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Fazer o “inventério das diferengas" entre as muitas culturas humanas 6 uma das razées de ser de antro pologia a Parti rumo & AmazOnia equatoriana no final da dé- Fiel a essa missao, 0 jover Philippe Des cada de 1970, para viver entre os achuar, 0 “pova da palmeira d'égua’. Aprendeu sua lingue, observou suas téenicas, coletou cous mitos e dex modo como os achuar compreendiam suas prépriag experiéncias: um incidente durante uma cagada ou um sonho ainda fresco, por exemplo. Avs pouces, foi se dando conta de originalidade de sua visio de mundo, fem especial no que dia respeito a0 mundo natura, ’ condigo humana e aos elos entre ambos, Nesta conferéncia sobre Outras naturezas, outra Descola parte dessas observagdes para questioner a -s0intrigar pelo suposta universalidade dos conceitos de “natur cultura” —ao mesmo passo que nos comida a refletir. sobre as origens e 08 limites de nosso préprio modo de estar na terra, colegio fibula Mi 3 z 4 3 % a 4 g 5 5 a & Z 5 2 § a 2 g z a 2 2 5 2 § & OUTRAS Ne 74 oe OUTRAS CULTURAS A primeira vista, poucas nodes parecem tio eviden- ‘tes etdo universais quanto as de “natureza" e “cultu- ra De um lado, tudo que se produz sem intervengé humana: mares, montanhas, estrelas, plantas e ani- mais. De outro, tudo que ¢fruto do nosso engenho: ferramentas ¢ cidades, artigos de lie obras de arte. Diante de matéria tao pouco polémica, oque mais ha- veria para se dizer? (corre que as coisas so mais complicadas do que parecem. Basta um pouco de reflexdo pars per- ceebermas que hd seres ¢ coisas que participam de ambos o8 mundos, 8 comegar por nés mesmas, pro- tagonistas da “culturs’, mas intimamenteligados por nossos corpos ao universo da “natureza", No bastasse isso, cada cultura humana parece tragar de modo dverso afrontoira que a separa da natureza 20 redor— isso quando se di a trabalho de distin- ‘Quir entre uma e outra, como bem record Philippe escola em Outras naturezas, outras cultura. Estu- dioso dos achuar, povo indigena da Amazénia equa- ‘oriana,o antropsiogo francés corwida-nos a pensar sobre as muitas maneiras de conceber nossos elos com © mundo ao nosso redor—para que tomemos distancia de nossas rotinas mentais, mas também para que contemplemos outras manciras de habitar ‘terrae viver a condigdo humana, colegio fabula PHILIPPE DESCOLA OUTRAS NATUREZAS, OUTRAS CULTURAS ceCILAcIscaTO (OUTRAS NATUREZAS, GUTRAS CULTURAS CCONFERENCIA PRONUNCIADA EM 3 DE FEVEREIRO DE 2007 ROTEATRO OF MONTREUIL, NOS ARREDORES DE PARIS, [ESEGUIDA DE UMA SESSAG De PERGUNTAS ERESPOSTAS. {A primeira vista, poderiamos pensar que nao hé dificul- dade em distinguir 0 que diz respeito & nstureza do que diz respeito & cultura. E natural tudo que se produz sem ‘a. a¢80 humana, aquilo que exist antes do homem e que cxistiré depois dele, como.os oceanas, as montanhas, 2 atmosfera eas florestas;é cultural tudo que é produzido pela ago humana, sejam objetos deias ou sinda certas oises que esto a meio caminho entre os objetos eas ideias, aquilo que chamamos de instituigées: um idioms, ‘a Constituigao francesa ou o sistema escolar, por exem- plo. Se saio para passear pelo campo e atravesso um bosque, estou em meio’ natureza. Mas se ougo um avido {que passa eobre mim ou um trator nas proximidades, en- tdo esses sio objetos fabricados ¢ utilizedos pelos ho- ‘mens, objetos, portanto, que pertencem & cultura. No ‘entanto, ea distinglo nem sempre étdo simples assim. Durante meu passeio, margeio uma cerca viva de plantas, selvagens, espinheiros, aveleiras, amelanqueiros erosas silvestres, Posse dizer que se trata de uma cerca natural, ‘a0 contrério das estacas de madeira que limitam o terre "no vizinho. Mas essa cerca também foi fincads, talhade, Cuideds pelo homem e, sed est, é para separar dois ter- renos conforme os limites estabelecidos pelo cadastro, dois terrenos que pertencem a proprietérios distintos. A cerca é, também ola, o produto de uma atvidade téenie isto 6, de uma atividade cultural. Porter uma fungi legal, tem também uma fungao cultural ‘A maior parte dos objetos que nos rodeiam, incluin- do nés mesmos, encontram-se nesta situagao interm digria: S80 natursis e culturais 20 mesmo tempo, Estou ‘com fore: eis uma necessidade natural que eu no pos- 80 controlar ¢ que me levaré a morte se nio a satistizer. ‘Mas existem mil maneiras de satisfazer minha fome, ¢ ‘adotar uma maneira ao invés de outra, me alimentar pre~ ferencialmente de um certo tipo de refeigéo, eno de ou- ‘ro, tudo isso faz parte de uma escolha cultural, Apesar dossas intersegdes e dessas zonas de sombra entre 0 que 6 natural eo que é cultural, parece que néo hesita- ‘mos muito quando se trata de qualifear 0s objetos que ‘nos cercam como pertencentes & natureza ou a cultura. ‘Meu gato ou meu cachorro fazem parte da familia, como se costuma dizer, mas apesar disso eles néo tém os mes- ‘mos direitos que os membros humanos da minha familia Eles nao tém representantes no parlamento, no se be~ neficiam de seguro de satide e tampouco so responsi veis pelos seus atos. Se meu cachorro morde o vizinho, sere’ eu a ser punido pelalei,no.0meu eachorro, Podem erigir que ele soja sacriicado, mas isso seria uma me- dida de seguranca publica, e no uma punigso dirigida a0 cachorro, Resumindo, entre os humanos @ 08 no hu nents de homens, 20 passo que os ndo humanos Smamurerrunascoorec err orompor Benita! Essa forma de pensar, que nes ensinam na escola e que parece tera evidéncia dobom senso, talez sea, afinal de Contas, 0 mode mas comum dese fazer adistingSoentre ratureza e cultura. Contudo, a ciéncia que pratico,@ antropologia, des- confia muito do bom senso. Ao contrério do que dizia 0 fldsofo Descartes, o bom senso no é a coisa mais bem distribuida do mundo. Os antropélogos concordariam ‘mais com um contempordneo de Descartes, o grande ‘lésofo e matemético Pascal, que dzia 0 seguinte: "Ver dade deste lado dos Piceneus,err0.do outro lado". Em ou- tras palavras, os hébitos que so normais na Franca ndo fo siona Espanha, e vice-versa Cabe & antropologia fazer o inventério dessas lfe- rengas e tentar explicar suas razbes. Para fazer 0 inven- trio, énecesséro it ao encontro das pessoas @ observa seus costumes, suas formas de fazer, de dizer; é neces ério compartihar sua ida cotdiane durante vétios anos, ‘aprender aquilo que saber, compreender aqui que fa- zem, Em suma é preciso praticar a etnografia. Assim, os antropélagos si0 também etnégrafos ou etnélogos, di- ‘gamos. Todo antropéloge também é ou foi um etndgraf. Essa é una bos iniiagio a0 problema que a antropologia ‘aborda, isto 6, o problema de compreender as diferen- ‘gas cultura, Afinal, no importa a comunidade com que vvocé escolhe conviver durante algum tempo—seja ela ‘em seu proprio pais ou bom longe da sua casa—, os hbi- 10s dessa comunidade serio obrigatoriamente diferentes {dos seus, mais ou menos diferentes conforme a distancia ‘que voed percorrer. A partir dal, na tentativa de se identi- ficar eom os que tém um modo de existenciadistinto do seu para compreendé-los melhor, do interior, dividindo sas olegrias etristezas e as razbes que alegam para fa- zer 0 que fazem, voob serd necessariamente levado, por contraste, a questionar a evidéncia dos habitos de vide de sua prépria comunidade. Vocé se tornaré um pouco diferente e, dependendo do tempo que passar longe de casa, poderé se tornar quase estrangeiro ao que er tes. Voc8 questionaré certas evidéncias que pareciam inerentes ao bom senso em sua comunidade de origem. Fo) exatamente assim que eu comecel a questionar ‘o que me parecia tao evidente a propésito da diferenga entre os humanos ¢ os néo humanos, entre os seres que, segundo nés, pertencem 8 natureza e os seres que per tencem & cultura. Isso aconteceu hé uns trnta anos, na ‘alta Amazénia, na fronteira do Equador com o Peru. Eu tinha ido para lé estudar os indios conhecidos do gran- de pilblico pelo nome de jvaros, mas que se autodeno- rminam achuat. Achuar quer dizer“ povo da palmeir d'agua”,jé que vivem numa regiéo da floresta tropical salpicada de pantanos, onde a palmeira d'égua cresce ‘em abundiincia, Sem contato regular com o mundo ex- terior, eles moravam nessa densa floresta tropical, ndo tem vilarejos, mas sim disperses, em grandes casas iso- ladas, cobertas por folhas de palmeira. Os homens ca- gavam com zarabatanas ou fuzis, pescavam nos rios, e ‘as mulheres cuidavam dos jardins em clareira que rodes- ‘yam as casas, colhendo plantas cultvadas na Amazénis, como a mandioea, a batata-doce, oinhame, a papais eo ‘amendoim. Levei quase um ano pera conseguir me var na lingua deles, que é uma lingua difcile ndo ensinada 1a universidade. Foi entao preciso aprendé-|a in loco. A medida que entendla cada vez melhor © que eles diziam, ‘meu espantodiante de sua maneira de pensar s6 cresci Especialmente quando eles falavam a respeito de sous sonhos. Os achuar se levantam muito cedo, por volta das {és ou quatro da manha, mas vio dormir também muito edo, pois as seis e meia jd é noite no Equador, @ as oito horas todo mundo esti dormindo. Pouco antes do ama- ‘nhecer, eles se reuniam a0 redor de uma fogueira pars decid o que fariam durante o dia em fungo daquilo que haviam sonhado & noite. Na maior parte das vezes, inter- pretavam os sonhos segundo regras simples, baseadas, ‘geralmente na inversio entre a imagem sonhada e a in- dicagie que podiam extrair dessa imagem. Por exemplo, sonhar que pescavam um peixe era um bom sinel para ir aga e, ao contréri, sonhar que matavam um caititu era tum bor sinal para ir & pesca. Mas outros sonhos eram interpretados de maneira bor mais estranha, CCerta vez, por exemplo, um achuar me contou que hhavia visto em sonho um homem recentemente morto, todo ensenguentado. O homem o-criticava porter atirado muito embora isso ndo tivesse acontecido. Na vée- era, no entanto, o achuar hava ferido um pequeno.cervo durante a caga, Na comunidade dos achuar, acredta-se {que a alma dos mortos se incorpora em diferentes ani ‘mais, entre os qusis os cerves, razdo pela qual sua caca proibide. © homem haviainfringido essa interdigao. Em outra ocasiéo, foi um rapaz que se apresentou ‘0 sonhador como sendo eeu cunhado, dizendo ale que ro dia seguinte iia dangar com suas mas & beira de um ago. De fato, segundo a interpretagdo que me foi dade, ‘ratava-se de um macaco-prego que, sob forma humans dava indicagdes de caga, que os echuar cagam maca- cos. Alimentam-se decaittus, macscos, tucanos...6 um pouco triste para quem gosta de macacos e de tucanos, ‘mas nessa regio S20 esses os animais de cage que os Indios consomem, como 6 o caso, aliés, em todo 0 res- to de Amazéni, 0 macaco-prago indicava ao gonhador, portanto, olugar onde ele poderia ser cagado. isso é mui tocurioso! ‘©utra vez, uma mulher me contou que havia visto ‘em sonho garotinhas reclamando que estavam tentando ‘envenené-ls. Ela interpretou esse sonho dizendo que ‘08 pés de amendoim haviam tomado aperéncia humana para se queixar deterem sido plantados perto demais de ‘uma moita de barbasco. Em toda 2 regido, barbasco €0 home espanhol que se dé a um veneno vegetal emprege- do na pesca para asfisiar os peixes. ‘Sempre que eu perguntava aos achuar por que os ‘cervos, 0 macaco-prego @as plantas de amendoim apare~ ‘iam sob forma humana nos seus sonhos, eles me respon- «diam, surpresos com a ingenuidade de minha pergunts, que a maior parte das plantas e dos animais sao pessoas como nds, Nos sonhos, podemos vé-los sem suas fan- tasias animais ou vegetsis, ou sei achuar dizem, de fato, que e grande maioria dos seres da ratureza possuem uma alma anéloga 2 dos humanos, que hes permite pensar, raciocinay, ter sentimentos, comu- ricar-se & maneira des humanos e, sobretudo, fazer que vejam a si mesmos como humanos, apesar da aparéncia ‘animal ou vegetal € por isso que os achuar dizem que as plantas e os animsis, em grande parte, sio pessoas: sua hhumanidade é moral, repousa sobre aideia que fazem de si préprios; néo 6 uma humanidade fisica que repousaria sobre a aparéncia que tém os othos do outro. Hé pouco, quando falei sobre as plantas e os ani- mais, empreguei a expressao “seres da natureza". Mas ‘como humanos. O8 ‘essa expressiio no faz 0 menor sentido para os achua. (Os sores que sso concebidos e tratados como pessoas, ue tém pensamentos, sentimentos, desejos e institui- {ges em tudo parecides com os humanos, ndo so mais seres naturais, Os achuar desconhecem essas distin= ‘ges, que me pareciam tdo evidentes, entre os huma- nos ¢ 08 nfio humanos, entre o que pertence & natureza 0 que pertence & cultura. Em outras palavras, meu ‘senso comum no tinha nada a ver com 0 deles. Quan do observavamos as plantas e os animais, ndo viamos esse ponto de vista, os achuar néo tém nada de ‘excepcional.€ claro que eles me ensinaram muito erevo- lucionaram meu med de ver as coisas, mas sociedadet ram deseritas em outros lugares, es- pecialmente em outras partes da Amazénia, Para as cen tonas de tribos amaz6nicas, quefalam linguas ciferentes, ‘os no humanos também slo pessoas que participam da vida social, pessoas com quem podemos estabelecerre- lagdes de alianga ou, a0 contréro, relagées de hostilids- dee de competiglo. Essa forma de ver o que chamamos natureza como algo idéntico & sociedade dos homens também no é uma caracteritica exclusiva da Amaz6nia, © etndloge inglés Adrian Tanner, que viveu entre os Indios eri na norte do Quebec, relatou o que observou em Lm vilarejoindigena hé uns trinta anos. Um ancio muito respeitade havia morrido pouco tempo antes, e muitos ‘como as deles parentes vieram parao funeral. Alguns deles, bem jovens, {0 verem um ganso selvagem voar em torno do vilarsjo e pousar diversas vezes préximo & casa do defunto, foram buscar um fuzil para tentar maté-fo, Bem na hora em que iam atiar, um homem maduro os impediu, izendo-Ihes {que 0 ganso era, na reslidade, um amigo do morto, equ tle também estava chorande 2 morte do amigo. De fato, com o pasear do tempo, certos cagadores ri deservolvem uma relagdo privilegiada com um animal do uma certa espécie, ¢ esse animal é como um amigo. Ele é também um embsixedor unto a0s outros membros de sus espécie, persuadindo-os a se aproximar de seu ‘amigo cagador para que este possa atirar com mais f- cllidade. Com a morte do cagador, seu amigo animal fica de luto, e importante nao deixar que ele se vi, pois le= varia consigo todos o8 outros membros de sua espécie «entZo, no sobreria mais nads para cagar nes provi dades do vilarejo. Do mesmo jeto que os indios da Am 26nia, os indias do Grande Norte canadense consideram 1 maioria dos animais como pessoas que possuem uma alma e, portanto, dotadas de diversas qualidades huma- ‘nas, em particular 0 senso de solidariedade, de amizade ‘ede respeito aos mais velhos, Para os cri a diferenga en ‘tres animais eos homens é mera questao de aparéncia, uma ilusdo dos sentidos baseada no fato de que o corpo dos animais é um tipo de fantasia que vestem quando ‘05 humanos estio por perto, a fim de engai sua verdadeira natureza. Em compensacéo, quando os animaisvisitam os indios nos sonhos ~e isso também acontece entre os achuar-—eles se revelam tal como sé0 meiras sementes da antropologia, ndo sob forma cientf- ‘ca, mas filosfica, Grandes pensadores, come Montaigne, Pascal, Montesquieu, Diderot ou Rousseau, se interessa- ram por esse problema, ainda que no tentassem respon- {dé-lo de maneirasistemstica por meio de pesquisas sobre ‘como viviam essas pessoas tdo diferentes de nds. Fosse como fosse, dispunham de informagoes, uma vez que a ceonquista das Américas jéhavia fornecido documentag sobre.os amerndios desde o século XV e,prncipalmente, no século XVI Sabiamos entéo certas coisas, sobretudo ‘gragas 208 documentos dos missionérios e aos inquéritos administrativos, mas ninguém ainda inka pensado em fazer disso matéria de um trabalho de comparacSo sistemétics, Foi partir do final do século xv, sobretudo, no século Xk que 08 europeus #08 norte-americanos comegaram de {ato a formular a questo em termos centfcos, realizando pesquisas sistemstioas em todas as regiées do mundo e fazendo inventrio das manciras de vver. Nessa époce, a questo da diversidade cultural era ‘explicada por meio de ritmos de evolugso distintos: os povos entio chamados de “primitives, para evidenciar sua proximidade com 08 primeiros tempos da humanida- de, eram tidos por pouco evoluides em comparagao aos europeus, que se julgavam no mais alto grau da escala de evolugao em termos de progresso. Porém, quando racio- cinamos assim, supomos que o estado atual em que nos ‘encontramas 6 0 produto de uma evolugio continua, a0 passo que outros povos, os aborigines aust ‘exemple, ndo teriam evoluido. Ora, os aborigines austra- lianos tém go mil anoe de histéra, ¢6 que a historia deles 6 diferente da nossa, Edessa histéria, que nlo pode ser ‘medida pelos nossos critérios, sabemos muito pouco por {alta de documentos escrtos. A arqueologia nos permite saber como e quando a Australia foi povoada, 0 estudo das linguas nos permite reconstrurrotas de difusso, mas quase nada sabemos sobre o que aconteceu a0 longo ddesses 50 mil anos. Apesar disso, durante esse longo ps rode, o8 aborigines inventaram insttuigées originais; por ‘exempla, sistemas de casamento tao inerivelmente com- plicados que necessitamos de ferramentas matemsticas ‘complexas para modelizé-los. S6 ndo inventaram insti- tuigdes ou objetos comparévels aos nossos. Nao criaram ‘estados, tribunais ou automéveis. E, na medida em que ‘as nossasinstitvigses @ os nossos objatos que nos parecem sero resultado ou 0 dpice da evoluc0, n3o con- seguimos conceber que os aborigines australianos tam= bbém tenham conhecido uma longa evolugso. € por isso ‘que 0s europeus ge perguntaram por que eles préprios, ‘eno 08 outros, haviam evoluido. Ora, os outros também evaluiram, #6 que de outra maneira odemos nos fazer outra pergunta, parecida com 3 que voed me fez, Vamos tomar 0 exemplo da China, uma janes, por grande civilizagdo, um grande império com certos siste- ‘mas téenicos muito antigos, pessoas que desenvolveram diversas ciéncias, principalmente a matemética, a astro- omia, a quimica, alégica, mas que apesar disso tudo ‘née conheceu a decolagem técnica da Europe, nem a im- portante revolugao cientifica de século xv. Atéo século v1, do ponte de vista técnico, no existia grande diferen- gaeentre @Europa.ea China. Alss, na verdade, eraa China que estava na frente. Ainda estamos tentando entender as razées dessa extraordinéria decolagem das ciéncias © das técricas no século XVI, por que ela aconteceu justa- mente na Europa. ‘Quem sabe haja um comeco de resposta raquo ‘que tentsi desenvolver durante esta conferéncia, Se con- siderarmos que o meio ambiente, a atmosters, as plan- tas e as rachas so exteriores @ nds, isso tudo se tor tum terreno de investigacéo, de pe ‘a sonsagio de que é mais fécil jogar com esse terreno, transformé-lo, No era © caso na China, onde durante muito tempo se pensou que existiam multiplasligagdes ‘entre os humanos ¢ o resto do mundo. Assim, era preciso ‘encontrar um equilfbrio entre aquilo que se chamava de microcosme e de macrocosmo. O microcosmo 6 0 ho- ‘mem considerado como um tipo de modelo em miniatura do universo. Ess vi permite conceber 0 mundo ‘como algo exterior sobre o qual podemos conduzir ex: perimentos. A grande diferenga entre a ciéncia chinesa visa, Temos enti ‘ea ciéncis que comecou a se desenvolver na Europa no ‘século XVI reside no fato de que, tomando distancia e Jnventando a natureza, 0s humanos transformaram essa natureza, fizeram dela um campo de experimentos. Cri fenémenos inventando aparelhos que pudessem produ- 2i-los @ medi-los era algo muito nove. € 0 que vocés fa- zem nas aulas de fisice ou de quimica quando imaginam perguntas as quais responderéo fazendo experimentos, produzindo reagdes quimicas ou criando vécuo num reci- piente. Essa foi afonte do desenvolvimento das ciéncias, E preciso estar atento a0 fato de que no fai odeservol- vimento das ciéncias que mudou a ideia que temos da: ‘atureenamnans sorties 9, desennolvimente sienticny Na sequéncia, um movimento dvergente se declarou, de forma que a Europa e, mais tarde, 0 mundo ocidental se destacaram do restante do mundo. Gostaria de fazer uma pergunta a respeito do conta- to entre o antropéiogo e as sociedades que ele visit Como isso acontece? Como as pessoas reagem? De elas. 0 vem como portador de uma outra sso faz com que elas préprias questionem a cultura delas? As situagdes variam muito segundo o tipo de sociedade ‘que visitamos. Minha experiéncia é um tanto particu pois os achuar no haviam tido quase nenhuma relagio om o mundo exterior. Eles viiam a poucas centenas de quilémetros dos Andes, mas numa regio da AmazBnia ‘equatoriana muito acidentada e de dificil acesso, de for- ‘ma que 08 primeiros contatos pacificos haviam acont ‘ido apenas cinco ou seis anos antes. Os achusr eram, portanto, muito isolados e possuiam poucos conheci- rmentos sobre o mundo exterior. Eu ful par i.com minha ‘mulher, ramos, portanto, um casale, de certa forma, 8 situagdo era menos estranha que se eu tivesse ido 807 rho ou se uma colega tivesse ido sozinha, pois nao hd solteios nessas sociedades. Os jovens se casam muito cedo; ha vidvos e vidvas, mas eles voltam a se casar bas- ‘ante rdpido. Um homem sé ou um mulher s6 si0 tidos como pessoas realmente esquisitas. Um casal era uma imagem mais familiar para les. ‘Durante nossas conversas, passévamos mais tempo respondendo as perguntas que eles nos feziam sobre o mundo de onde vinhamos de que fazendo perguntas so- bre omundo deles. Aqui eu me permito um paréntese: um antropélogo 86 comeca a realizar um bom trabalho a par- ‘entender 0 que fazem, pois fazer uma pergunta jé é um pouco definra resposta. Mesmo que no inicio seja indis- pensével fazer perguntas. Nés respondiamas entdo as in- terrogagies deles, ainda que fosse muito dificil fazé-los imaginar como era o mundo de onde vinhamos; eles nos viam como representantes de uma trbo vzinha, ainda que tum pouco distante, dotados de grande poder de fabricar ‘objetos manufaturados. Os achuar tém até um mito para ‘explicar como os brancos, €néo eles, obtiveram es objetos manufaturados. Para eles, nds faztamos parte dessa tribo,¢ provavelmente eles se davam conta de que ‘existiam vias outras trbos de brancos, uma vez que mis sionério italianos passavam por l de tempos em tempos, Para os achuar, era evidente que se tratava de uma outra ‘ribo, anal os missionérios usavam batina, 20 contrério {de nés. Missionérios protestantes americanos também passavam por le falavam entre si uma lingua que fra anosse. Naquela época, eu fumavs, os missionsrios protestantes no apreciavam ofumo, ue é paraeles algo diabélico, einsistiam muito que os indios née fumassem. Como vem dessa regio do mundo, o um fazia parte da vida cotidiana, Os achuar desconfiavam anti que deviam ‘xistir arias outras tribos de brancos, que estas falavam linguas diferentes e que seus membros nem sempre se tentendiam perfeitamente entre si. Mas, no espirito dos ‘achuar, nés no vinhamas de muito longe, vinhamos de ‘apenas algumas dezonas de dias de caminhads. Néo fa~ iam ideia de que eram eles mesmos uma espécie de ho: ‘ano meio de um vasto mundo em vias de acidentalizagao, ‘A par do meu caso, hé também os antropélogos que «estudam sociedades que esto h muitotempo em contato ‘como mundo exterior. As coisas mudam muito rapidamen- tw hoje em dia com a globalizagio das trocas, 9 mundi Taagdo, @transformagio das técnicas ¢ os telefones via satditealimentados por pains solares, [sso permite que certas pessoas nos rincdes da AmazGnia mantenham con tato com o restante do mundo. As coisas, portanto, mu- dam muito répido, ea gama de situagdes ¢ mense, De modo geral,ainfluéncia dos antropdiogos sobre as pessoas que visita 6 muito pequena, pois no somos, ns 08 fatores de transformagao. Como poderiamos s8-lo? Uma ou duas pessoas no méximo, imersas em populagdes de vérias centenas ou milhares de pessoas, ‘compartilhando em tudo a vida deles, comendo a me ma coisa que eles e dormindo em suas casas. Os que transtornam essas sociedades so 0s colonos que vem tomar suas terrae, as companhias petroliferas que fazem perfuragdes, constroem estradas de acesso e poluem os, Solos, 0s garimpeiros clandestinos & procura de ouro pedras preciosas, os grandes proprietérios deterras que tenviam capanges para incendiarvilarejos, ocupar terras ‘edestruir a floresta para criar gado, os missionérios que tentam converté-los, o exército que 8s veres precede os missiondrios. Hé todo um conjunto de forgas nesses lu- {gares, por vezes também forgas positives, como as ONGS ‘que comegam a agirnessas regides. Quanto aos antrapélogs, @influéncia deles 6 pe~ {quena, sinda mais porque quase sempre tém muta difi- ‘culdade para explicar enstureza do mundo de onde vém, na falta de toda experinciadireta daquilo de que falar. E muito dificil explicar o que ver a ser uma cidade a al- ‘guém que nunca viu uma, Eles no entender. Os achuar tém belas casas, slgumas tdo grandes quanto este pal> co, casas que podem acolher trinta ou quarenta pessoas. Eles nos perguntam como é possivel colocar uma casa como a deles em cima de outra casa, ¢ esta sobre outra casa e mais outra. Evidentemente, 6 muito difielimaginar 2 aparéncia das construgdes em cimento ou concreto. Da ‘mesma forma, eles fazem suas necessidades nos jardins ‘eas enterram com a ajuda de um bastéo, o que néoé um problema, dada a baixe densidade populacional, Eles nos pperguntam como fazemos quando hi muitas pessoas. A ‘mesma coisa para a alimentagio: eles nao entendem ‘como todas as pessoas conseguem se alimentar. Aideis de um mercado di jase antes, 6 ume invengio recente da humanidade, e seu principio conti= rua a ser um grande mistério para muita gente. E muito lfc faz8-1os compreender esse tipo de coisa. No sentido inverso, isso nos leva a questionar nos £28 préprias certezas, O mercado de alimentos é, pars 1s, coisa mais normal do mundo. No entanto, ele no tem nada de evidente. € 6 justamente na hora em que es- tamos em campo que, por contraste, sua utilidade pode ‘se manifestar Pos a vida de etndlogo nem sempre é fécik vocé vive na casa de pessoas sem saber quanto tempo imentos, como poders ficar por If, voeé tem que andar muito para ir de uma casa a outra, 8s vezes vérios dia, sem saber se irdo aceitar hospedé-lo ou alimenté-lo, e, quando voce parte por trés ou cinco meses, no 6 possivel se deslocar com alimentos. € preciso, portanto, contar com a boa vontade das pessoas com as quas vivemos. Devoltaa “civiizagio", ‘que encontramos? Eu ia até os achuar com um pequeno avido, geralmente militar. Descia numa base militar préxi= ‘ma. fronteira do Peru para, em seguia, fazer orestante do trajeto a pé ou de canaa, Quando votava dos achuar, a primeira coisa que eu revia era. 0 lugar de onde decolam ‘esses pequenos avides, cidades deplorsveis com tetos de zZinco situadas a0 pé dos Andes, chamadas de frentes de colonizagao. Os colonos que descem as montanhas para ‘entar viver na Amaz6nia moram ali ou partem dali. Lé es 10 as bases militares, as petroliferas, os missionarios © até mesmo alguns tuistas. Mas, decerta forma, essas pe- {quenas cidades eo também um reflexo do nosso mundo a cercade trezentos quilmetros de onde vivem os achusr. E, quando voltavamos a essas cidades, nos dévamos con- ta.de que ter dinheiro pade até ser bem itil, pois basta ira um restaurante e sacar uma nota para logo ter o que ‘come. Era bern mais fil do que os seis meses que aca- bivamos de passar entre os achuar, quando nem sempre sabjamos pela manha se teriamos algo para comer & noite. Essa é uma experiéncia muito interessante de se fazer. Agradeco pela exposic&o fascinante e tao esclare- nogées de ciénciae de amento do mundo, que sao ideologias oci dentais, construgdes culturais. Essa perspectivacon- dur a.um verdadeiro questionamento da ciéncia, eeu _gostaria de saber como essa anélise antropolégica é percebida pelas outras ciéncias ditas exatas. Como 6 acolhide esse discurso t8o subversive sobre o sis- tema cientifico e como seria possivel por em davida (08 préprios cientistas? Eu no ponho a cientista. Acredito que o que faco respeite as regras do métode cientifico, e 0 que eu digo nao 6, portanto, um julgamente da ciéncia, Mas acredito também que muitas vezes confundimos cigncie com 0 que chamamos, em termos cientficos, de cosmologia. De que se trata? T ta-se simplesmente da visdo de mundo, daa i organizado, cedora. ia de voltar fem divida, eu mesmo sou essa cosmologia néo é em simesma o produto de uma _ atividede cientiicg, El 6 uma mancira de distribu a3 entidades do mundo, ela é o fruto de uma certa época, que permitiu que as ciéncias se desenvolvessem. Esse cosmologia existe e isso ndoé uma critica ciéncia, Mas 4 preciso admitr que ola ndo é universal. Nés podemos muito bem imaginar outras maneiras de viver e de ver o mundo com 0 concurso das ciéncias. Fol inclusive gragas ’as ciéncias que tomamos consciéncia dos efeitos dramé- ticos do aquecimento global, gragas aos glaciologistas, climetologistas, geélogos e matematicos que produzem modelos. A ciéncia nos permite compreender qual 6 0 estado de um sistema, no caso © mundo, num determi nado momento, quais sé0 as previs6es sobre os estados futuros deste sistema em prazo mais ou menos longo e ‘como fazer para modificar esses estados, se necesséric. Esse siltimo ponto néo diz mais respeito& ciéncia, mas ‘a todos nés, na medida em que conhecemos as citicas que a ciéncia drige 20s seus erros passados.e podemos, como cidadéos, criticar 0 estado do mundo a partir dos conhecimentos cientificos. Um dos méritos da antropologia ests em escapar ‘ideia de que o presente é eterno, que o mundo nao é outta coisa senéo esse teatro onde estamos hoje com ‘nosso modo de pensar, nosses ideias comuns. Mas no, no 6 assim, Existem ovtras formas de pensar omundoe ‘outras formas de imaginar urn futuro para esse mundo. E isso que a antropologia nos permite conceber. Porisso, eu no ponho os ciéncias em duvida, o que seria absur- do; 0 que contesto é aideis de que a cosmologia, que tornou as ciéncias possiveis, 6 ela prépriaciontfica. Nbo, lan 6, ela éhistorica, como sao todas as cosmologias. (© senhor falou sobre sociedades um pouco afasts das do mundo tal como nés 0 percebemos. Disse que pessoas como senhor criaram um precedente, mas {que esse precedente poderia destruir adiferenga ea riqueza dessas sociedades? ‘Sim, esta é uma pergunta cléssica, eu dirs. Num primei- ro momento, podemos acher que a mundializagao é uma uniformizagio dos modos de vide. Mas essa uniformiza- ‘go lava areacdes de defesa que tendem, so contrétio, a realgaro caréter distintivo que cada sociedade, cada co- letivo ou cada grupo considera ser a marca de sua iden- tidade. Existe entao um duplo movimento: de um lado, tem-se de ato uma tendéncia& uniformizaglo, tanto das téenicas como das maneiras de penser, mas ela também leva a movimentos de reagio contra essa uniformizagéo, fazendo surgir as diferencas. Penso, todavia, que ess: ‘movimento de vaivim entre uniformizaglo e reagéo de defesa acaba produzindo um empobrecimento das dife- rengas. Iso ficou evidente no curso dos titimos séculos. Contudo, no € preciso ver a mundializagao como uma ocidentalizagéo generalizada. Quando, na Amazé- ria equatoriana, os achuar ou outros povos amerindios Ccomegamn a ter contato mais frequente com a sociedade nacional equatoriana, eles néo se convertem por isso em adeptos do McDonald's. Onde se dé a transformacio? Eles adquirem pouco a pouco hébitos e costumes da so- ciedade nacional equatoriana, mas esta sociedade naci nal equatoriana néo é a Franga, nem os Estados Unidos, hem @ China, De certa forma, suas caracteristicas cul- turais so, para 08 europeus, to exdticas quanto as dos ‘achuar. Do que elas 280 feitas? De coises muito diversas nascidas progressivamente nos Andes por conta da mis cigenagdo cultura colonial: certos estilos musicis, uma forma de falar espanhol com expresses provenientes da lingua quichua, 9 organizagio comunitéria do trabalho ros vilarejos,o sistema de autoridades civis ereligiosas no campo e nas pequenas cidades, certos pratos e cer- tas bebidas © muitas outras coisas mais. € isso que os achuare outrae minorias nacionais recebem e adotam, © ro um modelo europeu ou norte-americano. Esse feito de homogeneizagao nacional 6 bastante claro em certas partes do mundo, mas ndo se trata de uma globalzag3o ‘no sentido de uma universalizagao de cartas priticas. Essa questo é ainda mais complicada quando se ‘sabe que as minorias indigenas também slo obrigadas 2a se adaptar as novas circunstncias poltcas mundiais. Por exemplo, cortas organizagdes no governamentais, (ONGs) ambientalistas so muito presentes na Amaz6- nia, Elas 80 conduridas porjovens ocidentaischeios de impeto que vo para a fim de proteger a floresta ama z6nica, mas que nem sempre sabem muito bem o que é a floresta amaz6nica ou 0 que séo os indios. Uma ver ld, tencontram os indios responséves pelas organizacées in- digenas que agora existem em todos os pafses da Ama: 26nia. Eles debater juntos, ¢ os jovens dizem que vlo ajudé-los a proteger a loresta. Estes tém um discurso ecolégico que conhecemos bem, segundo o qual a Ams- 26nia 60 pulmao do planeta. Essa nego de pulméo do planeta é bastante abstrata para os indios, que querem antes de mais nada evter que dezenas de milhares de co- lonos ou de garimpeirosilegaisvenham fazer buracos em suas terras, cortar a loresta, expulsar os animais e polur seus rios com meredro, Os indios acabam mantendo um discurso que é, na realidade, 0 discurso dos ambienta- listas, que, por sus vez, pensam que esse 6 0 discurso dos indios. Mas esse néo é nem de longe o discurse dos Indios, trata-se to somente de um discurso genérico, {geral, que todo mundo mantém por todo lado. € verdade que destrura loresta na Amazénia tem consequéncias, sobretudo do ponto de vista local, mieroclimético e, em scala mais geral, tem evidentemente efeitos sobre a bio- iversidade. Os indios acabam mantendo esse discurso, mas, em outras circunsténcias, eles diriam os tipos de coisas que eu descrevi para vocés. Bem entendido, se tum indo caiapé vaia Brasilia para discuticcomo governo brasileiro 2 extensio da reserva caiapé, ou sa vei a Paris, para mobilizer as pessoas contra a construgo de barra- ‘gens que vo inundar suas terras ele no vai contar que ‘sonhou com um caitit No faria © menor sentido. Ele vai dizer que 0s indios s80 08 quardides de floresta sagrade porque todo mundo entende esse tipo de discurso. Isso ro tem muita relagao com o que os caiapds pensam, tem mais a ver com 0 que os ambientalistas pensam, € (0s caiapés tém todo interesse em se aliar aos ambien- se sistema é Gostaria de fazer uma pergunta sobre s antropologia nas sociedades ocidentals, sobre seu lugar e seu pa- pel. O que osenhor pode nos dizer? Nao faco dferenga entre sociologia e antropologia, acre- dito que as ciénciae eociais constituem um bloco nico, Existem as vezes diferengas de método, Por exemplo, 03 socidlogos fazem um maior uso de dados estatisticos. ‘Mas eu também conhego socidlogos que fazem a mesma coise que os antropdlages, ou seja, participa da vide de algum tipo de coletividade a fim de compreender sua forma de viver esse ponte de vista, acredito ser muito importante fazer antropologia em todos os lugares, inclusive entre née mesmas. Como eu dizia ha pouco, se decido fazer tetnografia em uma comunidad, nfo vou & procure ds- aquilo que jé conhego; nde vou pesquisar professores de antropologia, pois eu jé conhego um pouco dessa coleti= vidade. Por outro lado, posso ir fazer pesquisa de campo junto a0s bidiogos. Alguns alunos meus fazem isso, oles \ioa um laboratério de bidiogos ¢ tentam entender como les funcionam. E uma ribo muito curiosa, eles tém uma forma muito estranha de se organizar, de formatar os re- sultados, delegitimd-los ede brigar com outros bislogos. ago se torna ainda mais interessante quando fazemos comparagSes. Hé algum tempo, uma jovem colega fez um trabalho fascinante sobre os bidlogos japoneses. Quando eles esto em congress0s, aparentemente sf0.comotodo ‘mundo, usam camisa branca, chamam uns aos outros de ‘professor’, dizem os mesmos tipos de coisas, publicam ras mesmas revietas internacionais, Nature, Science, fa- zem as mesmas experincias, mas so completamente diferentes. Eles pesquisam, como tantos outros, a mos~ ca droséfila, uma variedade de mosca que tem especial interesse para os bidlogos. Existem muitos laboratérios no mundo, inclusive na Franga, que pesquisam um mes- ‘mo aspecto do comportamento dessa masca; no entanto, (08 japoneses fazem coisas mut diferentes. Acho que {esse tipo de trabalho é muite importante. Analisando as estatisticas, um socidlogo poderé dizer que osjaponeses publicam mais numa tal revista e em tal lingua, que eles fazem estudos mais longos ques bislogos americanos e que tém um nivel de vida melhor que os bislogos france- 506, 0 passo que oetndlogo, ou sociélogo que praticaa abordagem qualitativa, este id viver juntos pessoas des- 88 laboratéri,iré anotar aquilo que dizem quando esto debrugadas sobre suas bancedas de aboratérioe quando ‘manipulam suas pipetas, is escutar as conversas a0 lado dda méquina de caf, id aos congresses, iré observar suas familias. E vai reconstituir um mundo. No serio mais, pessoas separadas em pequenos pedacos—6 a critica {que ee poderia fazer & sociologiacléssica, que cistingue a -ciologia do consumo da sociologia poltca, asociologia religiose da sociologia do trabalho, a sociologia da familia dda sociolagia da eligi etc. N3o somos fragmontos hur manos dispersos, mas totaldades em interac, ¢é como tal que precisamos ser estudados. Talvez devéssemos salientar também que ns, 0 tropélogos, nfo somos muito numerosos. O piiblico ea migia nos solcitam bastante, pois as questées abordadas pelos antrapdiagos interessam a todos. No ultimo suple- mento de fim de semana do jornal Le Monde, vocés podem leracntrevista de uma grande pesquisadora, minha amiga Frangoise Hértier—a quem sucedi no College de France, sobre as aizes da distingdo entre os homens eas mulheres. Foi também este o contelide de uma conferéncia que ela dev aqui mesmo, De fato, esse tipo de questo, ou a das. relagdes entre ohomem ¢0 meio ambiente com a qual eu ‘trabalho, é absolutamente crucial, © os antropélogos tém respostas originals para propor, uma vez que a base com- parativa deles é muito vasta. Eles no pensam unicamente 1 respeite das sociedades industrais, mas a respeito de milhares de culturas muito diferentes umas das outras. [Apesar disso, na Franga, somos pouco mais de trezontos antropélogos. Somos bem menos numerosos do que em ‘outras cléncias bem menos conhecidas. Resumindo, 6 preciso mais antropélogos para tentar entender melhor, 0b todas as suas facetas, o mundo em que vivemos. ‘86 para terminar, ¢ para entender melhor aquilo que co senhor disse no comego: @ antropologia é mesmo ‘prépria do mundo ocidental? ‘Sim, eu acho que sim. A aficdcia com 3 qual a Europa Instaurou sua dominagao colonial sobre grande parte do mundo vem dai, dessa curiosidade pelo outro, por com- preender as diferengas, por sistomatizé-las em classifica ‘gbes. Essa foi a tese desenvolvida uns vinte anos pelo filbsofo e linguista Tevetan Todorov, eeu acho que ele tom razio, Contrariamente a outrascivlizagdes, os europeus souberam unir o desejo de submeter a0 desejo de conhe- cer, um refergando 0 outro. Desse ponto de vista, a an= ‘tropolagia 6, sem divida, filha da expansao colonial. Os. achuar nos faziam muitas perguntas sobre nossa soci dade, mas ofaziam porque nés estévamos Is, porque nés thes ofereciamos a ocasido de satstazer sua curiosidade; ‘mas eles no viajam para fazer pesquisa. As grandes civilizagées nde ocidentais, como a China a india, mas também os incas ¢ os astecs no estavam realmente preocupadas com aideia de compreender as maneiras de vier do outro e de fazer pesquisas em lugares distantes para entender 0s povos estrangeiros. Somente os gran- des vsjantes érabes, como ibn Batuta ou Ibn Khaldun, so ‘excego. Dizemos sempre que foram os grogos que inven- taram a antropologia, com Herédoto, mas foi somente @ particdo século Xv1 que uma reflexdo sisterética sobre a alteridade se estabeleceu no mundo ocidental. (0s indios faziam perguntas ao senhor? Sim, 60 que eu estava dizendo ha pouco. Eles ficsvam fo tempo todo nos fazendo perguntas, mas tinham muita diffculdade para entender nossas respostas, e nés mes ‘mos tinhamos muita dificuldade para formular nossas respostas. Eo que chamamos de mal-entendido cultural. ‘As vezes respondiamos coisas que nao tinham nada ver, ‘com a pergunta; na ealidads, eles estavam pensando em ‘coisas completamente diferentes. Basta viajar um pouco para percaber que isso acontece o tempo todo. E ume pergunta simples ¢ talvez um pouco boba. © snhor afirmou que a antropologia é uma disciplina ocidental e, em seguida, disse que ola ndo existia na China, 0 que o senhor pode nos dizer a respeito do ‘Japo em relagdo a essa disciplina? Em linhas gerais, a situagio 6 a mesma, s antropologia ‘aparece por Ié muito tarde, Come vooés sabem, 0 Japao cconheceu um longo periodo de fechamento, que termi- nou na segunda metade do sécule XIX. Na 6poca, as ol tes japonesas escolheram adotar modelos ocidentais, em particular 0 desenvolvimento técnico ecientfco, a indus: trializaglo e certo tipo de organizag&o administrative. Foi ‘uma escolha deliberada de politica geral, mas o Japio per ‘maneceu fechado durante todo o periodo que a precede, or exemplo, pouguissimos estrangeirostinham o direito de colocar 0s pés no Jap, eaqueles que entravam Iésem ppermissao eram executados. Para os japaneses, o pais ofe- recia recursos préprios para se desenvolver culturalmonte ‘eeconomicemente sem contar com a ajuda do mundo ex: terior, mesmo se sabemos que o Japao 6, em diversos as- pectos, muito dependente da China quanto ds influéncias que omoldaram. [Na China, como no Japio, @antropologia chegou bas- tante tarde, talvez um pouguinho mais cede no Jape por raz6es polticas, como na Europa. Tratava-se de compreen- der a diversidade local. Os primeiros estudos de antropo- logia no Japao foram realizados nio sobre os japoneses, ‘mas sobre a8 minorias, isto 6,08 ainos, ao norte, e, 0 Sul, ras ilhas Ryukyu, onde as populagdes séo culturelmente ¢ linguisticamente bastante diversas das do centro do arqui: pélago. A mesma coisa aconteceu na China; os primeiros trabalhos de etnografiaestavam mais para estudos defo: clove cealizados nao sobre a China Han, mas sobre os po- ‘yes do sul do pals que falam outra linguas e que possuem uma organizagSo social muito diferente Ere precisotentar entender, no préprio interior do império, os poves que no tinhom nada @ ver com os outros. Um dos meus colegas chineses fez uma tese, na Franca, sobre uma etna do sul dda China chamada Na e que se caracteriza por ser—n0 jarglo de antropélogo—uma sociedade matrilinear e ma- trilocal, isto 6, uma sociedade em que os estatutos, a6 propriedades, os nomes passam pelas mulheres, e ne {qual as pessoas moram em grupos organizados ao redor cde mulheres. Apesar disso, s30 0s homens que detém 0 poder: nao 08 pais, mas os eos. Ocasamento no exis- te, as mulheres recebem visitas esporédicas dos homens ‘¢ a8 casas aio organizadas a0 redor de grupos de irmas ‘irmios. Os chineses tiveram muta dficuldade para en- tender e para aceitar isso, etentaram entlo ntroduzir um sistema de casamento que estivesse mais em conformida- ‘de.com a norma chinesa, Onde quer que tenham existido impérios, gejam eles dispersos no espaco, como os imps rios colonials europeus, ou agrupando povos muito dver- s08 no interior de enormes unidades geogréficas, como a China ou india, encontramos as mesmas preccupacdes ‘em relagdo 20 controle, ao conhecimento eo desejo de rnormatizagio de populagses que parecem um pouco fore do comum. Mas essa preocupagio nasceu mais tarde no Oriente, e, em boa medida, sob infludncia do Ocidente. sere AcoLegio Fibula do vara lin for “lar came a suger que fabulago€ ‘rv, rama completa do qu so tm pare contr acta et abu ‘Bam mais una vr os latinos par prim sume enoensga0 teat “narogo ientadnecompesta de suceseas que nem suo vera: ‘os, am verossma mar com cross novidadeadmirves dine ‘Spade lataauem se Voabulsrio portaguse tn: hitera pos inne, ore de medi da verdad, maa tomb Mtr de douse rds ggartes, gre desea po fide sti sobre anima, ‘re uml eacanddofupusin feb) na verde, tq tn fab comoaaverte Heri stent, poi patne con Geinteng moral, mena ceslovde ou quem sabe apenas “merth ‘gent do gun meat, up Maro de Antado om “owagso de ‘nor afdbu ou destin, como quo’ Cortes situa ro ogo {i marinas, que ts ezertura, quer der ful ols dot posta, das clang, dos antigos, mas também dos fasafe, cama abe oDascartosdo scurso do mito uma’ Jou Deserta ‘Soret qu prta Weenie seguando un cabareaga ‘onde een wm espantso Mundus a abu toyao no fegaoe ‘ssi nfntaente: poe, pees pensirento. oro tone Sarnel Tan dr. neser oni RaulLoureso Nascid em Pais em 04, Philppe Daszola um dos prncpas an troplogesranceses desu gerapoFormado om flosolple Ecole rnotmele supdroure do SeintCloud fz seu doutorado om aitoplo f2 na Econ praaus das Matos cuses, sob ofentagso se Cause TEvstaus,com une ess bsssda em bo absio decompo etre ‘sachin da Amana equtoriana, omega p79 Easinoy part ‘Sergdyna Ecole des haves Stud {cinomeado pra una eftadr de ntopolgia no Calage de Francs Suns penquisasinvesigar os modos de soilaneSo da natures, © ormagio ds noqsea de -natureza” "eure 3 erontas onto Tops queda arvam€ autor de stras come La nature domestique (90) Les Lances du rdpuscule (ig: eigo bral: As lange do cropdcul, 2008) Parla ature cutare (200s) 0 Le composion ‘fermordes (204) Ceci seat nascevem Sto Palm a7. Graduadaom etraspla Universidade de So Pau(eon). tambam mes em Ingusanames ‘pels UnversieParta Descartes (eng) Tadao Dcuso do prémo bt de iterstara 1g, de Patck Modiano (Ro de Jane: Roce, tos). Que emogie! Que emazsa?, de Georges Di Huberman (SS0 aut Edtora gg, 15) 60 omom que plntve vores, Joo ono (Sto Paulo Eatora sano pret} ‘owas aturezs, ots cules, 80 Paulo Ete 2018 08 ‘hu Dherets des nturer dversts dex cultures, Par, Bayar, £00 [SPhippeDescl cor cortoonsnat CBayrs oro rmcueio Cas {Geatorsnaniio ony Carr naia lio inte So ral, Sere “isn entoncnen Guherme SsroseTo once Rol Lore rie ‘vg Stor a4 Ltda, Sto Paul edie, 201. A reproduce ‘guste ft deste olga eeontguropropagt inv eee ‘Graton intlacnise patina do nar A gina staat seu {0 eordo Orage da ungun Portiguesa dogo, qs nou et eornossienzo29. ip Sra. Cataoase na Frte (Goats ions stare eto ran) StoPiecconsaoysouteeagtgh tp (Colgtora veo sae. cones ‘Srenta Grphio vasane 3.000, editre 34 Etoraga td, Rus Hung 692 ‘hrm Ewropa cer ras6-000 ‘Seopaloee Bal evra) s80-8777 Vrwroatoraga comb Entre 1929 ¢ 1992, por encomenda de uma rio ale- ‘ma, Walter Benjaminescreveu programas destinados 20 pilblico jovem: eram narrativas, conversas, con- feréncias, mais tarde reunidas sob ottulo de Luzes paras criangas. A diretora de teatro Gilberte Teal decidiu reto- ‘mar 0 titulo para designar as “pequenas conferén- cas" que organiza todos os anos, crigidas tanto a08 jovens (a partir de dez anos) como aqueles que os. acompanham. O intuito é sempre o mesma: luminar ‘edespertar. Ulsses, a noite estrolada, o¢ deusas, as palavras, as imagens, a guerra, Galileu.. Os temas rio tém limites. Hé, porém, uma nies regra a ser respeitada: os palestrantes devem realmente falar 208 jovens @fazé-lo para alm dos caminhos 6 traca~ dos, num gesto de amizade que atravesse geracées. ‘Como a experiéncia deu certo, veionaturalmente ada de publicaressas aventuras ovais em pequenos livros. Nasceu assim a colegdo Les Petites Conféren- ces, pubicada na Franca pela eitora Bayard. Abreve conferéncia de Philippe Descola sobre as nogées de cultura natureza foi proferids em Montreuil, perto e Paris, em 3 de fevereiro de 2007, chaga agora a0 leitor brasileiro no bite da colegio Fébula,

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