fazer com que [...] nunca chegue a sua casa Ulisses, | saqueador de cidades, filho de Laertes, que em ftaca habita. Mas se for seu destino rever a familia e regressar a0 bem construido palicio e & terra patria, que chegue tarde em apuros, tendo perdido todos os companheiros, nna nau de outrem, e que em casa encontre muitas desgracas. (1x.530°5) No porto de escala seguinte de Ulisses, porém, come- ‘gaa parecer que 0 pedido de Polifemo nao sera atendido. Eolo, guardido dos ventos, é um anfitrido generoso e envia seu héspede a uma viagem magica — 0 Vento Oeste so- prando sem parar na direo de ftaca, e todos os outros ventos aprisionados em um saco a bordo da nau. Ao av tar o lar — “vimos homens acendendo fogueiras” (x.30) — Ulisses, que esteve ao leme durante toda a viagem, por fim relaxa. Cai em um sono profundo, 0 que permite que a tripulagio, suspeitando que o saco contenha um tesou- INTRODUGAO “9 ro, abra-o e liberte os ventos. Quando as naus tornam a ser empurradas rumo ao desconhecido, Ulisses defronta-se com a primeira de suas tentagdes — “se haveria de me lan- gar da nau para me afogar no mar” (x.51) —, mas decide permanecer vivo, embora um furacio empurre os navios de volta a Eélia, onde o pedido de Ulisses de ajuda adicional é furiosamente rejeitado (Seu exeont#O Seguinte 6 com Os Ca nibais gigantes, os lestrigones, de quem escapa por pouco, ‘mas perde todas as suas outras naus e tripulacdes, A ilha de Circe confronta-o com outro perigo, do qual escapa com a ajuda do deus Hermes, mas entao ela transforma-se em ‘uma tentacdo. Apés renuncizr a seu plano de transformar Ulisses e sua tripulago em porcos, Circe torna-se a anfitria perfeita, entretendo Ulisses em sua cama e a tripulagao & mesa de banquetes. Ulisses, se nao est enfeiticado, est decerto seduzido, pois ao final de um ano inteiro de namo- ricos sua tripulagdo precisa lembré-lo de seu dever: “Ires- variado! Lembra-te agora da terra patria” (x.472). Gite) a0 contririo de Calipso, esta disposta a liberté-lo, mas diz lhe que primeiro precisa descer a terra dos mortos para consultar a alma do profeta cego Tirésias. ‘A imagem de Homero do mundo dos mortos € certamen- te 0 modelo para todas as geografias ocidentais posteriores do Inferno, do Livro vi da Eneida, de Virgilio, até a maior de todas as visdes da vida apos a morte, a Divina comédia, ide Dante) Independentemente da consulta a Tirésias, a visita possui um significado especial para Ulisses. Ao longo de todas &s provacées de sua viagem para casa, a tentagao de encon- trar a libertacao na morte sempre esteve ao alcance da mio — pelo suicidio, como ocorreuem seu desespero ao afastar-se de faca, ou, de forma mais sutil, em qualquer momento de tensdo, ao relaxar por um momento a constante vigilancia, ‘ suspeita instantanea, a resili¢ncia e a determinagio inesgo- tdveis que o mantém vivo. Qualquer pessoa que tenha sido submetida & tensGo continua no combate e, sobretudo, no co- mando sabe que o cansago pode induzir um homem a negli- se opisseta genciar suas precaugées, a pegar atalhos, a relaxar nem que seja apenas uma vez; é um estado de espirito no qual a morte que dai pode resultar parece, no momento, quase preferivel & fadiga fisica e a tensio mental constantes.(Masyqualido Ul ses verifica por si mesmo 0 que significa estar morto, perde todas as ilusGes que possa ter tido de que a morte € melhor do {que uma vida de tensio e sofrimento ininterruptos O mundo dos mortos de Homero é sombrio e desolados nao ¢ local de descanso ¢ esquecimento. As multidoes das trevas Tondart OS ‘animais sacrificados, ansiando pelo gole de sangue que por ‘um momento as devolvera a vida, que lhes restabelecera a me- moria e o dom da fala. Aquiles avisa Ulisses, que o felicitara por destacar-se como rei sobre 0s mottos: Nao tentes reconciliar-me com a morte, 6 glorioso Ulisses. Eu preferiria estar na terra, como servo de outro, até de homem sem terra e sem grande sustento, do que reinar aqui sobre todos 0s mortos. (x1.488-91) reino dos mortos tem sido hospitaleiro, mas talvez Ulisses tenha se demorado demais, pois enquanto espera para ver ainda mais fantasmas de heréis famosos, [...] surgiram aos milhares as racas dos mortos, com alarido sobrenatural; e um pilido terror se apoderou de mim [. (x1.632-4) Ele dirige-se a sua nau e volta para Circe, que anuncia: Da minha parte, indicar-vos-ei o caminho ¢ cada coisa, explicarei, para que devido a deliberagées malfadadas ‘nao padecais com sofrimentos no mar ou em terra. (xin. 25-7) INTRODUGEO st Eles tém ainda de enfrentar as Sercias, escolher entre € Catibdis, e aportar, oponéo-se ao conselho de Circe € contrariando Ulisses, em Trindcia, a ilha onde a tripulagéo ird abater 0 gado do Sol e assim selar seu proprio destino. As Sereias representam outra tentacdo para Ulisses, prova- velmente a mais poderosa, pois, se ndo estivesse amarra- do ao mastro, teria ido junta--se & pilha de cadaveres que GS citcunda, “Vem até nds, famoso Ulisses”, cantam elas, “pois nds sabemos todas as coisas que na ampla Troia/ Argivos e Troianos sofreram pela vontade dos deuses” (0s11.184-90]. Ulisses é veterano de uma guerra de dez anos; est no caminho de volta a uma sociedade cuja nova gera- ao cresceu em paz. Ninguém o entender se mencionar a guerra — é significativo que, uma vez em casa, ele nao se refira a esse assunto ao dirigir-se a Telémaco ou Penélope. 56 quem compartilhou a excitagao ¢ os horrores da guer- ra pode conversar com ele a esse respeito. Talvez seja por isso que Menelau diz.que teria feito de Ulisses proprietirio em suas préprias terras se este houvesse voltado para casa: “ter-nos-iamos visto com frequéncia, ¢ nada nos separa- ria no comprazimento da nossa amizade” (1v.178-9). Os lagos formados pela camaradagem na ago perigosa e no sofrimento so muito fortes. E é essa a fora do apelo das Sereias: “sabemos todas as coisas que na ampla Troia/ Ar- givos Troianos sofreram pela vontade dos deuses” (EIOOP dena a seus marinheiros que o desamarrem, que 0 deixem ir. Mas fica claro que a cangio das Sereias é um convite para viver no pasado, o que éuma espécie de morte; a ilha das Sereias esta repleta de ossos de homens mortos. Era no mundo dos mortos que ele podia reviver a saga de Troia, com seus companheiros veteranos Aquiles e Agamémnon. Esses dias jd passaram, e ele deve olhar para o futuro, ¢ no para trds, para o passado. Acescolha entre Cila e Caribdis ainda esta para ser feita, ‘mas Ulisses terd de enfrentar a ambas — Cila como capitéo de um navio a caminho de Trindcia e Caribdis como um 5 OpIssEIA marinheiro néufrago solitario agarrado aos restos de uma nau no caminho de volta. Resgatado pela deusa Calipso (cujo nome é formado a partir da palavra grega que signifi- ca “disfarce”, “esconderijo”), Ulisses passa sete anos como prisioneiro em sua ilhas “Por obrigacao ele dormia de noite a0 lado dela/ nas concavas grutas: era ela, e nao ele, que assim o queria” (v.154-5). Glisses Fejeltalal oferta da) deusa para torné-lo imortal e imutavel, para sempre seu marido. Compelida por Hermes a deixé-lo partir, ela relembra sua oferta e profetiza os sofrimentos e tribulagdes que ainda 0 aguardam na viagem para casa: ‘Mas se soubesses no teu espirito qual é a medida da desgraca que te falta cumprir, antes de chegares a terra patria, aqui permanecerias, para comigo guardares esta casas e serias imortal (...} (v.206-9) Mas ele recusa. A oferta de Calipso e a recusa de Ulisses constituem um diélogo impar na literatura e mitologia gregas. A imor- talidade era uma prerrogativa divina, concedida a con- tragosto, Heracles teve de enfrentar uma morte intensa € torturante para obté-la ¢, quando a deusa da Aurora a ob- teve para Titono, seu amante mortal, esqueceu-se de pedir também que ele nunca envelhecesse. Agora, quando inicia seu percurso todas as manhs, deixa-o para trés na cama, onde ele jaz inert, encarquilhado em consequéncia da ida- de. Mas Calipso ofereceu-se para tornar Ulisses “imortal, livee para sempre da velhice” (xx111.336) € convidou-o a viver com ela em um ambiente paradisiaco tao encantador que “depois de no coragio se ter maravilhado com tudo, [Hermes] entrou em seguida na gruta espagosa” (v.76-7) —um lugar diante do qual Hermes, mensageiro de Zeus, “se quedou, maravilhado” (v.75). Tudo isso Ulisses rejeita, embora saiba que a alternativa é fiar-se novamente, dessa Iwrxonugio 5 feita s6 ¢ em uma nau improvisada, no mar a cujo respeito ele nao tem ilusdes. “E se algum deus me ferit no mar cor de vinho”, anuncia, aguentarei: pois tenho no peito um corscdo que aguenta a dor. Ja anteriormente muito sofri e muito aguentei lo mar ena guerra: que mais esta dor se junte as outras, (221-4) Mais uma proposta para que ele esqueca seu lar e sua identidade é feita e recusada aates que ele alcance ftaca. Na terra dos fedcios, onde é bem recebido e estimado, oferecem- -Ihe a mao de uma jovem e encantadora princesa em casamen- toe uma vida de tranquilidade e prazeres em uma sociedade utdpica, A oferta é feita nao apenas pelo rei, pai da moga — Quem me dera — 6 Zeus pai, 6 Atena, 6 Apolo! — que fosse assim como tu, e com entendimento como 0 meu, aquele que, aqui ficando, desposasse a minha filha, ‘quem eu chamasse meu genro! Dar-te-ia casa ¢ muitos tesouros, se de bom grado ficasses. |. (vitgrr-s) — mas antes também pela propria garota, nas pistas su- tis contidas nas instrugdes que esta fornece a Ulisses sobre como aproximar-se da cidade. Ela faz-lhe um apelo final quando este se dirige ao salao de festas para o banquete no qual mais tarde ird se identificar e contar sua hist6ria, “De ti me despeco, 6 estrangeiro. Quando chegares & tua terra patria/ lembra-te de mim: deves-me em primeiro lu- gar o prego da tua vida” (vitt.46r-2). Nao é em absoluto a despedida resignada que aparenta ser. A palavra que ela emprega para designar o que Ulisses the deve — zdagria — € um termo da Ilfada: “o preco de uma vida". Hefesto 4 opisse1a utiliza-o quando Tétis pede-lhe que faga uma nova arma- dura para Aquiles; ele faré qualquer coisa por ela, posto ‘que ela The salvou a vida uma vez — ele Ihe deve z6agria. Por trés vezes na Ilfada, guerreiros tro.anos, desarmados ea mercé do vencedor, usam verbo a partir do qual 0 substantivo é formado para oferecer valiosos resgates em troca de sua vida, (aUSiea pressiona) irmieniente UNSSES com uma palavra que este compreende a perfeigao; ouvira seu prisioneiro Dolon empregé-la ao suplicar pela propria ‘ida, stplica esta que Ihe foi negada (Tliada x.443-3); Mas agora, advertido do quanto deve a Nausica, Ulisses evita a questo com muito tato, tomando o pedido em seu sentido literal; quando chegar em casa, rezara por ela como uma deusa imortal pelo resto de seus dias. ‘Transportando um tesouro maior do que aquele que ha- via conquistado em Troia ¢ perdido no mar, Ulisses, mergu- Ihado em sono profundo em uma nau magica feacia, é con- duzido ao mundo real e aporta, ainda adormecido, na costa de fraca. Quando acorda, no reconhece seu préprio pais, 6is/AteHa|oculeoula|costalsobjummnevoeiro, Temendo que (05 feacios o tenham traido, ele repete as perguntas desespe- rangadas que fez a si mesmo em tantas praias estrangeiras, ‘Ai de mim, a que terra de homens mortais chego de novo? Serdo eles homens violentos, selvagens ¢ injustos? (Ou serao dados a hospitalidade e tementes aos deuses? (c111.200-2) Ele alcangou, de fato, a mais perigosa de todas as terras. Para sobreviver a esta tiltima prova, terd de recorrer a to- das as qualidades que o apontam como her6i — a coragem ¢ a habilidade marcial do guerreiro que foi em Troia, mas também a prudéncia, a astuciosa duplicidade e a paciéncia que o levaram a salvo até ftaca. INTRODUGAO ss HEROL “Como os portdes do Hades me é odioso aquele homem/ que esconde uma coisa na meate, mas diz.outra.” Essas so palavras de Aquiles, 0 heréi da Ilfada (1x.312-3), 0 chevalier sans peur et sans reproche da tradicao aristocratica grega. Ele as dirige a Ulisses, que chegou como lider de uma dele- gagdo ordenada por Agamémnon e os chefes aqueus para convencer Aquiles a reunir-se a eles no ataque a Troia. Sao palavras estranhas para iniciar uma resposta ao que parece ser uma generosa oferta de compensacao para duras pala- vras proferidas com raiva, mas Aquiles sabe com quem esta falando. Ulisses nao disse nenhuma mentira, mas ocultou a verdade. Repetiu literalmente a maior parte da mensagem de Agamémnon — a longa lista de presentes espléndidos, a oferta da mao de uma filha em casamento — mas omitiu as reiteradas pretenses de stperioridade de Agamémnon, © rebaixamento de Aquiles a categoria inferior. “Que se domine/ |...] se submeta a mim, pois sou detentor de mais realeza,/ além de que declaro pela idade ser mais velho do que ele” (1x.158-61). Para Aquiles, a mentira é absolutamente abominével. Mas para Ulisses é uma segunda natureza, uma questao Ge orgulho. “Sou Ulisses”, anuncia ele aos feacios quan- do chega a hora de revelar sua identidade, “conhecido de todos os homens/ pelos meus dolos” (1x.19-20). A palavea grega dolos tanto pode ser empregada como enaltecimento quanto como ofensa. Atena liza 0 termo quando, disfar- gada de pastor jovem ¢ bonito, cumprimenta Ulisses pela intricada mentira que este acaba de the contar a respeito de sua identidade e seu passado, e € com essa palavra que Ulisses descreve 0 cavalo de madeira com o qual conseguiu deixar Troia em chamas. Por outro lado, Atena, Menelau ¢ Ulisses a empregam para descrever a cilada que Clitem- nestra armou para Agamémaon quanto este voltou para casa, € o termo auxilia Homero a descrever 0 plano dos 36 opisseta pretendentes para emboscar ¢ matar Telémaco em seu re- torno de Pilos (MAS) lisonjeiFS 6 BEUSATOHIO| 6 VOEABEIO sempre implica a presenca daquilo que Aquiles rejeita com tanta veeméncia — a intengGo de enganar. Ulisses possui o talento necessario ao enganador: é um orador persuasivo. Na Ilfada, o principe troiano Antenor, que ouvira Ulisses quando este chegara a Troia com a de- legacdo, lembrou 0 contraste entre sua aparéncia inexpres- siva ¢ a poderosa magia de seu discurso, “Mas quando do peito emitia sua voz poderosa,/|...] entaio outro mortal ndo havia que rivalizasse com Ulisses” (111.221-3).(E)nalOg> seia, no palacio de Alcino, Ulisses fascina seu anfitrito ‘com a historia de suas aventuras. Quando se interrompe, invocando 0 adiantado da hora, Alcino suplica-Ihe que prossiga: “Tens formosura de palavras e um entendimento excelente./ Contaste a histéria com a pericia de um aedo” (x1.367-8). Em suas viagens a caminho de Esquéria, Ulises nfo teve muita oportunidade de dar asas a sua eloquente persuasio; seu dom para a farsa sera necessdrio e integral- mente revelado apenas quando por fim alcancar a costa de fraca, onde, a fim de sobreviver, terd de desempenhar o pa- pel de mendigo andrajoso. As hist6rias que conta a Atena, Eumeu, Antino, Penélope e Laertes constituem uma ficgio brilhante; narrativas de guerra, pirataria, assassinatos, Iutas de exterminio entre familias e perigos em alto-mar, com um elenco de capitaes fenicios mentirosos, aventurei- 0s eretenses ¢ faraés egipcios. So, como afirma Homero, “mentiras semelhantes a verdades”, completamente con- vincentes, precisas, a0 contrario da hist6ria que ele con- tou em Esquéria sobre as realidades da vida e da morte no universo do Egeu, mas, ainda assim, mentiras do co- ‘mego ao fim. E Homero nos faz recordar 0 contraste entre Ulisses e Aquiles ao fazer com que Ulisses, pouco antes de precipitar-se em um relato esplendidamente falso de seus antecedentes e infortinios, repita as famosas palavras que Aquiles dirigiu-lhe em Troia: “pois é-me odioso como os INTRODUGAO 7 portdes do Hades aquele homem/ que cedendo a pobreza ‘conta historias inventadas? (x1v.156-7). A repeticao dessa frase memoravel torna explicito 0 con- traste entre os dois herdis, mas flisses continua a ser) Como! era na Iliada, um guerteiro fiel a0 ideal marcial, Tera todo © prazer em empregar a fraude para obter vitoria, mas se necessério enfrentara perigos mortais sozinho e sem medo. Na ilha de Circe, quando Euriloco volta pata relatar o desa- parecimento de scus companheiros no interior do palicio da feiticeira e implora a Ulisses que nao va em seu socorro, mas ‘que ice velas de imediato, recebe uma recusa desdenhosa: Euriloco, fica, pois, neste local onde estas, a comer e a beber junto da escura nau veloz; mas eu tenho de ir, ois recaiu sobre mim uma necessidade onerosa. (271-3) Essa necessidade é sua fidelidade a tal reputagio, a fama entre os homens, em prol da qual Aquiles aceitou uma mor- te prematura. Este é 0 Ulisses da Ilfada, que, encontrando- -se 86 e em inferioridade numérica em uma luta encarnica- da com os troianos, rejeita a ideia de fuga: Sei que eles so vis e que fugiram da batalha; por outro lado, Aquele que é excelente no combate, a esse compete ficar sem arredar pé, quer seja atingido, ou outros atinja. (X1.408-10) Ulisses compartilha com Acuiles outra caracteristica da ‘mentalidade heroica: uma sensitilidade espinhosa para o que ‘considera falta de respeito da parte dos outros, uma raiva in- contida contra qualquer insulta a sua posigao de herdi. Foi esse 0 motivo de sua insisténcia quase fatal em revelar seu verdadeiro nome a Polifemo: nao suportava a ideia de que 0 ‘gigante cego nunca viesse a conhecer a identidade ou a fama s8 ODIssEIA de quem 0 derrotou. Mais cauteloso em meio aos fedcios, permanece andnimo, mas por um triz ndo revela a verdade quando, tratado com desdém por um jovem fedcio por sua incapacidade atlética, ele arremessa o disco a grande distan- cia e entao desafia a todos — no pugilismo, na luta livre, na (cortida e no tiro com arco, “Na verdade”, anuncia cle, eu sei bem manejar 0 arco bem polido S6 Filocteto me superava com 0 seu arco na terra dos Troianos, quando nés Aqueus disparavamos as setas. (vin.215-20) © mais doloroso insulto & sua honra , certamente, a conduta dos pretendentesy a ocupagao de sua casa, que ja dura trés anos, é uma afronta intolerdvel, agravada pelo tratamento brutal que Ihe conferem quando ele mais uma ‘vez desempenha o papel de Ninguém. £ a sublime confian- ‘ga dos pretendentes no fato de que, mesmo que retornas- se, Ulisses enfrentaria uma luta mortal humilhante contra stia superioridade numérica estimula nele uma célera digna ide Aquiles) Quando por fim mata Antino, o mais violento dos pretendentes, ¢ identifica-se — “O ces! Vés nao pen- sastes que eu alguma vez regressaria para casa/ de Troia” (xx11.35-6) —, Eurimaco, o mais desonesto deles, oferece a compensacao integral pelo que fizeram e muito mais. Ulis- ses rejeita de forma impetuosa: Eurimaco, nem que me désseis todo 0 vosso patriménio, tudo o que tendes agora e pudésseis reunir de outro lugar, nem assim eu reteria as maos do morticinio, até que todos vés pretendentes pagasseis 0 prego da transgressio. (xxtt.61-4) Ouvimos esta nota soar antes na vor de Aquiles, na Ilia- da, quando este rejeita a oferta de paz de Agamémnot i sa IntRoDUGKO I Nem que me oferecesse dez vezes mais ou vinte vezes mais do que agora oferece, e que a isso acrescentasse outros dons, tl nem assim Agamémnon conseguiria convencer 0 meu espitito, antes que tenha pago todo o prego daquilo que me méi 0 coragio. (1x.379-87) No caso, Aquiles nao cobra medida plena de Agamém- non, mas de Heitor, que matou seu amigo Pétroclo e agora usa a armadura de Aquiles, Ele mata os guerreiros troianos um apés outro e os conduz para dentro do rio, para que se afoguem ou morram sob sua impiedosa espada, até que encontra € mata Heitor, cujo corpo arrasta de volta a seu acampamento, para que permaneca ali insepulto enquanto sacrifica troianos capturados a fim de apaziguar o espirito de Patroclo, que esta morto, (AlWeteeal que pratica Ulisse de sua honra nao é menos sangrenta e impiedosa, Apoiado por seu filho € dois criados leais, mata os 108 jovens aristo- cratas que assediaram sua mulher; seus criados mutilam ‘matam barbaramente Melantio, pastor infiel que insultara Ulisses; e Telémaco, que recebe ordem de assassinar com sua espada as camareiras desleais, opta por recusar-lhes essa “morte limpa” (xx11.462) e as enforca. Todas as divi- das estdo pagas. Com sobras. A vinganga de Aquiles termina com um gesto de com- Paixao, a devolugio do corpo de Heitor ao pai deste, Pria- mo, mas ao fim da Odisseia mais sangue é derramado. Eupites, pai de Antino, lidera parentes dos pretenden- tes contra Ulisses e seus homens, mas é assassinado por Laertes quando este adere a0 combate, “Fa todos teriam morto”, diz Homero (xtVv.528) se Atena ndo houvesse or- denado a Ulisses que voltasse e tivesse permitido que os nativos de ftaca fugissem para salvar a propria vida. descrigdo da batalha final é redigida com frases férmu- 60 opissera las da Iliada do comeco ao fim e, quando Ulisses encora- ja o filho e recebe garantias de que Telémaco nao ind de- sonrar sua linhagem, o velho Laertes faz soar a auténtica nota heroica: ® Que dia este, queridos deuses! Muito me regozijo!/ O meu filho ¢ © meu neto disputam entre si a valentia!” (xx1v.s14-5)- Esse aspecto da Odisseia sempre foi desconsidera- do ou subestimado. Muito, talvez demasiado, se tenha concluido da amarga rejei¢ao de Aquiles da tentativa de Ulisses de conforta-lo no mundo dos motos: “Ew pre- feriria estar na terra, como servo de outro,/[...J/ do que reinar aqui sobre todos os mortos” (x1.489-91).@Guas palavras tém sido interpretadas como uma rejei¢io a0 cédigo heroico do qual, na Ilfada, foi ele 0 grande exem- plo. Mas trata-se menos de uma rejeigao a gloria dura- doura pela qual ele consciente e deliberadamente trocou sua vida do que uma colérica repreensio a Ulisses por ‘comparar seu eterno problema com o grande poder de ‘Aquiles entre os mortos. Aquiles sabia ao que estava re- nunciando quando optou pela morte prematura com glo- ria em lugar de uma vida longa, e é compreensivel que as palavras de consolo de Ulisses provoquem uma resposta colériea, Em todo caso, ele passa a pedir noticias do flho ‘Neoptélemo: “Mas fala-me agora do meu filho orgulho- so,/ se partiu para assumir lideranga na guerra, ou nao” (x1.492-3). Quando ouve a resposta de Ulises — “Mui- tos homens chacinou em combate tremendo./ Nao set capaz de contar nem nomear todos” (xt.5x6-7) — ¢ a narrativa da agre madeira e de seu retorno a salvo para casa, siva coragem de seu filho no cavalo de {..J]a alma do neto de Eaco de pés velozes partiu com largas passadas pelo prado de asfédelos, regozijando-se porque Ihe falara da proeminéncia do filho. (x1.538-40) INTRODUGKO o DEUSES Ao contrario da Iliada, a Odisseia & um épico de base to- talmente doméstica. A excecao das viagens — e por vezes mesmo nelas —, estamos com os pés no chao, seja nas co- ppiosas e frequentes refeigoes no paldcio (Fielding chamou a Odisseia de “o mais glutdo dos épicos” (Sita GORESHER dade rural da cabana de Eumeu, No entanto, o poema ba- seia-se firmemente no que poderfamos chamar de “tempo heroico”, uma época em que os homens eram mais fortes, ais corajosos e mais eloquen:es do que hoje, e as mulheres ‘mais bonitas, mais poderosas ¢ inteligentes do que tém sido desde entdo, e os deuses, to proximos da vida humana e tio envolvidos com os individuos, seja na afeicdo ou na raiva, que intervinham em sua vida e Ihes apareciam em pessoa. A tendéncia dos eriticos modernos de enfatizar 0 aspecto singular do heroismo da Odisseia, as custas e muitas vezes com a exclusio de aspectos reconhecidamente aquilianos da vinganga heroica que finalizam o épico, equipara-se a uma tendéncia a perceber novos desenvolvimentos no Olimpo, na natureza € na acdo dos deuses, especialmente Zeus. O que aconteceu — segundo Alfred Heubeck, em sua ponderada ¢ valiosa introdugdo ao Commentary on Homer’s Odyssey — foi nada menos que uma “transformagio ética”: “Com discernimento ¢ sabedoria, Zeus agora controla o destino do mundo de acordo com principios morais, 0 que, por sis6, gera e preserva a ordem. Falta pouco ao pai dos deuses para tornar-se 0 verdadeiro soberano do mundo” (1, p. 23). Independentemente do fato de que se possa duvidar se Zeus em algum momento supriu esse pouco que faltava (mesmo na Oréstia sua justica ¢ problemética), é dificil en- contrar provas dessa transformagio ética na Odisseia. Na reuniao no Olimpo com a qual o poema se inicia, Zeus dis- cute 0 caso de Egisto, que, desconsiderando um aviso trans- mitido por Hermes, seduziu Clitemnestra e, com a ajuda desta, assassinou Agamémnon. “Vede bem”, diz Zeus, a ODIssEIA como 0s mortais acusam os deuses! De nés (dizem) provém as desgracas, quando sao eles, pela sua loucura, que sofrem mais do que deviam! (usa-4) Nao ha, como aponta o préprio Heubeck, “nada de novo nesse discurso moralizante”. Zeus admite que grande parte do sofrimento da humanidade é responsabilidade dos deuses; sua queixa € que os homens aumentam esse sofri- ‘mento com suas proprias iniciativas imprudentes. © conselho no Olimpo apresenta-nos uma situagdo mui- to familiar desde a Ilfada: deuses opondo-se fortemente uns ‘20s outros com respeito a0 destino dos mortais. Na Miada, Hera e Atena envolvem-se de maneira feroz na destruicao de Troia por causa de um insulto a seu orgulho e superioridade —o Julgamento de Paris, o principe troiano, que concedeu 0 prémio de beleza a Afrodite. Postidon, irmao de Zeus, esta igualmente empenhado na destruigio da cidade, pois o rei troiano Laomedonte enganou-o no pagamento pela constru- ‘cao de suas muralhas, Apolo, cujo templo fica na cidadela de “Troia, é defensor da cidade, e Zeus, o mediador supremo, é favordvel a Troia pela devocao que seus habitantes Ihe con- ferem. O destino da cidade e de suas mulheres ¢ criancas, assim como.a vida ¢ a morte dos guerreiros de ambos os lados, sao determinados pelo toma li di c4 dessas vontades divinas em oposigao, pelo tipo de alianga, conflito, artificios € concessdes que moldam seus relacionamentos. (Os conflitos raras vezes assumem feicao violenta; nas poucas ocasides em que isso ocorre, os oponentes divinos nao estao igualados. Atena luta com Ares € Afrodite e der- rota a ambas com facilidade, ao passo que Hera espanca ‘Artémis como se esta fosse uma garotinha. Mas entre os mais poderosos — Zeus, Hera, Atena, Poséidon, Apolo — 0 conflito assume formas diferentes: esquivas, ardis, conces- ses. Quando, nas batalhas climédticas que levaram & morte de Heitor, Poséidon desafia Apolo a lurar, este se recusa: intRoDUGKo 6 {...] Sacudidor da Terra, nunca dirias que tenho discernimento no zspirito, se eu lutasse contra ti por causa dos mortais que como as folhas ora esto cheios de vigo e comem 0 freto dos campos, [...] ora definham e morrem, (xx1.462-6) Os deuses podem proteger um heréi ou uma cidade, mas, se essa protegdo ameaga gerar uma ruptura entre os grandes poderes, um deles pode bater em retirada. Ou eles podem negociar, como faz Zeus com Hera quando consen- te, relutante, na queda de Troia,)Ele concorda, mas com uma condigao: E outra coisa te direi: tu guarda-a no teu coragao. Quando pela minha parte eu quiser destruir uma das tuas cidades, onde habitam homens que te so caros, ndo procures reter a minha c6lera, mas deixa-me atuar. (tv.39-42) E Hera aceita; na verdade, ela oferece-lhe trés cidades em vez de um; Na verdade sao trés as cidades que me so mais queridas: Argos, Esparta e Micenas de amplas ruas. Estas poderés destruir, quando se tornarem odiosas ao teu coracao. No estou aqui em sua defesa, nem as quero enaltece (vsr-4) Os deuses também podem conseguir 0 que querem por meio do logro, como faz Hera ao seduzir Zeus e colocé- lo para dormir para que cla e Poséidon arregimentem os ‘aqueus contra o ataque de Heitor. Todos esses trés modelos de diplomacia olimpica reapa- Gem na Odisseia) Ulisses, ao cegar Polifemo, filho de Po- és ODISSEIA séidon, provocou a ira vingativa do deus que governa as ondas. Quando o heréi encontra Atena na praia de ftaca, pergunta-lhe, bruscamente, por que esta o abandonou em suas andancas: “nunca mais te vi, 6 filha de Zeus, nem na minha nau te senti/ embarcar, para que afastasses para lon- ge 0 sofrimento” @EHmg#BEB). A resposta da deusa, curta, obviamente constrangida, dividida entre os efusivos elogios ao her6i e a retirada da neblina para mostrar a Ulisses que ele de fato esta em casa, é um reconhecimento da concessio uma forga superior. “Mas nao quis lutar contra Poséidon, irmao de meu pai’ (SEHMNBAR) diz ela. E mesmo essa de: pa é evasiva: ela nao faz nenhuma tentativa de explicar por que no ajudou Ulisses antes que este incorresse na firia de Poséidon. $@)eepoiside obter a eoncordancialdel Zeus ela toma as medidas que conduzem Ulisses de volta a casa. Propde a Zeus que Ulisses seja libertado de seu confina- mento de sete anos na ilha de Calipso, ¢ 0 faz durante uma reunido no Olimpo da qual Postidon encontra-se ausente; ele esta longe, nos confins da terra, recebendo uma home- rnagem dos etfopes. Na realidade, Postidon é enganado; quando retorna e vé Ulisses aproximando-se da costa de ‘isquéria em sua jangada, fica furioso. “Ah, decerto os deu- ses mudaram de intengio a respeito/ de Ulisses, enquanto cu estava entre os Etiopes” (v.286-7) (AteHalHao|O desaniay tia abertamente; ela age por trés de suas costas. Poséidon sabe que, uma vez que chegue a Esquéria, “est destinado/ que [Ulisses] escape a servidao da dor que sobre ele se abateu” (v.288-9) e que, nesse caso, os fedcios © enviardo para casa em uma nau de rapidez sobrenatural, carregada de tesouros maiores do que tudo que ele conse- guiu em Troia e perdeu no mar. O poder de Poséidon foi desafiado, sua honra, ofendida, e alguém tem de pagar por isso, Ulisses esta agora fora de seu alcance, mas os feacios ‘$a0 Outta questao)“Zeus pai, eu nunca mais serei honrado entre 08 deuses/ imortais”, queixa-se ele, “visto que certos mortais ndo me dio honra alguma:/ 0s Fedcios, que so da INTRODUGKO 65 minha prépria linhagem” (xm.128-30). Zeus assegura-Ihe que nao ha perda de respeito por ele no Olimpo, e quanto aos mortais.. Se algum dos homens, cedendo a violéncia e @ forga, no te honrar, podes sempre praticar vinganga. Faz 0 que quiseres, 0 que 20.coracio'te aprouver. (extt.x43-5) Poséidon explica seu objetivo: L.-] Mas agora a bela nau dos Feécios, que regressa de transportar Ulisses, quero estilhagar no mar brumoso, para que se abstenham e desistam de transportar homens; ¢ a sua cidade rodeé-la-ei com uma'montanina enorme e circundante. (ocrtt.148-52) Zeus aprova ¢ sugere'um requinte: transformar a nau e, consequentemente, sua tripulacdo de 52 jovens — “que ja antes provaram ser os melhores"(Wiilig6))— em rocha en- quanto 0s fedcios assistem sua chegada ao porto. Poséidon apressa-se a executar o plano &, a0 ver isso, 0 rei Alcino reconhece a realizacao.de uma profecia, que também anun- ciou que a cidade seria rodeada por uma grande montanha. Ele conduz seu povo ao sacrificio e a oragao para Poséidon, nna esperanga de obter sua misericérdia e prometendo que 6s fedcios nunca mais dariam passagem maritima a ho- mens que chegassem a sua cidade, E 0 fim da grande tradigao fedcia de hospitalidade ajuda ao estrangeiro e viajante. Essa acao de Zeus lanca uma luz perturbadora na nelago entre os ideais humanos a conduta divina, Se ha um critério moral permanente no universo da Odisseia, é a assisténcia, por parte dos ricos e poderosos, aos estrangeiros, andarilhos e mendigos. Esse c6digo de hospitalidade ma moralidade universalmente 66 OpIssEIA reconhecida. E seu agente divino, assim 0 creem todos os mottais, é 0 proprio Zeus, Zeus xeinios, protetor dos es- trangeiros e suplicantes, Seu nome e seu atributo sao invo- cados repetidas vezes por Ulisses, e também por Nausica, 0 ancido fedcio Equeneu, Alcino e Eumeu. De todos os muitos anfitrides avaliados segundo esse padrio moral, os fedcios destacam-se como os mais gene- rosos, nao apenas na régia acolhida que proporcionam a Ulisses, como também na rapida condugao do heréi a sua propria patria, ajuda que oferecem a todos os viajantes que atingem a costa. E agora so punidos pelos deuses precisa- mente por esse motivo, visto que sua magnanimidade fez ‘com que Poséidon achasse que sua honra — a delicada sen- sibilidade a opinido pablica que em Aquiles ocasionou dez mil desgragas aos aqueus e levou Ajax ao suicidio, alimen- tando-lhe a rabugice no Hades — havia recebido um golpe intolerdvel, Aqueles que 0 ofenderam tém de ser punidos, ainda que a punigio revele a mais completa indiferenga a0 ‘inico cédigo de conduta moral que prevalece no perigoso universo da Odisseia. Confrontado com a ira de Poséidon contra 0s fedcios, Zeus, protetor dos estrangeiros, associa- -se entusiasticamente a seu poderoso irmao em sua amea- ga. Ele nao apenas sugere o requinte de transformar a nau em pedra, como aprova a intengao de Poséidon de isolar os feacios para sempre do mar, assentando uma imensa mon- tanha ao redor da cidade. Isso deixou perplexos alguns tradutores e editores mo- dernos, que preferiram seguir a orientacdo do antigo editor Aristofanes de Bizancio. Ao substituir trés letras no texto em grego, este fez com que Zeus encerrasse sua fala com as palavras: “mas nao cerque a cidade com uma montanha”, ‘A aventada petrificagio da nau é um suborno para gratifi car Postidon e compensé-lo por uma concessio — os feé- cios nao serio isolados do mar. Zeus xeinios corresponde as expectativas de seu titulo; é um Zeus que experimentou uma transformagao ética. INTRODUGAO 7 Nao temos registros das explicagdes que deu Arist6fa- nes para sua leitura; embora estas talvez tenham sido deta- Ihadas em seus comentarios sobre o poema, nossa tradigao manuscrita preserva apenas ¢ fato de ele havé-la proposto. Ela nos fornece, porém, mais uma informagao importan- te. “Aristarco”, menciona a mesma nota que registrou a emenda de Arist6fanes, “opde-se a ele em seus tratados.” Aristarco era discipulo de Arist6fanes e considerado 0 mais critico e correto dos editores alexandrinos — 0s leitores do Dunciad de Pope irao se lembrar de que seu alvo, Richard Bentley, foi descrito como “aquele terrivel Aristarco”. Por- tanto, a sugestio {4 havia sido contestada na Antiguidade pelo mais respeitado editor de Homero. E, ainda que nada nos seja dito sobre as razdes de Aristfanes para sugerir a mudanga, podemos imaginé-las ao comparar outros exem- plos de sua critica textual. Ele preocupava-se muito, por exemplo, com 0 decoro, e duvidava da autenticidade de versos nos quais personagens reais desciam abaixo do nivel de etiqueta mantido na corte dos Prolomeus. No Canto vi, no qual Homero faz. com que Nausica leve sua roupa para ser lavada fora de casa — “Do télamo trouxe a donzela as vestes resplandecentes/ e colocou-as em cima do carro bem polido” —, Aristofanes, com uma ligeira alteracio, escre- veu: “Do talamo as servas trouxeram as vestes resplande- centes[...]”. Princesas nao carregam sua propria roupa suja. Ele demonstra igual preocupacio com a civilidade e 0 de- coro quando se ocupa da conduta dos deuses. No Canto x1, quando vé o fantasma de Ariadne, Ulisses a identifica como -[filha de Minos de pernicioso pensamento, a quem outrora Teseu evou de Creta para o monte da sagrada Atenas, mas dela nao fruiu, pois antes disso Artémis a matou em Naxos rodeada pelo mar (1321-5) 68 ODISSEIA Para ekta, “matou”, Arist6fanes adotou eschen, “deteve”, desonerando Artémis de um assassinato para o qual nenhum motivo é fornecido, Portanto, no didlogo entre Zeus ¢ Poséi- don, ao introduzir uma negativa, Arist6fanes torna Zeus, 0 deus principal, mais compassivo do que Postidon. Mas nao ha justificativa para tal alteragao. Alids, hd uma boa razdo— independentemente do fato de ser Sbvia a motivagao de Aris- t6fanes — para rejeité-la por completo. Se o Zeus de Homero houvesse de fato exigido uma modificacao radical do plano de Poséidon, alguma reacio da parte de seu irmao — aceitagao, rejeigdo ou ao menos reconhecimento — seria indispensavel. Mas este nao diz uma palavra. Além disso, se a cidade fedcia no fosse isolada por uma montanha, permanecerfamos com tum fato sem precedentes em Homero, uma profecia nao rea- lizada — Alcino menciona por duas vezes a profecia de seu pai de que um dia Poséidon cercaria a cidade com uma mon- tanha, Homero niorevelao gue acontesu: quando conten [... nao cumpriram a palavra. Que Zeus, deus dos suplicantes, os castigue; ele que todos os homens observa e castiga quem transgride. (xrtt.212-4) INTRODUGKO 65 Ele nao sabe, mas 0 Zeus dos suplicantes jé pagou na mesma moeda. Nao por terem quebrado sua promessa, ‘mas por terem cumprido com sua palayra. i, entre os pretendentes, um homem decente, An- finomo, que “com as suas palavras/ a Penélope mais agra- dava, pois era compreensivo” (xv1.397-8). E ele que acon- selha os pretendentes a rejeitar a proposta de Antino de emboscar € assassinar Telémaco em ftaca, agora que este se esquivou do navio que o esperava em uma emboscada ¢ vyoltou para casa em seguranca. E é Anfinomo que, apés a vitdria de Ulisses sobre Iro no pugilato, bebe a satide dele em uma taga dourada e declara: “S@ feliz, 6 pai estrangei ro! Que no futuro possas encontrar! a ventura, pois agora tens na verdade sofrimentos em demasia” (xv1tt.122-3). 0 her6i tenta salvé-lo do massacre iminente. Previne-o se- riamente de que Ulisses logo retornard, esta bem préximo de casa, e que haverd derramamento de sangue. Este é um terreno perigoso. Ele chama Anfinomo pelo nome; como aquele mendigo esfarrapado, que tinha acabado de chegar, podia conhecé-lo? Ulisses vai ainda mais longe. “Anfino- mo, parece-me que és um homem prudente”, diz. “Assim jd era também teu pai.” & um deslize que ele tenta ime- diatamente encobrir, apressardo-se a acrescentar: “da sua nobre fama ouvi falar” (xvitt.t25-6). Homero deixou claro © grande risco que Ulisses est correndo ao tentar salvar a vida de Anfinomo, e ressalta sua sinceridade ao fazé-lo rezar pedindo a intervencao divina a favor do pretendente: [..] que um deus te leve daqui para tua casa, para que no 0 encontres quando esse homem regressar a sua terra patria amada (xvitt.146-8) 7 OpIssErA Longe de despaché-lo para casa, um poder divino ja proferiu sua sentenca: “Também a ele/ Atena atou 0s pés, para ser chacinado pela langa de Telémaco” (xv1tt.r55-6). Anfinomo é 0 terceiro pretendente a morrer, imediatamen- te apés os dois principais vildes, Antino e Eurimaco. Quando nao esto decidindo o destino dos mortais, os deuses vivem uma vida prépria no Olimpo, [...] onde dizem ficar a morada eterna dos deuses: nao é abalada pelos ventos, nem molhada pela chuva, nem sobre ela cai a neve. Mas 0 ar estende-se limpido, sem nuvens; por cima paira uma luminosa brancura, Ai'se aprazem os deuses bem-aventurados, dia apés dia. (vig2-6) ‘Temos uma amostra dessa vida de prazer em uma das narrativas do menestrel Demédoco, no grande salio do palicio fedcio — o aprisionamento do casal adiiltero Ares e Afrodite na rede dourada confeccionada por Hefesto, 0 marido ofendido, ¢ sua exposigao ao olhar lascivo e ao “riso inexaurivel” (vi11.326) dos deuses, que Hefesto con- yocou para que testemunhassem a traigdo de sua mulher. (As deusas, segundo somos informados, permanecem mo- destamente em casa.) O préprio Hefesto, quando convoca 08 deuses, refere-se ao espetaculo que Ihes oferece como “trabalho risivel” (ViI1.307), ¢ © lado cémico da narratis evidencia-se quando Apolo pergunta a Hermes se gostaria de trocar de lugar com Ares e recebe a resposta: Prouvera que tal acontecesse, soberano Apolo que atiras a0 longe! Mesmo que fossem trés vezes mais as correntes ilimitadas — e que vos deuses estivésseis a ver, e todas as deusas: mesmo assim gostaria de dormir com a dourada Afrodite, (v11.5339-42) INTRODUGEO ia Este vislumbre da vida garticular dos habitantes do Olimpo tem um paralelo na Ilfada: 0 episédio (x1v.153- ~360) no qual Hera, armada com todos os encantos ¢ a magia de Afrodite, seduz Zeus, que est observando a ba- talha do alto de uma montana, a fim de fazé-lo dormir e, com Poséidon, reunir os lutadores aqueus contra o ataque vitorioso de Heitor, Zeus é sobrepujado pelo desejo por sua mulher; seu desejo, diz ele, é maior do que tudo que jé sentiu em seus acasalamentos com as mulheres mottais, as quais se poe a enumerar em uma longa fala, apropriada- mente chamada de “Catélogo de Leporello” apés a famosa ria de Mozart em Don Giovanni. Em ambos os épicos, os ceuses desfrutam seus praze- tes ¢ acalentam suas intrigas 10 Olimpo, ao passo que, na terra, decidem 0 destino dos mortais e suas cidades com escassa considera para com as concepgdes humanas da justica divina, sempre que aquilo que esta em risco € 0 in- teresse ou o prestigio de um deus importante. Os seres hu- ‘manos podem, alias, como os pretendentes ¢ a tripulagio de Ulisses, ocasionar inforttinios para si mesmos e “sofrem mais do que deviam” (1.34), mas os infortiinios também podem sobrevir aqueles que, como os fedcios e Anfinomo, sio admiraveis segundo os padrdes humanos e, em ambos (05 casos, é um deus que sela seu destino. HOMENS E MULHERES Os dois épicos homéricos sio semelhantes em seu modo de ver os deuses olimpicos e sua afirmacio do cédigo he- roico, mas hé uma diferenca marcante entre eles. A Ilfada celebra as acdes e os sofrimentos dos homens na guerra; somente nas metaforas do poema e no escudo de Aquiles obtemos vislumbres ocasionais de um mundo em paz. As poucas mulheres que se fazem presentes — Briseida, An- drémaca, Hécuba, Helena — sao figuras secundarias, que nm ODISSEIA ‘nao desempenham papel significativo na ago principal. Ja a Odisseia, embora seu climax seja a cena do violento com- bate e do massacre, apresenta-nos um mundo de paz: uma az solida e estavel em Pilos e Esparta, uma paz turbulenta © ameagada em fraca e, nos perigos e nas tentagGes das via- gens de Ulisses, intervalos de paz — sedutoramente tran- quilos com Circe, opressivos com Calipso e benéficos em Esquéria. E, quase por toda parte nesse mundo pacifico, as mulheres, humanas ¢ divinas, tém papéis importantes. Nas andancas de Ulisses, elas o auxiliam, seduzem ou atrasam. Calipso oferece-the a imortalidade e 0 retém por sete anos, mas produz um vento favoravel quando ele par- te;\Circe tenta conserva-lo para sempre em sua pocilga, ‘© mantém por um ano como amante, mas por fim 0 aju- da no caminho; as sereias representam sua mais perigosa tentacao, mas a ninfa marinha Ino o ajuda a desembarcar em Esquéria, onde Areta e Nausica facilitam-lhe a trajet6- ria. Ha presengas femininas mesmo entre os monstros que Ulisses tém de enfrentar: Cila, Carfbdis e a mulher gigan- tesca — “alta como uma montanha” (x.r13) — do rei les- trigone canibal. Na ilha egipcia de Faros, Menelau é salvo por Idoteia, uma deusa menor, filha do Velho do Mar, ¢ em Esparta, Helena tem uma atuagio deslumbrante. Em ftaca, Penélope, até o fim enigmética, é objeto do desejo dos pretendentes e das desconfiangas de seu filho, e é ela quem precipita a crise final ao oferecer-se para desposar © pretendente que conseguisse esticar o arco de Ulises ¢ atirar uma flecha através dos machados. Tampouco Eu- ticleia, em momento algum, deixa de estar no centro das atengdes, e obtém total evidéncia ao lavar os pés de seu senhor e reconhecer a cicatriz que este carrega na coxa. Enquanto isso, a deusa Atena encoraja e apoia Telémaco em sua jornada e, de Esquéria em diante, ajuda Ulisses torna-se ctimplice em seus truques e sua aliada na batalha. Além das protagonistas, hé um rico elenco de figurantes do sexo feminino: a siciliana que cuida do velho Laertes; INTRODUGKO 3 @ ama-seca fenicia que sequestra o jovem principe Eumeu para vendé-lo como escravo; Eurinome, a governanta de Penélope; Melantia, a empregada desleal, amante de Anti- ‘no; Iftima, irma de Penélope, que lhe aparece em sonhos, © a longa lista de mulheres ilustres que Ulisses vislumbra Entre 0s mortos}— Tiro, Antiope, Alemena, Jocasta, Cléris, Leda, Ifimedeia, Fedra, Précris, Erifile. E uma viséo que tem ecoado ao longo dos séculos, que esta por trés do verso magico de Propércio “sunt apud infernos tot milia formo- sarum” — “tantos milhares de mulheres lindas entre os mortos” — e de “sombras do mundo subterraneo [...] A branca fope, a jovial Helena eo restante”, — de Campion. Apenas nos momentos em que a Odisseia assume as fei- es da Iliada, como quando Ulisses, seu filho ¢ dois criados leais enfrentam os pretendentes no salo, as mulheres saem de cena, e mesmo ai Atena acha-se por perto, sustentando 0 moral do heréi ¢ de seu bando, desviando do alvo as langas dos pretendentes. Em todas as outras partes do poema, as vores femininas se fazem ouvir a intervalos frequentes e, por vyezes, demoradamente, Criticos hostis talvez se sentissem tentados a citar a defesa de suas tragédias, que Aristfanes colocou na boca de “Euripides” em As rds: “Cada persona- gem desempenhava seu papel; e falavam todos, a mulher, 0 escravo, o dono, a jovem e a velha” (Nalllfada, asleenas que apresentam homens em contato com mulheres, ainda que memoraveis, séo raras — Helena e Paris, Heitor e Andréma- ca, Hécuba e Priamo —, mas na Odisseia as raras excecdes sdo as cenas das quais as mulheres so excluidas — a luta no salio, o ciclope na gruta. Que realidade historica, se é que ela existe, esta por tras dese mundo imaginério, tao afastado da misoginia rstica de Os trabalhos e os dias de Hesiodo, quase da mesma época, nunca saberemos; talvez feflita uma cultura aristocratica jénica como a que, um sé- culo mais tarde, assistiu ao nascimento de Safo em Lesbos. A Odisseia deve muito de seu poder de encantar tantas gerages de leitores a sua elegante exploragao de algo que

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