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(In)justiça de transição:

o mito da democracia racial e a cultura do esquecimento na


formação da identidade nacional brasileira
JONATA WILIAM SOUSA DA SILVA*

Resumo: O presente artigo propõe analisar a existência de uma cultura do


esquecimento e o papel do mito da “democracia racial” na formação da
identidade nacional brasileira, bem como o pacto narcísico da branquitude que
sustenta a incompletude da justiça de transição e ainda obsta a promoção de
políticas de memória, verdade, justiça e reparação das violações sistemáticas
aos Direitos Humanos ocasionadas pelo Estado brasileiro na transição após os
períodos de ruptura institucional entre os séculos XIX e XX.
Palavras-chave: branquitude; memória e esquecimento; verdade e justiça;
políticas de reparação.
Transitional (in)justice: the racial democracy myth and the culture of
forgetting in the formation of brazilian’s national identity
Abstract: This article intends to analyze the existence of a culture of
forgetfulness and the role from the myth of “racial democracy” in the formation
of Brazilian national identity, as well as the narcissistic pact of whiteness which
sustains the incompleteness of the transitional justice and blocks the politics of
the memory, truth, justice and repairing of systematic human rights violations
caused by the Brazilian National State in the transition after periods of
institutional rupture between the 19th and 20th centuries.
Key words: whiteness; memory and forgetting; truth and justice; repairing
policies.

*
JONATA WILIAM SOUSA DA SILVA é mestrando em Direito Público pela
Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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Fonte: iChip e Getty Images
Introdução “democracia racial” e convivência
A formação do Estado brasileiro foi harmônica entre os diferentes povos,
indubitavelmente marcada por diuturnas que foi introjetada no corpo social e
conturbações e abalos nos regimes resultou em uma cultura de “pacificação”
vigentes. A suplantação entre os e perdão através de esquecimento
regimes políticos concebidos como deliberado das cicatrizes históricas do
formadores do Estado sempre se deu período pré-democrático. Assim,
através de disputas e contestações dos quando do momento histórico de
agentes com fatores reais de poder. transição entre regimes, o Brasil teve
por escolha política prioritária o
Tratando especificamente da transição exercício da “cultura do esquecimento”
do Brasil-colônia para a primeira e a anistia.
República, no ano de 1889, (portanto
apenas um ano após a abolição formal Trazemos aqui a proposta de analisar a
existência desta cultura do
do regime escravocrata), uma grande
esquecimento, o papel do mito da
preocupação afligiu às elites intelectuais
que pensavam o projeto de país, e as “democracia racial” na formação da
identidade nacional brasileira e a
discussões se centraram na busca pela
construção da nacionalidade e o que incompletude da justiça de transição
fazer com a diversidade racial que que obstou e ainda obsta a promoção de
compunha e compõe o país. políticas de memória, verdade, justiça e
reparação das violações sistemáticas aos
Como fruto destas preocupações, com o Direitos Humanos ocasionadas pelo
passar do tempo, aliado a um conjunto Estado brasileiro durante os períodos de
de práticas que visavam o ruptura institucional.
branqueamento populacional via
políticas públicas e construções de
narrativas teóricas articuladas por uma
elite intelectual, foi concebida a ideia de

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Após a análise do mito da democracia é central para a construção de um
racial, da justiça de transição e do discurso em torno da unidade do
processo de construção da identidade Estado a partir de um imaginário
nacional brasileira entre os séculos XIX que remonte a uma origem ou a
uma identidade comum
e XX, abordaremos a correlação entre a
(ALMEIDA, 2019, p. 90).
cultura do esquecimento e o pacto
narcísico da branquitude, trazendo Como ocorre na maioria dos países
elementos concretos para fundamentar a colonizados, a elite brasileira do fim do
hipótese de que há um pacto implícito século XIX e início do século XX teve
da branquitude que visa a manutenção por base intelectual a ciência europeia
das assimetrias e hierarquias raciais e ocidental, compreendida como
que segue promovendo o apagamento e desenvolvida, buscando orientação para
silenciamento dos saberes e práticas a construção da sua nacionalidade, tida
negras e indígenas e o seu fundamental por problemática em razão da
papel na construção do país, além de diversidade racial que marca(va) a
agir ativamente no apagamento e sociedade. (MUNANGA, 2020, p. 54).
subversão da memória coletiva de modo Isso fez com que a intelectualidade
a manter os seus privilégios nacional da época se baseasse na busca
violentamente amealhados. pela emulação dos ideais ocidentais de
progresso, mas também no
1. Os projetos de construção de ressentimento em relação ao
identidade nacional no Brasil e a desenvolvimento europeu, sobretudo
ideia de democracia racial relacionado à cor de pele branca
No mundo moderno, a noção e daqueles povos.
instrumentalização da “identidade Após a abolição formal da escravatura
nacional”, ou simplesmente em 1888, a construção de uma
“nacionalidade” emerge do imperativo identidade nacional se tornou uma
de reorganização da vida social, política questão crucial. Fazendo essa análise,
e econômica. As culturas nacionais, ao Almeida (2019, p. 106) discorre acerca
produzir sentidos sobre a “nação”, das questões norteadoras que balizaram
sentidos com os quais podemos nos a criação da ideia de identidade nacional
identificar, constroem identidades. brasileira:
Esses sentidos estão contidos nas
histórias que são contadas sobre a nação, Três questões mobilizaram
memórias que conectam seu presente decisivamente a intelectualidade
com o seu passado e imagens que dela brasileira desde o século XIX, e
resumem o cerne do pensamento
são construídas (HALL, 2019, p. 31).
social sobre a formação da nação e
Nesse processo de formação dos da economia brasileira:
Estados é que reside a importância 1. O que seria o Brasil após a
da nacionalidade enquanto independência de Portugal;
narrativa acerca de laços culturais,
orgânicos e característicos de um 2. O que seria o Brasil com o fim
determinado povo, que se assenta do império;
sobre um determinado território e é
3. O que seria o Brasil com o fim
governado por um poder
da escravidão.
centralizado. Não por acaso a
referência aos Estados modernos é Podemos afirmar que o pensamento
acompanhada do adjetivo social brasileiro, em seus mais
“nacional”. A ideologia nacionalista diversos matizes ideológicos, se

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ocupou da questão racial, direta ou pluralidade racial nascida do processo
indiretamente. De fato, é uma colonial representava, na cabeça dessa
questão crucial pensar em como elite, uma ameaça e um grande
uma nação pode se constituir em obstáculo no caminho da construção de
um país de profundas
uma nação que se pensava branca. O
desigualdades, atravessado pelo
estigma de 388 anos de escravidão.
que estava em jogo, nesse debate
intelectual nacional, era saber como
Fruto dessas inquietações e articulações transformar essa pluralidade de raças,
que movem essa busca pela construção de valores civilizatórios tão diferentes,
de uma identidade nacional é o numa única coletividade de cidadãos,
concurso realizado em 1844 pelo numa só nação. (MUNANGA, 2020).
Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro com o tema: “Como escrever Em 1933, nasce a obra “Casa Grande &
a história do Brasil”. A tese vencedora Senzala”, do autor Gilberto Freyre,
foi a do alemão Karl Von Martius, no valorizando a miscigenação como
sentido de que: "Devia ser ponto capital estruturante da sociedade brasileira, e
para o historiador reflexivo mostrar exaltando uma convivência harmônica
como no desenvolvimento sucessivo do dos diversos povos enquanto
Brasil se acham estabelecidas as coletividade.
condições para o aperfeiçoamento das
O mito da democracia racial não
três raças humanas que nesse país são
nasceu em 1933, com a publicação
colocadas uma ao lado da outra, de uma de Casa-grande & Senzala, mas
maneira desconhecida da história antiga, ganhou através dessa obra,
e que devem servir-se mutuamente de sistematização e status científico.
meio e fim”. (in SCHWARCZ, 1996, p. Tal mito tem o seu nascimento
87). quando estabelece uma ordem, pelo
menos do ponto vista do direito,
Se vê que a ideia de pluralismo, livre e minimamente igualitária.
convivência harmônica entre diferentes Assim, tanto a Abolição quanto a
povos e o caldo cultural diverso foram proclamação da República foram
pontos nodais nesta construção, condições indispensáveis para o
resultaram na ideia de uma existente estabelecimento do referido mito
“democracia racial” que contemplava a (...)” (BERNARDINO, 2002, p.
todos os povos que compunham a 251).
sociedade brasileira. Entretanto, uma
O mito da “democracia racial”,
análise mais profunda nos mostra que
sistematizado por Freyre a despeito de
tal ideia não ultrapassava o plano
não constar explicitamente na sua obra,
discursivo, eis que o que havia e ainda
foi para muitos a nova justificativa para
há hoje na composição da sociedade
o sucesso pátrio, pois os avanços da
brasileira é uma hierarquização
ciência no período demonstraram a
sociocultural pautada em assimetrias
irrelevância de “caracteres raciais” para
raciais.
o insucesso das nações, fazendo-se
Toda a preocupação da elite, com necessário um novo arranjo teórico
substrato nas teorias racistas vigentes à fornecedor de uma identidade nacional,
época, diz respeito à influência negativa que foi representado em “Casa-grande &
que poderia resultar da herança inferior Senzala”.
do negro nesse processo de formação da
identidade étnica brasileira. A

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Emília Viotti da Costa (1999, apud constituir tão somente em ferramenta
SILVA, 2015, p. 15) argumenta, por discursiva para legitimar as assimetrias
exemplo, que o quadro das relações e desigualdades existentes no país, não
raciais retratado em Freyre expressa um se arvorava à consolidação de uma
cenário idílico que se difundiu não só sociedade verdadeiramente plural, mas
entre as elites brancas, mas também sim a dominação e construção de um
entre muitos negros brasileiros. Difusão modelo hegemônico racial e cultural
apoiada em um sistema de clientela e branco ao qual deveriam ser assimiladas
patronagem em que: “A mobilidade todas as outras raças e as suas
social era não obtida por meio da respectivas produções culturais, em um
competição direta no mercado, mas por processo de etnocídio de todas as
meio de um sistema de patronagem no diferenças (MUNANGA, 2020, p. 91).
qual a palavra decisiva pertencia à elite
branca”. Fica cristalino, portanto, que o
aprofundamento do estudo das raízes
Por tais razões, Abdias do Nascimento históricas e antropológicas brasileiras
aponta Freyre como o fundador do revela que o rompimento com a
chamado “lusotropicalismo”, uma estrutura formal escravocrata não se
construção ideológica que parte da traduziu em emancipação, mas em
suposição de que a história registrava sofisticação do aprisionamento (real e
uma definitiva incapacidade dos seres metafórico), lapidado na cristalização
humanos em erigir civilizações de um padrão identitário ariano,
importantes nos trópicos (os “selvagens” classista e sexista (ASSUMPÇÃO,
da África, os índios do Brasil seriam 2017).
documentos viventes deste fato); afirma
ainda que os portugueses foram exitosos E a legitimação dessas teorias que
não só em criar uma civilização promoveram o silenciamento dos
avançada, mas de fato um paraíso racial horrores produzidos pelo Estado
nas terras por eles colonizadas, tanto na brasileiro ao longo dos anos encontra
África como na América (2016, p. 49). lastro nestas construções idílicas que
E prosseguindo, alerta Adbias do reforçam a ideia de nacionalidade
Nascimento (2016, p.101): através da conciliação entre as
pluralidades (jamais existente). Esta
Devemos compreender postura ideológica, portanto, obsta uma
“democracia racial” como
discussão séria sobre a necessidade de
significando a metáfora perfeita
para designar o racismo estilo uma verdadeira reconciliação nacional,
brasileiro: não tão óbvio como o de preservação da memória coletiva e
racismo dos Estados Unidos e nem de políticas de justiça de transição, para
legalizado qual o apartheid da que tais opressões outrora instauradas e
África do Sul, mas até hoje vigentes sejam materialmente
institucionalizado de forma eficaz abolidas e não voltem a se repetir.
nos níveis oficiais de governo,
assim como difuso e
profundamente penetrante no tecido
social, psicológico, econômico,
político e cultural da sociedade do
país.
Perceptível, portanto, que a ideia de
democracia racial, para além de se

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2. A (in)justiça de transição e a busca a fim de evitar o reaparecimento do
pela conciliação nacional na conflito e das violações.
formação do estado brasileiro
Considerando que, com frequência, as
Para iniciar esta discussão, é estratégias da justiça transicional são
imprescindível compreendermos o arquitetadas em contextos nos quais a
conceito de justiça de transição nos paz é frágil ou os perpetradores
contextos de reestruturação de países conservam um poder real, deve-se
que passam por períodos de ruptura equilibrar cuidadosamente as exigências
institucional marcados por violações de da justiça e a realidade do que pode ser
Direitos Humanos: efetuado a curto, médio e longo prazo.
A Justiça Transicional é um ramo (VAN ZYL, in BRASIL, 2009, p. 32).
altamente complexo de estudo, que
reúne profissionais das mais
Entretanto há uma dimensão política da
variadas áreas, passando pelo memória, que leva a que cada governo e
Direito, Ciência Política, país, dependendo das circunstâncias,
Sociologia e História, entre outras, tem necessidade de um passado para
com vistas a verificar quais estabelecer relações de recíproca
processos de Justiça foram levados convivência, assim como o tem do
a cabo pelo conjunto dos poderes esquecimento. (TEDESCO, 2011).
dos Estados nacionais, pela
sociedade civil e por organismos Os movimentos de lembrar e esquecer,
internacionais para que, após o ainda que tenham origem na intimidade
Estado de Exceção, a normalidade individual do pensar, são movimentos
democrática pudesse se consolidar. que incidem sobre a coletividade e
Mais importante, porém, é a conformam ações de fortalecimento da
dimensão prospectiva desses identidade e de organização do espaço
estudos, cuja aplicação em políticas
coletivo, sendo, portanto, elemento
públicas de educação e justiça serve
para trabalhar socialmente os
fundamental para a manutenção da vida
valores democráticos, com vistas à em sociedade. (SOUZA, 2017, p. 86). É
incorporação pedagógica da a partir desta premissa que os períodos
experiência de rompimento da de transição para a democracia após
ordem constitucional legítima de rupturas institucionais cuja transição é
forma positiva na cultura nacional, negociada entre diversos setores da
transformando o sofrimento do sociedade, são marcados por uma
período autoritário em um cultura do esquecimento deliberado dos
aprendizado para a não-repetição. fatos visando uma reconciliação
(BRASIL, 2009, p. 12) nacional, o que culmina, via de regra,
Assim, extrai-se que o objetivo da em anistia.
justiça transicional implica em
Por isso que é possível afirmar que por
processar os perpetradores, revelar a
mais paradoxal que seja, o
verdade sobre crimes passados, fornecer
esquecimento deliberado também pode
reparações às vítimas, reformar as
ser utilizado como um instrumento de
instituições perpetradoras de abuso e
ação pública memorial, pois como já
promover a reconciliação.
trazido, a memória é seletiva em sua
Para a concretização de tais objetivos, natureza, tanto individual quanto
exige-se um conjunto inclusivo de coletiva (omissão involuntária, traumas
estratégias formuladas para enfrentar o coletivos, conchavos de reconciliação
passado assim como para olhar o futuro nacional, deliberações e ocultações

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ideológicas do status quo político, originários e povos negros que
esquecimento ligado a lugares de construíram o país.
lembranças traumáticas, etc.).
3. A cultura do esquecimento e o
Estes fatores se constatam de forma pacto narcísico da branquitude no
concreta na transição entre Brasil- Brasil
Colônia e Brasil-República, período É a partir desse ponto de partida que
onde ocorreu também a abolição do
introduzimos o conceito de anistia, vez
regime escravocrata (1888). A partir da que este representa a institucionalização
mudança de compreensão ético-social e
do esquecimento, como veremos
do reconhecimento da escravidão como
adiante. Etimologicamente, anistia, do
um processo de sistemática violação aos
grego amnestia, significa esquecimento.
direitos humanos pelo Estado, tentativas
Não está associada a perdão. Pressupõe
de apagar da memória coletiva a
isso sim, “um apagamento de fatos do
ocorrência destes fatos e impedir as
passado. (…) no âmbito do Direito, a
demandas por responsabilização
anistia envolve as seguintes
jurídica, política, econômica e social
perspectivas: penal, tributária e política”
calcadas nestes fatos.
(BRASIL, 2009, p. 187-188).
Trazemos então à lembrança a ação
Após períodos de ruptura institucional e
promovida em 1890 pelo então Ministro durante as negociações para uma
da Fazenda Ruy Barbosa ao ordenar e transição, não raro a anistia política e
promover uma queima geral de arquivos penal é instrumentalizada como moeda
referentes ao período da escravidão, com vistas ao perdão por ilícitos
afirmando que a República recém- praticados ou às políticas
proclamada era: "obrigada a destruir implementadas, sendo entendida a
esses vestígios por honra da pátria e em
anistia, portanto, como imprescindível a
homenagem aos deveres de fraternidade uma reconciliação nacional,
e solidariedade para com a grande
estimulando o silêncio e esquecimento
massa de cidadãos que a abolição do
para a superação das tensões sociais. Tal
elemento servil entraram na comunhão
concepção, no entanto, é duramente
brasileira" (ESTADÃO, 2015).
criticada, não sem razão, haja vista a
Tal exemplo é bastante gráfico ao permanência das feridas históricas e a
retratar exatamente como as políticas facilidade de reabertura dessas feridas
que privilegiaram o esquecimento não cicatrizadas. Neste sentido,
deliberado como imperativo à REMIGIO (in BRASIL, 2009, p.194):
reconciliação nacional e os discursos A pretensa pacificação social
que legitimaram o mito de “democracia retratada nas leis de autoanistia, no
racial” e convivência harmônica entre sentido de impor um esquecimento
os povos foram cruciais para a formação do passado, na verdade é uma
do estado Brasileiro, nos moldes em que forma de eliminação da consciência
hoje conhecemos, exaltando a política individual, “construindo
contribuição eurocêntrica na história em seu lugar o mito da sociedade
nacional, ao passo que promovia o
etnocídio e epistemicídio 1 dos povos aos negros da condição de sujeitos de
conhecimento, por meio da desvalorização,
1 De acordo com Sueli Carneiro (2005) é o negação ou ocultamento das contribuições do
fenômeno que ocorre pelo rebaixamento da Continente Africano e da diáspora africana ao
auto-estima que o racismo e a discriminação patrimônio cultural da humanidade; pela
provocam no cotidiano escolar; pela negação imposição do embranquecimento cultural.

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harmoniosa e consensual de caráter sempre em duas direções: fortalecimento
homogêneo e universal”. do “nós” e rejeição ao “eles”.
Exatamente porque o sentido da
política é a liberdade e a sua base é Estudiosos da branquitude 2
a heterogeneidade humana, como chamam atenção para a
explica Hannah Arendt, a transição invisibilidade do negro como um
elemento importante da identidade
democrática não pode ser pautada
num discurso consensual, segundo do branco: ele não vê o negro. Uma
o qual a anistia significa perdão e reflexão sobre relações raciais pode
esquecimento, encerrando mais um explicitar um desconforto do
branco diante da paradoxal
capítulo da história.
constatação que ele não vê, não
lembra, nunca pensou nos negros. A
Depreende-se, portanto, que a cultura
psicologia ensina que cada um de
do esquecimento e a instrumentalização nós encontra diferentes maneiras de
da anistia são caminhos possíveis e não enxergar aquilo que não quer
frequentemente adotados, entretanto não ver. (BENTO, 2002, p. 91)
adequados, para a superação de
momentos de ruptura institucional. E o Após a análise dos elementos aqui
Brasil tem optado até aqui, como já trazidos, não constitui nenhum exagero
demonstrado no tópico anterior, pela a conclusão de que o esquecimento
conciliação através do perdão e deliberado e as políticas conciliatórias a
esquecimento deliberado para a partir da consolidação do discurso de
superação dos seus traumas históricos, o “democracia racial” e de um pacto
que muito pouco serve para uma efetiva implícito que se destina a manter a
transição e não repetição de erros hierarquização e as assimetrias raciais,
pretéritos. concretizam uma “cultura do
esquecimento” e são entraves concretos
Através dos estudos da psicologia social, às políticas de justiça, reparação e
Maria Aparecida “Cida” Bento (2002) transição das cicatrizes históricas no
nos aporta o conhecimento de que nada Brasil, notadamente quanto ao período
pode ser abolido sem que apareça, cedo escravocrata que por tempo até demais
ou tarde, como o sinal do que não foi, vigorou na sociedade brasileira.
ou não pode ter sido reconhecido ou
simbolizado pelas gerações precedentes.
Com o aporte teórico de Rene Kaes, a
autora destaca a noção de uma
transmissão intergeracional dos
conteúdos inconscientes, a ideia de um
recalcamento coletivo de um ato
transgressivo cometido em comum, a
hipótese de uma psique de massa, ou
ainda a alma de grupo. 2 Se caracteriza a branquitude como um lugar
de privilegio racial, econômico e político, no
Conclui a autora, ao tecer considerações qual a racialidade, não nomeada como tal,
sobre o narcisismo que há um pacto carregada de valores, de experiências, de
tácito da branquitude brasileira para não identificações afetivas, acaba por definir a
falar sobre racismo e sempre encarar as sociedade. Branquitude como preservação de
hierarquias raciais, como pacto entre iguais,
desigualdades sociais como um encontra um território particularmente fecundo
problema do negro, sendo que esses nas Organizações, as quais são essencialmente
laços identitários narcísicos funcionam reprodutoras e conservadoras (BENTO, 2002).

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4. Conclusão subalternizados impede a concretização
de uma verdadeira justiça de transição e
O caminho até aqui trilhado ratifica que mantém a nação como refém de
o projeto de identidade nacional cicatrizes históricas abertas que
brasileira foi uma das principais impedem a efetivação do compromisso
preocupações da elite entre os séculos democrático e respeito às pluralidades
XIX e XX e culminou na articulação de assumidos formalmente no Brasil com a
uma falsa existência de convivência promulgação da Constituição de 1988.
harmônica e pacífica entre todos os
povos que compunham e compõem a Se faz imperativo, portanto, o
sociedade brasileira. reconhecimento dos males advindos e
sustentados pelo mito da democracia
Em realidade, constata-se a existência racial, sobretudo com a manutenção de
de inúmeras cicatrizes históricas que um projeto deturpado de identidade
moldam o Brasil enquanto Estado e nacional brasileira sem substrato com a
uma cultura política voltada ao realidade material. Ato contínuo a esta
esquecimento deliberado destes concepção, uma série de medidas deve
horrores para a manutenção de ser adotada, a começar pela redefinição
assimetrias sociais estruturadas a partir das identidades componentes da nação,
da dominação hegemônica racial e seguindo com a efetivação das medidas
culturalmente brancas, em detrimento de justiça e reparação que devem
das existências indígenas e negras, vigorar no país e a superação dos mitos
impondo um silenciamento e uma que se escamoteiam nas brumas deste
suposta amálgama, que nada mais foi pacto narcísico para que enfim haja uma
que uma assimilação outorgada. ruptura com o perpétuo projeto de
opressão racial e continuidade da
A partir da consolidação do mito da mentalidade de uma hegemonia da
democracia racial, o imaginário coletivo branquitude colonizada.
fora capturado em prol dessa
assimilação lastreada pelo etnocídio e Efetivando o rompimento com a
pelo epistemicídio, e se tornou um opressão decorrente deste colonialismo
grande entrave aos debates necessários que ainda se faz tão presente e pulsante,
a uma (re)construção séria do Estado, haverá a oportunidade de abertura de
com estrita observância da integridade espaço para uma verdadeira
da memória coletiva, da identidade reconciliação nacional, não através do
nacional, da pluralidade que compõe a esquecimento, mas a partir das políticas
nação brasileira e das políticas de de preservação da memória, dos
verdade, justiça e reparação pelas patrimônios culturais nacionais e
violações sistemáticas de Direitos valorização da pluralidade dos saberes e
Humanos perpetradas através dos fazeres dos diferentes povos
séculos após a proclamação da estruturantes deste país. Somente
República Federativa do Brasil. através desta ruptura poderemos
avançar a um verdadeiro
Um acordo implícito de um grupo desenvolvimento democrático.
privilegiado nos aspectos racial,
econômico, político que visa preservar
as hierarquias raciais através de um
pacto entre iguais e através do
esquecimento deliberado, autoanistia e
silenciamento dos grupos

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