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Na perspectiva transcultural, adotada [org.

] O livro Translinguismo e poéticas


nos estudos aqui reunidos, abandona- do contemporâneo representa uma

Antonio Andrade
Ana Maria Lisboa de Mello
se a diferenciação das culturas vistas lufada de oxigênio no campo dos
como entidades estáveis, evacuando estudos literários e comparados no
as relações binárias redutoras e Brasil. Muito salutares e oportunas
favorecendo o relacional de que nos as perspectivas transculturais
falava Édouard Glissant. e translíngues, assim como a
O coletivo, que reúne, principalmente, introdução de conceitos como os
pesquisadores das diferentes de globalização, de hospitalidade e
Ana Maria Lisboa de Mello translinguismo literário.

translinguismo e poéticas do contemporâneo


literaturas americanas, leva em
conta os trânsitos, as migrações, Antonio Andrade Durante longo tempo, no âmbito
as passagens transculturais e o dos estudos literários, vigoraram as
Elena Palmero González
translinguismo decorrentes dessas abordagens disciplinares (estudo de
diferentes formas de mobilidades Marcelo Diniz uma disciplina sem a possibilidade
espaciais e culturais que irão dar Maria Bernadette Porto de valer-se dos saberes de outras),
origem a literaturas singularmente multidisciplinares (quando se
Meritxell Hernando Marsal
híbridas. Os autores dos 9 capítulos convocavam várias disciplinas
que compõem essa obra souberam Ottmar Ette para dar conta de um objeto, sem
captar o espírito migrante, que, Pablo Gasparini a preocupação de relacioná-las)
segundo Pierre Ouellet (2005), ou interdisciplinares (quando
Patrick Imbert
caracteriza não apenas os várias disciplinas focalizam um
deslocamentos geoculturais, no [org.] determinado objeto, dialogando
espaço das Américas, como os do Ana Maria Lisboa de Mello entre si, visando chegar a um
“Sentido e do Ser, na experiência Coleção Novos Estudos Neolatinos – n. 1 consenso). A presente obra
íntima da alteridade”. (Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas – UFRJ) Antonio Andrade escancara as portas para o
transdisciplinar, inaugurando o
Zilá Bernd
Unilasalle/CNPq translinguismo e poéticas ir além, o atravessamento das
disciplinas, deixando de visar o

do contemporâneo consenso, para mirar no dissenso,


que oportuniza a criação de objetos
culturais e linguísticos novos. No
âmbito do trans- analisam-se autores
e obras como processos abertos à
diversidade e à relação.
translinguismo e poéticas
do contemporâneo
[org.]

Ana Maria Lisboa de Mello


Antonio Andrade

translinguismo e poéticas
do contemporâneo

Coleção Novos Estudos Neolatinos – n. 1


(Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas – UFRJ)
© 2019 Ana Maria Lisboa de Mello e Antonio Andrade

Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico


da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.

Coordenação Editorial
Isadora Travassos

Produção Editorial
Alice Garambone
João Saboya
Julia Roveri
Rodrigo Fontoura
Sofia Vaz Coleção Novos Estudos Neolatinos
Revisão (Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas – UFRJ)
Bruno Lima

conselho editorial:
cip-brasil. catalogação na publicação
sindicato nacional dos editores de livros, rj Antonio Andrade (UFRJ/CNPq)
Cristina Iglesia (Universidad de Buenos Aires)
t696
Elena Palmero González (UFRJ/CNPq)
Translinguismo e poéticas do contemporâneo / organização Ana Maria Lisboa de Mello,
Antonio Andrade. - 1. ed. - Rio de Janeiro : 7Letras, 2019. Éléonore Reverzy (Université de Paris III – Sorbonne Nouvelle)
isbn 978-85-421-0848-4 Marcelo Jacques de Moraes (UFRJ/CNPq)
1. Linguística. 2. Linguagem e línguas. 3. Literatura. I. Andrade, Antonio. Patrick Imbert (Université d’Ottwa)

19-61305 cdd: 410 Romulo Monte Alto (UFMG)


cdu: 81
Zilá Bernd (Unilasalle/CNPq)
Leandra Felix da Cruz - Bibliotecária - crb-7/6135

2019
Viveiros de Castro Editora Ltda.
Rua Visconde de Pirajá 580 sl. 320 – Ipanema
Rio de Janeiro | RJ | cep 22410-002
Tel. (21) 2540-0076
editora@7letras.com.br | www.7letras.com.br
sumário

Apresentação 11
As literaturas do mundo: condições transculturais
e desafios polilógicos de um conceito prospectivo 21
Ottmar Ette

Textos plurilíngues e transcultura:


o Canadá no contexto da globalização 41
Patrick Imbert

Translinguismo e transculturalismo em Sergio Kokis 57


Ana Maria Lisboa de Mello

Hospitalidade e translinguismo literário no imaginário


de autores francófonos da contemporaneidade 77
Maria Bernadette Porto

Escritas translíngues e comunidade literária hispano-americana 96


Elena Palmero González

Portunhol: prática translíngue no discurso


literário contemporâneo  115
Antonio Andrade

A ficção científica como contra-história:


as vozes aimarás do futuro no romance
De cuando en cuando Saturnina, de Alison Spedding 135
Meritxell Hernando Marsal

A língua como shibboleth, o ensaio como sotaque:


uma leitura de Vivir entre lenguas, de Sylvia Molloy 155
Pablo Gasparini

Mais um rondó:
notas sobre a tradução, o lúdico e a metalinguagem 176
Marcelo Diniz

Sobre os autores 191


tua alma se lava nesse livro que se alva como a estrela mais d’alva
e enquanto somes ele te consome enquanto o fechas a chave ele se
multiabre enquanto o finas ele translumina essa linguamorta essa
moura torta esse umbilifio que te prega à porta pois o livro é teu

Galáxias, haroldo de campos


Apresentação

As línguas estão repletas de interfaces, espaços transicionais e zonas de


indiscernibilidade que tornam o intento de distinguir com alguma niti-
dez as fronteiras idiomáticas uma tarefa hercúlea. Isto ratifica perspecti-
vas teóricas contemporâneas que entendem a linguagem como construto
social atravessado por contínuos contatos linguístico-culturais. Tal refle-
xão implica pensar o translinguismo para além da visão autonômica de
língua enquanto sistema, compreendendo as múltiplas imbricações entre
recursos verbais e estratégias enunciativas de naturezas diversas como
uma dimensão constitutiva do discurso.
Não obstante, seja possível tomar o translinguismo como eixo de
reflexão transversal, é importante ressaltar que o processo de consolidação
da ideia de nação na modernidade resultou no silenciamento a respeito
das marcas heteróclitas desse continuum translíngue/transcultural no bojo
da formação histórica dos cânones literários. Discursos homogeneizado-
res que engendraram a identidade nacional se formaram com base em
variados processos de discriminação e exclusão da diferença. Contudo,
um paradoxo importante de ser visibilizado é o fato de que, simultanea-
mente a esse acirramento do processo de homogeneização da nacionali-
dade, muitas vezes, pautado na correlação biunívoca entre um território
e uma língua oficial (considerada, metonimicamente, “língua nacional”),
ocorreram vários fluxos migratórios que geraram o surgimento, em inú-
meros países, de comunidades bilíngues/multilíngues, cuja expressão
verbal configura intensa manifestação de translinguismo, contínua e vio-
lentamente recalcada pelas políticas linguísticas e culturais vinculadas ao
poder hegemônico do Estado.

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Nesse sentido, podemos dizer que o século XX foi um período de ricanos, em grande parte devido às ditaduras e regimes totalitários que se
fortes deslocamentos de populações para se protegerem de guerras, per- instalaram em seus países de origem, principalmente entre os anos 1950
seguições étnicas, religiosas, políticas, regimes totalitários e precárias e 1980. Tais movimentos mobilizaram intensos processos de transcultu-
condições de sobrevivência em suas terras natais. Tais deslocamentos ração e translinguismo que vêm repercutindo nessas expressões literárias
continuam a acontecer no século XXI, como demonstram recentemente “sem residência fixa”, como já assinalou Ottmar Ette (2005). Além disso, é
o grande número de africanos e refugiados sírios que tentam entrar na fundamental investigar, no contexto da América Latina, o impacto cultu-
Europa, a marcha de hondurenhos em direção aos Estados Unidos, bem ral das práticas translíngues nas regiões de fronteira, colônias de imigran-
como a onda de venezuelanos que têm migrado para o Brasil, sobretudo, tes, áreas de contato com línguas indígenas ou regiões em que se forma-
pela fronteira do estado de Roraima. ram línguas crioulas.
Esse crescimento expressivo desde o século passado de exilados, expa- Nesse sentido, os capítulos reunidos aqui focalizam analiticamente
triados ou refugiados – para adotarmos a distinção feita por Said (2003) – a presença, o tratamento estético e os desdobramentos socioculturais
ampliou a literatura produzida por autores que passaram a adotar a língua do translinguismo em uma abrangência global, abordando, em vários
do país de acolhida em suas escritas em lugar da língua materna. Joseph momentos, os fluxos desterritorializantes que conectam Norte e Sul,
Conrad, Vladimir Nabokov, Eugène Ionesco e Herta Müller são alguns Oriente e Ocidente, com foco, sobretudo, no contexto das literaturas pro-
dos escritores consagrados, de origem europeia, que escreveram em outra duzidas nas Américas. Sendo assim, entremeiam-se estudos sobre dife-
língua diferente da sua primeira e publicaram em outro país diferente do rentes possibilidades de apropriação literária das práticas translíngues,
seu de nascimento. os quais enfatizam: a obra de escritores imigrantes que estabelecem dife-
O Canadá foi um dos primeiros países onde a área de literatura e rentes graus de relação entre primeira e segunda língua; a produção de
cultura se voltou, há mais de três décadas, para a investigação a respeito autores que escrevem não a partir da experiência de migração, mas da
da escrita de autores imigrantes, refletindo sobre a trans-, multi-, inter- experiência de diglossia dentro de seus próprios países; bem como textos
culturalidade – conforme demostram Fontille e Imbert (2012) –, assim de poetas, prosadores e ensaístas que mobilizam reflexões em torno do
como sobre o hibridismo linguístico implicado nesses processos de des- translinguismo a partir das práticas de leitura e tradução.
locamento e reconstrução identitária. Tais estudos antecedem e funda- No primeiro capítulo do livro, intitulado “As literaturas do mundo.
mentam debates específicos sobre o translinguismo literário, conceito Condições transculturais e desafios polilógicos de um conceito prospec-
que vem ganhando maior espaço de discussão teórico-crítica nos últimos tivo”, Ottmar Ette propõe a adoção do conceito de “literaturas do mundo”
anos. Em “Translinguisme littéraire: frontières, représentations et défini- no debate a respeito da produção literária na etapa atual da globalização,
tions” (2017), Franca Bruera, por exemplo, assinala que um dos primeiros atravessada pelo hibridismo e pela convivência de múltiplas lógicas. Tal
trabalhos dedicados a este fenômeno é o livro Singularités francophones perspectiva, segundo ele, escaparia tanto à chave de interpretação homo-
(2000), de Robert Jouanny, que analisa obras de escritores que, embora geneizadora das literaturas nacionais, quanto ao paradigma eurocêntrico
não sejam originalmente francófonos, escolheram escrever em francês em fundado pela noção goethiana de literatura universal. A partir também
um dado momento, ao preço de uma ruptura com a língua materna. Já das ideias de transarquipélago e fractalidade, que indiciam a complexi-
Anne-Rosine Delbart, em Les exilés du langage (2005), traz à baila também dade envolvida na reflexão em torno das poéticas translíngues, o ensaio
a escrita de autores que não pertenciam originalmente à francofonia, mas aponta instigantes possibilidades de relação entre conhecimentos linguís-
se integraram, em diversos graus, à língua e à cultura de adoção. ticos, literários e culturais dentro da linha de investigação que vem deno-
Também é importante destacar os movimentos migratórios, princi- minando como “estudos de transárea”, assinalando um viés de reflexão
palmente para Europa, Estados Unidos e Canadá, de autores latino-ame- sobre a expansividade e reverberação do discurso literário em diferentes

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fonias (anglo-, franco-, hispano-, lusofonia etc.), o que demonstra a pro- narrativa configure abertura para a alteridade e profunda interação com
dutividade dessa articulação de caráter transdisciplinar no pensamento a língua/cultura do outro, a falta e a incompletude atravessam a constitui-
teórico-crítico sobre o contemporâneo. Desse modo, Ette revaloriza a ção subjetiva dos personagens. A ensaísta ainda retoma a conceituação de
abordagem filológica por meio de uma ótica não tradicional, mas de uma “espaço biográfico”, proposta por Arfuch (2010), e indicia a forte presença
“filologia futura”, tratando de apreender da leitura do literário gestos de de um olhar empático, na obra desse autor, que funciona aí como forma de
potência prospectiva/performativa, capazes de reelaborar a relação entre reflexão crítica sobre experiências traumáticas, vividas simultaneamente
literatura e vida. pelo próprio Kokis e por diversos outros sujeitos que se encontram em
O segundo capítulo, “Textos plurilíngues e transcultura: o Canadá no contextos de exploração e repressão.
contexto da globalização”, de Patrick Imbert, parte da figura do camaleão, Desdobrando ainda questões relativas a esse campo literário, o quarto
com vistas a desconstruir a onto-topologia que estabelece uma relação de capítulo, “Hospitalidade e translinguismo literário no imaginário de auto-
dependência entre as noções de subjetividade e territorialidade. O ensaísta res francófonos da contemporaneidade”, de Maria Bernadette Porto, foca-
associa a natureza camaleônica – adaptável ao múltiplo e ao temporário liza a produção de Ying Chen, Antonio D’Alfonso, Marco Micone, Francine
– ao discurso sociocultural inscrito hoje no processo de legitimação do Noël, Akira Mizubayashi, Leïla Sebbar e Ernest Pépin, relacionando assim
deslocamento, do translinguismo e do transcultural. Tal discurso é com- escritores de diversas origens, residentes na França, no Canadá e nas
patível ao dos imigrantes que desejam se integrar rapidamente à sociedade Antilhas. Esses autores, vinculados ao contexto das migrações pós-colo-
canadense, em detrimento da valorização de uma dita “autenticidade” niais, caracterizam a prática linguageira como território tensivo de (des)
étnica controlada pelo nacionalismo. Dessa maneira, muitos escritores do encontros e (in)compreensões. Muitas de suas obras giram em torno do
Canadá na atualidade, em vez de trazerem para seus textos o tom nostál- romance familiar e configuram-se como tentativas de compensar a ausên-
gico tradicionalmente vinculado à condição de exilado, parecem se rego- cia provocada pela ruptura genealógica. Nesse sentido, a pesquisadora
zijar ao falar do exílio, embora essa atitude conviva contraditoriamente demonstra que, em muitas dessas narrativas de filiação contemporâneas,
com os traumas da pobreza, do racismo e da exclusão. Imbert demonstra, a figura do herdeiro representa a potencialidade de reinvenção da origem.
com acuidade, a relação dessa nova consciência cosmopolita com a conso- Retomando Jean-Luc Nancy (2002), Bernadette Porto mostra que essas
lidação de uma escrita cada vez mais polifônica e translíngue que enfrenta obras se colocam como mediadoras entre culturas, idiomas e imaginários
disruptivamente estereotipias e condicionamentos, sejam eles linguístico- linguísticos, constituindo, dessa maneira, uma interessante relação entre
culturais, socioeconômicos ou de gênero. as noções de escuta, habitabilidade e hospitalidade: como se habitar essas
Seguindo a esteira desse debate, no terceiro capítulo, “Translinguismo escrituras translíngues fosse negociar continuamente entre o materno e o
e transculturalismo em Sergio Kokis”, Ana Maria Lisboa de Mello aborda a estrangeiro, o estranho e o familiar, o excesso e a falta.
produção ficcional de Sergio Kokis – autor nascido no Brasil, radicado no Já o quinto capítulo, “Escritas translíngues e comunidade literária
Canadá, que escreve e publica seus livros em francês. A pesquisadora traça hispano-americana”, de Elena Palmero González, traz à tona a questão
inicialmente um paralelo com o modo como a experiência de imigração do translinguismo no âmbito cultural hispano-americano. Sua investiga-
impacta a produção intelectual de Todorov, ensaísta húngaro radicado na ção focaliza escritores biculturais e translíngues, radicados nos Estados
França, para demonstrar como em Kokis também ocorre a aproximação Unidos e Canadá, filhos de emigrados da América Hispânica, problema-
entre as questões do exílio, do translinguismo e do transculturalismo. tizando assim a correlação tradicional entre literatura, língua e território
Diferentemente do panorama apontado por Imbert, Ana Lisboa demons- – ainda muito presente na historiografia literária hispano-americana –, a
tra uma associação entre memória e melancolia nos textos de Kokis, fim de lançar luz sobre uma produção que, em lugar da ideia de origem,
escritor que deixou o Brasil aos 23 anos após o golpe militar. Embora sua invoca a errância como mote de uma multiplicidade relacional e radicante,

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dialogando assim com Bourriaud (2009; 2011). Elena Palmero oferece aos na relação translíngue entre castelhano andino, aimará e inglês/spanglish
leitores um arguto histórico das discussões sobre a noção de diáspora – presente na obra da escritora de origem britânica, radicada na Bolívia,
travadas por intelectuais como James Clifford, Paul Gilroy e Stuart Hall Alison Spedding. Partindo da reflexão ensaística de Spedding, Meritxell
– e dos debates atuais que articulam extraterritorialidade e translinguismo Marsal discute como a memória oral pode se configurar enquanto instru-
literário – a partir de referências como George Steiner, Mary Louise Pratt, mento de revisão, a contrapelo, das versões históricas hegemônicas que
Steven Kellman e Ilan Stavans. Sua análise abrange obras de Pérez Firmat, vinculam a monumentalização do passado incaico às estruturas de poder.
Elías Miguel Muñoz, Alejandro Saravia, Susana Chávez-Silverman, Junot Ao analisar detidamente o livro De cuando en cuando Saturnina (2004),
Díaz, dentre outros, sem ignorar ainda a importância das práticas de a pesquisadora evidencia que a proliferação de vozes aí cria uma lógica
(auto)tradução nesse contexto. Todo este percurso faz a pesquisadora inclusiva ligada à visão de mundo aimará, funcionando como alternativa
questionar a própria noção de comunidade literária, tendo em vista que epistemológica ao pensamento ocidental. Assinala ainda formas de opres-
pensar a comunidade hoje, de acordo com Nancy (1986), significa se des- são que se intersectam no romance, cuja narrativa, além de aproximar a
locar da noção essencialista do “ser-em-comum” em direção à experiência ideia da etnicidade à de rebelião (anarco-feminista), se apropria do gênero
do “estar-em-comum”. ficção científica de caráter distópico como estratégia de reflexão crítica
No sexto capítulo, “Portunhol: prática translíngue no discurso literário sobre as relações que se tecem entre passado, presente e futuro.
contemporâneo”, Antonio Andrade investiga a contribuição do portunhol No oitavo capítulo, “A língua como shibboleth, o ensaio como sota-
não só no processo de desconstrução de fronteiras linguístico-nacionais, que: uma leitura de Vivir entre lenguas, de Sylvia Molloy”, Pablo Gasparini
mas também no de problematização das formas de relação com a alteri- parte da passagem bíblica a respeito do shibboleth para refletir sobre a
dade, solicitando a escrita poética como espaço simultâneo de interpene- não percepção do próprio sotaque, que em geral só é escutado pelo outro,
tração das línguas e diálogo com o outro, inscrevendo-se em uma pers- como metáfora da tensão entre sujeito, linguagem e alteridade. Ao analisar
pectiva transareal de reflexão (cf. ETTE, 2016). O ensaio enfoca textos do o livro Vivir entre lenguas (2016), mostra que a escritora e crítica argentina,
argentino Néstor Perlongher e dos brasileiros Haroldo de Campos, Wilson radicada nos Estados Unidos, Sylvia Molloy – descendente de imigrantes
Bueno e Douglas Diegues, analisando a presença dessa prática translíngue de origem anglófona e francófona –, parece querer estabelecer aí um ‘eu’
em escritores imigrantes e não-imigrantes, esquivando-se assim da tendên- capaz de investigar a alteridade que o atravessa, ouvindo-se a si mesmo.
cia a se vincular, de maneira por vezes determinista, o translinguismo a Isto implica, para Gasparini, uma busca por livrar-se da sujeição aos mitos
uma condição sociogeográfica. Paralelamente a isso, propõe uma diferen- de origem, reelaborando os restos da memória. Nesse sentido, o pes-
ciação entre dicções literárias que se apropriam do portunhol e que se pro- quisador explora a apropriação do romance familiar na obra de Molloy,
duzem em portunhol. Andrade ainda explora, nesses cruzamentos entre discutindo sua percepção das coerções e interdições em relação ao trans-
português, espanhol e (em alguns autores) guarani, a produtividade de linguismo e, ao mesmo tempo, seu olhar atento aos espaços de potência
estratégias e processos discursivos, tais como polissemia, homofonia, inter- e sobrevivência que a alternância de idiomas pode propiciar, como se a
textualidade, heterogeneidade enunciativa da escrita, crioulização etc., de própria escrita fosse testemunho não de uma subjetividade plena e fixada
modo a mostrar que o aproveitamento poético do portunhol indicia aí uma em padrões identitários, mas de um sujeito que se constitui fragmentaria-
vontade de invenção estético-política de uma língua(gem) de contatos. mente no trânsito entre línguas.
Mobilizando por outro ângulo o campo literário ibero-americano, o Por fim, o nono capítulo do livro, “Mais um rondó: notas sobre a tra-
sétimo capítulo, “A ficção científica como contra-história: as vozes aimarás dução, o lúdico e a metalinguagem”, de Marcelo Diniz, indicia, por um viés
do futuro no romance De cuando en cuando Saturnina, de Alison Spedding”, sagital, a possibilidade de associação entre translinguismo e prática tradu-
de Meritxell Hernando Marsal, focaliza a dimensão política do hibridismo tória. No texto, o autor mescla suas atividades de ensaísta, poeta e tradutor,

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brindando aos leitores a tradução sua de um poema de Boileau e um poema referências bibliográficas
inédito seu que dialoga com a linhagem de escritores que seu próprio exer-
ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico. Dilemas da subjetividade contemporânea.
cício ensaístico compõe. A partir de uma trama de sonetos e rondós lúdicos
Rio de Janeiro: EDUERJ, 2010.
e metapoéticos que sugere uma atitude (auto)irônica e dessacralizante em
BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martin Fortes, 2009.
relação à forma e aos procedimentos da poesia, Diniz aponta caminhos
______. Radicante: por uma estética da globalização. São Paulo: Martin Fortes, 2011.
de reflexão sobre a relação entre leitura, intertextualidade e tradução, que
BRUERA, Franca. Translinguisme Littéraire: frontières, représentations et
reverbera em diferentes momentos históricos. Nesse sentido, analisa redes définitions. Cosmos. Comparative Studies in Modernism, n.11, 2017.
dialógicas que interligam escritores contemporâneos a autores de diferen- DELBART, Anne-Rosine. Les exiles du langage. Un siècle d’écrivains français venus
tes lugares e épocas – Gregório de Matos, Lope de Vega, Glauco Mattoso; d’ailleurs. Limoges: Presses Universitaires de Limoges, 2005.
Haroldo de Campos, Julio Cortázar; Vincent Voiture, Gerald Guinness –, ETTE, Ottmar. ZwischenWeltenSchreiben: Literaturen ohne festen Wohnsitz.
depreendendo deles uma tendência transversal a se compreender a tradu- Berlim: Kulturverlag Kadmos, 2005.
ção poética como mecanismo de produção da diferença. ______. Pensar o futuro: a poética do movimento nos Estudos de Transárea. Alea,
Como se pode perceber, este livro provoca, por meio de múltiplos vie- 18/2, Rio de Janeiro, p. 192-209, mai-ago/2016.
ses e olhares, o diálogo entre as noções de translinguismo e poéticas do FONTILLE, Brigitte; IMBERT, Patrick (dir.). Trans, multi, interculturalité, trans,
multi, interdisciplinarité. Canadá: Les Presses de l’Université Laval, 2012.
contemporâneo. Desse modo, entendemos aqui a escrita translíngue como
JOUANNY, Robert. Singularités francophones. Paris: Puf, 2000.
espaço de performatividade estética em que a interseção de línguas/cul-
NANCY, Jean-Luc. La communauté désoeuvrée. Paris: Christian Bourgois Éditeur,
turas nos leva a pensar o discurso não como instância homogênea, mas
1986.
produzido a partir de um entre-lugar (SANTIAGO, 2000 [1978]). Tal posi-
______. À l’écoute. Paris: Galilée, 2002.
cionamento crítico em relação ao contemporâneo implica, pois, tensionar
SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das
as concepções de nacionalidade e estrangeiridade, memória e presente, Letras, 2003.
configurando-se como uma estratégia de reflexão que resulta do entrecru- SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In: Uma
zamento de distintos tempos/espaços e da convivência com textos literários literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. Rio de Janeiro: Rocco,
que estranham, por diversos meios, o seu próprio lugar de enunciação. 2000[1978], p. 9-26.

Os organizadores

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As literaturas do mundo: condições transculturais
e desafios polilógicos de um conceito prospectivo
Ottmar Ette

fractais universais
Coolitude, setting the first stone of my memory of all memory, my language
of all languages, my part of the unknown, laid down by many bodies and
many stories in my genes and on my islands.
It is the song of my love for the ocean and for travel, the Odyssey still unwrit-
ten by my sea-faring people... and my deckhands will speak for those who
erased the borders to expand the land of mankind.1 (TORABULLY, 1992, p. 7)

Com estas palavras poéticas bem formuladas redigidas em inglês, o


poeta, cineasta e estudioso da cultura Khal Torabully,2 nascido em 1956
em Port‑Louis, Ilhas Maurício, descendente de uma família emigrada da
Índia, evoca um mundo que tenha a capacidade de narrar outra Odisseia,
certamente mais ampla, que não se limite ao Mediterrâneo. Já desde os
anos oitenta do século passado, o autor vem desenvolvendo em diversas
línguas, mas especialmente em francês e inglês, o projeto da Coolitude que
foi celebrada, em maio de 2018, não nessa ilha do Oceano Índico, mas a
milhares de quilômetros dali, na Ilha de Guadalupe, num grande Festival
de la Coolitude, com numerosas leituras, palestras e performances.
Não é à toa que o projeto literário e culturalista da Coolitude se dirige
às ilhas, como parece ser evidente, também, por causa da expressão “my
islands”. Neste caso, trata-se de ilhas que estão unidas entre si, ao redor do

1 Tradução livre: “Coolitude, assentando a primeira pedra da minha memória de todas as


memórias, minha língua de todas as línguas, minha parte no desconhecido, depositada por
muitos corpos e muitas histórias em meus genes e nas minhas ilhas. / É a canção do meu
amor pelo oceano e por viajar, a Odisseia ainda não escrita pelo meu povo navegador... e
meus marinheiros falarão por aqueles que borraram as fronteiras para expandir a terra da
humanidade”. [N.T.]
2 Sobre a obra de Khal Torabully, cf. BRAGARD (2008).

21
mundo. Não apenas as relações de troca entre arquipélagos, entre as Ilhas der, vindos de um escritor natural das Ilhas Maurício, doutor com uma
Maurício e Guadalupe, entre o Oceano Índico e o Caribe, mas também tese sobre a semiologia do poético em Lyon, e que fora membro fundador
as múltiplas origens dos poetas, artistas e cientistas participantes desse de um grupo francês de pesquisa sobre globalização (Groupe d’Études et
grande festival chamam a atenção para as dimensões de abrangência mun- de Recherches sur les Globalisations, GERM). Muito do que é citado no
dial de uma compreensão literária e cultural que – como dão a entender início remete a um dos grandes Prêmios Nobel de Literatura do Caribe,
os períodos inicialmente citados – é feita de pluralidades e está construída Derek Walcott, e à sua obra principal Omeros (WALCOTT, 1990), também
sobre pluralidades. inspirada em Homero, em cujo canto épico se vislumbra um mundo-i-
Assim, teoria e práxis poética da Coolitude significam muito mais do lha, no qual se desenvolve um mundo inteiro, a partir do ser-isolado.
que a história, por tanto tempo como que submersa, esquecida e excluída Ao mesmo tempo, porém, de dentro desse mundo-ilha concluído, surge
pela historiografia metropolitana, da migração de todos aqueles Coolies, uma ilha-mundo global, na qual as lógicas próprias do insular se inter-
originários da Índia, da China e de tantas outras regiões do mundo, e que ligam numa relacionalidade ao redor do mundo e evocam, dentro do
tinham sido raptados como trabalhadores baratos, assalariados ou contra- microcosmo, o macrocosmo. A ilha é o mundo e é, ao mesmo tempo,
tados, no planeta todo, numa fase de globalização que há muito se tornou um mundo de ilhas. Também nas islands de Khal Torabully, as ilhas se
histórica, entre o final do século XIX e o início do século XX. Por sécu- tornam fractais universais (ETTE, 2017) nos quais as literaturas do mundo
los sequestrados, esses trabalhadores assalariados, mais deportados do conseguem fazer com que se ouça tanto a Odisseia homérica quanto as
que transportados, que se tornaram mão de obra substituta dos escravos Odisseias, até então, ainda não ouvidas.
negros, anteriormente trazidos da África em condições brutais, em navios
negreiros abarrotados, representam uma história da migração e transmi- após a literatura universal
gração da humanidade (“mankind”), a qual ainda está longe de terminar.
Justamente no final da nossa fase atual de globalização acelerada (cf. ETTE, A conceituação de literatura universal, concebida de maneira definitiva por
2015, p. 32-33), podemos ter uma ideia sobre em que medida as correntes Goethe, que se erguera desde seu início de forma polêmica contra a litera-
migratórias cresceram em intensidade e veemência ao redor do mundo. tura nacional (a qual, naquela época, estava encontrando seu espaço), de
Os Coolies servem de paradigma a esses movimentos. forma alguma fora projetada como entidade trans-histórica. A declaração
Na literatura da Coolitude de Khal Torabully, deparamo-nos com muito discutida de Goethe, de 31 de janeiro de 1827, destaca desde o início
um mundo no qual uma história do movimento carregada de vetores há uma temporalidade pensada como histórica, na qual o criador de Fausto se
muito tomou o lugar de uma história espacial. Aqui não há delimitações coloca num ponto de partida, como transparece nessa expressão referida por
territoriais definidas, mas sim fronteiras que se reconfiguram constante- Eckermann (1981, p. 211): “Literatura nacional não quer dizer muito agora;
mente. Os conceitos estáticos de territorial, continental e contínuo estão é chegado o momento de uma era de literatura universal, e todos têm de
sendo transformados pelas formas de pensar de um movimento irrefreá- colaborar, desde já, para acelerar essa era”.3 Goethe, parceiro entusiasmado
vel, a partir do qual mobilidades constantemente novas, mundos-ilhas de conversas com Alexander von Humboldt, já havia refletido muito sobre
que abarcam o planeta inteiro e descontinuidades onipresentes possibi- a globalidade de seu tempo, sob o signo do mercado e do tráfego mundial.
litam uma nova compreensão dos atuais fenômenos, tanto nas literaturas A prolongada produtividade do conceito de literatura universal
quanto nas culturas. Tudo está em constante movimento: as pessoas, as cunhado por Goethe é indubitável. Compreender a época que fora proje-
línguas, as fronteiras, as culturas.
O fato de que, nesse contexto, os questionamentos da globalização 3 Tradução livre a partir da citação original retirada da edição alemã. Cabe assinalar a existên-
cia da edição brasileira: ECKERMANN, Johann Peter. Conversações com Goethe nos últimos
desempenham constantemente um papel central não deveria surpreen- anos de sua vida. São Paulo: Ed. UNESP, 2016. [N. T.]

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tada em Weimar como nova era da literatura universal, enquanto concepção mas em literaturas do mundo, numa compreensão aberta e multilógica.
tornada extremamente produtiva, tanto historicamente quanto do ponto de Essa pluralização já transparece no artigo “Filologia da literatura mun-
vista da estética literária, e entender em que medida ela conseguiu agir, sob dial”, de Erich Auerbach, publicado pela primeira vez em 1952, assumindo
o signo das diversas fases de globalização acelerada, sobre a formação da explicitamente a herança de Goethe. Em seu ensaio programático, o qual,
teoria e da prática para muito além do ambiente de língua alemã, obvia- de certa forma, foi uma continuação crítica de sua obra principal, surgida
mente não significa, de forma alguma, que se deva compreender a literatura durante o seu exílio em Istambul, Mimesis: a representação da realidade na
universal como uma forma-de-ser literária que atravesse as mais diversas literatura ocidental,5 Auerbach, que se designava, com boas razões, como
épocas. Como época, a literatura universal tem não apenas um início, mas “humanista de cunho goethiano”,6 desenvolveu a proposta de uma futura
também um fim. Como concepção, ela é determinada historicamente. filologia, a qual – diante do pano de fundo histórico da II Guerra Mundial
A partir de um ponto de vista atual, é preciso compreender a época e da Shoah, mas num gesto certamente ainda vinculado a Goethe – já
caracterizada por Goethe como literatura universal como uma fase da não queria, nem podia ser a filologia de uma literatura nacional. Aliás,
história literária incontestavelmente concluída, que atingiu seu final his- como poderia um nacionalismo com todos os seus ingredientes cultu-
tórico.4 Uma vez que a literatura universal, já a partir dos conceitos goe- rais espalhar-se novamente pela Alemanha, após a barbárie do Nacional-
thianos, não pode ser pensada em termos de história conceitual sem o Socialismo? O caminho para o futuro parecia dar a volta, indicando
processo de globalização da época, este conceito também se tornou histó- novamente uma passagem por Goethe. De outro modo, é como se, a par-
rico no sentido de que tem de se abrir, em seu devir histórico, para as pro- tir de um mal-estar derivado do discurso adotado acerca da “literatura
blemáticas dos atuais fenômenos de globalização e dos processos trans- universal”, mas, talvez, advindo ainda mais de uma insuficiência teórica
culturais associados a eles. Por conseguinte, literatura universal, hoje, não percebida, se vislumbrasse em Erich Auerbach uma formação plural que
quer mais dizer muita coisa... obviamente desapareceria de imediato sem alcançar um status conceitual
O caráter histórico de uma literatura universal, tal como pudera ser qualquer. Pois na “Filologia da literatura mundial”, de Auerbach, se fala,
concebida a partir de Weimar, da Alemanha, da Europa, não a protege repentinamente, sobre o conhecimento de Goethe acerca das “literaturas
dos desenvolvimentos de um devir histórico, há muito observável, que do mundo” (AUERBACH, 1967[1952], p. 302).
após a época da literatura universal e exatamente também na consciên- De qualquer forma, o autor de Mimesis, citando nominalmente Vico e
cia da continuidade dessa constelação tão influente (cf. LAMPING, 2010; Herder, atribui o sucesso da filologia como um todo ao fato de ela assumir
LAMPING/ZIPFEL, 2005) deve se empenhar em alcançar novos modelos a “aquisição de uma representação uniforme em sua multiplicidade do ser
de compreensão multiplamente lógicos, os quais já não sigam modelos humano”7 (Ibidem) como sua verdadeira tarefa. Esse movimento, carac-
dominantes na história espacial, mas, antes de tudo, inspirados na história terístico tanto da filologia quanto da literatura universal, mas, além disso,
do movimento. Nesse contexto epistêmico, a noção de “literatura univer- também da filologia da literatura universal de Auerbach, leva de uma mul-
sal” necessita, no sentido conceitual, de uma tradução e reestruturação tiplicidade à uniformidade de uma representação, e pode-se reconhecê-la
para o presente e o futuro do agir filológico – principalmente para a área aqui, com toda clareza, em seu gesto que almeja a unidade. O elemento de
de uma filologia crítica, consciente de sua própria gênese europeia (cf. uma pluralidade e, mais ainda, de uma diferença, por meio da multiplica-
MESSLING/ETTE, 2013).
Por isso se faz urgente, hoje, não mais falar em literatura universal 5 Embora no original se tenha utilizado a edição alemã da obra, optou-se por utilizar aqui
num sentido totalmente orientado segundo formas e normas europeias, o título da tradução brasileira: AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na
literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2002. [N.T.]
4 Cf. capítulos “Die Welten der Weltgeschichte”, “Die Welten der Weltliteratur” e “Die Welten 6 Citação de AUERBACH (1952, n.p.), retomada em AUERBACH (1967, p. 304).
der Literaturen der Welt”, em ETTE (2017, p. 27-40). 7 Grifos do autor.

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ção dos pontos de vista, aparece apenas brevemente no texto de Auerbach, sentam-nos formas de vida e normas de vida9 das mais diversas relações
sem deixar marcas mais profundas. Mas uma apresentação centrada dessa de poder político e ordens econômicas, das mais diversas configurações
forma no ponto de vista europeu, “ocidental”, da literatura universal con- biopolíticas e sociais, sendo que seus respectivos universos discursivos não
segue dar conta, hoje em dia, da complexidade e da estruturação polilógica representam formas de expressão simbólicas cientificamente disciplinadas
das literaturas do mundo, tanto conceitual quanto metodologicamente? e, assim, culturalmente fixadas, e sim reativas a qualquer tipo de discipli-
narização. As filologias que se ocupam desses textos recorrem não ape-
as literaturas do mundo nas ao conhecimento especializado, surgido de suas respectivas tradições,
dentro de uma determinada filologia (por ex., ocidental ou chinesa), mas
A resposta a essa pergunta resulta necessariamente negativa, do ponto de àquele saber que se pode encontrar nas mais diversas formas de expres-
vista tanto estético-literário quanto culturalista. Mas o que vem depois são de sabedoria de vida, sabedoria vivencial, sabedoria da sobrevivência
dessa época, o que vem depois do conceito de literatura universal? E quais ou sabedoria de convívio, tanto na Epopeia de Gilgamesh mesopotâmica,
pluralidades daquelas literaturas do mundo poderiam ser desdobradas quanto no Shi Jing da China antiga; nos mundos narrativos das Mil e uma
prospectivamente, na perspectiva atual, a ponto de poder abrir, por meio noites, que remetem a tradições indianas antigas, ou nas formas poéticas
de artimanhas filológico-multilógicas, o peso historicamente acumulado japonesas dos haikus. Filologia significa lidar ao menos com estas duas
de uma literatura universal, ancorada e centrada no Ocidente, ao prazer ordens do saber, que estão relacionadas entre si tanto crítica quanto cria-
da percepção de uma diversidade, sobretudo, transcultural de literaturas? tivamente. As filologias fornecem, portanto, não apenas um saber “acerca
Um primeiro ponto de partida para uma resposta a todas essas per- de”, mas também um saber “com” e “por meio de”; dessa forma, elas dis-
guntas, que seja criativa e orientada para o futuro, deveria ser uma análise põem de uma sabedoria de vida complexa que, no sentido de uma filologia
historicamente fundamentada da era do agora, como sendo uma era da das literaturas do mundo, jamais pode ser reduzida a uma lógica única.
rede, relacionalmente condicionada.8 Para uma compreensão fundamen- Sem dúvida alguma, isso coloca algumas exigências especiais justa-
tada do surgimento, ainda hoje facilmente observável, tanto de estrutu- mente àquelas filologias, àqueles filólogos e filólogas que se ocupam das
ras assimétricas quanto de estruturações basicamente abertas no plano literaturas do mundo em contextos transareais, portanto em contextos que
das literaturas do mundo, deveria ser decisiva uma apreensão tão precisa permeiam e interligam diversas áreas culturais. Principalmente a quarta
quanto possível de uma história da globalização, não apenas a partir da fase de globalização acelerada, que começou em meados dos anos 1980
perspectiva histórica, mas, antes de tudo, literária e estética (cf. ETTE, – e que, entretanto, se aproxima rapidamente de seu fim –, demonstrou,
2016). Pois são as literaturas do mundo que nos possibilitam não apenas inequivocamente, a maneira criativa como se desenvolveram estrutura-
um olhar sobre a “realidade representada” (para utilizar uma formulação ções abertas da literatura mundial, sem que justamente viesse a ocorrer
da Mimesis, de Auerbach), mas a representação de uma realidade vivida aquela homogeneização e uniformidade de literaturas, línguas e cultu-
e vivenciada, vivenciável e, por vezes, até mesmo revivenciável, tendo-se, ras que Erich Auerbach temeu e profetizou no final de Mimesis, possi-
assim, o acesso a uma globalização vivenciada que já se tornou cotidiana. velmente a obra mais importante da romanística alemã do século XX. O
Dessa forma, a globalização perde seu caráter abstrato e mesmo imagi- desdobramento de tais correlações transareais e transculturais, que não se
nário (cf. GARCÍA CLANCLINI, 1999) e, em sua processualidade, torna-se, caracterizam apenas sob um signo de transferência, mas, antes de tudo,
através dos meios da literatura, esteticamente reflexiva e re-experienciável. pela transformação recíproca, há muito não consegue mais garantir, com
As literaturas do mundo atravessam os milênios e as línguas, atraves- o auxílio do conceito de literatura universal, uma apreensão adequada
sam as culturas e os sistemas de escrita e de sinais por elas utilizados, apre- da complexidade dos processos atuais, em termos de estética e história
8 Ver, a este respeito, o ponto de vista sobre a literatura de BACHMANN-MEDICK (2001, p. 215-239). 9 Jogo de palavras no original: “Lebensformen” / “Lebensnormen”. [N.T.]

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literárias. Pois hoje temos de lidar simultaneamente com a copresença, a inglês e o francês começavam a fazer parte das línguas globalizadas, na ter-
combinatória e a convivência de lógicas variadas, dentro daquilo que se ceira fase da globalização acelerada, durante as últimas décadas do século
designa aqui como termo e conceito de literaturas do mundo. XIX, não apareceu nenhuma outra língua além das já globalizadas a partir
da Europa, e sim uma primeira potência mundial de fora da Europa, os
línguas da globalização europeia Estados Unidos, que, marcados pela origem europeia-anglo-saxã, come-
çaram a dominar, de forma crescente, como global player, econômica e
Ao nos ocuparmos, a partir da perspectiva de uma história literária da militarmente, tanto o Caribe quanto o ambiente do Pacífico. Também
globalização, de todos aqueles processos da ordem do poder e da política nesse movimento de expansão, arquipélagos como as Filipinas, as Antilhas
militar, assim como dos processos socioculturais, dos processos vitais e de ou os mundos-ilhas do Pacífico Sul tiveram um papel decisivo. Assim, as
política linguística, bem como dos histórico-literários que caracterizam relações que transcorriam os arquipélagos entre os diversos mundos-ilhas
as diversas fases da expansão mundial europeia desde o final do século e os continentes intermediários também cresceram em importância, um
XV, é fácil demonstrar que, na primeira fase da globalização acelerada, fato ao qual já nos referimos no contexto do “espalhamento” ao redor do
sob a liderança dos países ibéricos, Espanha e Portugal, alçados a potên- mundo de Coolies da Índia ou da China, tanto através dos mundos-ilhas
cias mundiais, três línguas europeias – o português, o espanhol e o latim e dos continentes da zona do Pacífico e de seu entorno, dos domínios do
– foram globalizadas.10 No entanto, não se pode imaginar a globalização Caribe e de seus arredores, como também dos domínios atlânticos. Essas
dessas três línguas ocidentais como um evento extensivo, como que ter- dinâmicas que permeiam os arquipélagos não estão guardadas nas litera-
ritorial, mas antes como um evento marcado por imensas descontinuida- turas do mundo apenas das Ilhas Maurício ou de São Tomé, das Filipinas
des e distorções espaciais e sociais. Observando o primeiro mapa-múndi ou de Cuba, Sta. Lúcia ou Guadalupe, de Cabo Verde ou dos mundos-ilhas
da Idade Moderna em seu real sentido, a chamada Carta de Juan de la do Atlântico Norte: suas facilitações e vetores estão onipresentes, até hoje,
Cosa, do ano de 1500, chama a atenção que, por motivos evidentes, fal- nas literaturas de língua francesa, espanhola, portuguesa e inglesa.
tam não apenas a Austrália, mas também subcontinentes inteiros como a Após o abandono progressivo do latim enquanto língua acadêmica,
Índia, enquanto os arquipélagos das Ilhas Canárias, de Cabo Verde ou do de formação e administração, tanto na Europa quanto nas colônias ultra-
Açores, e também, ao lado destes, os mundos-ilhas do Caribe estão regis- marinas das potências europeias citadas, formou-se, em função da rápida
trados com surpreendente precisão, por vezes até nos menores detalhes. ascensão das distintas línguas vernáculas, tanto nos países de origem (cf.
Bandeirinhas representando potências europeias rivais informam que, já MITTELSTRASS et al., 2016) quanto em suas possessões coloniais, uma
nos primeiros anos da primeira fase de globalização, a descontinuidade de diversidade linguístico-cultural que foi se tornando mais e mais complexa,
estruturas insulares e de arquipélagos tinha grande significado, de modo dentro da qual se fixaram outros processos de diferenciação transareal.
que é preciso imaginar a complexidade daí derivada de desenvolvimentos Por consequência, no âmbito linguístico do espanhol, português, francês
culturais, sociais e econômicos, não tanto no sentido de uma expansão e inglês, formaram-se lógicas inerentes, que ocorrem paralelamente aos
contínua, mas como algo insular-descontinuado. Nesse sentido, tivemos movimentos de independência e descolonização em suas diversas épocas,
de lidar, desde cedo, com tessituras relacionais altamente dinâmicas de tornando-se cada vez mais eficazes e visíveis em relação à sua qualidade
abrangência mundial. produtiva da diferença, no decorrer do século XIX e, principalmente, no
Enquanto na segunda fase da globalização acelerada, no decorrer da século XX, bem como de maneira reforçada também na quarta fase da glo-
segunda metade do século XVIII, Inglaterra e França tomavam progres- balização acelerada. As línguas da globalização europeia há muito tinham
sivamente o lugar das potências mundiais ibéricas e, ao mesmo tempo, o se tornado parte importante do sistema das literaturas do mundo.
10 Sobre a história da globalização, cf. capítulo introdutório de ETTE (2016).

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línguas e fractais das literaturas do mundo cas floresciam não somente em Portugal ou na Inglaterra, mas talvez com
maior intensidade no Brasil ou nos EUA. O mais tardar, desde o final do
Dentro das redes relacionais, tanto transatlânticas quanto transpacíficas século XIX, desenvolvimentos literários e estéticos em países não europeus
das quatro línguas globalizadas, haviam se formado, desde o início, fei- têm efeitos retroativos diretos sobre as literaturas europeias, podendo
xes de tradições próprias nas respectivas literaturas. O destaque dado em mesmo – como demonstra o exemplo do Modernismo hispano-americano
seguida às lógicas próprias da hispanofonia ou lusofonia, da francofonia ou – servir de modelo a tais literaturas.
anglofonia, não significa, de forma alguma, que se concorde, então, com Ao mesmo tempo, deve-se considerar que as literaturas da Europa – e
a ideia de uma legalidade própria absoluta dos seus respectivos âmbitos. também um construto como a “literatura europeia” – não consistem ape-
As literaturas de língua inglesa ou francesa não podem ser compreendidas nas de relações literárias num plano nacional-literário e supranacional. Tal
como campos literários isolados entre si, tampouco as de língua portu- como as literaturas do mundo, também as literaturas da Europa não são a
guesa ou espanhola, uma vez que uma intertextualidade mundial forma o simples soma de suas respectivas partes; antes pelo contrário, elas marcam
centro ativo, tanto da literatura universal, em seu devir histórico, quanto um salto qualitativo que, em sua relacionalidade, vão muito além do que
das atuais literaturas do mundo. uma mera adição. Além disso, é necessário incluir aqui tanto literaturas glo-
Muito pelo contrário, durante os séculos se desenvolveram relações balizadas quanto não globalizadas, literaturas regionais tanto quanto locais,
literárias altamente estritas e, inicialmente, dependentes, as quais interli- numa compreensão abrangente, para se entender toda a multiplicidade e
gam as literaturas multilíngues da Europa e, em especial medida, aquelas os graus de diferenciação do entrelaçamento relacional literário como um
literaturas advindas da herança comum latina. É evidente que as atuais todo, em plano mundial ou no microcosmo da Europa (cf. ETTE, 2014).
literaturas do mundo ainda carregam em si aquela assimetria das relações Selecionemos aqui uma escala espacial ainda mais reduzida. A lite-
(cf. ETTE, 1994), que trouxe consigo o surgimento de um sistema de litera- ratura suíça – para mencionar apenas um exemplo multilíngue, mas que
tura universal: as literaturas do mundo não são creatio ex nihilo, nem qual- de forma alguma é incomum – participa tanto de uma situação complexa
quer tipo de construção equilibrada teoricamente e desenhada na pran- arquipelágica, num espaço literário francófono globalizado, no plano de
cheta; elas apresentam, na verdade, uma pré-história marcada por nítidas uma francofonia europeia, quanto das literaturas germânicas que ultra-
assimetrias de poder. Seu devir histórico, no qual se incluem também a passam as fronteiras dos países vizinhos. Ela é parte da literatura de língua
preparação e a formação da época da literatura universal, está guardado e italiana do mesmo modo que da literatura regional do reto-românico, que
reservado nelas. No plano econômico, comercial e distributivo, essas desi- ultrapassa as fronteiras territoriais no espaço alpino, a qual, por sua vez,
gualdades continuam palpáveis ainda hoje e a discussão sobre elas não mantém-se em íntima relação de intercâmbio com a literatura de língua
deve ser elidida. ladina e friulana. Além disso, a literatura suíça desenvolveu, como que
Mesmo assim, formaram-se, ao lado das literaturas nacionais avulsas, subliminarmente às literaturas regionais, um estilo literário local utili-
que obviamente não desapareceram, mas que têm de ser sempre incluí- zando-se daquela linguagem literária cultivada há séculos, denominada
das no registro das literaturas do mundo, redes relacionais, por ex., no Boltz, que continua sendo escrita na Cidade Baixa de Friburgo, na Suíça,
âmbito das literaturas europeias, que já não permitem entender a “litera- a qual recorre tanto a um patois francês quanto a dialetos alemânicos.
tura europeia” separadamente de seus desenvolvimentos fora da Europa, A literatura suíça deverá servir, nesta passagem, apenas como exemplo
pois as literaturas do Barroco estão longe de ser um fenômeno puramente para demonstrar o quão complexas são as combinatórias e convivências
europeu. Claro que existe não apenas um Iluminismo na França, mas tam- daquilo que podemos chamar de literatura no coração da Europa: uma
bém no mundo francófono; não apenas um Romantismo na Espanha, mas literatura que se deixa apreender como um modèle réduit, uma mise en
também na América hispanofalante ou nas Filipinas. Vanguardas históri- abyme, portanto como um fractal da literatura europeia.

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Numa escala de abrangência mundial, mas perfeitamente dentro de Também na anglofonia e na hispanofonia se formou – mesmo que
um nexo intelectual fractal de autossimilaridade, bem no sentido dado de maneira altamente diferenciada, e diante do pano de fundo de pro-
por Benoît Mandelbrot (1987), mostram-se, entre as línguas literárias glo- cessos sócio-históricos e econômicos totalmente diversos – um sistema
balizadas, significativas diferenças que nos alertam tanto para as lógicas policêntrico. Enquanto o mundo literário de língua inglesa em Londres,
próprias quanto para as dinâmicas das respectivas literaturas. Assim, a e sobretudo em Nova York, apresenta seus centros de origem, a partir
francofonia ainda exibe um espaço literário monocêntrico e inspirado na dos quais são orquestradas inequivocamente as literaturas anglófonas do
“capital do século XIX” (cf. BENJAMIN, 1983),11 pelo qual costumam orien- mundo, desenvolveram-se, na hispanofonia, desde o final do século XIX e,
tar-se as literaturas de língua francesa do Oriente Médio ou da África, portanto, da terceira fase de globalização acelerada, estruturas dentro das
do Haiti ou do Canadá, apesar de toda relativa independência.12 Autores quais outros centros, como Buenos Aires ou Cidade do México, se coloca-
e autoras francófonos da Argélia ou da Martinica, de Québec, das Ilhas ram ao lado do centro literário espanhol, aí então Barcelona. Dependentes
Maurício, e também da Suíça e da Bélgica, tentam, sempre que possível, das respectivas conjunturas políticas e econômicas, os pesos dentro do
publicar em editoras parisienses, mesmo que nesse terreno editorial polí- espaço literário de fala hispânica costumam deslocar-se – vistos a partir
tico se façam notar, constantemente, evoluções diferenciadas com relação de uma distância maior – constantemente, mesmo que o mundo edito-
a segmentos específicos do público. Paris está longe de perder seu papel rial espanhol tenha, atualmente, sem dúvida alguma, um papel central e
dominante na francofonia. centralizador. Isso obviamente poderia mudar com rapidez, em função de
É verdade que a lusofonia também apresenta uma clara tendência deslocamentos políticos.
monocêntrica, porém, aqui, o centro há muito tempo já não se orienta Fica claro, nessa – brevemente executada – visão panorâmica das
mais pela antiga potência colonial de Portugal, mas, em ampla medida, quatro distintas línguas literárias, globalizadas a partir da Europa, como
pela antiga colônia americana, o Brasil. Que aqui se trate de um sistema as línguas e literaturas específicas desenvolveram lógicas próprias, as quais
complexo e altamente dinâmico comprova o fato de se poder estabele- não podem ser reduzidas a uma única lógica, nem transportadas para um
cer constantemente novas áreas nas relações literárias lusófonas, as quais, sistema simultaneamente homogêneo e centralizado. Seria uma emprei-
partindo de um conceito aberto de literatura, reivindicam novas posições tada altamente duvidosa querer resumir esses desenvolvimentos a partir
dentro de uma relacionalidade mundialmente abrangente. Assim, por da perspectiva de uma literatura universal única, concebida a partir da
exemplo, um grupo de escritores e editores apresentou pela segunda vez, Europa, e, portanto, propositalmente ignorar que as literaturas do mundo
em junho de 2018, na ilha cabo-verdiana Sal, por assim dizer na interseção funcionam cada qual segundo lógicas e tradições estéticas muito próprias.
entre a África, a América e a Europa, o lusófono “Festival de literatura – Com certeza, isso vale também – e justamente – para outros espaços
Mundo do Sal”, no qual se apresentaram autores e autoras de Angola e literários, até agora ainda não globalizados, em seu sentido estrito, como,
de Moçambique, do Brasil e de Portugal e também das diversas ilhas do por exemplo, aqueles das literaturas árabes ou também da literatura chinesa.
arquipélago em si. Dessa maneira, manifestam-se evoluções que mostram Como no exemplo das literaturas hispanas da América Latina, também nas
o espaço literário lusófono num possível caminho em direção a um sis- literaturas árabes estão interligadas mais de vinte literaturas nacionais numa
tema multipolar e, talvez mais do que isso, policêntrico. tessitura relacional altamente complexa que, diferente do caso latino-ameri-
cano, contudo, não dispõe de (antigos) centros europeus – tampouco, com
11 No original, cita-se edição alemã do texto de Benjamin. Cabe ressaltar, contudo, que relação ao árabe, de alguma língua de caráter globalizado.
o ensaio “Paris, capital do século XIX” também está publicado no Brasil em: BENJAMIN, É ainda nesse sentido que, entre o mundo árabe e a América Latina, é
Walter. Passagens. Belo Horizonte/São Paulo: Ed. UFMG/Imprensa Oficial, 2007. [N.T.]
possível constatar paralelos e, sem dúvida alguma, relações árabe-america-
12 Acerca do ambiente literário francófono em sua delimitação com o ambiente transatlântico
hispânico, cf. MÜLLER (2012).
nas desenvolvidas por fortes processos migratórios (cf. ETTE/PANNEWICK,

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2006). Mesmo assim, para além dessas referências transareais de literatura que criaram, no plano das literaturas do mundo, de forma altamente cria-
e cultura, demonstram-se diferenças notórias que aparecem por conta das tiva e inovadora, novos movimentos-espaços do escrever. Não é preciso ter
lógicas próprias, ou lógicas do próprio, das literaturas árabes. A comple- talento visionário para prever que a produção literária do século XXI conti-
xidade específica e as inter-relações recíprocas nas literaturas árabes tor- nuará contendo e levando adiante literaturas sem residência fixa em rápida
nam-se muito evidentes justamente no exemplo da literatura libanesa, na progressão e desenvolvimento acelerado; literaturas, portanto, que diante
medida em que se pôde considerar o Líbano, por longo tempo, como um do pano de fundo das migrações e transmigrações citadas desenvolvem,
dos centros referenciais das literaturas árabes, porém, ao mesmo tempo, sob o signo de uma poética do movimento, formas de escrita literária que
também participa das literaturas francófonas e anglófonas do mundo, e já não se conseguem apreender adequadamente por meio das categorias
produziu autores como Amin Maalouf ou Elias Khoury, que se inserem em de uma história espacial, centrada tanto historicamente quanto cultural-
linhas altamente diferenciadas da tradição. Ambos os autores escrevem e mente. Para além de uma concepção histórico-espacial, elas necessitam,
publicam em diversas línguas, mas evidentemente podem ser incluídos, antes, de uma história dos movimentos, bem como de conceptualizações
na mesma medida, em uma literatura libanesa, que se congratula com um dinâmicas, móveis. Poder-se-ia acrescentar a isso que a literatura nacional
multilinguismo há muito cultivado. Esse exemplo demonstra que, tanto do terá, agora e num futuro assim esboçado, cada vez menos a dizer...
lado de cá quanto do lado de lá das línguas literárias globalizadas, pratica- Para as literaturas sem residência fixa, seja de natureza translíngue ou
mente não é possível diferenciar nitidamente, no plano das literaturas do transareal, os nomes de muitos detentores do prêmio Nobel de literatura
mundo, entre literaturas europeias e não europeias, sem que derive disso (como V.S. Naipaul, Herta Müller, Gao Xingjian ou Mario Vargas Llosa)
uma homogeneidade, qualquer que seja, de uma singularidade concebida servem de referência, tanto quanto aqueles de Salman Rushdie, Jorge
a partir da Europa, da literatura universal. Também o Líbano poderia ser Semprún, Norman Manea, Elias Khoury ou Amin Maalouf, aos quais, no
compreendido – e dessa vez a partir de uma perspectiva arábica – como âmbito das literaturas de língua alemã sem residência fixa, certamente se
um fractal das literaturas do mundo. deve acrescentar Emine Sevgi Özdamar, José F.A. Oliver, Yoko Tawada ou
Stanislaw Strasburger.
as literaturas sem residência fixa Formas de uma escrita translíngue, portanto perpassada por diversas
línguas, seguirão sendo de uma importância crescente nas futuras litera-
No exemplo desses dois escritores de origem libanesa fica evidente, porém, turas do mundo. No volume composto por microtextos, Depois da fuga,13
que nossa representação da complexidade das literaturas do mundo ainda de 2017, Ilija Trojanow apontou, de forma expressiva, embora não sem
está longe de ser completa. Isto porque ainda não incluímos uma dimen- certas contradições, para os pressupostos, condições e perspectivas de tal
são dinamizadora decisiva tanto das literaturas do mundo atuais quanto escrita. Migração e fuga não são – como já se indica no segundo micro-
daquelas futuras, a qual transcorre como que transversalmente às diferen- texto – atributos transitórios: “Nada na fuga é fugaz. Ela se impõe à vida
ciações examinadas até então e, em sua transversalidade, vai crescendo e nunca mais a liberta” (TROJANOW, 2017, p. 11). Talvez sejam justamente
continuamente em importância. os autores e autoras das literaturas sem residência fixa que melhor possam
Nesse sentido, trata-se – em linhas gerais – de formas e normas de uma avaliar de que maneira a literatura de língua alemã vai se modificar, sob
escrita-entre-mundos, que apresenta uma longa tradição histórica, visto que o signo das atuais correntes migratórias, não apenas tematicamente, mas
o homo migrans é tão antigo quanto o próprio homo sapiens. Porém, sob sobretudo estruturalmente.
o signo das migrações, exílios, deportações e desalojamentos massivos no Nesse sentido, as literaturas sem residência fixa, de forma alguma,
século XX e, especialmente, no contexto da quarta fase de globalização ace- manifestam e documentam o assalto ou até a invasão do “outro”, do “estra-
lerada, resultaram movimentos migratórios e transmigratórios de massa 13 Tradução livre do título Nach der Flucht (TROJANOW, 2017). [N.T.]

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nho”, no “próprio”. Antes, elas mostram caminhos para sair dos mapas tanto nais distintas, mas a de muitas literaturas do mundo, simultaneamente,
tentadores quanto ilusórios e dos mappings fixadores do outro (ameaça- diferentes e divergentes. As literaturas sem residência fixa formam aqui o
dor), tal como eles vêm agregados, em forma cartográfica ou discursiva, elemento dinamizador par excellence.
por ex., no ideologema de Samuel P. Huntington, Clash of Civilizations, ou Junto a todas as outras áreas culturais que, em sua complexidade
no panfleto de exclusão das civilizações de Niall Ferguson, Civilization. derivada da falta de processos globais de expansão, não encontraram uma
The West and the Rest. Essas literaturas auxiliam-nos na possibilidade de difusão territorializável ao redor do mundo, mas que já nos tempos de
imaginar um mundo que já não está preso a uma ideia de alteridade e que Goethe – e muito mais ainda na época da publicação da “Filologia da lite-
procede à constante separação de um “próprio” e de um “estrangeiro” (ou ratura mundial”, de Erich Auerbach – apareciam claramente no horizonte
um “outro”), mas que se caracteriza por expansões e ampliações contí- das construções da literatura universal, desenvolveram-se no bojo das
nuas: essas literaturas formam laboratórios estéticos que possibilitam um literaturas sem residência fixa formas de escrever e de pensar altamente
seguir-pensando e um seguir-vivendo sob o signo da convivência. vetorizadas que nos ajudam a compreender todo um mundo de literaturas
Autores como Saint-John Perse, Samuel Beckett, Albert Cohen ou como literaturas do mundo, como literaturas de um só mundo. Exatamente
Elias Canetti já haviam criado esses mapas de movimentos multilíngues, como quando Khal Torabully falava, na citação inicial, daquelas migrações
polilógicos, para um mundo futuro, não aprisionado a uma alterização forçadas que teriam ampliado e dilatado a land of mankind. A pluralização
obsessiva de língua e cultura. As literaturas do mundo prestam, aqui, um das literaturas não tem de acompanhar a ideia de um mundo, de um único
auxílio decisivo para a imaginação, uma vez que apresentam e represen- planeta inter-relacionado, no qual a humanidade busca as possibilidades
tam padrões representacionais e de pensamento vetoriais, aparecendo de uma convivência em paz e na diferença.
com máxima intensidade nas literaturas sem residência fixa, numa expres- Por meio de seus incessantes movimentos e mudanças de perspec-
são sensorial, estética. Os lieux de mémoire das literaturas do mundo não tiva, as literaturas do mundo ampliam a habitabilidade deste mundo atra-
são locais estáticos de memória, mas foram registrados e assinalados em vés da humanidade, de modo que a busca pela convivência e a pergunta
mapas de movimento. Tampouco o microcosmo da Europa pode ser pen- por um convívio mundial pode ser apreciada como sendo o núcleo de
sado – segundo já nos mostra o seu mito criador – sem o entorno não uma escrita-entre-mundos que atravessa línguas, culturas e épocas. Há
europeu e as constantes migrações, visto que a Europa deportada e violen- muito se desenvolveram não apenas formas escritas transnacionais, mas
tada, no sentido territorial das atuais delimitações, não era uma europeia. também transareais e, simultaneamente, translíngues (posto que trans-
Partindo do ponto de vista aqui escolhido, as literaturas sem resi- culturais), as quais, após a época da literatura universal, estruturam a
dência fixa, mas também as literaturas do mundo como um todo for- pluralidade dos processos literários universais de maneira ainda mais
mam, transversalmente às línguas, transversalmente às culturas, trans- complexa e aberta.
versalmente às delimitações que de modo algum se diluem, mas de certa O aspecto tradutório, que era corriqueiro na République des Lettres, e
maneira se multiplicam, uma escola de pensamento do multilógico e um ainda tornava autores como Georg Forster, Alexander von Humboldt ou
laboratório para uma convivência para além da exclusão, para além de Adelbert von Chamisso tão inconfundíveis, sempre está inscrito no trans-
uma incessante alterização e expulsão. As antigas dicotomias entre uma linguismo. Nesse sentido, a tradução pode estar literalmente inscrita, até
literatura nacional (pensada de forma homogênea) e uma literatura uni- mesmo ao se escrever na “própria” língua materna. Assim, Herta Müller
versal (inventada a partir da Europa) se enfraqueceram muito no decorrer – para citar mais uma detentora do prêmio Nobel de literatura – assinalou
da atual fase de globalização acelerada, que tende ao seu final, e deram o fato de que não se encontra uma palavra em romeno, em seus textos
lugar a uma concepção e práxis multilógicas, não de uma única literatura escritos em alemão, mas que, ao mesmo tempo, o romeno está onipre-
universal, que salienta as respectivas lógicas próprias de linhas tradicio- sente em seus textos: “Nos meus livros ainda não escrevi uma única frase

36 37
em romeno. Mas obviamente o romeno sempre esteve presente, porque se Felder einer prozeßorientierten wissenschaftlichen Praxis. Weilerswist: Velbrück
fundiu com o meu olhar” (MÜLLER, 2003, p. 27). Wissenschaft, 2001, p. 215-239.
Seja na Europa, nos países árabes ou nas Américas, seja no jogo tran- BENJAMIN, Walter. Paris, die Hauptstadt des XIX. Jahrhunderts. In: Das Passagen-
Werk. Vol. 1. Frankfurt: Suhrkamp, 1983, p. 45-59.
satlântico ou transpacífico das relações, seja no ato de atravessar ou de
BRAGARD, Véronique. Transoceanic Dialogues: Coolitude in Caribbean and
traduzir (duplicidade perceptível na palavra alemã Übersetzen), o futuro
Indian Ocean literatures. Frankfurt/Berlim/Nova York: Peter Lang, 2008.
das literaturas do mundo reside no desdobramento criativo de lógicas
ECKERMANN, Johann Peter. Gespräche mit Goethe in den letzten Jahren seines
diferenciadas e mesmo variadas, para as quais têm de ser desenvolvidas Lebens. [Ed.: Fritz Bergemann. Vol. I]. Frankfurt: Editora Insel, 1981.
não apenas teorias da poesia, mas também teorias da leitura, atualizadas e ETTE, Ottmar. Asymmetrie der Beziehungen. Zehn Thesen zum Dialog
baseadas no movimento. Aqui residem as tarefas da filologia transareal e der Literaturen Lateinamerikas und Europas. In: SCHARLAU, Birgit (org.).
de uma arte da leitura como sendo a arte do traduzir. Lateinamerika denken. Kulturtheoretische Grenzgänge zwischen Moderne und
Isso porque as literaturas constituem mundos-ilhas e ilhas-mundos, Postmoderne. Tübingen: Editora Gunter Narr, 1994, p. 297-326.
que se juntam em arquipélagos e se encontram em relações de troca entre ______; PANNEWICK, Friederike (orgs.). ArabAmericas. Literary Entanglements
of the American Hemisphere and the Arab World. Frankfurt/Madrid: Vervuert –
si, transarquipélago. Por vezes, sob a superfície da água que percorremos Iberoamericana, 2006.
tal como na imagem inicial de Khal Torabully, ocultam-se as conexões ______. Europa transarchipelisch denken. Entwürfe für eine neue Landschaft der
entre aqueles espaços que, com suas linhas tectônicas de quebra e movi- Theorie (und Praxis). Lendemains, Tübingen, XXXIX, 154/155, p. 228-242, 2014.
mento, tinham sido inundados, outrora, pela maré alta. As descontinui- ______. Beschleunigung. Kann die Globalisierung ein Ende nehmen? In: KAUBE,
dades entre as ilhas, os arquipélagos e os continentes das literaturas do Jürgen / LAAKMANN, Jörn (orgs.). Das Lexikon der offenen Fragen. Stuttgart:
mundo permitem e possibilitam sempre mudanças de olhar e de perspec- Editora J.B. Metzler, 2015.
tivas novas: a cada vez, novas configurações de um mundo que é criado ______. TransArea. A Literary History of Globalization. [Trad.: Mark W. Person].
Berlim/Boston: Walter de Gruyter, 2016.
por estas literaturas desde milênios, em contextos transareais em cons-
______. WeltFraktale. Wege durch die Literaturen der Welt. Stuttgart: Editora J.B.
tante mutação. Elas inauguram a possibilidade inestimável, uma vez que
Metzler, 2017.
fundamental para a sobrevivência, de se pensar multilogicamente – e isso
FERGUSON, Niall. Civilization. The West and the Rest. Nova York: Penguin Books,
significa: em muitas lógicas, ao mesmo tempo. 2011.
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introdução
[...] porque se pode morrer pela identidade raiz única, mas não se pode mor-
rer pela crioulização. A crioulização exige que não se morra.1 (GLISSANT,
1996, p. 98)

A afirmação de Édouard Glissant acima é apontada também por Yann


Martel em Self, cujo personagem afirma: “Eu podia me identificar com
pelo menos três desses grupos, o que me tornava mais um camaleão do
que um híbrido” (MARTEL, 1998, p. 204).2 Assim, atualmente podemos
pensar as relações contemporâneas a partir de uma identidade que não
preexiste às interações sociais e comunicativas. Nesse caso, concebemos
o indivíduo, a partir de Derrida (1967, p. 335), como consciência descen-
trada por suas múltiplas relações com a ordem simbólica. Elas o cons-
troem na imprevisibilidade de suas reações e de suas interconexões, o que
leva à criação de estratégias que permitem sentir-se à vontade e sentir-
se criador no maior número possível de camadas sócio-simbólicas. Será
então possível encontrar o outro que, por sua vez, também participa de
processos similares. Nesse caso, o camaleão de Yann Martel representa
a figura romanceada da teoria do sujeito derridiano que escapa à onto-
topologia, ao ser-presente que depende de uma territorialidade ou de uma
localidade. O camaleão desloca o recorte interior/exterior, propondo uma
fluidez que se utiliza do múltiplo e do temporário. São tendências como

1 As citações de obras originais em francês foram traduzidas e serão apresentadas aqui apenas
em português. [N.T.]
2 Essa fala se dá no contexto formado por estudantes anglófonos, por artistas, pelos que eram
cool e por quebequenses francófonos.

40 41
essas que inspiram os discursos socioculturais contemporâneos inscritos sociedade de acolhida, que se somavam àqueles aos quais estavam habi-
na legitimação dos deslocamentos geossimbólicos e na valorização do tuados. Esse multiculturalismo tradicional prejudicava a capacidade de
multilinguismo, bem como do transcultural. afirmar-se em uma funcionalidade operada em um campo geossimbó-
lico em expansão. De fato, qualquer discurso étnico tradicional esta-
as multiplicidades discursivas no canadá belece uma relação de dualidade entre o eu e o outro, como mostram
Marco Micone e Antonio D’Alfonso (1990), especialmente nos discur-
No que tange ao Canadá, há alguns pontos a serem considerados nesse sos das personagens femininas dominadas pela autoridade paternal.
novo contexto geossimbólico:
a) a presença de um discurso de imigrantes recentes que querem inte- os escritores “étnicos” bilíngues e biculturais:
grar-se o mais rápido possível à sociedade canadense, pois compreen- o desejo de sucesso acima do peso da nostalgia
deram que a identidade é um conjunto de imagens de si praticadas
mulher polifônica que ama em árabe,
conforme os contextos. Elas estão relacionadas ao fato de que a defini-
dá à luz em inglês
ção identitária não se assenta mais unicamente em um pertencimento e fala com seu bebê em francês.
a um território concebido como homogêneo segundo a cartogra- (SARAVIA, 2014, p. 41)
fia difundida pelos atlas. Essas imagens de si se constroem em uma
ágora definida por um foco voltado para um devir que reage conti- Nos anos 1960, os escritores étnicos se entregavam com frequência à nos-
nuamente sobre o presente, definido, por sua vez, por um conjunto de talgia e ao sonho do retorno, auxiliados por uma concepção essencialista
instituições e textos, em particular a Carta Canadense dos Direitos e e folclórica do multiculturalismo burocrático. Em Addolorata, de Marco
das Liberdades e suas especificações relativas ao multiculturalismo (cf. Micone, vemos isso. Um dos personagens dizia em 1984: “Em quarenta
KYMLICKA, 2007). As imagens de si contextualizam-se em dinâmicas anos ainda seremos imigrantes. Sempre. Não são os anos vividos aqui que
de troca cujos limites modificáveis são definidos por um conjunto de nos tornam imigrantes ou não, mas a forma como vivemos aqui. Num
textos legais e cujas implicações e contextos de aplicabilidade precisam país em que os ricos e os patrões levam o governo pela coleira, todos os
ser redefinidos regularmente. pobres, todos os trabalhadores são imigrantes, mesmo que eles se chamem
b) a presença de um discurso feminino que alterou a cultura canadense, Trembley ou Smith” (MICONE, 1984, p. 61). Porém, nos anos 1970, e ainda
o qual defende a igualdade de direitos e reivindica a igualdade de fato, mais em 1980, os escritores nascidos no Quebec de pais europeus ou nas-
especialmente salários iguais para trabalhos iguais. Com frequência, cidos fora do Canadá começam a publicar livros que, embora ainda não
esse discurso vai de encontro a um dualismo essencialista da moder- circulem nos cursos universitários ou escolares – sempre voltados aos pres-
nidade retomado pelos discursos etnicistas. O discurso do multicultu- supostos de uma literatura em que as margens permanecem em seu lugar –,
ralismo oficial insistia inicialmente sobre o reconhecimento de diferen- conquistam espaço no mundo editorial e no gosto de alguns leitores, pois
ças culturais devido a uma ótica territorialista e cultural tradicional e se abrem para o futuro e para a possibilidade de encontros frutíferos.
estereotipada, criticada por Neil Bissoondath (1995) e Alberto Kurapel Constatamos isso com Danny Laferrière, escritor montrealense de
(1993, p. 16), esse último em peças de teatro trilíngues. Esse discurso origem haitiana, que apresenta, de forma humorística, as difíceis relações
não permitia que os recém-chegados compreendessem plenamente entre um negro e uma quebequense anglófona em Comment faire l’amour
os valores liberais da sociedade canadense. Ele impedia a instauração avec um Nègre sans se fatiguer.3 Ele afirma, sucedendo ao escritor estadu-
de uma dinâmica aberta à produção de um terceiro elemento, isto é,
3 Este romance foi também publicado no Brasil pela Editora 34 com o título Como fazer amor
auxiliar todos os indivíduos a se contextualizarem nos novos valores da com um negro sem se cansar. [N.T.]

42 43
nidense negro e gay James Baldwin, “não se nasce negro, torna-se negro” -se trancado em um quarto em Montreal” (LAFERRIÈRE, 2009, p. 32). Essa
(LAFERRIÈRE, 1985, p. 153), mas parece ir mais longe do que Baldwin, em inquietante estranheza mostra como permanecemos presos ao cânone
The Fire next Time,4 que afirmava que “Color is not a human or a perso- literário, o do Estado nacional e da marca de distinção por seus códigos,
nal reality, it is a political reality”5 (BALDWIN, 1995, p. 118). No entanto, a ainda que como falta potencial.
situação dos negros no Canadá e no Quebec é bem diferente da situação Entretanto, a inquietante estranheza está longe de ser a única pers-
nos Estados Unidos, já que, globalmente, os negros canadenses são mais pectiva manifesta nos escritores montrealenses ou migrantes. Em Théories
escolarizados do que a média dos canadenses. Nesse caso, constatamos caraïbes, Joël Des Rosiers apresenta, sobretudo, uma visão positiva da
que a estratégia de Laferrière é particularmente eficaz. Ela atesta também noção de estrangeiro e estranheza:
que o autor não insiste em se encerrar na valorização da autenticidade
O verdadeiro local de nascimento é aquele em que se lançou, pela primeira
étnica em si mesma e que é capaz de se adaptar ao contexto de recepção, vez, um olhar de estrangeiro sobre si mesmo: minhas primeiras pátrias
conseguindo hibridizar os discursos. Antonio d’Alfonso, em um romance foram terras estrangeiras. Eu gostei dessas relações estranhamente elusivas,
profundamente marcado por uma poesia discreta, Avril ou l’anti-passion, estranhamente íntimas, que existem entre um homem e terras quentes, das
por sua vez, afirma que não há “país puro, somos todos de outro lugar” quais ele é expropriado para apostar seus esforços em terras prometidas,
agora objeto de seu desejo. (DES ROSIERS, 1996, p. 59)
(D’ALFONSO, 1990, p. 88).
No entanto, essa manifestação de estranheza pode levar a perspecti- Como Joël Des Rosiers, muitos escritores querem compartilhar o
vas às vezes realmente contraditórias. De fato, alguns escritores sentem-se, presente e o futuro com os habitantes locais, à semelhança da maioria
acima de tudo, exilados, e poderíamos dizer que se deliciam ao falar do dos imigrantes, e principalmente serem bem-sucedidos. É o que afirma
exílio. No caso de Sergio Kokis, a nostalgia está por perto e é presente; e o um personagem de Marco Micone em Gens du silence, o qual passa de
camaleonismo, positivo para muitos escritores, em Le pavillon des miroirs,6 uma perspectiva de vítima que assume uma visão dominada à expressão
ainda é percebido como negativo, pois inautêntico: “Contento-me agora de um desejo enérgico de fazer parte da dinâmica canadense e obter sua
em passar despercebido, em fugir das demandas, em bancar o camaleão, parte nas riquezas: “Não tenho nenhuma vontade de escrever peças sobre
em não levar muito a sério os ardores de meus semelhantes. A solidão, por o tema ‘estou na merda e aqui fico’8 para ver em seguida críticos e univer-
trás de uma aparência de marionete, constitui a única posição confortável sitários, que precisam publicar, pontificando sobre a implacabilidade do
no meu caso” (KOKIS, 1994, p. 54). A solidão, o sofrimento, é ainda mais destino” (MICONE, 1982, p. 95). Essa também é a posição da escritora de
forte em Émile Ollivier, em cuja obra La Brûlerie se lê que “é mais fácil origem chilena Marilú Mallet em Miami Trip: “Para mim chega... de ser
fugir de Alcatraz do que deixar a Côte-des-Neiges”7 (OLLIVIER, 2002, p. pobre, de conviver com insignificantes, com pessoas sem importância...
112). Em algumas obras de Dany Laferrière, assistimos a uma inquietante quero dinheiro e vou conseguir” (MALLET, 1986, p. 39). Quanto a Dany
estranheza particular, como em L’énigme du retour, em que o personagem Laferrière, na maior parte do tempo seus personagens afirmam, como em
diz ter “escapado da ilha (Haiti), que parecia uma prisão, para encontrar- Comment conquérir l’Amérique en une nuit, que querem toda a América.
Esse discurso é similar ao de um dos personagens de Monique Proulx em
4 Este livro também foi editado no Brasil pela Biblioteca Universal Popular sob o título de Da
Les aurores montréales:
próxima vez, o fogo. [N.T.]
5 Os fragmentos de obras em inglês serão mantidos na língua original, conforme são citados Como você, estou farta de ser uma imigrante. Como você, me insurjo contra
pelo autor do capítulo. [N.T.] aqueles que se enroscam na condição de imigrante como numa doença incu-
6 Este romance no Brasil ganhou o título de A casa dos espelhos e foi publicado pela Editora rável. Meus pais falam comigo em inglês desde que nasci, inglês e italiano
Record. [N.T.]
7 Bairro de Montreal cujos moradores são majoritariamente imigrantes e estudantes; é um 8 No original “C’hus dans marde et j’y reste”, o que na variedade popular do francês do
dos bairros com maior densidade populacional e diversidade étnica do Canadá. [N.T.] Quebec corresponde a “Je suis dans la merde et j’y reste”. [N.T.]

44 45
para me manter imóvel, agarrada a nossas famílias de Saint Léonard9 e ao as problemáticas culturais e o bilinguismo
sonho americano... Nasci aqui, não sou imigrante, quero ocupar o território.
(PROULX, 1996, p. 96) […] so that if you’re unilingual by age forty, then you’re pretty well cursed
to being unilingual for the rest of your life, unless, of course, you make an
Fica claro que esses personagens não manifestam nostalgia em rela- extraordinary effort to overcome that handicap. (HIGHWAY, 2015, p. 33)
ção a um local de nascimento definido pelo acaso e que não querem com-
partilhar seus ressentimentos, nem o de seus pais, nem o da sociedade Se o bilinguismo oficial canadense funciona enquanto prática linguística
de acolhida, baseados no passado característico das pessoas nascidas no normatizada por leis do governo federal e da única província oficialmente
território e de pais ditos “da gema”.10 As sociedades norte-americanas são, bilíngue, Nova Brunswick, muitos regulamentos de instituições das provín-
de fato, cada vez mais definidas culturalmente por pontos de vista que cias (Ontario, Quebec, Manitoba, Nunavut) dedicam-se à promoção das
se envolvem nas transformações tecnoculturais e na legitimidade dos línguas minoritárias ou de um bilinguismo ativo nas empresas, nos bancos,
deslocamentos que ocorrem no planeta, o que também significa não se nas universidades (incluindo universidades totalmente bilíngues, como a
identificar com o papel de vítima. Isso é claramente expresso por Filippo Universidade de Ottawa), nos serviços oficiais de atendimento ao público,
Salvatore: “The defeats of the Plains of Abraham and that of the Patriotes nas escolas bilíngues etc. É o inglês no Quebec, o francês em Ontario ou
of 1837 did not leave indelible psychic scars on me. Psychologically, I am Manitoba e o inuktitut em Nunavut, sem falar das regiões menores em
not part of a colonized people” (SALVATORE, 1991, p. 203). Nas entrelinhas, que os funcionamentos socioculturais cotidianos passam às vezes por um
compreendemos: eu me pertenço. Esse é um ponto de vista muito impor- trilinguismo de línguas autóctones cree ou anishinaabe, inglês ou francês.
tante nas Américas. Tudo isso em bairros de cidades como Vancouver, Toronto, Montreal, onde
A promessa de pertencer a si mesmo se dá no encontro com outros se fala e se escuta amplamente o mandarim, o árabe e o vietnamita.
que também se pertencem e querem realizar seus desejos de expansão Também em textos literários, encontramos muitos exemplos de
científica, cultural, econômica e social característicos da sociedade de bilinguismo ou mesmo de trilinguismo. Contudo, a utilização de línguas
saberes no acesso democratizado à concorrência, a fim de criar novas depende das intenções diversas em relação ao impacto nas comunidades
riquezas, econômicas e simbólicas, orientadas para o futuro, a fim de evi- de origem dos autores que os produzem. Assim, em L’homme invisible/
tar ao máximo possíveis exclusões, guerras e genocídios. É o que tentam The invisible Man, Patrice Desbiens, autor francófono de Ontario, região
realizar as minorias ao redor do mundo, especialmente as minorias mul- em que o francês é utilizado por 5% da população, constatamos que esse
tilíngues imigrantes e minorias francófonas do Canadá, capazes de pene- bilinguismo pode ser subtrativo, em particular numa perspectiva em
trar nos centros e cujos indivíduos têm, hoje em dia, acesso em massa que há a valorização de uma concepção de Estado-nação centrado em
a uma educação superior ou universitária especializada no múltiplo e si mesmo. Nesse caso, Desbiens explora as modalidades de uma relação
adepta do bilinguismo. quase colonial em que os francófonos são dominados pelos anglófonos e
se assimilam ao inglês para conseguirem empregos e se beneficiarem das
mesmas vantagens que os dominantes. Homi Bhabha faz uma boa análise
dessa dinâmica em que o bilinguismo funciona como subtração. Imitar o
dominante, isto é, ser obrigado a praticar o mimetismo,11 segundo Bhabha,
9 Bairro de Montreal com uma das maiores concentrações de canadenses de ascendência
leva ao not-quite, ao não exatamente, ou seja, à confrontação entre um
italiana. [N.T.]
10 Isso justificaria a visão de Pierre Elliott Trudeau em Le fédéralisme et la société canadienne- modelo colonial valorizado e uma série de condutas desvalorizadas pelo
française. Ele tinha teorizado o multiculturalismo para escapar também do dualismo
anglófono/francófono e dos repetidos ressentimentos de duas comunidades que bloqueiam 11 Mimetismo (no sentido de mimicry) não deve ser confundido com mímesis, como lembra
as transformações necessárias ao Canadá. DE TORO (1999, p. 47).

46 47
colonizador. De fato, a minoria só pode, na melhor das hipóteses, imitar No contexto da globalização e da sociedade dos saberes, ser minoria
o modelo, mas não totalmente: “[…] mimicry emerges as one of the most passa a ser uma vantagem, pois conhecer várias línguas e culturas tor-
elusive and effective strategies of colonial power and knowledge […] colo- nou-se muito importante. O Estado-nação não é mais uma entidade con-
nial mimicry is the desire for a reformed, recognizable Other, as a subject cebida de forma homogênea e centrada em si mesma, mas uma rede de
of difference that is almost the same, but no-quite” (BHABHA, 1984, p. 126). conexões transnacionais, econômicas, sociais e culturais. Trata-se então
O que é ainda mais surpreendente é que o colonizado, ou o que a ele de permitir ao conjunto da população desenvolver suas potencialidades,
se assemelhe, como a minoria econômica ou culturalmente desfavorecida, acumular saberes e melhorar suas perspectivas em função de um futuro a
é not-quite, invalidado justamente por saber mais, por conhecer muitas ser construído em conjunto através do diálogo. Pico Iyer, escritor anglo-
culturas e línguas (no mínimo a sua e a do colonizador). O saber da mino- -canadense, expressa isso bem: “In that respect, Toronto felt entirely on
ria é considerado pelo dominante como inútil, ilógico, não científico, não my wavelength. It assembled many of the pasts that I knew, from Asia
pragmático. Ele não tem valor e interfere negativamente no saber valori- and America and Europe; yet unlike such outposts of empire... it offered
zado, único e dominante. Ser bilíngue, por exemplo, impede que ele seja the prospect on uniting all the fragments in a stained-glass whole” (IYER,
um decalque do colonizador que, por ter poder, não precisa saber mais, 2000, p. 125). Nesse contexto, o indivíduo não é mais apenas um consumi-
nem aprender várias línguas. dor, mas um criador e um inovador re-situado em um espaço geográfico,
O colonizado é visto como inadequado, incapaz de atingir um certo econômico e cultural que resulta da participação de muitos indivíduos que
nível e de controlar o mundo que o cerca com seus saberes complementares têm acesso a um número crescente de saberes e de redes em um espaço
inúteis ou até nocivos. É isso que mostra Herménégilde Chiasson em Mourir cada vez mais aumentado.
à Scoudouc. O narrador dessa obra diz, tomando emprestada a língua do Essa situação se verifica na conferência do escritor cree Tomson
colonizador: “Make us a beautiful ghetto, not in a territory, no, no right in us, Highway, que desde a infância fala as línguas indígenas cree e dene. Na
make each of us a ghetto, take your time please”, ou mesmo: “please treat us sequência, ele aprendeu latim em uma escola jesuíta, tornando-se poli-
like shit please” (CHIASSON, 1974, p. 44). Contudo, os colonizados esperam glota: fala, além disso, inglês, francês, espanhol e alemão. Ele se tornou
um futuro melhor: “Como fazer com que compreendam, [...] que a Acádia também um conferencista internacional mundialmente conhecido e um
não é lepra, [...] que não queremos mais ser forçados a acreditar que temos grande pianista. Sua argumentação é interessante, pois estabelece uma
lepra” (Ibidem, p. 39), “Será que um dia seremos aceitos como pessoas, e conexão entre a estrutura da língua e a relação com o outro e a forma
não como uma espécie raríssima de primatas que recém-evoluíram [...]?” de construir o mundo, de ter uma perspectiva de si e do cosmos. Sobre
(Ibidem, p. 40). O not-quite está claramente relacionado a um jogo de soma este último aspecto, Tomson Highway destaca que as línguas ameríndias,
zero; há aqueles que ganham sempre e aqueles que jamais ganharão. como o cree, não têm distinção de gênero. Tudo é masculino e feminino.
No entanto, no contexto da globalização, as relações de poder se alte- Isso inclui deus e os seres humanos, o que facilita o diálogo com os não
ram. Instaurou-se uma dinâmica de expansão relacionada à sociedade dos
heteronormativos, como gays ou queers. Somos todos ao mesmo tempo
saberes. É cada vez mais importante capitalizar o know-how ou as qua-
masculinos e femininos. Além disso, evita o absurdo inerente às lín-
lificações e os diplomas. É cada vez mais importante, para ser eficiente,
guas indo-europeias de se perguntar por que uma pedra é feminina, um
dominar muitas línguas, sejam elas locais, autóctones ou internacionais,
rochedo é masculino e uma montanha feminina, e não o contrário. Em
como o francês, o inglês, o espanhol, o chinês ou o árabe. Nesse sentido,
contrapartida, o cree faz distinção entre o que tem alma (ana) e o que não
La Cité Collégiale, escola técnica francófona de Ottawa, exibe a seguinte
tem. É verdade que uma pedra tem alma, enquanto o corpo de alguém que
frase: “FRENCH speaking students BILINGUAL employees”.12
faleceu não tem mais (anima). No que diz respeito ao reconhecimento da
12 Citação extraída do Ottawa Business Journal (2000, p. 11).
alteridade, Highway destaca claramente que um monolíngue é semelhante

48 49
a alguém que, em uma reunião, só falaria de si e não escutaria os outros: “It e bissexuais, chineses de Brossard, iranianos de Saint-Laurent...” (Ibidem,
means you are not listening to what the other person has to say. It means p. 12). No lugar desse essencialismo do deputado, que beneficia aqueles
you are not interested” (HIGHWAY, 2015, p. 34). Desse modo, para ele, o que têm o poder de definir os outros por um processo de atribuição de
multilinguismo, mais ainda do que o bilinguismo, é o mais belo presente estereótipos a suas condutas e aspirações, ele propõe novas criatividades:
que os pais podem oferecer a seus filhos, pois assim eles lhes estão dando “busco nicaraguenses fazedores de haicais, ensaístas cambojanos nas pági-
o mundo, dando uma vida fantástica e “one of the great keys to happiness” nas de Le Devoir”15 (Ibidem, p. 43).
(Ibidem, p. 16). Alejandro Saravia tampouco esquece que a língua se nutre também
de desejos e que a sexualidade e o amor ultrapassam as estruturações
o exemplo de alejandro saravia semântico-gramaticais marcadas pela autoridade da mãe pátria, expressão
bizarra que conjuga, de maneira laica, a veneração religiosa pela Virgem
Speaking one language, I submit, is like living in a house with one window Maria e por Deus Pai. Para além desse processo cuja origem, segundo os
only. (HIGHWAY, 2015)13
comunicadores da autenticidade étnica, deveria marcar para sempre os
De Tomson Highway passamos a Alejandro Saravia, escritor trilíngue espíritos e as emoções, vive-se um bem-estar, uma felicidade em que “as
canadense, nascido em Cochabamba na Bolívia. Em L’homme polyphoni- línguas vão se procurar apesar de suas línguas maternas” (Ibidem, p. 39).
que, ele nos fala do francês: “e nós que amamos o francês em nossas lín- O beijo vence a fonética. E surge a pergunta: “Do you dream in Urdu,
guas de origem” (SARAVIA, 2014). Essa coletânea de textos é redigida em Arab or Spanish?” (Ibidem, p. 36). Pouco importa, pois o essencial é ter
francês, inglês e espanhol.14 Não se trata de tradução, mas, antes, do sopro sonhado juntos. É evidente que nem sempre tudo é tão fácil, pois os trau-
de uma respiração que se nutre dos fluidos das esperanças cosmopolitas. mas, a pobreza, o racismo e a exclusão estão sempre presentes em uma
Eis o que faz dele um “eterno suspeito no entendimento dos monofônicos” paranoia defensiva que continua matando as esperanças: “un caribeno
(Ibidem, p. 41). Mas Saravia já enxerga as relações de poder entre línguas encuentra un colchon abandonado donde poder dormir sonar que habla
e as mestiçagens culturais e linguísticas como os sincretismos mais ines- francés et inglés” [sic] (Ibidem, p. 19).
perados, aqueles que inventam o novo no imprevisto, uma outra maneira A polifonia linguística se combina ao transcultural e a uma cons-
de falar do que Glissant chama de crioulidade, que é a hibridação mais o ciência do cosmopolitismo, mais que do multiculturalismo oficial, que
acaso. Seu trilinguismo o leva a viver um mundo de encontros simbóli- sem dúvida auxilia a participar ativamente do futuro da nova sociedade
cos que escapam às crispações das tensões que chamamos de apropria- de acolhida, mas que não garante essa criatividade aberta intensamente e
ções culturais. É evidente que os ocidentais estereotiparam ao extremo resultante do encontro positivo de alteridades. Contudo, é a esta criativi-
os dominados e as minorias, mas isso não é motivo para proibir qualquer dade que nos convida Alejandro Saravia, que transforma a nós, leitores e
mestiçagem. Precisamos, segundo Saravia, de verdadeiros encontros em leitoras, em nômades do cultural e do simbólico. Quanto às leitoras, como
que, no diálogo, escapemos à pseudoautenticidade controlada pelo nacio- veremos a seguir, elas ajudam os homens a se desfazerem de estereótipos
nalismo: “Meu deputado quebequense se manifesta para que a identidade falocêntricos que contribuem para perpetuar as relações de poder, recu-
quebequense seja respeitada... pelos innus, mohawks, inuits, vegetarianos sando a igualdade na diferença. Para isso, propõem transformações cultu-
rais que passam por uma reconfiguração das semânticas linguísticas mar-
13 Citação extraída da dobra da capa do livro. [N.T.] cadas pelas grandes narrativas de legitimação e, em particular, pela grande
14 Tem-se aqui algo distante do heterolinguismo que coloca pequenos textos em língua estran- narrativa platônica que afirma que os homens são superiores às mulheres.
geira a fim de melhor situar um texto em um contexto. Na literatura do Quebec do século
XIX, em La jongleuse, de Casgrain, por exemplo, inserem-se palavras em iroquês para refor-
çar o paradigma barbárie/civilização (cf. GRUTMAN, 1997). 15 Jornal de língua francesa publicado em Montreal e distribuído em todo o Canadá. [N.T.]

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o discurso das mulheres um francês que não é nem o da França, nem o francês padronizado pelos
clichês. Elas sabem reconhecer a criatividade de textos que permitem
The nomadic, polyglot writer despises mainstream communication; the traf- comunicar conteúdos culturais diferentes.
fic jam of meanings waiting for admission at the city gates creates that form of
pollution that goes by the name of “common sense”. (BRAIDOTTI, 2018, p. 16) Além de Bersianik, pensamos em escritoras magrebinas ou de ori-
gem haitiana, por exemplo. A noção de bilinguismo é modificada aqui
Rosi Braidotti, em Nomadic Subjects, insiste que as feministas são poli- para dar conta de uma transformação na estrutura gramatical e semântica
glotas, pois mesmo em uma só língua, inglês ou francês, compõem tex- que surge para comunicar mudanças culturais importantes, como as tra-
tos que não correspondem aos estereótipos falocêntricos, às expectativas zidas pelo feminismo. Pensamos também em textos e conteúdos culturais
criadas por um cânone literário há muito tempo dominado por um dis- ou em formas de expressão que não são necessariamente marcados pela
curso masculino. É o caso de Colette em La vagabonde, assim como de escrita. Isso pode ser percebido em vários textos de autores do Caribe,
Virginia Woolf ou de Gertrude Stein. É também o caso da autora quebe- cuja escrita é marcada pela oralidade, como é o caso de muitos textos de
quense Louky Bersianik, que, em Le pique-nique sur l’Acropole, contesta as Édouard Glissant, cuja estrutura se orienta mais pelo encanto do refrão do
grandes narrativas de legitimação que, às vezes, se impõem por séculos e que por uma argumentação racional linear.
justificam as exclusões, como a das mulheres a partir de Platão.
Nas últimas páginas de seu livro, Bersianik cita e desconstrói a grande
conclusão
narrativa platônica que afirma que as mulheres são inferiores aos homens,
pois dão à luz um corpo enquanto os homens dão à luz coisas do espírito. Nessa América francófona, mestiça e polifônica. (SARAVIA, 2014, p. 13)
Nesse livro, no entanto, ela não busca produzir uma contranarrativa que
rejeite totalmente a narrativa platônica e apresente todos os homens como Dany Laferrière comenta uma pergunta que os jornalistas e os críticos
culpados. Sua intenção não é a retaliação violenta, mas ela modifica a lhe fazem com frequência: “‘Você é um escritor haitiano, caribenho ou
abordagem dessa narrativa platônica, onipresente, através da desconstru- francês?’. Respondi-lhes que assumia a nacionalidade de meu leitor. Isso
ção de sua narrativa no fragmentário de seu próprio texto e de seu jogo na quer dizer que, quando um japonês me lê, torno-me um escritor japo-
dupla intertextualidade. Já no título Le pique-nique sur l’Acropole podemos nês” (LAFERRIÈRE, 2008, p. 30). Dito de outro modo, a tradução que
ler o intertexto com O Banquete de Platão. Os homens não são representa- encontra os pressupostos do leitor de outra cultura leva à produção de
dos como culpados a serem excluídos porque teriam sido todos responsá- significados inesperados. Essa forma de translinguismo se abre para um
veis pelos infortúnios das mulheres. Enquanto destaca os responsáveis, ela camaleonismo literário que aceita as decodificações de leitores que, para
deixa o argumento em aberto a fim de instaurar um diálogo no fragmento Laferrière, fazem parte do texto. A concepção policultural da leitura nos
e no fragmentado, um encontro que vai passar por trocas semânticas em remete a uma concepção caótica do mundo que também se manifesta nas
que os significados não são os mesmos nos discursos masculinos e femini- muitas publicidades veiculadas nas Américas. Nelas, se incitam os leitores
nos. De fato, uma grande narrativa de legitimação deixa sua marca na lín- a produzir múltiplos significados a partir de uma imagem ou de um texto
gua, fornecendo evidências que não permitem dialogar, isto é, fazer com (cf. IMBERT, 2014). Assim, a partir de uma campanha de uma marca de
que as palavras se deixem penetrar pela presença do outro. prendedor de roupas, Xpedior (“Imagine. Then soar.”) diz: “Some see a
Por outro lado, Rosa Braidotti ressalta que as mulheres são particular- clothespin, a couple hugging and kissing, Some see a painful antidote for
mente capazes de reconhecer variações linguísticas. De fato, considerando snoring, sheets blowing from a clothesline on a breezy spring day, an alli-
sua luta pela igualdade na diferença, elas sabem que variações em relação gator standing on his hind legs”.16 O significado verdadeiro nunca está ali.
a uma norma dominante geram fragilidade. Estão, portanto, particular-
mente interessadas nos textos que manifestam variações na utilização de 16 Excerto extraído da revista Forbes, de 29 de maio de 2000, p. 117.

52 53
Ele é uma construção no encontro que depende de contextos mutáveis e referências bibliográficas
de cacofonias de estereótipos que modelam as leituras.
BALDWIN, James. The Fire next Time. Nova York: Modern Library, 1995.
Isso mostra bem que lidamos agora em Montreal, Toronto, Nova
BHABHA, Homi. Of Mimicry and Man: The Ambivalence of Colonial Discourse.
York, México, Rio de Janeiro ou Buenos Aires com uma literatura que,
October, n. 28, p. 126, 1984.
como alguns best-sellers – em particular Life of Pi,17 escrito em inglês por
BISSOONDATH, Neil. Le marché aux illusions. Montréal: Boréal, 1995.
um escritor montrealense francófono e que ganhou o prêmio Booker Prize
BRAIDOTTI, Rosi. Nomadic Subjects. Nova York: Columbia University Press, 2018.
e a consagração de vendas mundiais nos aeroportos –, escapa aos laços
CHIASSON, Herménégilde. Mourir à Scoudouc. Moncton: Les Éditions d’Acadie,
estreitos cânone/Estado-nação/monolinguismo para resultar em uma 1974.
transcultura que recobre o planeta. Estamos então distantes do escritor D’ALFONSO, Antonio. Avril ou l’Anti-passion. Montréal: VLB, 1990.
montrealense francófono que se dizia colonizado e encerrado em seu
DE TORO, Alfonso. ¿Cambio de paradigma? In: DE TORO, A. et al. (dir.). El
mundo, como ele frequentemente se apresentava nos anos 1960. Nos dias debate de la postcolonialidad en Latinoamérica. Frankfurt/Madrid: Vervuert/
de hoje, o livro escapa de seu ambiente hermenêutico nacional para atingir Iberoamericana, 1999.
uma quase situação de parábola, permitindo as leituras múltiplas e trans- DERRIDA, Jacques. L’écriture et la différence. Paris: Seuil, 1967.
versais voltadas a uma forma de cosmopolitismo, o que fica claro com Life DES ROSIERS, Joël. Théories caraïbes. Montréal: Tryptique, 1996.
of Pi, de Yann Martel, cuja dinâmica parabólica é um dos pontos fortes. DESBIENS, Patrice. L’homme invisible/The Invisible Man. Sudbury (Ontario): Prise
Nesse contexto, vemos que as diversas culturas e as múltiplas línguas de parole, 1997.
que se encontraram nas Américas podem contribuir para inventar as GLISSANT, Édouard. Introduction à une poétique du divers. Paris: Gallimard, 1996.
Américas e, em particular, o Canadá. De fato, como lembra Cornel West GRUTMAN, Rainier. Des langues qui résonnent. L’hétérolinguisme au XIXe siècle
(2009), inspirando-se no pragmatismo de Charles Sanders Peirce (cf. québécois. Montréal: Fides-CETUQ, 1997.
HIGHWAY, Tomson. A Tale of Monstrous Extravagance: Imagining Multilingualism.
PEIRCE, 1982), as Américas permanecem ainda em suspensão. É um conti-
Edmonton: The University of Alberta Press, 2015.
nente que está para ser completado, como lembra o escritor também que-
IMBERT, Patrick. Comparer le Canada et les Amériques. Québec: Presses de
bequense Yvon Rivard, em Le siècle de Jeanne, quando chama a América l’Université Laval, 2014.
de canteiro de obras (RIVARD, 2005, p. 292). É desses processos de perma- IYER, Pico. The Global Soul. Nova York: Vintage, 2000.
nente reinvenção de si que participam ativamente os escritores imigrantes KOKIS, Sergio. Le pavillon des miroirs. Montréal: XYZ, 1994.
e nascidos nas Américas. Nesse contexto, o objetivo é conseguir inventar KURAPEL, Alberto. Station artificielle. Montréal: Humanitas, 1993.
novas solidariedades e comunidades de interesse criadoras de produtivi- KYMLICKA, Will. Multicultural Odysseys: Navigating the New International
dades sociais, econômicas, científicas, linguísticas e culturais para lutar politics of Diversity. Oxford: Oxford University Press, 2007.
contra a falta de humanidade de que têm memória os grupos imigran- LAFERRIÈRE, Dany. Comment faire l’amour avec un Nègre sans se fatiguer.
tes, os grupos minoritários e, na verdade, todos os grupos, sabendo que Montréal: VLB, 1985.
uma memória sem esperança é contraproducente e que a esperança sem ______. Comment conquérir l’Amérique en une nuit. Montréal: Lanctôt, 2004.
memória não passa de ilusão. ______. Je suis un écrivain japonais. Montréal: Boréal, 2008.
______. L’énigme du retour. Montréal: Boréal, 2009.
Tradução: Patrícia Ramos Reuillard MALLET, Marilú. Miami Trip. Montréal: Québec Amérique, 1986.
MARTEL, Yann. Self. Montréal: Boréal, 1998.
______. Life of Pi. Toronto: Vintage, 2001.
17 Este livro foi lançado no Brasil pela editora Nova Fronteira, primeiro com o título A vida de
Pi, depois com o título As aventuras de Pi. [N.T.] MICONE, Marco. Gens du silence, Montréal, Québec Amérique, 1982.

54 55
______. Addolorata. Montréal: Guernica, 1984. Translinguismo e transculturalismo
OLLIVIER, Émile. La brûlerie. Montréal: Boréal, 2004.
PEIRCE, Charles Sanders. Writings of C.S. Peirce. [4 vol.] Bloomington:
em Sergio Kokis
Bloomington University Press, 1982.
Ana Maria Lisboa de Mello
PROULX, Monique. Les aurores montréales. Montréal: Boréal, 1996.
RIVARD, Yvon. Le siècle de Jeanne. Montréal: Boréal, 2005.
SALVATORE, Filippo. The Italian writer of Quebec: Language, Culture and Politics.
In: PIVATO, Joseph (ed.). Contrasts: Comparative Essays on Italian Canadian
Writing. Montréal: Guernica, 1991, p. 189-206.
SARAVIA, Alejandro. L’homme polyphonique. Ottawa: Lugar común editorial,
2014.
Não falar a sua língua materna. Habitar sonoridades e lógicas cortadas da
TRUDEAU, Pierre-Elliott. Le fédéralisme et la société canadienne-française. memória noturna do corpo, do sono agridoce da infância. Trazer em si [...]
Montréal: HMH, 1967. essa linguagem de outrora, que murcha sem jamais abandoná-lo. (KRISTEVA,
WEST, Cornell. The American Evasion of Philosophy: a Genealogy of Pragmatism. 1994, p. 22)
Nova York: Routledge, 2009.
Il restait l’errance, les horizons lointains et cette soif de voyage pour nier la
mort. (KOKIS, 1996a, p. 342)

Comparativamente ao anterior, o século XX foi marcado por um cresci-


mento expressivo dos deslocamentos de populações em busca de asilo,
para fugir de guerras, de perseguições políticas, étnicas e religiosas, ou
então buscar melhores oportunidades de vida em sociedades com estabi-
lidade social, econômica e política. De um lado, esse processo ampliou-se
significativamente devido a sucessivas guerras – mundiais, coloniais, civis
– que motivaram diásporas de grupos sobreviventes e, de outro, esses per-
cursos foram facilitados pelo progresso dos meios de transportes no último
século. Muitos europeus deslocaram-se dentro da Europa, escapando de
regimes totalitários, mas outros se refugiaram nas Américas, assim como
asiáticos que se exilaram em países da Europa Central ou das Américas.
As Américas receberam muitos exilados porque estavam distantes
geograficamente dos centros dos grandes conflitos dos países do hemisfé-
rio norte, embora envolvidos em alguns deles, como estiveram os Estados
Unidos na 2a Guerra Mundial e, mais tarde, na Guerra do Vietnã. Do
mesmo modo, na segunda metade do século XX, em decorrência das dita-
duras nas Américas, houve também a emigração de latino-americanos
para a Europa, sobretudo dos envolvidos na resistência contra os regimes
ditatoriais, razão pela qual corriam risco de serem presos, torturados e
exterminados por agentes da repressão.

56 57
As guerras no Oriente Médio também provocaram deslocamentos nou familiar para mim; eu vivi, em meu contato com ela, não um salto bru-
das populações atingidas pelos conflitos, em busca de condições de sobre- tal, mas uma passagem imperceptível de posição do outsider para o insider
(o out e o in de fora e de dentro, sendo, é claro, sempre estabelecidos de
vivência; esses fatos têm continuidade no século atual, com os refugiados
uma forma relativa). Um dia, devo admitir, não era mais um estrangeiro, em
da Síria e outros países do norte da África que vêm morrendo nas traves- todo caso não no mesmo sentido que anteriormente. Minha segunda língua
sias marítimas em direção à Europa a bordo de precárias embarcações. tinha-se instalado no lugar da primeira sem choque, sem violência, no fluir
A chegada de emigrados em outros países implica a necessidade de dos anos.3 (TODOROV, 1996, p. 14)
domínio da língua e da cultura do locus de acolhida e de adaptações de
Quando Todorov retornou à Bulgária para participar de um con-
diferentes naturezas. Enfim, está em jogo a conquista de um lugar que,
gresso em Sófia, em 1981, foi uma oportunidade de rever a família dezoito
em um primeiro momento, se afigura como estranho, por vezes hostil,
anos após a sua partida para Paris; na ocasião, ele sentiu certo receio de
e precisa ser decodificado, compreendido. Ao mesmo tempo, no país de
que um pesadelo recorrente se tornasse realidade: um impossível retorno
acolhida, geram-se experiências transculturais significativas entre estran-
a Paris. No pesadelo, ele não estava mais em Paris, mas em Sófia tentando
geiros e nativos, implicando transformações e reconhecimento do Outro.
retornar, mas acontecimentos o impediam de pegar o trem que o levaria
Nesse processo, a cultura não pode mais ser vislumbrada dentro de um
de volta à França. Esse pesadelo é semelhante aos estranhos acontecimen-
quadro unificante, homogêneo, delimitado, mas concebida em perspec-
tos do conto “Os cativos de Longjumeau”, de Leon Bloy, que narra a histó-
tiva relacional, que melhor dá conta do “alto grau de permeabilidade e
ria do jovem casal Fourmi, que não conseguia deixar a sua cidade porque
complexidade interna das culturas contemporâneas”,1 conforme subli-
sempre algum acontecimento os impedia de partir (BLOY, 2008, p. 59-66).
nha Benessaieh (2012, p. 85). Os países que recebem emigrados acolhem
Na condição de exilado que retorna ao seu país de origem, ainda que
a diversidade etnocultural e, sem negar a sua história e aspirações, podem
por pouco tempo, Todorov refletiu sobre a sua identidade. Na Bulgária,
assumir uma atitude de abertura, interação e integração com as comu-
percebeu que tudo ainda lhe era muito familiar e que ele se sentia à von-
nidades diaspóricas e com elas realizar intercâmbios. Para os alóctones,
tade tanto na língua búlgara quanto na francesa e que pertencia a duas
ocorre, na verdade, um processo de aquisição de uma nova cultura, segui-
culturas ao mesmo tempo. Mas, sendo o francês a língua em que escreve,
damente de outra língua, sem que haja perda total da cultura de origem,
“língua de empréstimo”, Todorov sentiu dificuldades em traduzir para o
enquanto, para os autóctones, essa acolhida significa um acesso a outros
búlgaro o texto para o congresso. A mudança de uma língua para outra,
costumes, valores, línguas, visões do mundo, de modo que tais contatos
para além das questões de vocabulário e sintaxe, fez com que ele tivesse
geram muitas trocas culturais.
que modificar o seu destinatário imaginário e presumiu que os intelec-
Um dos renomados intelectuais franceses, Tzvetan Todorov, que emi-
tuais búlgaros, aos quais se dirigiria, não entenderiam o seu texto do
grou da Bulgária para a França em 1963, produziu uma obra que, além de
modo como gostaria. Ficou claro para o pesquisador búlgaro-francês que
textos fundamentais para os estudiosos de literatura, voltou-se para a ques-
a língua traz consigo visões do mundo, concepções e valores que variam
tão do Outro, a alteridade, a adoção de uma nova língua, a crítica aos regimes
de acordo com o país. Segundo o autor, na época, falar de valores nacio-
totalitários2 e a xenofobia. No seu livro L’homme dépaysé (1996), Todorov
nais em um país pequeno e dominado por um grande (URSS), em que
relata a sua própria experiência de “deslocado”, de expatriado voluntário:
3 Tradução nossa do original: “Lorsque je suis arrivé en France en 1963, j’en ignorais tout. J’étais
Quando eu cheguei à França em 1963, ignorava tudo sobre ela. Era um
un étranger au sein de la société française, que ne m’est devenue familière que très progressive-
estrangeiro no seio da sociedade francesa, que só progressivamente se tor- ment; j’ai vécu, dans mon contact avec elle, non un saut brutal, mais un passage imperceptible
de la position de l’ outsider à celle de l’ insider (l’out et l’in, le dehors et le dedans, étant, il va de
1 Tradução nossa do original: “[…] du haut degrée de perméabilité et complexité internes des soi, toujours établis de façon relative). Un jour, j’ai dû admettre que je n’étais plus un étranger,
cultures contemporaines”. en tout cas plus du tout dans le même sans que’ auparavant. Ma deuxième langue s’était instalée
2 Cf. Todorov, Face à l’extreme (1991). à la place de la première, sans heurt, sans violence, au fil des années”.

58 59
o discurso nacionalista é uma forma de fazer oposição, era diferente de o caso de Conrad, ao eleger o inglês como língua de sua escrita literária.
falar em nacionalismo em um país como a França, onde se afigurava como George Steiner assinala que, na verdade, “como um potentado em viagem”,
remota a possibilidade de invasão de um vizinho poderoso: “Paris era, cer- Nabokov se deslocava entre várias línguas: “Banido de Fialta [Crimeia],
tamente, um lugar propício à renúncia eufórica de valores nacionalistas”4 construiu para si uma casa das palavras. Para sermos claros: a situação
(Cf. TODOROV, 1996, p. 15). multilíngue, interlinguística, é tanto a matéria como a forma da obra de
A experiência pessoal de Todorov de imigrante na França, a partir de Nabokov (as duas são, sem dúvida, inseparáveis, e Pale fire é a parábola de
1963, relatada em L’homme dépaysé, bem como a adoção da língua fran- sua fusão)” (STEINER, 1990, p. 19).
cesa para a sua produção intelectual, antecipam as discussões mais ins- Em Les exilés du langage, Anne-Rosine Delbart assinala que se exilar
tigantes da atualidade sobre os intelectuais translíngues, sobretudo após da língua natal “é romper com a sua cultura e seu lugar primitivo, é cortar
a obra The translingual imagination (2000), de Steven G. Kellman, que pela segunda vez o cordão umbilical”6 (DELBART, 2005, p. 17). Considera
trata dos escritores que escrevem em mais de uma língua, como Vladimir que cada idioma veicula uma visão do mundo, um sistema de referências
Nabokov (sobretudo russo e inglês), ou em outra, diferente da materna ou que lhe é próprio, razão pela qual, ao mudar de língua, o indivíduo passa
primária, como Joseph Conrad (originário da Polônia, escreve em inglês). a ver e a pensar o mundo de modo diferente, torna-se outro. Coexistem,
Esses escritores situam-se, no mínimo, entre duas línguas, duas culturas e no escritor translíngue, pelo menos duas línguas e duas culturas (Ibidem,
dois espaços geográficos distintos, condição que implica também a vivên- p. 17), alterando a própria identidade. Para Delbart, devido à íntima e à
cia da transculturação, revelada nas passagens de uma cultura a outra, sem profunda relação que o ser humano tem com sua língua natal, pode-se ter
que isso signifique a perda da primeira, mas antes a convivência. Segundo uma ideia da dimensão do “translinguismo” literário e pressagiar a dificul-
Steven G. Kellman, o escritor Conrad mantinha, na sua fala e na sua dade que é colocar em prática a criação literária na língua adotada.
escrita, indícios de sua condição de escritor translíngue e a interferência A respeito da identidade e os elementos que a moldam, escreve Amin
do polonês e francês: Maalouf, jornalista e escritor líbano-francês:
Józef Teodor Konrad Korzeniowski conseguiu se reinventar Joseph Conrad, Metade francês, portanto, metade libanês? De jeito algum! A identidade não
um dos maiores romancistas do século em uma língua, o inglês, a que só se compartimenta, nem em metades, nem em terços, nem em espaços estan-
teve acesso a partir dos vinte anos, depois do polonês e francês. Até o dia ques. Eu não tenho várias identidades, eu só tenho uma, feita de todos os
de sua morte, Conrad falou inglês com um sotaque tão rude que era às elementos que a moldaram, segundo uma “dosagem” particular que nunca é
vezes incompreensível para sua esposa, Jessie, e nem seu domínio escrito a mesma de uma pessoa para outra.7 (MAALOUF, 1998, p. 10)
do inglês disfarçava inteiramente o translinguismo do autor.5 (KELLMAN,
2000, p. 10-11) A identidade, portanto, não é fixa, rígida, mas fruto de trajetórias, de
experiências, de escolhas, de pertencimentos múltiplos, que se movem e
Kelman distingue os escritores translíngues, que são ambilíngues, se ampliam, sobretudo para os exilados, expatriados, refugiados e emigra-
como Vladimir Nabokov, que escreve em russo e em inglês como a dos. Essas categorias, segundo Edward Said, podem ter estatutos diferen-
mesma qualidade, dos monolíngues que escolhem uma só língua, que é tes, conforme seja um exílio forçado, seguidamente por questões políticas,
um refúgio em busca de um local protegido de violência, de fome, etc., ou
4 Tradução nossa do original: “Paris était certainement le lieu propice à un renoncement
euphorique aux valeurs nationalistes”. 6 Tradução nossa do original: “[...] c’est rompre avec sa culture et son lieu primitif, c’est couper
5 Tradução nossa do original: “Józef Teodor Konrad Korzeniowski managed to reinvent him- une seconde fois le cordon ombilical”.
self as Joseph Conrad, one of the major novelists of century, in a language, English, that 7 Tradução nossa do original: “Moitié français, donc, et moitié libanais? Pas du tout! L’identité
he came to only in his twenties, after Polish and French. To his dying day, Conrad spoke ne se compartimente pas, elle ne se répartit ni par moitié, ni par tiers, ni par plages cloi-
English with an accent so thick it was sometimes incomprehensible to his wife, Jessie, nor sonnées. Je n’ai pas plusieurs identities, j’en ai une seule, faite de tous les elements que l’ont
did his written command of English entirely disguise the author’s translingualism”. façonnée, selon un ‘dosage’ particulier que n’est jamais le même d’une personne à l’autre”.

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a voluntária escolha de outro país para viver, caso do expatriado. O emi- (Decreto-Lei 477, de 26/02/1969) e à cassação de professores e funcionários.
grado teria um estatuto ambíguo porque seu deslocamento pode ser fruto Não havia mais lugar para quem quisesse se opor ao regime, manifestações
de escolha, coincidindo com expatriação, ou uma designação para posto eram reprimidas à força e muitos brasileiros partiram para o exílio.
de trabalho fora do seu país (SAID, 2008, p. 250). Após encerrar atividades como professor universitário no Quebec,
Todorov, Said, Maalouf – búlgaro, palestiniano, libanês, respectiva- em 1997, o artista vem-se dedicando inteiramente às artes plásticas e à
mente – são alguns dos múltiplos intelectuais do século XX que emigraram literatura. Publicou vinte romances, sendo que somente o primeiro – Le
de seus lugares de origem e adotaram outra língua na sua produção teórica pavillon de miroirs (1994) – foi traduzido para o português, em 2000;8
e literária diferente da materna; puderam, assim, atingir um público maior duas coletâneas de contos; livros de ensaios, entre os quais Les langa-
de leitores. Devido à condição de intelectuais translíngues, conseguiram ges de la création (1996); uma narrativa poética, Le sortilège des chemins
transmitir de modo verdadeiro, convincente, a experiência da imigração, (2015), texto que entrelaça pintura e literatura – os dois campos de criação
que implica viver entre mais de uma cultura, compreender e aceitar as artística do autor. É importante assinalar que as capas dos livros de Kokis
diferenças, abrir espaço para discussões fundamentadas nas vivências de são ilustradas por ele, com quadros que já dialogam com o conteúdo das
cada um sobre exílio, identidade, translinguismo, transculturalidade. narrativas, mas essa relação é mais estreita no livro de 2015, supracitado,
Do Brasil, Sergio Kokis, licenciado em Filosofia pela Universidade tendo em vista que seis telas do artista estão reproduzidas no interior do
Nacional de Filosofia (extinta em 1968, renomeada mais adiante UFRJ), livro, ilustrando paisagens, acompanhadas por uma narrativa com passa-
partiu para o exílio, definitivo exílio, em 1967, primeiro para a França, gens poéticas que descrevem os cenários e os itinerários dos caminhantes
onde fez a sua formação em Psicologia na Universidade de Strasbourg, (viagens de randonnée), como o caminho de Compostela. O livro foi cons-
depois, em 1969, emigrou para Montreal, Canadá. Lá se tornou doutor truído a partir de anotações de sua companheira sobre os percursos na
em Psicologia, ensinou psicologia clínica na Université de Montréal; além Espanha, Portugal, Suíça e Alemanha, as quais Kokis transformou em uma
disso, fez uma formação em Artes Plásticas naquele país. Romancista
narrativa poética sobre a sedução dos caminhos, revelando que o caminho
e artista plástico, Sergio Kokis, ao tornar-se escritor, adotou o francês
não é somente um espaço físico a ser percorrido, mas percurso em que o
como língua exclusiva de sua escrita literária. O translinguismo de Sergio
peregrino é conduzido “ao centro de seu ser”, como assinala Marcel Brion
Kokis tem raízes na própria constituição de sua família no Rio de Janeiro.
a propósito das viagens iniciáticas no Romantismo alemão. O progresso
Descendente de pai imigrante, oriundo da Letônia, Kokis conviveu com a
da viagem “instrui o homem sobre a natureza do universo e sobre a sua
experiência da expatriação e, portanto, compreendeu desde cedo a neces-
própria natureza”, projeta o peregrino “a todos os pontos circunferenciais
sidade de adaptação ao locus de acolhida, o translinguismo, o estranha-
de seu devir, acrescenta conhecimento e experiência, modifica e produz
mento diante de valores outros que não correspondem exatamente àque-
metamorfoses”9 (BRION, 1977, p. 7). Conforme Jean-Yves Tadié, o “espaço
les que o estrangeiro carrega em sua bagagem ético-cultural.
da narrativa poética é sempre em outro lugar, além, porque é o da viagem
A exemplo de Todorov, que deixou a Bulgária, submetida ao domínio
orientada e simbólica”10 (TADIÉ, 1994, p. 9). A prosa poética toma empres-
da URSS, depois da 2a Guerra, Kokis foi sufocado pela falta de liberdade em
tado os recursos do poema: “Há aí um conflito constante entre a função
seu país. Foi preso, correu sérios riscos de vida e deixou o Brasil no momento
em que estava sob um regime de exceção que perseguia opositores, desde a 8 Cf. KOKIS, Sergio. A casa dos espelhos. Trad.: Marcos de Castro. Rio de Janeiro/São Paulo:
tomada do poder em 31 de março de 1964. Logo após o exílio de Kokis, o Record, 2000.
governo ditatorial no Brasil emitiu o Ato Institucional número 5 (AI-5 de 9 Tradução nossa do original: “[...] qui instrui l’homme de la nature de l’univers et de sa
propre nature”, “[projeta o peregrino] à tous les points circonférentiels de son devenir, addi-
13/12/1968), que fechou o Congresso Nacional, recrudesceu a repressão,
tionne connaissance et expérience, modifie et métamorphose”.
suprimiu liberdades individuais, direitos políticos, censurou a imprensa, 10 Tradução nossa do original: “[…] l’espace du récit poétique est toujours ailleurs, ou au-delà,
aplicou leis que levaram à expulsão de universitários contrários ao regime parce qu’ il est celui d’un voyage orienté et symbolique”.

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referencial, com suas marcas de evocação e de representação, e a função lamentações dos que não sabem o que é uma vida precária, sem dispor
poética, que chama a atenção para a forma da mensagem”11 (Ibidem, p. 8). das necessidades básicas da vida. Essa perspectiva crítica e posição irônica
Kokis foi agraciado por muitos prêmios literários, sendo que o pri- transparecem, por exemplo, nas considerações do narrador-protagonista
meiro romance, Le pavillon des miroirs, recebeu quatro homenagens: no capítulo vinte e quatro de Le pavillon des miroirs. Além disso, Kokis põe
Grand Prix du livre de la ville de Montréal, 1994; Prix de l’Académie des let- em xeque o status quo, as “verdades” estabelecidas e pouco questionadas,
tres du Québec, 1994; Prix Québec-Paris, 1995; e Prix Desjardins du roman convidando o leitor a avaliar a realidade sob outros ângulos de visão que
du Salon du livre de Québec, 1995. se embatem contra o conformismo e o hábito.
Por ter passado parte de sua juventude sob regime ditatorial brasileiro Trata-se de um escritor que, afora o translinguismo com todas as suas
e ter sido marcado pela experiência de viver em situações opressivas, Kokis implicações, tem uma visão transcultural, tendo em vista que a sua obra
retoma esses temas em suas obras, que se entrelaçam aos demais e a posi- revela um interesse e solidariedade com o ser humano de qualquer espaço
cionamentos críticos, mantendo conexões com outras situações restritivas geográfico, uma empatia com aqueles que vivem sob regimes opressivos
a que seres humanos são submetidos. O espaço geográfico brasileiro, como ou vivem com dificuldades econômicas, como demonstra seu olhar sobre
rememoração ou como espaço das ações, ou parte delas, surge em Pavillon a miséria da maioria da população brasileira. Ao mesmo tempo, há em
des miroirs (1994), Negão et Doralice (1995), Errances (1996), Amérika (2011), Kokis uma aptidão para colocar na obra ficcional trocas culturais dinâmi-
Makarius (2014), L’âme de marionnettes (2017), Dissimulations (2010). cas, intercâmbio de experiências e apreensão da pluralidade.
Outras obras tratam de questões semelhantes, em países vizinhos ao Brasil De acordo com Sheena Wilson, em artigo da revista ViceVersa (1983-
que estiveram sob regimes ditatoriais no século XX, como o romance Le 1996), no período em que foi pivô do conceito e debates sobre transcultu-
retour de Lorenzo Sanchez (2008), que narra a história de um artista plás- ralismo no Canadá:
tico que vive exilado no Quebec, retorna ao Chile décadas depois e lá se Numa sociedade composta de indivíduos transculturais, cada pessoa teria
depara com revelações de segredos brutais da família. Clandestino (2011) é a possibilidade de refletir sobre o sentido de sua individualidade, de cons-
um romance cujo pano de fundo é constituído de acontecimentos políti- truir sua própria identidade, assim como de integrar os aspectos de outras
culturas que a atraem. Idealmente, o resultado seria uma sociedade diversa
cos um pouco antes da guerra pelas ilhas Malvinas na Argentina, no final – uma sociedade que aspira ultrapassar a simples “tolerância”, um termo
da ditadura militar. Le magicien (2012) se reporta a acontecimentos no seguidamente associado ao multiculturalismo. De fato, tolerar significa ape-
Paraguai no final da ditadura comandada por Alfredo Stroessner. nas “aguentar” ou “suportar” uma pessoa. De fato, tolerar não corresponde
Essas referências demonstram que as obras literárias de Sergio Kokis ao desejo de ser transformado pelo Outro, de incorporar o melhor do que o
Outro pode oferecer numa tentativa de alargar seu horizonte na direção de
vinculam-se ao locus de origem do escritor, incluindo aqui os países uma cidadania cosmopolita.12 (WILSON, 2015, p. 268)
próximos ao Brasil no Cone Sul. Trazem à tona as ideias de migração,
errância, viagens, que se projetam na escrita de perspectiva transcultural, A questão do exílio, do translinguismo e do transculturalismo, com
reveladora do processo de transição de uma cultura a outra, mas também destaque para a relação memória-melancolia, são muito presentes na fic-
ultrapassam o vínculo com o local geográfico das origens para demons- ção de Sergio Kokis, pois são temas e perspectivas decorrentes da sua pró-
trar resistência e ojeriza por governos totalitários – mantidos à base da 12 Tradução nossa do original: “Dans une société composée d’individus transculturels, chaque
força, com a supressão da liberdade – e por toda forma de crueldade para personne aurait la possibilité de réfléchir sur le sens de son individualité, de construire sa
com os seres humanos. Por outro lado, revelam um desprezo irônico pelo propre identité ainsi que d’intégrer les aspects d’autres cultures qui l’attirent. Idéalement, le
résultat serait une société diverse – une société qui aspire à dépasser la simple ‘tolérance’,
consumismo, pelo apego doentio a valores materiais e status social, e por un terme souvent associé au multiculturalisme. De fait, tolérer ne signifie qu’‘endurer’ ou
‘supporter’ une personne. Cette atitude ne correspond pas au désir d’être transformé par
11 Tradução nossa do original: “[…] il y là un conflit constant entre la function d’évocation et de l’Autre, d’incorporer le meilleur de ce que l’Autre peut offrir dans une tentative d’agrandir
representation, et la function poétique, qui attire l’attention sur la forma même du message”. son horizon vers une citoyenneté cosmopolite”.

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pria condição de exilado a partir dos 23 anos. Destacamos, no conjunto de E no capítulo 3, uma visão do pai vem à memória e de como era tra-
sua obra, dois romances com personagens brasileiros no exílio, narrativas tado no ambiente familiar:
que estão relacionadas à biografia de Kokis: Le pavillon des mirois (1994)
Meu pai não quer saber de histórias de negros nem de padres. Por isso não
e Errances (1996). No primeiro, o narrador se situa em um país frio, é posso falar com ele. Os outros também não querem responder às minhas
artista plástico e recorda a sua infância e adolescência no Rio de Janeiro. O perguntas. Sou muito pequeno. Se continuar a falar dessas coisas, levarei a
segundo narra a história de um brasileiro que se exilou durante a Ditadura surra que mereço. Moleque sem-vergonha! (KOKIS, op. cit., p.19)
Militar na República Democrática Alemã (RDA) e é um poeta que adotou
Nos capítulos pares, o narrador, situado no “país frio”, tece comentá-
o alemão como língua literária.
rios sobre a condição de exilado e de estrangeiro, digressões sobre o fazer
Le pavillon des miroirs intercala capítulos em que o narrador se situa
artístico e suas opções estéticas, inserindo também reflexões sobre acon-
no presente e no exílio, em um país frio, e tece considerações sobre o seu
tecimentos vividos no país de origem (Brasil), mas, nesse caso, emprega
fazer artístico atual, com capítulos em que ele aciona a memória e presen-
verbos no pretérito que marcam a distância temporal entre o presente e o
tifica acontecimentos do passado vivido no Rio de Janeiro. Utiliza ver-
passado, em exercício de rememoração e compreensão dos acontecimen-
bos no presente nos capítulos com narrador-criança ou adolescente para
tos já distantes. No exílio, a narração revela a solidão, a noção da distância
relatar o seu cotidiano no internato ou no Rio, dando a ilusão de maior
que o separa da terra natal, o frio que contrasta com o calor úmido do Rio
proximidade com o vivido. Nos capítulos ímpares (exceção feita ao 26, que
também se refere a vivências no Brasil), são relatadas as experiências na de Janeiro, calor que só existe na memória:
infância e juventude no Brasil, sem distanciamento temporal, simulando O calor úmido de outrora não existe senão em minha memória. Aqui as
um viver narrando, na forma de um monólogo interior direto: flores da geada cobrem as vidraças de uma renda espessa, cinzenta, que é
preciso esfregar com insistência e que logo se torna embaçada. O frio imenso
Ainda sou pequeno. [...] Não há nada nesta casa, nada de brinquedos. dos longos janeiros. (Ibidem, p. 15)
Arrasto-me por debaixo das camas e olho pela janela. O nenê é muito
pequeno para brincar e meu irmão mais velho não gosta das minhas brin- De dentro de casa, tudo lá fora parece congelado. Mas eu sei que o vento está
cadeiras. [...] Vivemos todos amontoados no apartamento e dormimos no lá. Fora o tinido esporádico do aquecedor, o silêncio é total. Tão absoluto
mesmo quarto. (KOKIS, 2000, p. 9) que toma a forma de um ruído surdo em minha cabeça. [...] Fico assim,
enterrado num subsolo, protegido pelas fundações da casa cobertas de gelo.
A primeira frase do romance – “Ainda sou pequeno.” – apresenta ao É como se o mundo não existisse mais. (Ibidem, p. 15)
leitor um passado que simula um presente, mas é trazido pela memória.
Os contatos com a família de origem, quiçá amigos, deixaram de acon-
Conforme Silvie Bernier, em Les héritiers d’Ulisse, referindo-se à questão
tecer. A última carta enviada do Brasil foi há quinze anos, mas ele espera o
do tempo nesse romance:
carteiro passar na esperança que ele traga alguma correspondência. O pro-
O cruzamento das duas narrações também revela a distância entre o imedia- tagonista transmite uma sensação de vazio, de solidão inelutável, de irre-
tismo da percepção da criança e a visão filtrada do real que a memória do versibilidade do tempo que se esvaiu, no processo de separação definitiva
adulto transmite. A lembrança desafia o tempo e prolonga o instante na eterni-
dade. A memória que é liberada na narrativa também escapa à regra do tempo,
do país natal. Embora se recuse a voltar, fica uma melancolia que decorre
criando uma temporalidade fora do tempo real.13 (BERNIER, 2002, p.121) da décalage entre as memórias do passado e o inamovível presente:
O carteiro já passou, eu o vi. Na verdade, eu o espreitava; esperava-o como
13 Tradução nossa do original: “Le croisement des deux narrations met également en évidence sempre, para estar pronto, para não me sobressaltar, uma vez que nunca che-
la distance entre l’immédiateté de la perception de l’enfant et la vision filtrée du réel que
gam cartas. Mas ele não me traz nada, a não ser as faturas e os folhetos publi-
transmet la mémoire au regard de l’adulte. Le souvenir défie le temps et prolonge l’instant
dans l’éternité. La mémoire qui se livre en récit échappe elle aussi à la règle du temps en citários. Apesar disso, eu o espero e sempre me decepciono. Não há ninguém
créant une temporalité en dehors du temps réel”. para me escrever. A última carta de lá, recebi-a há pelo menos quinze anos.

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[...] Já não sei que espécie de carta me daria prazer, nem que tipo de carta (1893), do norueguês Edvard Munch. Na escrita de Sergio Kokis, há pas-
posso esperar. Notícias estranhas, revelações, alguém que lembre de mim, ou sagens com essas tonalidades, sobretudo quando focaliza a miséria, a
ainda um convite que eu recusaria por hábito. (Ibidem, p. 15-16)
opressão política, a fragilidade do ser humano e das crianças diante das
O artista olha fotos de sua infância e sente que seu passado está con- condições adversas da vida, como no excerto acima. Essas “cores fortes” na
gelado como o inverno da cidade em que vive como exilado: “Em vão escrita literária de Kokis são as que melhor descrevem as festas profanas,
perscruto esses clichês de coloração sépia, meu passado continua fechado. como o final do Carnaval no Rio de Janeiro, momento em que a violência
Todos os esforços da memória não produzem senão um pálido reflexo atinge o seu ápice:
daquilo que fui” (Ibidem, p. 16). Na condição de exilado, o narrador des- Na Terça-Feira gorda, o desespero chegava ao auge. [...] Em casa também
vela os múltiplos sentimentos que assaltam os expatriados, como uma eram visíveis os sinais anunciando o fim da festa: a irritação crescente, o
nostalgia que dói, os contrastes climáticos e culturais, o espírito do lugar gosto amargo na boca e a certeza de que nada teria mudado a partir da
que escolheu viver. No cotidiano de artista, imerso no seu ateliê de traba- manhã seguinte. Na avenida, as fantasias interessantes se tornavam mais
raras, os grupos de sambistas mais heteróclitos e agressivos, os bares trans-
lho, ele projeta nas telas as figuras da memória que o obsedam: bordando de bêbados. Era o momento da melancolia agitada, da festa estre-
Nesta existência de exilado que é a minha, só algumas imagens mentais insó- pitosa, da abundância de corpos estendidos na calçada. (Ibidem, p. 90)
litas conservam as cores e o movimento que tinham no momento em que
foram impressas em meu espírito. Como traumatismos. Não há mais histó- As lembranças dessas festas populares retornam em outros capítulos,
ria que as acompanhe, o passado vivido se esbate, mas curiosamente essas demonstrando que o narrador as contemplou e delas abstraiu conclusões,
imagens que me obsedam permaneceram de uma exuberância selvagem. dentre as quais a de que a violência se esconde por trás da aparente alegria
Esses espectros, essa legião de personagens vibrantes me assaltam a todo do Carnaval. Refugiado em seu ateliê no exílio, o artista cria a sua arte para
instante para exigir reparação. (Ibidem, p. 16)
expulsar de sua mente essas imagens trazidas pela memória: “Se continuo
O narrador associa a memória do vivido no país natal à sua arte. a pintar, é sem ilusão nenhuma, pelo único prazer de ver essas imagens
Projeta, nas telas, imagens que evocam espectros do passado, como se a fora de minha cabeça” (Ibidem, p. 56). Le pavillon des miroirs (1994) é,
sua arte fosse um modo de deixá-los falar, ganhar voz e denunciar a con- portanto, um romance que se situa no centro de reflexões teóricas atuais
dição de miséria material e moral em que estão mergulhados: sobre os escritores que vivem entre duas ou mais culturas e optaram por
escrever em um idioma diferente do materno.
Alguns gritam, se contorcem, como paralíticos, ou se agacham, agarrando-
se a seus corpos num sofrimento silencioso e patético. Outros são apenas
Se esse primeiro romance intercala capítulos que se passam no estran-
máscaras, disfarces. Às vezes é o carnaval, às vezes a quaresma. Numerosos geiro, no exílio, lugar de paisagem invernal, gélida, com capítulos em que o
cadáveres: corpos inertes, mortos anônimos num cenário sem pompa. [...] protagonista, o artista plástico, rememora a sua vida no Brasil, no calor do
Há crianças, muitas crianças de barrigas inchadas e corpos raquíticos. Que país tropical, projetando em suas telas figuras e cenas que estão na memó-
entretanto riem e correm, como verdadeiras crianças. Pústulas, dentes caria-
ria, o romance Errances (1996) tem por protagonista um poeta brasileiro,
dos, narizes escorrendo. (Ibidem, p. 16)
também exilado, no caso na República Democrática Alemã (RDA), que
Essas figuras em cores fortes, projetadas nas telas do narrador-artista, adotou o alemão como língua literária. Os dois romances têm por prota-
parecem descrever as telas de Sergio Kokis impressas nas capas de seus gonistas artistas que, aliás, são as duas faces de Sergio Kokis que se com-
livros. Ambas, as figuras imaginadas pelo leitor e as que ilustram as capas, plementam: o artista plástico e o escritor.
lembram técnicas do expressionismo cujas cores fortes são um recurso Em Errances, o protagonista é o poeta brasileiro, o ex-tenente Boris
eloquente para revelar sentimentos, como a dor, o pathos, o desespero, o Nikto, “militante comunista” que se refugiou na Europa em 1964, ano do
horror existencial, a exemplo da série de quatro telas intitulada “O grito” golpe militar no Brasil; na fuga, deixou o Rio de Janeiro na direção do

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Estado de Mato Grosso, passando pela Bolívia para chegar ao Peru, onde ironia em relação aos debates com alguns intelectuais, uma decepção com
partiu para Europa em um navio cargueiro, com o amigo Mateus, também movimentos de esquerda, como Maio de 1968 na França (cap. 10), os con-
fugitivo. Essas memórias com respectivos sentimentos de Boris são reve- flitos internos da personagem, sobretudo quanto à decisão de retornar ao
ladas por um narrador onisciente, que emprega analepses para recuperar Brasil. A personagem, nesse momento, vive também as dificuldades de
o passado e narrar a vida de Boris no Brasil, sobretudo os fatos que desen- trânsito entre as duas Alemanhas, em plena Guerra Fria, porque precisa
cadearam a opção pelo exílio. ir a Hamburgo, situada na Alemanha Ocidental (RFA), para encontrar seu
Na Europa, depois de circular por outros países, como a França, ele se editor Kammer e receber direitos autorais antes de embarcar para o Brasil,
instala em Rostock, pequena cidade da antiga Alemanha Oriental (RDA) mas é detido pela polícia da RDA e passa por várias sessões de interrogató-
e vive com a companheira Olga. Diferentemente de Le pavillon de miroirs, rios como se fosse um “trânsfuga dos países do Leste”.
cujo protagonista é um artista plástico no exílio e sem projeto de retorno Boris encontra semelhanças entre a dificuldade para essa passagem
ao Brasil, em Errances, o autor coloca no continente europeu, como prota- de uma Alemanha a outra com a sua travessia do Brasil para a Bolívia –
gonista, um poeta brasileiro refugiado, que deseja rever o seu país natal e ao partir no passado a caminho do exílio – e se “diverte com isso” como
empreende esse retorno depois de uma espera de vinte anos. quem pensa que tudo se repete, mas com rótulos diferentes. No passado,
No romance, os acontecimentos vividos no presente pela personagem ele também correu risco de ser aprisionado pelo Coronel Policarpo e seus
Boris passam-se logo após a Lei da Anistia (Lei n° 6683), promulgada em capangas junto à fronteira do Brasil com a Bolívia no auge da ditadura
1979, ainda na ditadura, pelo último General que esteve na presidência do militar. A associação irônica de Boris deixa implícito o pensamento de que
Brasil, João Batista Figueiredo – lei esta que foi conquistada por ampla o aparelho estatal comete os mesmos atos repressivos em regimes políticos
mobilização da sociedade. Boris e outros escritores brasileiros exilados são aparentemente opostos. Machado de Assis ironiza sobre essas situações
convidados para uma Soirée em Berlim-leste, local em que o Cônsul bra- no famoso capítulo LXIII do romance Esaú e Jacó, no qual o confeiteiro
sileiro anuncia o teor irrestrito da Lei. Eis o comunicado: “Perdão em toda Custódio, após a Proclamação da República, reflete sobre a adequação
a direção, à esquerda e à direita, aos pobres, aos ricos, aos policiais e aos do nome de seu estabelecimento. A tabuleta Confeitaria do Império pare-
estudantes, aos civis e aos militares. Tudo será apagado de nossa história. ceu-lhe “inadequada”, podendo expô-lo a ódios e malquerenças gratuitas.
Recomeçaremos do zero”14 (KOKIS, 1996a, p. 13). Pensa em alterar o nome para Confeitaria da República, mas isso também
Esse comunicado do Cônsul brasileiro abala Boris, que esperava há não era tão seguro, porque poderia haver uma reviravolta política. Então,
vinte anos por essa medida: “[...] essa vida artificial de exílio sempre pare- o confeiteiro foi orientado pelo Conselheiro Aires a colocar o seu próprio
ceu insípida para ele diante de seus sonhos e suas quimeras. E agora toda a nome na tabuleta: Confeitaria do Custódio. Mudaram-se os rótulos, mas a
sua vida estava balançando por causa do sorriso imbecil de um cônsul, e o confeitaria é a mesma.
passado tornava-se presente”15 (KOKIS, 1996a, 16). O narrador onisciente O protagonista de Errances torna-se poeta na Alemanha e escreve
vai revelar então reflexões e sentimentos de Boris que se desencadeiam na língua alemã, tão distinta da língua portuguesa, o que coloca Boris na
a partir dessa possibilidade de retorno ao Brasil. Ao longo do romance, posição de escritor translíngue e transcultural, na medida em que cada
o protagonista dá a conhecer, por pensamentos e diálogos, certo tédio e língua carrega em si uma bagagem cultural singular. Como observa Kokis
no seu livro Les langages de la création: “Existe efetivamente o chamado
14 Tradução nossa do original: “Pardon sur toute la ligne, à gauche et à droite, aux pauvres, aux
riches, aux policiers et aux étudiants, aux civils et aux militaires. Tout sera effacé de notre
espírito de uma língua e ele molda, mais do que se pensa, o espírito dos
histoire. On recommencera à zero”. seus falantes”16 (KOKIS, 1996b, p. 62).
15 Tradução nossa do original: “[...] cette vie artificielle d’éxilé lui avait toujours paru fade
devant ses rêves et ses chimères. Et voilà que toute son existence basculait à cause du sourire 16 Tradução nossa do original: “Il existe bel et bien ce qu’on appelle l’esprit d’une langue et il
idiot d’un consul et que le passé redevenait présent”. façonne plus qu’on pense l’esprit de ses locuteurs”.

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O retorno ao Brasil, já transformado pelo longo exílio, leva Boris a se nome do navio é Konrad Korzeniowski, nome original do escritor Joseph
confrontar com a decadência da sociedade brasileira, a ter decepções e a Conrad, também imigrante, translíngue e transcultural.
sentir-se um estranho no seu lugar de origem. Ao mesmo tempo, possibi- Em matéria intitulada “O Brasil de Sergio Kokis”, sobre sua presença
lita-lhe pesquisar sobre seu passado no Rio, o destino de sua família e ami- no evento Encontro-(de)bate-papo, entre o escritor e Luís Aguilar, profes-
gos e revisitar lugares da cidade que estão em sua memória. O protagonista sor de Língua Portuguesa e Culturas Lusófonas, Kathia Santos e Daphné
sente emoções ao se deparar com os locais que o tempo deixou intactos, Vieira revelam a opinião do escritor a respeito do romance:
ao encontrar algumas pessoas que conhecia, mas também se choca com a
Em Errances, Sérgio Kokis dá a conhecer a sua odisseia, sobretudo, os
persistência da miséria, a decadência de valores, fazendo com que se sinta momentos iniciais do seu exílio, onde o protagonista, Boris, se confunde com
mais exilado do que nunca dentro de seu próprio país. Interpelado pelo a história do escritor. – É o meu melhor livro, diz Sérgio Kokis, apesar de não
barbeiro Sirigaito Alfombra sobre o que o trouxe de volta, ele responde ter recebido prêmio algum com ele. O melhor da minha vida foi o exílio e,
que ele próprio não sabia e acrescenta: “Ao chegar aqui, eu me dei conta porque difícil se torna, para mim, voltar ao Brasil, mandei para lá um dos meus
personagens, no meu lugar, para ver quanto mudaram as pessoas enquanto a
de que nunca me tinha sentido tão estrangeiro”17 (KOKIS, 1996a, p. 316). triste situação do país não mudou muito – explica. (SANTOS & VIEIRA, s.d.)
Uma ligação forte da personagem com seu passado é a lembrança do
pai, Dmitri Waldemarich Nikto, imigrante da Livônia germânica (região Translinguismo e transculturalismo na escrita literária são, sobretudo,
litorânea dos países bálticos, correspondendo hoje à Estônia e à Letônia), marcas de uma literatura escrita por imigrantes ou filhos de imigrantes,
nascido em 1900, que imigrou para o Brasil depois de ter sido aceito como exilados ou expatriados por alguma razão, casos em que os autores vivem
refugiado em Genebra em 1937. O pai falava e escrevia em alemão. Essa entre duas ou mais línguas. No século XX, devido aos expressivos desloca-
familiaridade com a língua alemã fez com que, ao se radicar na RDA, Boris mentos de populações, há muitos escritores que escrevem em uma língua
surpreendesse conhecidos e admiradores por seu domínio do alemão, pois de adoção, mas essa escrita tem marcas implícitas ou explícitas da língua e
“não se esperava tanto de um estrangeiro”18 (Ibidem, p. 32), mas ele já tinha da cultura de origem, de modo que o discurso literário migra de uma cul-
certo conhecimento da língua paterna. O pai deixou marcas na memória tura a outra (ou outras), dependendo das experiências de deslocamentos
de Boris e, só retornando ao Brasil, ele compreende a extensão do afeto dos escritores. Esse movimento no interior da escrita revela não apenas
e afinidade que tinha com o pai, talvez porque agora tinha a experiência questões das origens e dos deslocamentos, mas também ao encontro do
de imigrante. Visita o túmulo do pai, recupera uma caixa de documentos, Outro e as trocas linguístico-culturais, razão pela qual a expressão quebe-
fotos e outros objetos deixados por ele, para que lhe encaminhassem, den- quense “escrita migrante” refere-se a uma literatura que cruza fronteiras
tre os quais uma carta, escrita em alemão, em que Dmitri se despede de culturais e linguísticas e narra as experiências da desterritorialização.
Boris, explicando que não pode esperá-lo e que o filho faz bem em se man- No início deste texto, falamos dos deslocamentos no século XX de pes-
ter longe do Brasil. Depois de uma série de peripécias no Rio de Janeiro, soas do Leste Europeu, em fuga de regimes políticos de repressão, para a
Boris descobre que militares estão no seu encalço porque ele era um deser- Europa Central e os de latino-americanos em direção à Europa, e trouxe-
tor, e, como tal, não seria beneficiado pela Lei da Anistia. Com receio de ser mos os exemplos de Tvetzan Todorov, que deixou a Bulgária em 1963, e de
morto, sem julgamento, Boris deixa clandestinamente o Brasil novamente, Sergio Kokis, que deixou o Brasil, refugiando-se na Europa em 1967 e exi-
com ajuda de um editor brasileiro, em um navio cargueiro da Polônia, lando-se depois no Canadá. Ambos optaram pelo francês como língua de
com nome falso no passaporte, no caso Martin Niemand. Casualmente, o sua escrita teórica, ensaística ou literária, em escritos marcados pela ideia
de trânsitos culturais, denúncias contra regimes políticos repressivos que
17 Tradução nossa do original: “Une fois arrivé ici, je me suis rendu compte que je ne m’étais
sufocam a liberdade, pela solidariedade para com o Outro. Todorov iniciou
jamais senti aussi étranger”. a carreira na França dedicando-se ao estudo de métodos de análise literária,
18 Tradução nossa do original: “[…] on ne s’attendait pas à autant d’un étranger”. sendo inclusive o tradutor para o francês do livro Teoria da literatura: textos

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dos formalistas russos, em 1965. Mas a partir de meados dos anos 1970, passa simulada” (KOKIS, 2000, p. 245). Certa melancolia perpassa a criação lite-
a buscar outros conhecimentos de Psicologia, Antropologia e História, inte- rária de Kokis, pois se trata de uma escrita habitada por um sentimento de
resses de que decorrem publicações, tais como A conquista da América: a falta, de incompletude, próprio de quem é movido por uma errância inte-
questão do Outro (1982), Nós e os outros (1989), Em face do Extremo (1991). rior, por uma inquietude que busca respostas e nem sempre as encontra,
Sergio Kokis trabalha a inclusão e o diálogo com o Outro na sua pro- embora se abra para a cultura do outro e revisite a sua própria.
dução literária, ensaística, pictórica e seu trabalho no campo da Psicologia. Há, na ficção de Kokis, a imbricação de sua trajetória pessoal, dos con-
Nas obras literárias, o escritor coloca personagens em vários países da textos históricos vividos, das línguas que conhece, com a bagagem cultu-
América do Sul e Europa, denunciando regimes opressivos que marcaram ral que elas carregam e das comunidades com as quais o autor interage e
o século XX e sua própria trajetória, os quais forçaram muitas fugas. Os interagiu, de forma que esses entrecruzamentos fazem de sua escrita um
itinerários das personagens de Kokis ocorrem em uma pluralidade de paí- palimpsesto de que se pode abstrair um “espaço biográfico”, uma identi-
ses em que se passam as histórias, culturas heterogêneas, relacionamentos dade multifacetada e em movimento contínuo. Em O espaço biográfico,
complexos com a alteridade, hábitos de vida, com línguas a serem deci- conceito que abrange inúmeras formas e gêneros dessemelhantes, está
fradas em suas sutis conotações, fáceis de decodificar pelo autóctone e incluído o romance, que, segundo Leonor Arfuch, “é um território privile-
cifradas para o alóctone. Narra também sofrimentos dos seres humanos giado para experimentação, na medida em que pode operar no marco de
submetidos à crueldade dos que têm poder em qualquer tempo histórico, múltiplos ‘contratos de veracidade’” (ARFUCH, 2010, p. 126-7), sem o com-
como é o caso de seu último romance L’innocent (2018), cuja ação se passa promisso do “pacto autobiográfico”, no sentido de Philipe Lejeune, nem da
no século XVI e relata a história de um menino que se torna joguete sexual referencialidade biográfica. Os romances de Kokis colocam em cena per-
de monges de Sahagún, Espanha. Sugere, assim, a ideia de que a opressão, a sonagens imigrantes, apartados de suas raízes, mas tendo contato com elas
crueldade, o abuso sempre estiveram presentes na história das sociedades, pela memória e pela arte, personagens com identidades compostas de múl-
basta haver uma situação oportuna para que ações como essas emerjam. tiplos pertencimentos, de acordo com o momento e o lugar das “vivências”,
Julia Kristeva, também imigrante, vinda da Bulgária como Todorov, psicológicas e biográficas, que se sucedem no fluir das experiências, de
em 1965, contemplada por bolsa de estudos, como Kokis, pergunta em modo que vivem em entre-lugares. O narrador de Pavillon des mirois tem
seu livro Estrangeiros para nós mesmos, publicado em 1988 na França: consciência dessa ambivalência: “O estrangeiro não pode se voltar sempre
“Existem estrangeiros felizes?”. E ela responde: para o futuro; fica frequentemente atolado entre essa identidade que foi e o
desencontro de ter que se tornar outro” (KOKIS, 2000, p. 294).
A felicidade parece transportá-lo, apesar de tudo, porque alguma coisa foi
definitivamente ultrapassada: é uma felicidade do desenraizamento, do
nomadismo, o espaço de um infinito prometido. Contudo, felicidade cabis-
baixa, de uma discrição medrosa, apesar de sua intrusão penetrante, pois o referências bibliográficas
estrangeiro continua a se sentir ameaçado pelo território de outrora, tragado
pela lembrança de uma felicidade ou de um desastre – sempre excessivos. ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico. Dilemas da subjetividade contemporânea.
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Em Sergio Kokis, o protagonista de Le pavillon des miroirs também et transculturalisme au Québec. In: FONTILLE, B.; IMBERT, P. (dir.). Trans, multi,
reflete sobre essa “felicidade do estrangeiro”, lembrando que os espelhos interculturalité, trans, multi, interdisciplinarité. Canadá: Presses Université Laval,
– miroirs – na tradição simbólica, desde a Antiguidade e, sobretudo, no 2012.
Romantismo alemão, refletem a alma: “Acabo de descobrir que a minha BERNIER, Silvie. Les héritiers d’Ulisse. Québec: Lanctôt Éditeurs, 2002.

situação de estrangeiro é invejável, embora a acompanhe uma tristeza dis- BLOY, Léon. Histoires désobligeantes. França: L’Arbre vengeur, 2008.

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KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. [Trad.: Maria Carlota Carvalho
Gomes]. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. Uma língua é uma casa. […] Esta habitação pode ser “materna”, matriz da
LEJEUNE, Philippe. Le pacte autophiographique. [Essais; 326]. Paris: Seuil, 1996. vinda ao mundo da consciência, mas ela pode também ser espaço de migra-
ção, permitindo ir em direção aos outros e acolhê-los.1 (MEYER-BISCH,
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rada da(s) língua(s) de que se valem em seu ato criativo. “Condenados a
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pensar a língua” (GAUVIN, 2000, p. 9), apoiam frequentemente sua cria-
WILSON, Sheena. Multiculturalisme et transculturalisme: ce que peut nos
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ção na fricção de idiomas – muitas vezes da língua materna e da língua do
<http://id.erudit.org/iderudit/1009906ar.> Acesso em: 15 jun. 2019. outro –, o que confere ao conjunto de sua obra um rico diferencial. Para
o escritor francófono, a língua é sempre algo a ser conquistado: “Dividido
entre a defesa e a ilustração, deve negociar sua relação com a língua fran-
cesa, seja ela materna ou não” (Ibidem, p. 11). Impulsionado pela perspec-
tiva da desconfiança e do estranhamento, reinventa a língua francesa: tra-
ta-se de criar um francês desterritorializado através de estratégias textuais
presentes em uma poética da intranquilidade (Ibidem, p. 11) que explora o
jogo tradutório, a reinvenção semântica e, no caso de autores antilhanos, a

1 Neste capítulo, optou-se pela tradução e apresentação apenas em português de todas as


citações de obras originais escritas em língua estrangeira utilizadas, excetuando-se a citação
do poema que aparece na epígrafe da próxima seção.

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difícil passagem do oral – o crioulo – ao escrito – o francês. Movidos pelos ser lembrado o personagem José Costa, do romance Budapeste, de Chico
trânsitos entre idiomas e culturas, autores vindos de um outro lugar não Buarque. Em seu primeiro contato com a língua húngara, ela lhe parece
cessam de experimentar as línguas, de se experimentarem nas línguas em impermeável à compreensão: “sem emendas, não constituída de palavras”
um processo contínuo de desconforto e metamorfose. (BUARQUE, 2003, p. 8), como um muro intransponível. A sensação de se
Dialogando com a noção de surconscience linguistique, de Gauvin, o situar fora desse idioma diminui, ao distinguir, durante um voo de avião,
romancista, poeta e ensaísta martinicano Édouard Glissant (1995) propõe no meio de vocábulos indecifráveis, a palavra alemã Lufthansa, que lhe
a ideia de imaginário das línguas característico do escritor contemporâ- soa como “a brecha” que lhe “permitiria destrinchar todo o vocabulário”
neo que, no seu ato criativo, se encontra na presença de todas as línguas (Ibidem, p. 8). Além de sugerir que para o estrangeiro o domínio de um
do mundo. Mesmo quando domina apenas a língua materna, não pode novo idioma constitui um desafio, a passagem escolhida revela a impor-
ignorar a pluralidade de sotaques, de memórias culturais e linguísticas que tância de se encontrarem brechas de acesso à alteridade. E é no espaço
existem no mundo. Em outras palavras, não é mais possível escrever de da liminaridade, das brechas, dos intervalos entre a língua materna e do
modo monolíngue, o que nos remete a uma Babel revisitada, espaço da idioma estrangeiro, entre a transparência e a opacidade que se constroem
ressignificação do heterogêneo e do acolhimento de diferenças. obras inspiradas pela vivência do entre-dois2 (SIBONY, 1991), pelo roçar
Para abordar o caráter hospitaleiro das línguas, uma referência se faz entre idiomas, responsáveis pela imprevisibilidade de escritas translíngues.
necessária: a obra coletiva Manifeste pour l’hospitalité des langues, publi- Em obras de autores exilados,3 observa-se o exercício de negociações
cada em 2012, na qual as línguas são consideradas como mediadoras dos na adoção de uma ou mais línguas em seu processo criativo, como se,
valores da tolerância, da descoberta do outro, da justiça, da dignidade e da marcados pela surconscience linguistique (GAUVIN, 2000), precisassem
hospitalidade (STENOU, 2012, p. 9). Antídoto para combater a xenofobia, continuamente refletir sobre a coabitação de línguas em seu interior. Em
a hospitalidade supõe o desejo de conhecer, de reconhecer e de acolher a seu ensaio Nord Perdu, a escritora de origem canadense anglófona Nancy
alteridade. Vista como capital de reciprocidade, cada língua se mostra apta Huston, há muito radicada na França, onde construiu, em francês, sua car-
a acolher e a ser acolhida enquanto hôte (= anfitrião ou hóspede) no mer- reira nas searas das letras, se define como uma “falsa bilíngue” (HUSTON,
cado de bens linguísticos. Todavia, no universo de autores das migrações 1999, p. 53) e ressalta seus vínculos com sua língua materna e com sua
pós-coloniais, a prática linguística não é sempre revestida do sentido da língua de adoção, presentes na gênese de seus textos:
hospitalidade, sugerindo, antes, as ideias de tensões, embates e confrontos. Há muito tempo sonho, faço amor, fantasio e choro nas duas línguas alter-
Ao mesmo tempo matriz e movência, as línguas são lugares de habi- nadamente, e às vezes em uma mistura assombrosa das duas. Todavia, elas
tação e de passagem, de convívio – nem sempre pacífico –, de aprendiza- estão longe de ocupar em meu espírito lugares comparáveis: como todos os
gem e de criação (MEYER-BISCH, op. cit., p. 89). Ao exprimir proximidade falsos bilíngues provavelmente, tenho com frequência a impressão de que
elas dormem em quartos separados em meu cérebro. Longe de estarem dei-
e distância, familiaridade e estranheza, as línguas se definem como terri-
tadas de modo comportado face a face ou de costas uma da outra, ou uma
tórios de encontros e de desencontros, de parcerias e de incompreensão. ao lado da outra, longe de serem superpostas ou intercambiáveis, elas são
É justamente nessas interfaces que se inscreve o translinguismo literário distintas, hierarquizadas: a princípio uma depois a outra em minha vida,
de autores francófonos da contemporaneidade, fonte inesgotável de ricas a princípio a segunda, em seguida a primeira em meu trabalho. As pala-
representações do imaginário das línguas.
2 No âmbito do translinguismo literário, o conceito de entre-dois, proposto pelo psicanalista
Autores e personagens exilados ou deslocados continuam a ser habi- Daniel Sibony, pode ser visto como dinâmica não só entre a língua materna e a língua do
tados por sua língua materna e, no espaço estrangeiro – frequentemente outro, mas entre a língua materna e outras línguas. É o que se manifesta no poema “Babel”,
de Antonio D’Alfonso, que será estudado a seguir.
inóspito – buscam encontrar um lugar no idioma do outro, nem sempre
3 A partir de Edward Said (2003), sabe-se que o termo “exílio” se refere a diferentes situações,
aberto à compreensão e ao acolhimento. A título de ilustração, poderia que vão do exílio imposto ao exílio escolhido.

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vras dizem tudo: a primeira língua, a “materna”, adquirida na tenra infância poemas e fragmentos esparsos.4 Longe de ser vista unicamente como inco-
envolve você e faz você dela, ao passo que a segunda, a “adotiva”, deve ser municabilidade, a Babel do poema indica o caráter múltiplo dos pertenci-
maternada, dominada e apropriada por você. (HUSTON, op. cit., p. 61)
mentos do sujeito poético, ligado a diversos referenciais geográficos e iden-
Ao se refletir sobre a noção de hospitalidade, deve-se atentar para a titários que o qualificam como ser da errância e da diversidade.
riqueza de sua etimologia, uma vez que o termo hostis aponta para o hôte Nos versos do poema, ressalta-se uma dupla impossibilidade para o
(em sua dupla acepção de anfitrião e hóspede) e para a palavra inimigo. A poeta: a de dispor de uma língua única e a de habitar um lugar estável, o
partir de Benveniste, Derrida (DERRIDA; DUFOURMANTELLE, 1997, p. 45) que indica o percurso de outros seres migrantes através de idiomas, geo-
criou o termo “hostipitalidade”, nascido da mistura dos sentidos embuti- grafias, histórias, memórias afetivas e imaginários coletivos, responsáveis
dos em hostis, que sugere a necessidade de uma releitura do termo “estran- pela contínua e necessária reelaboração da origem. Dá-se, pois, uma revi-
geiro”. Figura significativa em toda cultura onde pode ser visto como o são do conceito de origem, encarada não como algo fixo no passado, mas
excluído, o bárbaro suspeito, o outro absoluto, destituído de nome e de como algo que remete ao futuro (SIBONY, op. cit.). Sob a ótica do autor
família, o estrangeiro se situa fora da língua em que lhe perguntam seu do ensaio Entre-deux: l’origine en partage, a origem não se encontra uni-
nome. Graças às leis referentes ao pacto estabelecido entre hospedeiro e camente atrás de nós, mas também diante de nós, graças à capacidade
hóspede, o escritor desterritorializado pode encontrar, no lugar e na lín- humana de reinvenção identitária.
gua do outro, nova origem e novo referencial identitário, mas para isso Nascido em 1953, na cidade de Montreal, no interior da província
lhe cabe assumir o gesto de disponibilidade e abertura ao outro, ao seu francófona do Quebec, filho de pais originários de Molise (região do sul
idioma e à sua cultura, para se apropriar de outro modo de se situar e de da Itália), Antonio D’Alfonso foi escolarizado em inglês. Em casa, na sua
ler o mundo, respeitando a opacidade que confere ao outro sua diferença. infância, seus pais falavam guglionesano,5 que, segundo ele, nunca foi
Tal processo de apropriação passa, necessariamente, pelo trabalho criativo estabilizado na língua escrita. Não é, pois, por acaso, que o italiano –
dos encontros e desencontros de línguas em diálogo ou em confronto. que não foi sua língua materna – não figura como uma de suas línguas
de criação, aparecendo em entrevistas ou em textos curtos sob a forma
revisitando babel à luz da hospitalidade das línguas de vestígios, ruínas, cicatrizes, marcas de uma língua perdida (FERRARO,
2014, p. 47). A adoção do francês e do inglês como idiomas da criação, a
Nativo di Montréal / Élevé comme Québécois / Forced to learn the tongue of impossibilidade de se valer do italiano e a ausência do “dialeto” falado por
power / Viví en México como alternativa / Figlio del sole e della campagna /
seus pais o levaram a um processo autotradutório sem fim (FERRARO,
Par les franc-parleurs aimé / Finding thousands like me suffering / Me casé
y divorcié en terra fría / Nipote di Guglionesi / Parlant politique malgré 2014, p. 48). Ao afirmar “Quando escrevo, traduzo” (D’ALFONSO, op. cit.,
moi / Steeled in the school of Old Aquinas / Queriendo luchar con mis p. 126), confirma o fato de ter, no momento mesmo da criação, a memória
amigos latinos / Dio where shall I be demain / (trop vif) qué puedo saber yo de uma língua que exprime em outra. Ao empreender a travessia entre
(D’ALFONSO, 1999)
idiomas, inspira-se nos movimentos do “trans”, o que o coloca na cate-
O poema “Babel”, do poeta, romancista, crítico literário e cineasta ítalo- goria dos “homens traduzidos” de nossa época, na leitura proposta por
-quebequense Antonio D’Alfonso, transcrito integralmente na epígrafe Salman Rushdie (1995, p. 28).
acima, é exemplar do translinguismo literário próprio da era das migrações À experiência do homem traduzido e hifenizado, vivenciada por
pós-coloniais. Poema emblemático escrito em quatro línguas – o que não outros escritores ítalo-quebequenses, se acrescenta a do ser minoritário em
compromete totalmente sua legibilidade –, situa-se, de modo estratégico,
4 Em 1986, D’Alfonso publicou The Other Shore, pela editora Guernica, traduzido pelo pró-
na abertura de um dos blocos que compõem a obra L’autre rivage, primeiro prio autor com o título L’autre rivage, lançado em 1987, pela editora VLB.
dos livros autotraduzidos pelo poeta, que se apresenta como coletânea de 5 Guglionesi é uma comuna italiana da província de Campobasso, na região Molise, na Itália.

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uma sociedade minoritária (o Quebec). Em parceria com Fulvio Caccia, guismo e de heterogeneidade são abordadas a partir do olhar de uma fonoau-
define a situação do escritor migrante italiano cujo idioma materno não dióloga (Fatima) cuja função é trabalhar com “os que procuram sua língua
coincide com nenhuma das duas línguas oficiais do Canadá: perdida” (NOËL, 1992, p. 161).7 Sensível à presença marcante de estrangeiros
na cidade cosmopolita de Montreal – vista como cidade bastarda que evoca
Minoritário no interior de uma minoria, situado em três culturas e línguas,
mantém com a linguagem uma relação complexa, pois tanto no exercício a efervescência de Babel (Ibidem, p. 122) –, interroga-se constantemente
do francês ou do inglês, sua linguagem é marcada pela desterritorialidade. sobre aspectos identitários e linguísticos para tentar entender as transfor-
[...] Essa triangulação das culturas é rica de possibilidades e de reconver- mações que se passam em sua cidade e no interior de sua cultura. Sua maior
sões. Sob este aspecto, evoca a cultura quebequense que se afirma contra o
amiga, espanhola residente em Montreal, dedica-se ao trabalho de tradução
modelo canadense-inglês que procura se distinguir do americano. (CACCIA;
D’ALFONSO, 1983, p. 9) e, como Nancy Huston,8 ou Addolorata (citação anterior), sabe negociar as
relações entre os vários idiomas que domina com maior ou menor compe-
Por sua vez, o escritor ítalo-quebequense de primeira geração Marco tência: “Não sou a mesma de acordo com a língua que falo. Vivo em francês,
Micone também se mostra marcado pela necessidade de refletir sobre a trabalho sobre textos ingleses, mas sempre amei o espanhol. Para mim, essa
pluralidade linguística que o afeta e a outros autores migrantes. Em sua língua é o velho substrato da paixão” (Ibidem, p. 59).
peça de teatro Addolorata, imprime um tom irônico às palavras de seu No centro das páginas de seu diário, Fatima Gagné reserva muitas
personagem que brinca com a negociação assumida no exercício dos reflexões sobre a narrativa bíblica de Babel e, em particular, sobre a língua
diversos idiomas em sua vida cotidiana na qual a coexistência babélica de francesa no Quebec. Ao refletir sobre a identidade quebequense, recorre
idiomas e culturas se reveste do caráter lúdico: “Não me aborreço nunca à imagem de Babel, vista como acolhimento, capaz de dar lugar aos novos
com minhas quatro línguas. Posso falar inglês na segunda, francês na e aos antigos moradores (os indígenas). Para ela, todos se encontram “na
terça, o italiano na quarta, o espanhol na quinta e as quatro, ao mesmo Torre-refúgio” (Ibidem, p. 284), participando da descoberta da América,
tempo, na sexta” (MICONE, 1987, p. 61). vista como processo inacabado,9 o que foge à concepção essencialista da
A riqueza da temática de Babel – na sua versão consagrada, de puni- identidade. “Lugar de asilo e tolerância” (Ibidem, p. 316), Babel – a cidade
ção e impossibilidade, ou na sua releitura atual associada aos estudos de de Montreal e a própria língua francesa – representa o ponto de con-
tradução e dos processos de hibridação cultural –, destacada por muitos tato de diversas estranhezas e a configuração de novas identidades: “Em
autores e ensaístas francófonos, oferece pistas produtivas de análise para Babilônia, antes-do-raio, a língua servia de elo entre os povos, agindo
a compreensão das noções de surconscience linguistique, imaginário das como argamassa que solda os tijolos do edifício. É o que o francês deveria
línguas e translinguismo literário. Ensaios como o de Catherine Khordoc ser aqui, normalmente” (Ibidem, p. 283).
(2012) mostram que, enquanto sinônimo de inacabamento, Babel não
cessa de ser reinventada, seja nas páginas literárias onde constitui refe- 7 Uma paciente em particular permite a Fatima Gagné desenvolver reflexões sobre a questão
rência desde o título, como nos romances Babel prise deux, de Francine linguística do Quebec: a afasia da jovem francófona Linda, que perde sua língua materna
Noël (Quebec), e Tambour-Babel, de Ernest Pépin (Guadalupe), seja nas em função de um acidente, faz terapia em inglês e tem o italiano como idioma da afetivi-
dade, remete ao próprio Quebec e ao sentido político de que se revestem as línguas nessa
obras em que o fazer literário se apoia no roçar constante entre línguas, província canadense. Assim, a condição afásica de sua paciente seria uma “metáfora do
como em muitos romances antilhanos. Quebec atual. Um sinal de alarme” (NOËL, op. cit., p. 236).
No romance Nous avons tous découvert l’Amérique (1992), publicado 8 Cf. citação no final da primeira seção deste capítulo.
9 A ideia de inacabamento – ligada à torre bíblica – se apresenta sob diversas formas no
anteriormente com o título Babel prise deux6 (1990), as questões de plurin-
romance: a escolha da narrativa como diário, forma de escrita de si marcada pelo caráter
inacabado; a caracterização de Louis como arquiteto frustrado que conhece a impossibi-
6 Na edição publicada em 2016, pela Bibliothèque québécoise, o título voltou ao inicialmente lidade da construção sólida em seu métier e na sua vida afetiva; a suspensão da tradução
proposto: Babel prise deux: Nous avons tous découvert l’Amérique. – processo sempre inacabado – dos poemas de Delia Febrero devido à morte da tradutora.

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É também sob o signo da torre bíblica vinculada à prática da hos- ótica antilhana, essas duas formas de apreensão do mundo correspon-
pitalidade que o escritor da Guadalupe, Ernest Pépin, construiu o livro dem a posturas corporais diferentes: a prática da escrita supõe o corpo
Tambour-Babel. Romance de aprendizagem centrado no processo de disciplinado segundo códigos de imobilidade, ao passo que o exercício da
transformação do personagem Napo – herdeiro de virtuoses do tambor, oralidade requer a dinâmica do corpo em movimento. Em continuidade
mas nascido “com as mãos amarradas” –, o livro ilustra uma série de pas- com sua arte enfim dominada, Napo investe de tal forma seu corpo nas
sagens. Em uma espécie de ritual iniciático, o protagonista se desloca da searas da musicalidade que seu tambor se torna extensão do mesmo.
impossibilidade à possibilidade, do impedimento à permissão, do inter- Dotado das qualidades da memória-palimpsesto, o tambor-Babel
dito à transgressão, do corpo “amarrado” à liberação, do silêncio à palavra, guarda a superposição de vivências e de musicalidades, apresentando-
do desprezo ao reconhecimento coletivo. -se como um receptáculo capaz de acolher criações musicais vindas de
No itinerário do personagem Napo, observa-se a aprendizagem da toda parte. Enquanto língua capaz de substituir todas as línguas perdidas
paciência, do ritmo vital, do recolhimento, do desvio no bosque onde (Ibidem, p. 59), a linguagem do tambor de Napo incorpora uma plura-
conhece um mestre do saber e da tradição antilhana, responsável por sua lidade de sotaques, de memórias e de culturas e dá acolhida a escrito-
metamorfose. Antes de se afirmar como produtor de sons e de sentidos, res e poetas de origens diferentes, como Aimé Césaire, Saint-John Perse,
descobre, nas lições de seu mentor, que é preciso engolir sons e senti- Nicolas Guillén, Édouard Glissant, assim como abriga sons e ritmos
dos da diversidade. Aprender para ele é sinônimo de apreender, de se muito variados, representados por Ella Fitzgerald, Josephine Baker,
colocar à escuta e à espreita de todas as sonoridades do mundo, naturais Cesária Évora, Nina Simone, Antônio Carlos Jobim. Lugar do encontro
ou culturais. No final do livro, fazendo ecoar, em diferença, a narrativa de produtos culturais diversos, o Tambor-Babel dá hospitalidade ao plu-
bíblica, é dito que “No princípio é a orelha”, receptáculo hospitaleiro da ral. Por isso mesmo, pode-se imaginar a língua francesa e a francofonia
multiplicidade. como espaços propícios aos contatos fecundos entre diferentes culturas
Ao longo das páginas, exercendo uma escuta diferenciada, Napo se e como convite para a prática da relação (GLISSANT, 1990). Cabe aos
mostra como sujeito aberto ao novo e ao plural, exercendo a prática da autores francófonos representar, em suas obras, os contatos fecundos de
apropriação. Ao não ser colocado no papel do herdeiro que receberia o línguas diversas, através do emprego do translinguismo, campo produ-
talento como um dom, seguindo a linhagem paterna, o personagem foge tivo para reflexões sobre as interrelações entre línguas existentes na sua
da previsibilidade e assume o gesto de se apropriar da arte do tambor prática usual ou no seu imaginário, ou ainda entre uma língua que se
onde imprime ecos e fragmentos de produções culturais oriundas de faz presença e outra que se caracteriza como ausência: é o caso de Leïla
várias partes do mundo. Sebbar, escritora do entre-dois franco-argelino.
Forma de saber, ler e interpretar o mundo, a oralidade e a música
desempenham função relevante no romance em questão, opondo-se à escrever em francês a partir da língua ausente
escrita, ligada à lei e à autoridade dos colonizadores: “Os brancos leem
grandes livros para buscar a chave do mundo, nós batemos à porta de
Não aprenderei a língua de meu pai. Quero ouvi-la ao acaso de minhas pere-
nossos tambores e tudo se torna uma claridão10” (PÉPIN, 1999, p. 45). Na grinações. Ouvir a voz do estrangeiro querido, a voz da terra e do corpo de
meu pai que escrevo na língua de minha mãe. (SEBBAR, 2003, p. 125)
10 Optou-se pelo termo “claridão”, menos corrente do que ‘claridade’, para traduzir o estra-
nhamento causado pela palavra “claireté”, inventada por Pépin. Valendo-se de um fran- Nascida na Argélia, durante o período de colonização, fruto de um
cês desterritorializado graças ao contato com a língua crioula, o autor cria um repertório casamento misto – pai argelino e mãe francesa, ambos professores de fran-
semântico marcado pelo humor e pela imprevisibilidade. A título de curiosidade, podem
ser citados: “sériosité” (p. 196), “achepé” (p. 202) [= HP: hospital psiquiátrico], “jojoter” (p.
cês em Aflou –, desde cedo, Leïla Sebbar teve consciência de sua comple-
229) [criado a partir de Jojo, figura da história da Guadalupe]. xidade linguística. Situada na encruzilhada entre o Oriente e o Ocidente,

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entre o pai muçulmano e a mãe católica, experimentou a situação de des- No centro da obra da autora, uma questão se coloca com muita fre-
locamento nos dois países que estão na base de sua história: “estrangeira” quência: por que seu pai não ensinou o árabe11 a sua descendência, impe-
na Argélia e exilada na França, conhece o duplo pertencimento identitá- dindo-a de ter acesso a toda a produção cultural magrebina? Como se
rio, próprio dos filhos dos casais de origens diversas. tentassem responder a tal indagação, as obras Je ne parle pas la langue
Aos olhos de Michel Laronde, na infância, Leïla Sebbar seria cerceada de mon père e L’arabe comme un chant secret – inspiradas pela complexa
pela duplicidade da língua francesa característica das situações coloniais e relação da autora com a língua – levantam possíveis hipóteses para a per-
pós-coloniais: por um lado, a língua da mãe francesa, língua materna, língua gunta lancinante que atravessa outros textos da autora. Em determinadas
dos livros, que a mãe ensina aos autóctones, árabes e bérberes; por outro, a passagens, ao assumir a decisão de não transmitir sua língua materna a
do pai argelino, idioma colonial e civilizatório, instrumento de promoção sua prole, o pai teria tentado protegê-la no interior da Argélia colonial,
social, língua obrigatória da instrução pública (LARONDE, 2003, p. 15). dividida pelo ódio.
Aos dezenove anos, com a cidadania francesa herdada de sua mãe, se O silêncio obstinado da figura paterna, aliado à recusa de transmitir a
instala na França para cursar a faculdade de Letras em Aix-en-Provence. seus descendentes a bagagem cultural de seu povo, equivale a uma brecha
Atenta à sua condição de exilada – em ruptura com seu corpo, com a lín- intransponível para a escritora, excluída por seu próprio pai do romance
gua e a cultura paternas, com a geografia e história argelinas –, explora em memorial de sua família. A ausência de narrativas sobre o romance fami-
seus textos a dificuldade de habitar a distância (PARÉ, 2003), sentindo-se liar acarreta outra falta: a dos ancestrais, em função da ruptura genealógica.
continuamente afastada de seu outro lugar identitário. Em uma narrativa Dada a impossibilidade de ter acesso a eles pela via do saber, Leïla Sebbar
epistolar centrada na vivência do exílio, escrita em parceria com Nancy compensará esse vazio por intermédio da ficção. “Escriba” de seu pai
Huston, Sebbar afirma: (SEBBAR, 2007, p. 69), enfrenta a dificuldade de transmissão da memória
intergeracional e assume o dever de memória, que se expressa como neces-
Estou aqui, no cruzamento, enfim serena, em meu lugar, em suma, já que
sou uma híbrida que busca uma filiação e que escreve em uma linhagem, sidade de retomar o fio rompido de sua ascendência. Enquanto mediadora
sempre a mesma, ligada à história, à memória, à identidade, à tradição, à entre dois universos culturais, coloca-se como tradutora situada entre dois
transmissão, isto é, à busca de uma ascendência e de uma descendência, de idiomas, entre dois imaginários linguísticos, como afirma em uma de suas
um lugar na história de uma família, de uma comunidade, de um povo, em entrevistas: “Escrevo na língua de minha mãe para ter acesso ao pai, ao
relação à história e ao universo. (SEBBAR; HUSTON, 1986, p. 147)
silêncio de sua língua, o árabe. É assim que posso viver, na ficção, filha
Ocupando duplamente uma situação exilar, no entre-dois identitário de meu pai e de minha mãe. É assim que posso, pela ficção, restaurar essa
e geográfico, Sebbar encontra na escrita um refúgio, seu lugar no mundo. dupla filiação” (SEBBAR apud MAKHLOUF-CHEVAL, 2008, n.p.).
Em Lettres parisiennes: autopsie de l’exil, revela o papel da ficção em sua Ao buscar restaurar o silêncio paterno a respeito de sua cultura e de
vida: “[...] para mim, a ficção é a sutura que mascara a ferida, a lacuna sua ascendência, e ao assumir a tarefa de escrever sobre a Argélia como
entre as duas margens” (SEBBAR; HUSTON, op. cit., p. 147). Herdeira de “escriba” de seu pai, Leïla Sebbar se situa no campo da produção literá-
um duplo exílio – o do seu pai, afastado de sua língua materna, e o de sua ria das narrativas de filiação da contemporaneidade, centradas na dificul-
mãe, afastada de sua geografia –, Sebbar tenta não só entender sua história
pessoal marcada pela duplicidade, mas também recriar o laço, retraçar a 11 Sabe-se que Leïla Sebbar frequentou a escola corânica, onde estudou o árabe clássico até
história de uma filiação rompida, típica de outros filhos de exilados. Para o baccalauréat. Única aluna na turma que não tinha o árabe como língua materna, sofreu,
sobretudo em função da guerra da Argélia, a exclusão das colegas que falavam em casa
tanto, engaja-se no processo criativo como um trabalho de memória a o árabe argelino. Tal experiência desconfortável trouxe consequências no seu processo de
partir do silêncio, da amnésia e da escuta. aprendizagem. Segundo ela, precisou colar de uma colega para poder ser aprovada na maté-
ria, o que impediu que seu pai percebesse sua dificuldade diante da língua árabe.

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dade da transmissão memorial, na figura do herdeiro e na reinvenção da p. 18). Segundo Jean-Luc Nancy, situar-se em posição de escuta equivale
origem. Como pensa Dominique Viart (2009, p. 109), o fato de não ter à situação de quem se coloca à beira do sentido, no limiar da promessa de
tido acesso ao arquivo das memórias de seu pai a impulsiona a escrever: o uma revelação, em um movimento que supõe tensão, intenção e atenção.
“não-saber” a leva à invenção no livro Je ne parle pas la langue de mon père, No caso de Leïla Sebbar, o importante não seria chegar à compreensão
onde a língua paterna exprime o irreal no passado. É o que se depreende dessas falas escutadas em cafés, praças e metrôs, mas revisitar, na dis-
em uma passagem da mesma obra citada por Viart: “Em sua língua, ele tância espaçotemporal, a proximidade afetiva de seu pai. Não tendo tido
teria falado a seus filhos sobre o que ele silencia, teria contado o que ele nunca a oportunidade de escutar seu pai lhe contar, em árabe, histórias
não contou [...] teria contado os ancestrais, o bairro, verdade e mentira” de seu povo e de seus familiares, tenta costurar simbolicamente as rasuras
(SEBBAR, 2003, p. 21). do tecido de seu romance familiar repleto de falhas e ausências.
Apoiando-se no silêncio e na falta que representam o idioma “calado” Da mesma forma, Leïla Sebbar tem prazer em sintonizar a rádio
de seu pai, Leïla Sebbar constrói uma obra singular, baseada na ressignifi- árabe no momento do Ramadan, para ouvir as recitações do Alcorão.
cação do que lhe foi interditado no espaço familiar onde se falava francês, Torna-se, assim, hospedeira da língua que lhe é, ao mesmo tempo, tão
com exceção de breves momentos de diálogos entre seu pai e as emprega- distante e tão próxima, “a estrangeira íntima” (SEBBAR, 2007, p. 63), não
das, armazenados afetivamente no espaço das lembranças: se importando com o fato de não ser capaz de compreender o sentido das
orações. Para ela, tais preces permitem-lhe revisitar a memória afetiva
Pois o que sei, após tantos anos de práticas múltiplas da língua materna (o de seu passado na Argélia através da musicalidade do idioma paterno.
francês), é que se tivesse aprendido o árabe, a língua de meu pai, a língua do
autóctone, se tivesse aprendido a falar, a ler e a escrever em árabe... não teria Explorando a representação da língua à luz da noção de hospitalidade, ela
escrito. Tenho certeza disso hoje. Se tivesse ficado no país de meu pai, meu reescreve seu romance familiar, caracterizado por práticas hospitaleiras
país natal com o qual tenho uma história ambígua, não teria escrito porque cruzadas: de um lado, a que seu pai ofereceu à sua mãe em sua terra; de
fazer essa escolha significava aderir a uma terra, a uma língua, e se isso se outro, a que sua mãe deu ao pai no seu idioma.
dá, encontra-se tão perto que não se tem mais olhar, nem ouvidos e não se
Associada à noção de dádiva, a ideia de hospitalidade se manifesta
escreve mais, não se está em posição de escrever. (SEBBAR, 1986, p. 19)
de forma reiterada no último capítulo do livro L’arabe comme un chant
Ao ressaltar a necessidade da distância como condição para seu gesto secret, concebido como um presente dado ao pai a quem a autora oferece
criativo, a autora sugere as negociações feitas por ela entre familiaridade e “fragmentos do corpo argelino no silêncio do exílio” (SEBBAR, op. cit., p.
estranheza, outra dualidade existente na base de seus textos. Como habi- 72), enriquecido pela história subterrânea e interdita (Ibidem, p. 68) que
tante do país materno, revela-se atenta aos fragmentos de diálogos entre nunca deixou de habitá-la. Do contato entre suas duas línguas, a autora
mulheres que se expressam em árabe na França: trata-se de recolher, retira inspiração e sentido para sua escrita iluminada pelas marcas do
através de uma escuta sensível, sonoridades, intonações, ritmos, ouvidos translinguismo e da hospitalidade:
em cafés, restaurantes, praças, vagões de metrô. O prazer experimentado
Essa língua árabe que os outros e eu também, durante muito tempo, acredi-
equivale ao de poder reencontrar a música da língua árabe, escutada na tamos estrangeira, hostil algumas vezes e perigosa, o árabe de meu pai me dá
sua infância, diferente das sonoridades agressivas e incompreensíveis, emoção, canto profundo à língua de minha mãe. Deixei vir a língua árabe e
expressas na mesma língua, lançadas na rua por meninos argelinos que ela veio, flexível e redonda, com fragmentos de risos e de cólera. Ela veio e eu
a acolho. Como meu pai (acolheu) a língua da França, acolho a estrangeira
atacavam verbalmente as filhas da professora francesa, o que nunca foi
do país natal. Quero-a estrangeira com a distância familiar e cúmplice do
contado a seus pais. amor, o árabe do querido estrangeiro, meu pai. (Ibidem, p. 74)
Enquanto deslocamento em direção à palavra estrangeira e familiar,
a escuta se confirma nessas passagens como mobilidade (NANCY, 2002,

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imaginários da língua francesa casa a mais em minha vida. Na minha viagem sem destino, essa casa é uma
fonte que carrego comigo, uma fonte que me nutre e que não abandono
em autores vindos de certo oriente nunca. (CHEN, 2014, p. 88)
Meu verdadeiro lar é onde me torno aquilo que quero ser. Mais ainda: meu Nas duas últimas citações manifesta-se a ideia de habitabilidade da
verdadeiro ninho se encontra nas palavras, entre as linhas, nesse quase-nada
língua francesa, o que sugere o gesto de apropriação baseado no senti-
que não pode ser designado como “um lugar”. (CHEN, 2004, p. 13)
mento, na duração e na familiaridade. Se o laço com o idioma materno
Habitar o francês, como Cioran disse tão bem, fazer dele um lugar de vida,
meu espaço vital, minha morada permanente, minha paisagem íntima, meu se dá pela herança, a escolha da língua francesa supõe critérios de ordem
meio-ambiente essencial, eram meu objetivo prioritário e não-negociável. estética e afetiva. Trata-se também do desejo de sair dos limites de uma
(MIZUBAYASHI, 2011, p. 119) identidade dada para alargar suas possibilidades identitárias através do
encontro com a língua estrangeira tornada familiar.
No âmbito dos escritores francófonos que refletem sobre o imaginário dos
Na sua busca de dominar o francês, o jovem Akira Mizubayashi ado-
pertencimentos e sobre o papel da língua francesa em sua vida pessoal
tava uma prática pedagógica até certo ponto questionável, fundamentada
e profissional, há dois nomes, vindos do Oriente, que construíram uma
no mimetismo: o hábito de copiar textos literários para se impregnar dos
história singular com a língua francesa a partir de sua situação de entre-
clássicos franceses. A leitura de Rousseau o estimulava a copiar pará-
-dois. No Japão, aos dezenove anos, Akira Mizubayashi começou a dizer
grafos, páginas inteiras como se colecionasse citações a serem retoma-
suas primeiras palavras em francês, o que inaugurou o percurso de uma
das mais tarde em seus trabalhos acadêmicos. Para o autor japonês, seu
vida inteiramente consagrada à aquisição desse idioma. Assim, na época
gesto não constituía uma espécie de roubo, era, antes, uma prova de amor
de sua juventude em sua terra natal, manifestou uma fina sensibilidade em
do copista que se tornara graças ao exercício de uma caligrafia afetiva
relação a esse idioma:
(MIZUBAYASHI, op. cit., p. 104). Consciente de seus progressos na aprendi-
Desde então, não parei de navegar entre a minha língua, o japonês, porque zagem da língua estrangeira, a partir desse processo de reprodução, decide
ela vem de meus pais, e o francês, que é igualmente minha, porque decidi me
apropriar dela para me instalar aí, para viver, com plena consciência, minha mostrar um manuscrito de cerca de cem páginas a um professor de lite-
progressiva adesão a essa língua amada e escolhida. (MIZUBAYASHI, 2011, p. 19) ratura medieval. Estava certo de que esse professor francês leria seu texto
com tolerância, por se tratar das primeiras páginas escritas por um jovem
Por sua vez, após ter publicado uma obra sólida e consagrada (cf.,
estrangeiro. Tal experiência se revelou frustrante, ficando em sua memó-
em particular, os romances La mémoire de l’eau, Les lettres chinoises,
ria como uma “lembrança-cicatriz” (Ibidem, p. 103) difícil de ser esque-
L’ingratitude, Immobile, Le champ de la mer, Un enfant à ma porte, La rive
cida. O que lhe pareceu mais grave nas falhas apontadas pelo professor foi
est loin, entre outros, e o ensaio Quatre mille marches), a escritora de ori-
um detalhe, algo que se insinuou em seu texto a despeito de sua vigilância:
gem chinesa Ying Chen lança seu segundo ensaio: La lenteur des montag-
a inclusão da letra “o” na palavra “Introduction”, grafada “Intoroduction”,
nes. Sob a forma de uma longa carta, a autora se dirige a seu filho para lhe
prova – segundo ele – de sua nulidade intelectual. A constatação desse
explicar sua escolha pela língua francesa e por um novo país (Canadá), o
erro provocou profunda irritação no jovem, que viu nessa letra um signo
que comprometeu a possibilidade da transmissão da herança chinesa a
do excesso (“un signe de trOp”), que lembrava um zero, pela sua forma.
ser legada a sua descendência. Como se precisasse justificar a ruptura da
Além disso, a “feiúra” das duas sílabas (“toro”) lhe parecia insuportável,
transmissão do legado familiar oriental, insiste sobre o lugar de afeto que
pois sugeriam, não a palavra francesa “taureau” (= “touro”), mas um adje-
a língua francesa desempenha em sua vida:
tivo japonês (“toro-i”) que significa “tolo”, “idiota”12 (Ibidem, p. 105).
A língua francesa é uma casa que avistei no meu caminho aos dezoito anos.
Essa casa é povoada de grandes espíritos como Valéry, Camus, Proust. 12 Identificando-se com a letra “o” nesse contexto, Mizubayashi (op. cit., p. 268) afirma ter
Continuei minha estrada em seguida, sabendo que doravante tinha uma vivido muitas vezes a sensação de estar fora de lugar.

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Pode-se reconhecer nessa letra excessiva a situação dos imigrantes em [...] desloquei-me em direção a ela; fui recolhê-la enquanto ela me acolheu.
um país estrangeiro onde nem sempre conseguem ser invisíveis, pois há Ela veio a mim de longe, com um atraso considerável de dezoito anos. Ela
é de natureza horizontal, com uma extensão imensa que conserva recantos
algo que denuncia sua estranheza no espaço alheio. Além disso, a letra “o”
inexplorados, vazios a serem preenchidos, espaços a serem conquistados.
mostrou a dificuldade para o jovem estudante de cortar seus vínculos com
a língua de origem. Mesmo depois de ter copiado trechos de tantos clás- Mestres dos trânsitos entre culturas, países, idiomas e imaginários,
sicos, as marcas de sua diferença se impuseram no trabalho redigido em Ying Chen e Akira Mizubayashi se apoiam em uma poética da hospitali-
francês. Para Mizubayashi – que, inspirado pelo pai,13 fez do aprendizado dade, ilustrando a riqueza do translinguismo literário de nossa contempo-
do francês um projeto de vida –, dominar esse idioma exigiu a capacidade raneidade. Sabendo que o verdadeiro enraizamento se dá no mundo das
de negociar entre o que é excessivo e o que é falta. Nessa situação interva- letras (MIZUBAYASHI, op. cit., p. 138) e que lhe é impossível colocar-se na
lar, conhece o que Daniel Pennac ressalta no prefácio do livro Une langue pele dos franceses (Ibidem, p. 199), o autor japonês reivindica, no fim de
venue d’ailleurs: situado entre um “quase” (quase francês) e um “não mais seu romance, seu duplo estatuto de estrangeiro (Ibidem, p. 268):
totalmente” (não mais totalmente japonês), o escritor tira partido de uma
dupla estranheza para criar e testemunhar sua experiência de vida. No dia em que me apoderei da língua francesa, perdi, na verdade, o japonês
para sempre na sua pureza original. Minha língua de origem perdeu seu esta-
Por sua vez, consciente da distância que a separa ainda da língua
tuto de língua de origem. Aprendi a falar como um estrangeiro na minha pró-
francesa, que exige um “eterno aprendizado”, Ying Chen identifica em sua pria língua. Minha errância entre as duas línguas começou... Portanto, não
própria escrita uma “evidente estranheza, um desvio indizível da norma- sou nem japonês nem francês. Não cesso, finalmente, de me tornar estran-
lidade, no uso das palavras e na maneira de compor as frases” (CHEN, geiro diante de mim mesmo nas duas línguas, indo e vindo de uma a outra,
2014, p. 84-85). Segundo Chen, em um texto escrito por um estrangeiro há para me sentir sempre defasado, fora de lugar, ao lado do que exige de mim
toda a liturgia social de uma e de outra língua. Mas, justamente, é desse lugar
sempre “algo de traduzido”, mas cabe a esse autor tornar a língua estran-
separado que tenho acesso à palavra; é desse lugar ou, antes, desse não-lugar
geira “menos segunda, menos estrangeira”, para que ela seja capaz de dar que exprimo todo meu amor pelo francês, todo meu vínculo com o japonês.
testemunho de sua existência, atual ou longínqua (Ibidem, p. 84-85). (Ibidem, p. 268)
No seu primeiro ensaio intitulado Quatre mille marches, explorando
a metáfora espacial da caminhada para definir seu itinerário de aprendiz Consciente de que para todo escritor a língua é também um espaço
da língua francesa, Chen (2004, p. 36) afirma: “O importante é continuar interior, tornando-se o ar que respira, a roupa que veste, a casa onde
a caminhar mas não chegar realmente”. Baseada no mito de Sísifo relido habita, Ying Chen (op. cit., p. 87) reforça as noções de habitabilidade e
por Camus, considera o francês como a pedra que lhe escapa, às vezes, a de hospitalidade – vista como via de mão dupla (a língua a habita e ela
reconforta, mas que nunca lhe pertencerá de maneira absoluta (Ibidem, p. a habita) –, associadas ao translinguismo literário, como foi salientado
29). Nesse exemplo, o imaginário da caminhada14 em direção ao francês ao longo dessas reflexões. Próxima da ideia de imaginário das línguas,
indica um deslocamento vertical, o impulso para o alto sempre recome- Chen parece ecoar palavras de Glissant (1990, p. 123), para quem é pos-
çado, apesar dos riscos contínuos da queda que obrigam a imigrante-Sí- sível construir Babel em todas as línguas, uma vez que seria impossível
sifo a não desistir de seu intuito de ser maior do que a pedra-língua com a escrever, hoje, de modo monolíngue: “Quando se escreve em uma língua,
qual se confronta. Já na poética de Mizubayashi (op. cit., p. 11), a errância lendo as literaturas de várias outras línguas, a língua da escritura não é
linguística se apresenta como horizontalidade: mais somente uma língua, mas ela se torna a língua que carrega todas as
línguas” (CHEN, op. cit., p. 74).
13 O autor distingue o japonês (língua materna) do francês (língua paterna), que se tornou
para ele um instrumento de música (MIZUBAYASHI, op. cit., p.55)
14 A palavra marche tem uma dupla tradução: ‘degrau’ ou ‘caminhada’, o que é explorado por
Chen em seu ensaio.

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Escritas translíngues e comunidade que valida as relações transversais e nômades, contesta uma metafísica da
origem e quebra a ideia de uma suposta unidade essencial da cultura, de
literária hispano-americana tanto peso na tradição crítica continental.
Elena Palmero González Porém, nos projetos historiográficos hispano-americanos, esse tipo de
produção continua com uma tímida presença. Sabemos que a tendência a
manter a estabilidade do cânone faz com que a história da literatura seja
sempre mais conservadora no momento de incluir repertórios literários que
dinamitam a estabilidade do sistema, sendo sempre mais lenta a sistemati-
zação historiográfica desses repertórios. Essa constatação dá fundamento
à pesquisa que venho desenvolvendo, um trabalho de base historiográfica
Quando Nicolás Bourriaud afirma no manifesto Altermodern, da Tate cujo objetivo é processar fontes bibliográficas que permitam caracterizar
Triennial de 2009, que “estamos entrando na era da legendagem universal, essa produção, tão singular, no âmbito do que tradicionalmente chama-
da dublagem generalizada” (2009, n.p.), oferece chaves significativas para mos de comunidade literária hispano-americana. Interesso-me, especifi-
pensar a comunidade literária em tempos de altermodernidade e, espe- camente, pela produção literária de escritores biculturais e translíngues,
cialmente, para repensar o paradigma de unidade linguística que susten- radicados nos Estados Unidos e Canadá, filhos de emigrados hispano-a-
tou o modelo moderno de comunidade literária nacional, um paradigma mericanos que chegaram jovens, na infância, ou nasceram em terras da
frágil nos dias de hoje. “Se o Modernismo do século XX foi sobretudo um América do Norte, receberam uma educação formal em inglês ou francês,
fenômeno da cultura ocidental, a altermodernidade decorre de nego- porém, foram educados em lares hispânicos e em contato permanente com
ciações planetárias, de discussões entre agentes de diferentes culturas. uma comunidade latino-americana. É uma produção que mantém até hoje
Desprendida de um centro, ela só pode ser poliglota” (BOURRIAUD, op. uma relação bastante conflituosa com o cânone e a historiografia literária,
cit., n.p.), explica o crítico de arte francês. Com efeito, em tempos de cul- por seu acentuado caráter bifronte, uma escrita produzida por sujeitos que
tura translocal, quando o intelectual e o artista são transeuntes entre mun- se reconhecem biculturais, bilíngues e que cultivam essa condição anfíbia
dos e as formas estéticas radicantes se multiplicam, as escritas translíngues como uma das muitas formas de ser da cultura latino-americana. Refiro-me
adquirem uma dimensão inusitada no panorama literário mundial. a escritores como Gustavo Pérez Firmat, Achy Obejas, Cristina García,
No âmbito das Américas, o crescimento de uma produção literária Ruth Behar, Roberto G. Fernández, Pablo Medina, Elías Miguel Muñoz,
de caráter translíngue é notável nos últimos sessenta anos. Resultante Julia Alvarez, Esmeralda Santiago, Daniel Alarcón, Mauricio Segura ou
do duplo movimento das diásporas – que implicam deslocamento, mas Junot Díaz, apenas para citar alguns exemplos.1
também novos enraizamentos e pugnas para definir um lugar nos novos A intenção é problematizar toda articulação linear e contínua entre
espaços de adoção –, essa escrita foi crescendo ao calor dos movimen- literatura, língua e território, um eixo que continua sendo problemático
tos migratórios latino-americanos em direção aos Estados Unidos e ao na historiografia literária hispano-americana, indagando as possibilidades
Canadá, que caracterizam a segunda metade do século XX e o século de uma literatura que, na sua errância, tende a apagar a origem única para
XXI, dinamitando as formas canonizadas de pensar a comunidade lite-
rária (sobretudo, quando pensada a partir do pressuposto de unidade 1 Das escritas translíngues geradas no âmbito das variadas formas de contato cultural que
proliferam no continente, privilegio, nesta etapa da pesquisa, as associadas aos movimentos
linguística). Assim, prolifera no universo hispano-americano uma crítica diaspóricos dos séculos XX e XXI, dando continuidade a meus estudos sobre as diásporas.
focada na tradução transcultural, nas escritas translíngues e nas poéticas Fica para uma segunda etapa da pesquisa o estudo das literaturas produzidas em zonas de
fronteiras, que também desenvolvem uma poderosa escrita translíngue, mas que conduzem
que essas escritas desenvolvem, com destaque para um exercício analítico
a outros desenvolvimentos teóricos e a outras análises históricas.

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favorecer a multiplicidade de enraizamentos. Neste ensaio, apresento algu- movimento, ela expressa também as lutas para definir um local, modos de
mas reflexões teórico-metodológicas que dão fundamento a esse trabalho pertencer e de ser diferente nos novos espaços de enraizamento.
e caracterizo, de maneira geral, as poéticas translíngues que desenvolvem A outra referência que gostaria de trazer para estas rápidas colocações
esses escritores, no intuito de destacar repertórios literários que corroem está na obra de Paul Gilroy, quando fala do Atlântico negro para se refe-
as formas canonizadas de pensar a comunidade literária hispano-ameri- rir às estruturas transnacionais que se desenvolveram em um sistema de
cana e demandam uma melhor sistematização nos projetos historiográfi- comunicação global constituído por fluxos de pessoas, imagens e símbolos
cos hispano-americanos. negros em diversos pontos do mundo. Trata-se de uma cultura construída
Para estudar produções literárias que se desenvolveram como resul- num processo dinâmico de trocas culturais que, pelo seu caráter híbrido,
tado do intenso movimento diaspórico interamericano da segunda metade não se encontra circunscrita a fronteiras étnicas ou nacionais; uma cultura
do século XX e do XXI, considero importante definir, de início, a ideia de que criou uma topografia à margem das estruturas do Estado-nação. O
diáspora que mobiliza minha reflexão. Partindo do enfoque transnacio- que especialmente resgato do livro é sua ideia de que o diaspórico não
nal que domina os estudos contemporâneos da cultura – que interpreta pode ser identificado com dispersão traumática e aniquiladora da cultura,
as diásporas no contexto de redes ampliadas de intercâmbio econômico, mas com um processo riquíssimo de trocas culturais e redefinição per-
político e cultural, e descarta a imagem convencional da diáspora como manente do sentido de pertencimento. Essa formulação quebra qualquer
despojo cultural ou absorção total de uma comunidade pela sociedade ideia de identidade atrelada à noção de território, de cultura enraizada,
anfitriã –, acompanho o pensamento de ensaístas como James Clifford sobretudo quando o enraizamento é entendido como condição natural,
(1994, 1999), Paul Gilroy (2001) ou Stuart Hall (2008). Esse é um tema que anterior aos deslocamentos. Sua grande contribuição para uma teorização
já desenvolvi em algumas publicações anteriores,2 de modo que sintetizo das diásporas está em pensar o diaspórico como um processo dinâmico
essa reflexão a seguir. e fecundante que garante os sentidos de rede, multiplicidade, interação,
James Clifford, um dos estudiosos da cultura que com maior insis- desafiando as soberanias territoriais e as identidades absolutas.
tência tem criticado as teorias essencialistas da diáspora, ancoradas na E, finalmente, remeto ao pensamento de Stuart Hall, que também põe
ideia de perda e nas teleologias da origem e do retorno, argumenta que em xeque uma concepção da diáspora fincada nas teleologias da origem
as diásporas precisam ser pensadas fora de qualquer nacionalismo. Elas e em uma concepção essencialista e binária da diferença. Hall considera
se expandem em redes transnacionais, construídas através de múltiplas impossível localizar uma origem firme, homogênea e autêntica para qual-
conexões, codificando práticas de acomodação e de resistência às cultu- quer cultura, especialmente para as Américas, espaço constituído de rotas
ras de adoção. Uma ideia central na caracterização de Clifford é que a impuras e camadas de diásporas. Essa perspectiva lhe permite pensar as
diáspora não é temporária, como acontece com outras formas de desloca- culturas diaspóricas como formas naturais da cultura, não como seu exce-
mento. A tendência natural das comunidades diaspóricas é a de construir dente ou desvio. Para Hall, as estéticas diaspóricas interagem com as cul-
novos lares longe do lar, o que provoca mudanças significativas no sentido turas de adoção, alimentando-se e alimentando-as. São estéticas da disse-
de pertencimento. Assim, a diáspora não só significa transnacionalidade e minação e da fertilização. Nesse sentido, a produção artística das diásporas
contemporâneas instaura um campo discursivo que pode ser reconhecido e
estudado nas múltiplas formas estéticas da impureza e da heterogeneidade.
2 Remeto aos verbetes: Diásporas [In: Stelamaris Coser (org.). Viagens, deslocamentos, espa- Para estudar essas estéticas, nascidas do movimento fecundante de
ços: conceitos críticos. Vitória: EDUFES, 2016, p. 70-78] e Deslocamento [In: Zilá Bernd (org.).
Dicionário de figuras e mitos literários das Américas. Porto Alegre: Tomo Editorial/Editora culturas, considero muito valioso o conceito de radicante que desenvolve o
da UFRGS, 2007, p. 109-128]. Este último, revisto para a edição em francês: Déplacement/ crítico de arte francês Nicolas Bourriaud (2009). O radicante é uma metá-
Dislocation [In: Zilá Bernd; Norah Dei Cas-Giraldi (orgs.). Glossaire des Mobilités
Culturelles. Bruxelas: Peter Lang, 2014, p. 133-150].
fora que vem da biologia e alude ao crescimento de certas plantas em forma

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de trajetória. Se as plantas radicais têm sua evolução determinada por sua Pratt (2014), de Franca Bruera (2017), entre outros críticos que vêm acom-
fixação no solo, as radicantes, contrariamente, crescem em função da terra panhando este tema nos últimos anos. Esse debate contemporâneo do
que as recebe, seguem suas circunvoluções, adaptam-se a sua superfície, a conceito tem como ponto de referência o trabalho pioneiro de George
seus componentes geológicos, ou seja, traduzem-se nos termos do espaço Steiner em seu ensaio “Extraterritorial”, que depois foi publicado no clás-
em que crescem. Ressignificando esse conceito no contexto da arte e da sico livro Extraterritorial: a literatura e a revolução da linguagem (1990).
cultura contemporâneas, Bourriaud argumenta que se a paixão da cul- George Steiner, contrapondo-se à teoria romântica que associava
tura moderna foi a radicalidade (talar, depurar, subtrair, voltar ao prin- a genialidade do escritor ao domínio de uma língua materna, postula a
cípio primigênio, à origem, à raiz), a cultura contemporânea remete ao possibilidade de uma genialidade também fora do território linguístico
radicante, por isso sua insistência nos itinerários, nos percorridos (entre vernáculo. Assim se dedica a estudar um conjunto de escritores que rea-
signos, entre formas, entre línguas), na tradução, na instalação sempre lizaram toda sua obra, ou parte significativa dela, em uma língua estran-
precária e transitória de um lugar, de uma situação ou de uma identidade. geira, com uma ênfase muito especial na obra de Vladimir Nabokov. Para
Digamos que o radicante se define pela permanente negociação. Steiner, o escritor extraterritorial é um sujeito que escreve deslocado de
Assim, para Bourriaud, é possível estudar a arte contemporânea sua língua materna, sendo que esse “desabrigo linguístico” se constitui em
como um lugar múltiplo e relacional, onde cada obra contém o traçado uma poética. No caso de Nabokov, por exemplo, Steiner questiona se mui-
de diferentes lugares, diferentes solos, diferentes rotas. Nesse sentido, os tas das frases em inglês do escritor russo não seriam metatraduções de sua
artistas radicantes são como certas plantas, que se alimentam na medida língua materna e se essas frases seriam realmente capazes de gerar ima-
que se espalham por diferentes solos e conseguem desenvolver novas gens equivalentes às geradas pelas associações semânticas russas. Talvez
raízes. O trabalho desses artistas é um organismo em movimento, que haveria nessa escrita uma língua híbrida, assentada em uma espécie de
é nutrido pelos múltiplos substratos habitados por ele. Essa perspectiva imaginação multilíngue, que caracterizaria uma poética extraterritorial.
fragmentária e itinerante de Bourriaud permite pensar uma literatura que Mas esse conceito de Steiner, usado no contexto dos exílios da
em sua errância tende a apagar uma origem única e centrada, em favor Modernidade, se amplia a partir da segunda metade do século XX, con-
da multiplicidade de enraizamentos. Também permitiria organizar uma forme postula Edward Said (2003) quando pensa o sujeito extraterritorial
biblioteca focada no relacional, no residual que habita os discursos, nos não só associado ao intelectual exilado moderno, mas também às gran-
fios que ligam esses resíduos e articulam constelações e genealogias. Já des massas de migrantes e refugiados na contemporaneidade. Esse tipo de
não se pensaria uma história da literatura a partir do lugar da escrita, mas deslocamento, gerado em uma época de intensos trânsitos globais, modi-
sim da significação da relação que têm os territórios que percorrem toda ficará nossa percepção do extraterritorial, agora necessariamente asso-
escrita. Podemos valorizar melhor as rotas, as bifurcações de determina- ciada a uma prática comunitária diaspórica. É nessa direção que Pablo
das tradições (por exemplo, como pensar a tradição da cultura cubana Gasparini adverte:
quando uma parte significativa de sua literatura transita outros solos e
Reler o conceito de extraterritorialidade, não mais através da figura do exi-
reclama sua cubanidade em outra língua?), transitar naturalmente entre liado cosmopolita, mas através do migrante despossuído supõe não apenas
culturas e entre idiomas. É nesse sentido que reconheço no radicante uma outro corpus de autores, mas também a análise de um tipo particular de rela-
perspectiva valiosa para pensar as escritas translíngues no âmbito das per- ção identitária com a língua do país anfitrião e, fundamentalmente, outra
manentes negociações que marcam a cultura contemporânea. série de conotações para o conceito de extraterritorialidade, construído na
verdade a partir da figura do estrangeiro poliglota ciente do valor de sua
A noção de translinguismo literário e suas correlatas, imaginação diferença cultural e linguística.3 (GASPARINI, 2010, p. 107-108)
translíngue e poéticas translíngues, têm um notável desenvolvimento na
3 Tradução minha do texto original: “Releer el concepto de extraterritorialidad ya no a través
obra de Steven Kellman (2000), de Ilan Stavans (2004), de Mary Louise de la figura del exiliado cosmopolita sino a través de la del migrante desposeído supondrá

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À luz desse conceito renovado do extraterritorial, cabe pensar na seu célebre romance The Brief Wondrous Life of Oscar Wao (2007), cujo
proposta de Mary Louise Pratt (2011), quando explica que o sistema de inglês está atravessado por uma acentuada inflexão hispânica.5 Ilan Stavan
realinhamento planetário (social, ecológico, político, econômico, dos ima- (2004) também chama a atenção para esse procedimento no romance
ginários) que convencionamos chamar de globalização supõe também um Caramelo (2002), de Sandra Cisneros, caracterizando-o como um “espa-
movimento da linguagem e que uma das dimensões linguísticas da glo- nhol transferido”.
balização seria, justamente, a proliferação de uma “poética translíngue”, Assim, é possível pensar em graus de encontro de línguas em um
peculiaridade que Pratt reconhece na escrita latino-estadunidense. único texto. Esse leque pode ir da escrita que alterna duas línguas bem
Por outra parte, Steven G. Kellman (2000) sustenta que a vivência delimitadas na distribuição do livro à gradual integração de línguas, como
translíngue gera uma imaginação translíngue e, consequentemente, uma se lê em muitos dos poemas de Bilingual Blues (1995), de Gustavo Pérez
sensibilidade, identificando toda uma tradição literária sustentada nessa Firmat, e ainda pode chegar a formas altamente estilizadas do spanglish,
sensibilidade translíngue. O translinguismo literário, segundo Kellman como em alguns dos textos que o próprio Pérez Firmat inclui em seu
(op. cit., p. ix), é “o fenômeno de autores que escrevem em mais de um último livro: Sin lengua, deslenguado (2017).
idioma ou pelo menos em outro idioma que não é o materno”.4 Com razão, Ottmar Ette (2016) postula um tipo de prática linguística
Porém, para Kellman, essa não pode ser uma categorização fixa e ina- para o mundo contemporâneo, que além do interlingual (relações linea-
balável. As formas do translinguismo literário podem ser tão variadas e res entre línguas em contato), demarque um tipo de relação translingual.
criativas como as próprias experiências que geram essas formas estéticas. Estaríamos falando de um processo inconclusivo de permanente atra-
De fato, ele mesmo distingue os “escritores translíngues de escrita ambí- vessamento linguístico em que duas ou várias línguas se interpenetram
gua” (que alternam a escrita em várias línguas) dos “escritores translíngues reciprocamente. Em termos de escrita literária, uma prática translíngue
de tendência monolíngue” (que somente escrevem na língua de adoção). designaria, segundo Ette (op. cit., p. 200), o trânsito natural de um autor
Vladimir Nabokov, por exemplo, que alternava a escrita em russo e em entre diferentes línguas que se interpenetram criativamente no texto.
inglês, seria um exemplo dos primeiros; Joseph Conrad, que apenas publi- Em conversa com Ilan Stavans, Kellman (2015) ratifica que uma ver-
cou em língua inglesa, seria um exemplo dos segundos. dadeira sensibilidade translíngue implicará uma eterna pugna entre as
Nesse sentido, outras manifestações estéticas de uma sensibilidade línguas que habitam o escritor bilíngue, sempre faltará a uma a palavra
translíngue podem ser convocadas aqui, além das formas estudadas por da outra. Glosando Kellman, uma sensibilidade translíngue expressará a
Kellman. Para Mary Louise Pratt, por exemplo, as poéticas translíngues consciência radical de inadequação de qualquer língua, a aspiração utó-
se caracterizam pelo funcionamento simultâneo de vários sistemas lin- pica de superar a praga de Babel através do abraço de todas as línguas.
guísticos em um único texto. Digamos que o texto se utiliza de um sis- Um tema que merece ser integrado a este problema das escritas trans-
tema linguístico para alojar outro. Pareceria, diz a ensaísta, que o escritor língues é o da autotradução. Autores como D’Amore (2010) e De Balsi
escreve “com sotaque”, com uma inflexão que permite ao leitor a experiên- (2019) oferecem algumas chaves para pensar a autotradução no caso de
cia singular de “ler” em uma língua e “escutar” em outra (PRATT, 2011, textos translíngues, particularmente valiosas para analisar como se opera
p. 250). É a sensação que produz o trabalho linguístico de Junot Díaz em o jogo de traição e complementaridade neste tipo de texto. Coincidindo
com suas percepções, Gustavo Pérez Firmat, no prefácio de El año que
no tan sólo otro corpus de autores sino también el análisis de un tipo de relación identitaria
particular con la lengua del país anfitrión, y fundamentalmente otra serie de connotaciones viene estamos en Cuba (1997), originalmente escrito em inglês, explicita
para el concepto de extraterritorialidad construido en verdad sobre la figura del extranjero
políglota consciente de la valía de su diferencia cultural y lingüística”. 5 Este tema é amplamente estudado por Lívia Santos de Souza em sua tese de doutorado
4 Tradução minha do texto original: “the phenomenon of authors who write in more than one Extraterritorialidade e translinguismo na obra de Junot Díaz, defendida em 2018 no
language or at least in a language other than their primary one”. Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas da UFRJ, sob minha orientação.

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sua experiência de autotraduzir um texto que responde a uma subjeti- Pensar a comunidade, na esteira de Jean-Luc Nancy (1986), significa
vidade bicultural, para concluir que ambos, original e tradução, estarão deslocar-nos da busca transcendente do ser-em-comum para projetar-nos
sempre contaminados por uma realidade inescapável, a de ser um escritor na experiência do estar-em-comum. Em contraposição a uma metafísica
habitado por duas línguas. do absoluto, o conceito de comunidade de Nancy exige pensar a instância
Na mesma linha, mereceria também atenção o tema da tradução de do clinamen, isto é, a instância da inclinação e abertura do ser singular em
escritores que, apesar de desenvolver competência nas duas línguas, ele- direção ao outro, em uma relação de doação que nega as dimensões do
gem uma como língua literária, sendo sempre traduzidos por outro sujeito próprio e do pertencimento.
bicultural que partilha as mesmas experiências do deslocamento. É o caso Nesse sentido, a comunidade literária supõe necessariamente as
da obra de Junot Díaz, que escreve em inglês, sendo habitualmente tradu- obras, mas não como totalidades orgânicas, senão como traço ou ins-
zido pela escritora cubano-estadunidense Achy Obejas. A mediação cul- crição incessante pelo qual a obra é oferecida no espaço comum de rela-
tural que um sujeito translíngue instaura, ao traduzir outro sujeito trans- ção das singularidades. Cabe esclarecer que a singularidade, nos termos
língue, enriquece, sem dúvidas, o universo em estudo, visto que introduz de Nancy, não é equivalente da individualidade, portanto, não responde
um tema particularmente importante no âmbito historiográfico, o fato de a identidades identificáveis, ela tem lugar na abertura do indivíduo ao
essas escritas alcançarem institucionalização no sistema literário hispano- outro, ou seja, no jogo de articulação com o outro que desenha o limite
-americano através da tradução. da exterioridade de si mesmo. Trata-se, portanto, de uma articulação de
Evidentemente, a práxis literária translíngue nos coloca perante um singularidades que leva a uma maneira de ser-junto, que não remete a
problema medular no estudo do que tradicionalmente chamamos litera- uma totalidade superior, mas a uma partilha das distâncias.
tura hispano-americana: o próprio conceito de comunidade que envolve É evidente que um pensamento dessa natureza coloca em ques-
essa definição. O que realmente queremos dizer quando falamos em tão qualquer ideia de literatura fundada em essencialismos identitários.
comunidade literária hispano-americana? Como se articula uma ideia Partindo desse ponto de vista, essa noção de comunidade literária pode
de literatura hispano-americana a formas de pertencimento cultural que ser um suporte teórico historiográfico instigante para abordar este tema
fogem dos modelos de representatividade que dominaram o discurso da das escritas translíngues, ao problematizar essências identitárias, hierar-
Modernidade? Como pensar uma escrita em outra língua no âmbito de quias linguísticas e qualquer representação que implique relações contí-
uma comunidade que se articulou no discurso moderno em torno do eixo nuas entre literatura, língua, território e Estado-nação.
de unidade linguística hispânica? As noções até aqui destacadas, como pressupostos para estudar as
Sabemos que a ideia de comunidade no pensamento moderno está escritas translíngues que se produzem em condições de diáspora, articu-
associada à pergunta pela identidade, entendida esta como unidade e reco- lam-se, assim, a uma proposta de comunidade literária aberta, não essen-
nhecível em razão de uma origem e de uma ordem preestabelecida. Essa cialista e heterogênea. Nesse sentido, cabe reconhecer a vigência da noção
ordem funciona como fundamento de certa essencialidade e responde a de heterogeneidade cultural, que propõe Antonio Cornejo Polar (1994;
imperativos de representatividade. É, justamente, essa ideia de comuni- 1996), para pensar o movimento das literaturas e culturas latino-america-
dade, essencialista e representativa, que o pensamento contemporâneo em nas como um processo de perfis irregulares, de tempos e espessuras dissí-
torno do comunitário vem colocando em xeque ao pensar a comunidade a meis, de sistemas diversos que mantêm, entre si, relações contraditórias.
partir de um heterogêneo constitutivo e do paradoxo dos limites.6 O sentido de pluralidade que Cornejo Polar defende, ao legitimar a
coexistência contraditória dos sistemas literários e culturais que confi-
6 Refiro-me ao trabalho de pensadores como Jean-Luc Nancy (1986), Maurice Blanchot (1983), guram o universo latino-americano, resulta hoje altamente valioso para
Georges Bataille (1992), Giorgio Agamben (1990) e Roberto Esposito (1998). Do ponto de
vista especificamente literário, merece considerar o trabalho de Roland Barthes (2003).
estudar as múltiplas formas como se desenvolvem as literaturas e cultu-

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ras hispano-americanas. Essa importância se acentua se considerarmos biculturais, defendendo sua singular hispano-americanidade em outra
a reflexão do crítico peruano em seus últimos anos de trabalho em torno língua diferente do espanhol.
das categorias de migração e de sujeito migrante, sinalizando para os sen- Utilizo essa classificação (ainda que polemizando com a identificação
tidos de multiplicidade, instabilidade e deslocamento que estão implícitos entre etnia e cultura que ela suscita) para situar rapidamente as coordena-
nessas noções (CORNEJO POLAR, 1996, p. 838). das do corpus em estudo. Refiro-me, concretamente, ao terceiro grupo de
Em tempos de cultura translocal, as propostas de Cornejo Polar se escritores caraterizado por Firmat, ou seja, aqueles cuja escrita translíngue
amplificam, convocando-nos a pensar os sistemas literários a partir de explicita o sentido radicante da cultura hispano-americana. Nesse âmbito,
relações transculturais e translinguísticas, conceitos que adquirem notá- e sempre de maneira provisória, poderíamos identificar variadas formas
vel vigor na visão transárea de Ottmar Ette (2016). A perspectiva de Ette de se expressar uma sensibilidade translíngue.
supõe um conhecimento transversal e em movimento do mundo, que Em primeira ordem, eu distinguiria os escritores que alternam
exige uma prática científica nômade, aberta ao movimento natural entre duas línguas ao longo de toda sua obra, ou seja, sujeitos que desenvol-
línguas e à permanente tradução transcultural. vem competência em ambas as línguas e que escrevem em uma ou
Situadas essas coordenadas teóricas, proponho a seguir uma maior outra indistintamente. É o caso do cubano-estadunidense Elías Miguel
atenção para as poéticas e práticas de escrita que essa comunidade de escri- Muñoz, que escreve seu primeiro livro em espanhol, Los viajes de Orlando
tores biculturais e translíngues, radicados nos Estados Unidos e no Canadá, Cachumbambé (1983), mas opta por escrever os três seguintes em inglês:
mas com vínculos intensos com o universo hispano-americano, vem desen- Crazy Love (1988), The Greatest Performance (1991) e Brand New Memory
volvendo. Advirto que se focalizo o olhar nas generalidades é somente como (1998), retornando ao espanhol em 2006, com o romance Vida mía e,
pontapé inicial de leitura. A diversidade irredutível do corpus fará sempre recentemente ao inglês, com Diary of Fire (2016). É o típico escritor trans-
com que todo intento de caracterização totalizadora dessa práxis não seja língue de escrita ambígua, caraterizado por Kellman.
mais do que um empenho aproximativo. Sob essa perspectiva de incom- Outro tipo de experiência translíngue é a de escritores que alternam
pletude e apenas como horizonte primário de aproximação, coloco alguns duas línguas na mesma obra, sendo que ambas conservam sua unidade
eixos que guiam minha leitura do singular mapa que traçam essas escritas. e é possível diferenciá-las no texto. É o caso de Discursos desde la diás-
Em uma classificação da literatura cubana da diáspora, não isenta pora (2005), de Eliana Rivero, um livro que aposta no discurso híbrido,
de crítica pelos rótulos que utiliza, porém, resgatável em seus conteú- reunindo diferentes gêneros e alternando o inglês e o espanhol em suas
dos, Pérez Firmat (2000) propõe uma distinção entre literatura do exílio, páginas. Rivero defende sua biculturidade a partir de uma interpretação
literatura de imigrantes e literatura étnica. A primeira, segundo Firmat, do hífen que marca a experiência cubano-estadunidense como um espaço
é produzida por sujeitos que se consideram exilados, ou seja, cujo des- ponte, não como lugar de excisão identitária; assim, prefere pensar em
tino é voltar à terra de origem – nesse sentido, não estão interessados em fronteiras que unem, em pontes que se transitam, em identidades híbridas
assimilar a cultura da terra que transitoriamente os recebe. A segunda é e transnacionais. Desse pensamento decorre a sua defesa de uma iden-
produzida por sujeitos que decidem não voltar à terra de origem, porém tidade latinounidense (sem hífen), que define no livro e fica expressa na
cultivam o saudosismo e sua assimilação à terra de adoção é resistente – de obra através do uso alternativo das duas línguas que a habitam, o espa-
fato, continuam escrevendo na língua materna. Já a terceira, chamada pela nhol e o inglês. Outro caso singular deste tipo de escrita translíngue é a
polêmica etiqueta de étnica, é uma literatura produzida por sujeitos bilín- que desenvolve o escritor boliviano-canadense Alejandro Saravia no livro
gues, biculturais, que disfrutam a coabitação não conflitante de culturas de poemas trilíngue Lettres de Nootka (2008), uma sorte de reterritoria-
– trata-se de uma geração que emigra muito jovem, na infância, ou nasce lização da língua espanhola em terras canadenses que evoca a presença
nas novas terras de adoção, mas que desenvolve experiências totalmente dos navegantes espanhóis e novo-hispanos na região. Segundo argumenta

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Norman Cheadle (2011), o título do livro é um eco das Lettres persanes escritora alterna belos trechos em inglês e em spanglish, com formas colo-
(1721), de Montesquieu, e das Noticias de Nutka (1793), do novo-hispano quiais do espanhol e inúmeros regionalismos latino-americanos, brin-
ilustrado José Mariano Moziño, um livro que inaugura os estudos natura- cando com significados, com grafias, com sonoridades e até com falsas
listas, etnográficos e linguísticos nos povos canadenses do noroeste pací- traduções. Com razão Ilan Stavans afirma na contracapa do livro que:
fico. Dessa maneira, esse conjunto de poemas pode ser lido como umas
Susana Chávez-Silverman não alterna códigos, os conecta. Seu Killer
“Cartas Hispano-canadenses”, que dão conta do Canadá que também fala Crónicas é um exemplo surpreendente de mestiçagem linguística. É também
espanhol, sendo Nootka uma bela sinédoque de uma Latinocanadá que se uma declaração profética: norte e sul já não são coordenadas para entender
expressa em três línguas. as Américas. Eles se fundiram em uma única ordem gravitacional, onde as
Já em uma terceira ordem, podemos pensar em escritores que inte- línguas estão em constante mutação.7 (n.p.)
gram as duas línguas no mesmo texto, sem separações ostensivas entre Nesta rápida caracterização, merece destacar o trabalho de escri-
elas. Essa proposta pode ir dos jogos léxicos mais simples às formas esti- tores que escrevem em uma língua que, ao dizer de Mary Louise Pratt,
lizadas do spanglish, que fazem do code-switching uma prática poética. abriga outra. É o caso de Junot Díaz, cuja obra se produz totalmente em
Neste caso, é amplo e polêmico o repertório, considerando os graus de inglês, porém em um inglês que aloja o espanhol falado pelas comuni-
tensão estética que podemos encontrar na interação entre línguas e aten- dades porto-riquenhas dos subúrbios de Nova York, gírias coletadas nas
dendo também às muitas variáveis do spanglish contemporâneo (não mais comunidades afro-norte-americanas e até usos tomados do espanhol de
restrito às comunidades nuyoricans e chicanas, dos anos setenta). O último outras comunidades diaspóricas de Nova York. O fenômeno é perfeita-
livro do cubano-estadunidense Gustavo Pérez Firmat, Sin lengua, deslen- mente visível na sintaxe e nos níveis lexical e fonológico do texto. Com
guado (2017), uma antologia de sua obra poética, preparada por Yannelis extrema acuidade, Lívia Santos de Souza (2018) estuda este tema na obra
Aparicio e Ángel Esteban, ilustra de maneira eloquente como essas múl- de Díaz, sublinhando que não se trataria de uma escrita em spanglish,
tiplas variáveis de translinguismo podem se articular na obra de um mas de uma escrita em inglês que “se escuta” em espanhol. Também é o
escritor. O livro contém poemas escritos em inglês, poemas em espanhol tipo de trabalho que encontramos no romance Cotê-des-Nègres (1998), de
acompanhados da autotradução ao inglês e poemas que integram ambos Mauricio Segura, que escreve um francês quebequense, atravessado pelo
os idiomas, incluindo alguns escritos em formas altamente estilizadas do léxico e pela sintaxe do francês dos emigrados haitianos dos subúrbios de
spanglish. Trata-se, obviamente, de textos produzidos por um escritor com Montreal, onde o escritor morou na infância, e ainda pelo espanhol falado
alto domínio do espanhol e do inglês, que brinca com ambos, fazendo do em casa, com sua família chilena.
nível linguístico da obra um laboratório de trabalho estético. Como comentei anteriormente, merece-se articular a este debate o
Se no caso de Firmat a experiência do spanglish é fundamentalmente tema da autotradução, uma prática bastante habitual entre os escritores
estética, na obra de Susana Chávez-Silverman essa prática parte de uma objeto de reflexão neste trabalho, considerando que a autotradução é
experiência de vida. O livro Killer Crónicas: Bilingual Memories (2004), uma experiência translíngue por excelência, digamos que uma re-criação
por exemplo, integra a memória cultural familiar diaspórica, a vivência de autorizada que conecta partes de uma mesma identidade. Gustavo Pérez
uma comunidade translíngue e a experiência contemporânea das viagens Firmat transita com êxito por essa prática. Next Year in Cuba: A Cubano’s
e dos contatos. Trata-se das crônicas de uma escritora que vive e se comu-
nica a partir de múltiplas terras e que transmite seu deslocamento cultural
7 Tradução minha do texto original: “Susana Chávez-Silverman isn’t a code-switcher but a
e linguístico de maneiras bem-humoradas, em uma obra profundamente switch-burner. Her Killer Crónicas is an astonishing example of linguistic mestizaje. It’s
translíngue. Com um conhecimento profundo do inglês e do espanhol, also a prophetic statement: north and south are no longer applicable coordinates to under-
stand the Americas. They have merged into a single gravitational order where languages
mas também com uma experiência vital que se expressa em spanglish, a are in constant mutation”.

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Coming-of-Age in America, sua autobiografia publicada em 1995, teve dois Como tema singular que merece ser articulado ao tema em estudo,
anos depois, em 1997, sua versão hispânica; e Life on the Hyphen, publicado me referirei, finalmente, ao caso de escritores que, apesar de desenvolve-
em 1994, teve versão em espanhol em 2000.8 No prefácio da edição em rem competência em duas línguas, optam por uma como língua literária
espanhol de Next Year in Cuba, o escritor desenvolve uma sugestiva refle- e são traduzidos por um sujeito de sua comunidade – um sujeito tam-
xão metalinguística sobre a experiência bilíngue e a autotradução, reme- bém translíngue e bicultural –, passando a se institucionalizar no universo
tendo ao tema da impossibilidade de verter a uma tradução monolíngue hispano-americano através da tradução. Falo, naturalmente, da tradução
um texto cuja natureza é a multiplicidade: entendida como mediação cultural, como dispositivo que expande a sig-
Para alguns leitores pode parecer que ainda existam no meu texto muitas nificação transcultural do texto e, de alguma maneira, como ato co-criati-
palavras em inglês ou expressões norte-americanas. Mas apagar todos os tra- vo.10 Remeto, nesse sentido, ao caso singular das traduções de Achy Obejas
ços do inglês na tradução – mesmo que eu fosse capaz de fazê-lo – seria tão da obra de Junot Díaz, especificamente do romance La maravillosa vida
falso quanto apagar todos os vestígios do espanhol no original. Para o bem
ou para o mal, existo em dois idiomas e, tanto quanto preciso do espanhol,
breve de Óscar Wao (2008), tradução de The brief and wondrous life of
preciso também do inglês. Anos atrás, em um contexto diferente, um grande Oscar Wao (2007), e do livro de contos Así es como la pierdes (2013), tra-
escritor cubano, Juan Marinello, escreveu uma frase fatal: “Somos em uma dução de This is how you lose her (2012). Esse trabalho permite que Junot
língua que sendo nossa é estrangeira”. No meu caso, como para milhões de Díaz seja lido no universo hispano-americano, tenha uma crítica e seja
outros residentes hispanos neste país, dois são os idiomas próprios e estran-
geiros, duas são as línguas, nativas e alternativas. Meu destino – e minha lou- estudado nos programas acadêmicos das universidades hispano-america-
cura – é escrever inglês com sotaque cubano e espanhol com inflexão ianque.9 nas, sempre através da voz de Obejas.
(PEREZ FIRMAT, 1997, p. ii) Como já comentei em parágrafos anteriores, esta rápida caraterização
de casos perfila, tão somente, o esboço sumário do que será um percurso
Resulta particularmente significativo que a produção autobiográfica
desses escritores biculturais remeta com tanta frequência à autotradução. de investigação. A ideia é aludir, com alguns exemplos, a um problema
A listagem seria nutrida, porém deixo somente a referência de Esmeralda historiográfico da maior significação no contexto contemporâneo: as rela-
Santiago, que emigrou de Porto Rico para os Estados Unidos à idade de ções que as escritas translíngues, produzidas a partir dos movimentos
dez anos e é a tradutora de toda uma saga memorial composta por When diaspóricos que caracterizam a modernidade tardia e a altermodernidade
I was Puerto Rican (1993), traduzido no ano seguinte como Cuando era (Bourriaud, 2009), têm com o cânone e a história da literatura hispano-
puertorriqueña (1994); Almost a woman (1999), publicado no mesmo -americana. Sabemos que são relações muito conflitantes. Trata-se de um
ano como Casi una mujer; e My turkish lover (2004), publicado em 2006 corpus que atenta, com força, contra nossas maneiras tradicionais de pen-
como El amante turco. sar a comunidade literária, ainda atreladas aos modelos tradicionais de
representatividade, origem e identidade – repertórios que dinamizam o
8 As edições hispânicas de ambos os livros foram: El año que viene estamos en Cuba. Houston: cânone e, consequentemente, demandam outro lugar de legitimação nos
Arte Publico Press, 1997 e Vidas en vilo: la cultura cubanoamericana. Madrid: Colibrí, 2000.
9 Tradução minha do texto original: “Es posible que a algunos lectores les parezca que toda-
projetos historiográficos hispano-americanos.
vía quedan en mi texto demasiadas palabras inglesas o giros norteamericanos. Pero borrar
todas las huellas del inglés en la traducción –aun si fuera capaz de hacerlo – sería tan falso
como haber borrado todas las huellas del español en el original. Para bien y para mal, existo
en dos idiomas, y si el español me hace muchísima falta, no menos falta me hace el inglés.
Hace años, en un contexto distinto, un gran escritor cubano, Juan Marinello, escribió una
frase fatal: ‘Somos a través de un idioma que es nuestro siendo extranjero’. En mi caso, como
en el de millones de otros hispanos residentes in este país, dos son los idiomas propios y aje-
nos, dos son las lenguas maternas y alternas. Mi destino –y mi desatino – es escribir inglés 10 Este é um tema amplamente discutido por Lívia Santos de Souza no ensaio “A tradução
con acento cubano y escribir español con inflexión yanqui”. como mediação cultural: as traduções da obra de Junot Díaz” (2019).

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______. Sin lengua, deslenguado. Madrid: Ediciones Cátedra, 2017. tico-político do portunhol no discurso literário contemporâneo. Para isso,
PRATT, Mary Louise. Lenguas viajeras: hacia una imaginación geolingüística. abordo cinco importantes textos relacionados ao tema, publicados nas
Cuadernos de literatura, Vol. XVIII, N. 36, p. 238-253, 2014.
últimas décadas.
RIVERO, Eliana. Discursos desde la diáspora. Cádiz: Aduana Vieja, 2005.
Em primeiro lugar, faço referência ao texto do poeta e antropó-
SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das
logo argentino (radicado no Brasil durante os anos 1980 e 1990) Néstor
Letras, 2003.
Perlongher, intitulado “El portuñol en la poesía”. Neste texto, apresentado
SARAVIA, Alejandro. Lettres de Nootka. Toronto: Artifact Press, 2008.
originalmente num congresso de professores de espanhol, ocorrido na
SEGURA, Mauricio. Cotês-des-Nègres. Montreal: Boreal, 1998.
Universidade de São Paulo em 1984, o autor defende que o portunhol
STAVANS, Ilan. Spanglish: The Making of a New American Language. Nova York:
Harper Perennial, 2004. na poesia – produzido tanto por escritores hispanofalantes quanto por
______. Entrevista (por Agnes Marx & Ernesto Escobar Ulloa). The Barcelona brasileiros – não deve ser visto apenas como “erro” ou interferência de
Review, N. 40, 2004. uma língua na outra, mas como lugar movediço e polissêmico, produtivo
STEINER, George. Extraterritorial: a literatura e a revolução da linguagem. [Trad.: para o discurso poético, visto que desestabiliza as fronteiras linguístico-
Júlio Castañon Guimaraes]. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. culturais constituídas historicamente entre o Brasil e a América hispâ-
nica, funcionando assim como “travessura do idioma frente à caretice das
línguas oficiais”1 (PERLONGHER, 2000, p. 254). O texto aponta formas de
transição súbitas e indiscerníveis entre português e espanhol em textos
do próprio argentino, do mexicano Héctor Olea e dos brasileiros Oswald
de Andrade e Haroldo de Campos.
Já em “Sopa paraguaia”, prefácio que Perlongher escreve em 1992 para
o livro Mar paraguayo, de Wilson Bueno, a prática translíngue é com-

1 Tradução livre do original em espanhol: “travesura del idioma frente a la caretice de las
lenguas oficiales”.

114 115
preendida como acontecimento discursivo ainda mais complexo, “portu- que configura um procedimento de desfiliação da escrita poética contem-
nhol malhado de guarani”, invenção de uma língua poética que se dá na porânea em relação à tradição literária nacional.
ordem do paradoxo, pois nela a gramática se apresenta como uma “gramá- Mais recentemente, no artigo “Que poesia? A poesia e as línguas
tica sem lei”, errática e deslizante (PERLONGHER, 1992, p. 8-9). do Brasil. Notas vertiginosas”, Italo Moriconi ressalta a importância de
No artigo “Acerca del errar por el portuñol”, que dialoga com os refe- se compreender a poesia contemporânea como uma prática translín-
ridos textos de Perlongher, María Teresa Celada assinala problemáticas gue e transcultural, funcionando como “modo político de usar a língua”
discursivas específicas da relação do brasileiro com o espanhol, eviden- (MORICONI, 2016, p. 4). Destacando os trânsitos afetivos, poéticos, edito-
ciando que o portunhol funciona como a projeção de um espanhol ima- riais e universitários, sobretudo entre jovens escritores brasileiros e argen-
ginário, “uma língua na qual o brasileiro não se subordina a nenhuma tinos, Moriconi destaca uma nova forma de cosmopolitismo atravessada
lei”2 (CELADA, 2000, p. 263), conectando-se à noção de antropofagia, ela- pela coloquialidade callejera de línguas estrangeiras periféricas, não ape-
borada no modernismo por Oswald de Andrade (1928) como modo de nas voltada para línguas e culturas centrais. Além disso, o autor indicia,
compreensão do funcionamento da cultura brasileira, e reapropriada no seguindo a pista aberta por Wilson Bueno, a importância de se pensar
concretismo pelos irmãos Campos como forma de devoração crítica do a relação entre portunhol e línguas indígenas na poética atual, visto que
legado cultural universal. Ao mesmo tempo que valoriza a força expres- o ameríndio vem funcionando como espaço discursivo pós-nacional, na
siva do movimento vacilante entre línguas e a desterritorialização do sig- medida em que borra os limites geopolíticos “que separam o Brasil das
nificante na poesia, Celada demonstra que o espanhol ocupa, no imaginá- regiões fronteiriças hispânicas” (Ibidem, p. 4).
rio brasileiro, o lugar de língua “singularmente” estrangeira, já que não se Note-se que os textos examinados na célere revisão bibliográfica que
atribuiu historicamente nenhum saber pelo qual valesse a pena o esforço realizei anteriormente deixam entrever três possíveis eixos de reflexão
de adquiri-la. cujos desdobramentos, no âmbito da crítica e da historiografia literária
Esse lugar do não-saber que reveste a presença do espanhol na latino-americana contemporânea, ainda não foram desenvolvidos de
América lusófona, no artigo de Pablo Gasparini, “Néstor Perlongher: una modo profícuo. Apresento a seguir esses eixos e as indagações que surgem
extraterritorialidad en gozoso portuñol”, vincula-se a certo imaginário como questões de pesquisa a partir deles:
hispânico sobre o Brasil como país detentor de “uma sociabilidade mais (I) A potência de desestabilização que advém da prática translíngue
permissiva ou menos diretamente repressiva”3 (GASPARINI, 2010, p. 766). do portunhol é tributária de uma política linguística que constituiu his-
A performance desierarquizante do não-saber que o portunhol transfere toricamente uma assimetria de saberes/poderes entre as línguas e tradi-
à poética argentina, como rastro da memória discursiva da relação por- ções literárias no contexto sociocultural latino-americano. Não à toa, é
tuguês/espanhol no Brasil, liga-se à temática da liberação sexual nos anos perceptível que o fenômeno do portunhol se diferencia dos movimentos
1970 e 1980. Nesse sentido, o portunhol aí funciona como impugnação da de relação entre o português ou o espanhol com outras línguas europeias
língua materna, enquanto “língua oficial”, provocando (sob a rubrica de culturalmente hegemônicas, tais como inglês, francês, alemão e italiano.
uma linguagem macarrônica) a indistinção entre o próprio e o alheio. É Nesse sentido, é possível interrogar: que efeitos de sentido produz o pro-
interessante ainda perceber como Gasparini aproxima a relação translín- cesso discursivo de dissolução errática das fronteiras idiomáticas na prá-
gue entre os idiomas espanhol e português à ideia de extraterritorialidade, tica translíngue do portunhol?
(II) Os imaginários construídos em torno das línguas/culturas atra-
2 Tradução livre do original em espanhol: “una lengua en la que el brasileño no se subordina vessam a relação entre o Brasil e a América hispânica, arrastando sentidos
a ninguna ley”.
de “insubmissão” em direção ao processo translinguístico de produção
3 Tradução livre do original em espanhol: “una sociabilidad más permisiva o menos
directamente represiva”.
do portunhol, ainda que haja diferenças significativas entre os “modos de

116 117
usar” o portunhol em diferentes poetas e/ou prosadores lusófonos ou his- no campo da Literatura Comparada que se abre por meio dos Estudos de
panofalantes que o adotam como estratégia discursiva. Seguindo a esteira Transárea (ETTE, 2012; 2015; 2016), visto que tanto o processo inconclusivo
dessa colocação, podemo-nos perguntar: como esses gestos insubmissos de atravessamentos linguísticos quanto o de mobilidade de escritores vêm
reverberam nos variados contextos de produção e circulação em que o criando um complexo espaço literário transplatino,5 que precisa ser pers-
portunhol vem ocupando lugares de enunciação poética? pectivado, de modo transdisciplinar, para além dos conceitos estáticos de
(III) Subjaz um processo crítico de desterritorialização à escrita rea- política, sociedade, economia e produção simbólica vinculados às aborda-
lizada em portunhol. Tanto a noção de extraterritorialidade do discurso gens críticas definidas pelas fronteiras linguístico-nacionais.
literário atual, quanto o transbordamento de fronteiras, representado pela A manifestação estética do portunhol na escrita poética vem sendo
prática nômade dos povos ameríndios, fazem a crítica literária associar o associada, com frequência, ao campo da crítica sobre o neobarroco ibero-
fenômeno do translinguismo ao processo de contestação do cânone nacio- -americano, mais especificamente aos estudos sobre o “neobarroso”, termo
nal. Entretanto, é possível notar também que a manifestação do portunhol utilizado por Perlongher (1991) para definir o movimento de transposi-
na escrita vem interessando à literatura enquanto experiência estética e, ção cultural do neobarroco cubano – cujos principais expoentes foram
ao mesmo tempo, ética (KLINGER, 2014) que indicia formas de diálogo e Lezama Lima e Severo Sarduy – para o contexto rio-platense. No entanto,
convivência, num contexto de reflexão que entende a comunidade como é importante fazer a ressalva de que tal reflexão sobre o portunhol na tra-
“espaçotempo”4 atravessado por alteridades, afetos e devires de discur- dição analítica do neobarroco não contempla, necessariamente, o trabalho
sividades e sujeitos em permanente trânsito e contato. Cabe-nos, assim, de autores como Wilson Bueno e movimentos como o portunhol selvagem
questionar: seria possível compreender a prática translíngue do portunhol (fundado por Douglas Diegues), que fazem dialogar Brasil e Paraguai, no
na produção latino-americana não só como ruptura com as tradições lin- cruzamento translíngue entre espanhol, português e guarani.
guísticas e literárias nacionais, mas como um posicionamento discursivo Outro elemento importante de se destacar é que a chave de leitura do
que problematiza as formas de relação com a alteridade? neobarroco costuma colocar determinadas dicções da literatura brasileira
Esses três eixos e questões de reflexão, elencados acima, recobrem de contemporânea como tributárias do diálogo com o barroco hispânico,
interesse crítico este objeto de estudo sobre o qual venho me debruçando, visto que a linguagem barroca sofrera um processo de recalcamento críti-
qual seja: o portunhol enquanto prática translíngue no discurso literário co-historiográfico no Brasil.6 A meu ver, tal perspectiva verticaliza o modo
contemporâneo, sobretudo no cenário da escrita poética atual na América de compreensão das relações dialógicas entre ambos os campos literários,
Latina. Tais indagações mobilizadas pela discussão em torno desse objeto frisando sempre um movimento que parte do paradigma hispano em
me levam a refletir sobre a produtividade das relações translíngues que se direção ao brasileiro, ainda que tente desconstruir – por meio da noção de
desenvolvem na esfera literária contemporânea, pensando a contribuição “poética sincrônica” (CAMPOS, 1977) – a ideia de influência, ligada à pers-
estética e política do portunhol enquanto prática discursiva que, em lugar pectiva filológica mais tradicional. Nesse sentido, uma abordagem de tal
de demarcar fronteiras linguístico-culturais, solicita a escrita como campo processo por meio da reflexão em torno dos efeitos discursivos da prática
de interpenetração recíproca das línguas.
Justamente por isso, tais indagações me impelem a um deslocamento 5 Tomo de empréstimo aqui a noção de “transplatino”, utilizada por Perlongher (1991), na
da discussão em torno do portunhol, enquanto manifestação poética, do antologia Caribe transplatino, para definir uma zona de convergência estético-cultural per-
cebida por meio do diálogo intertextual entre poetas cubanos e rio-platenses da segunda
âmbito do comparativismo tradicional para o de uma nova perspectiva metade do século XX.
6 Este é, por exemplo, o ponto de vista adotado por Haroldo de Campos (1989), para quem a
4 No posfácio ao Indicionário do contemporâneo (ANDRADE et al., 2018), intitulado historiografia literária moderna no Brasil, representada por Antonio Candido, empreendeu
“Espaçotempo”, Raul Antelo enfatiza o cruzamento entre as noções de tempo e espaço, pro- uma espécie de “sequestro do barroco” no processo de formação do cânone nacional, em prol
movido pela produção estética, enquanto estratégia de reflexão crítica na contemporaneidade. da ênfase sobre um discurso literário de caráter fundamentalmente comunicativo/referencial.

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translíngue do portunhol poderia configurar uma forma mais horizontali- que materializam uma prática discursiva capaz de, por um lado, desesta-
zada de análise das relações transareais que se desenvolvem nessas escritas bilizar o processo de idiomatização vinculado à noção de identidade – ali-
do contemporâneo. cerçada nos agenciamentos da língua nacional – e, por outro, desconstruir
a ideia de que o tecido do texto possa ser tão somente o local da diferença
literatura e translinguismo (desde uma perspectiva multicultural) ou da impropriedade (desde uma
perspectiva estético-filosófica). Isto porque, se a língua já é não idêntica a
Minha reflexão se insere numa perspectiva transdisciplinar de pesquisa si mesma – formada no bojo dos processos de contato/conflito, submetida
que se dedica a analisar as múltiplas interfaces entre literatura, discurso e permanentemente à distribuição variável dos itens linguísticos, a movi-
língua, a fim de promover uma discussão sobre o modo como a linguagem mentos de transferência, transcodificação, metaplasmo, translinguismo –,
literária na contemporaneidade vem se reatualizando a partir de varia- o texto literário não é o lugar onde o próprio (ora identitário, ora diferen-
das formas de contato linguístico, seja entre línguas neolatinas, seja entre cialista) se confirma, ou o impróprio acontece, mas sim um dispositivo
essas línguas e as indígenas ou de matrizes africanas, sem desconsiderar, (im)próprio, uma espécie de heterogeneidade performativa operando na
nesse continnum, empréstimos de idiomas que em termos glotopolíticos brecha dos arranjos que produzem o apagamento dos processos de hibri-
ocupam diferentes posições socioculturais. O foco sobre fenômenos de dação da linguagem e do sujeito.
contato problematiza concepções essencializantes de nacionalidade, bem Muitos estudiosos, contudo, tendem a metaforizar a língua apenas
como associações reducionistas entre literatura e território, ao analisar como limite, em vez de condição de possibilidade para essa tensão. Para
distintas tonalidades expressivas produzidas a partir de processos trans- Vladimir Safatle, por exemplo, o modo de enunciar antipredicativo, avesso
linguísticos e transculturais. Simultaneamente esse mesmo gesto crítico às ideias de propriedade e controle do saber, “que faz a língua tremer e
visibiliza o funcionamento das variedades geoletais como substratos, fon- se chocar contra os limites de sua gramática é o embrião de outra forma
tes vernáculas, lugares de enunciação ou pertencimento: índices de ade- de existência” (SAFATLE, 2016, p. 24). Esta seria uma forma de operar
são a comunidades de fala, fonias, comunidades de discurso e tradições ainda dentro de uma dicotomia língua/discurso, como se a heteroglos-
literárias. Tal ambivalência evidencia, na relação literatura/língua, estraté- sia e a relação com a exterioridade não fossem constitutivas das línguas.
gias de discussão da dinâmica social, da memória histórica, dos trânsitos e Deposita-se também, na crítica literária contemporânea, potência exces-
fluxos migratórios, dos processos de subjetivação que emergem na tensão siva na dimensão da autoria, embora se lide conjuntamente com noções
entre o comum e o singular. como ‘heteronomia’, ‘des-obra’.
A escolha dessa perspectiva de inserção no debate teórico sobre o É possível, no entanto, aderir a perspectivas mais matizadas que solici-
contemporâneo pauta-se na percepção de que pensar a comunidade como tam o problema do enunciar-se “como sujeito da língua”, pensando o modo
encontro de singularidades (AGAMBEN, 1996) interpela a construção de como o sujeito elabora “o acontecimento da língua nele” (CELADA/PAYER,
uma política linguística não assentada sobre a crença na homogeneidade 2016, p. 35). Isto remete à maneira como Paolo Virno aborda a questão
da língua e na distinção radical de seus traços em relação a outras, como do anonimato como elemento linguístico pré-individual que faz parte do
se existisse um próprio da língua que não fosse ser “o não-idêntico a si” mosaico dialógico do “eu”, problematizando assim a noção de indivíduo:
(MILNER, 1987, p. 13). Os gêneros literários, como coparticipantes das polí-
A noção de subjetividade é anfíbia: o “Eu falo” co-habita com o “fala-se”,
ticas do contemporâneo,7 vêm corporificando não-coincidências do dizer o que não podemos reproduzir está estreitamente mesclado com o recur-
sivo e com o serial. Mais precisamente: no tecido do sujeito encontram-se,
7 Trago, uma vez mais, à baila aqui a referência ao Indicionário do contemporâneo, no qual se
conceitua ‘o contemporâneo’ (um dos verbetes da obra) como um “movimento ambivalente lidar com nosso tempo”, que nos permite “enfrentar a sedução do presentismo” (ANDRADE
de distanciamento e adesão”, “uma dobra reflexiva sobre o presente, um modo crítico de et al., 2018, p. 157-158).

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como partes integrantes, a tonalidade anônima do que é percebido (a sensa- .devora sentidos y no se indigesta. .escupir. .caga cuando duerme. .no sabe si
ção enquanto sensação da espécie) e o caráter imediatamente interpsíquico vive o llora. .si es un documento de época. .o demencia separatista. .me gusta
ou “público” da língua materna [...]. A coexistência do pré-individual e do la gente peligrosa. .todos se olvidan de todo. .las neuronas son neuróticas. .no
individuado no seio do sujeito está mediada pelos afetos; emoções e paixões traje tijeras. .no veo televisión. .revistas. .si te comes una te las comes todas.
assinalam a integração provisória dos dois aspectos, mas também seu even- .déjame uno. .deseo. .cuidado. .¿por qué te vas a México?. .soy sagitario. .me
tual desapego: não faltam crises [...]. Há medo, pânico ou angústia quando gusta decir. .órale chido no mames chingatumadre. .compra ahora y paga
não se sabe compor os aspectos pré-individuais de sua própria experiência para siempre. .la plata no importa. .sí el oro. .¿existen más enfermedades?.
com os aspectos individuados. (VIRNO, 2013, p. 103) .¿cuántos años tengo?. .¿se acuerdan de mí? (MONTECINOS, 2009, p. 182)

É importante discutir, em paralelo ao atravessamento do impessoal Nesta passagem fragmentada pela interposição de pontos (pausas),
na língua, o modo como o discurso-outro constitui o sujeito, a ponto de, enumeram-se citações que mesclam oralidade e escrita, escatologia e baixo
em “Postulados da linguística”, Gilles Deleuze e Félix Guattari retomarem calão, clichê e memória, paronímia e parataxe. Numa perspectiva transareal
estudos bakhtinianos sobre polifonia (cf. BAKHTIN, 2003) para mostrar (ETTE, 2016), a experiência de estrangeiridade em contexto hispanofalante
que a linguagem se produz no bojo do agenciamento coletivo de enuncia- apropria-se de gírias mexicanas (do chamado chingolés), indiciando pela
ção (DELEUZE/GUATTARI, 1995, p. 23). Nesse sentido, chegam a afirmar minorização desse slang uma ambivalente percepção em torno do cará-
que toda linguagem é discurso indireto, presença do enunciado-relatado ter (não-)localizado, (não-)marcado, da alteridade no discurso. O sujeito
no enunciado-relator, conjunto de vozes concordantes, ou não, de onde assim ocupa um lugar entre-línguas (CELADA/PAYER, 2016, p. 28), embora
o sujeito extrai a sua voz. Pensar nesses termos é compreender o quanto esse entremeio se revele a partir de variantes de uma mesma língua (nunca
o político se inscreve nos agenciamentos trabalhando a língua de dentro, idêntica), as quais mobilizam memórias discursivas diferenciadas.
Na esteira dessa paráfrase movente translíngue, o poeta provoca por
fazendo-a entrar numa “variação contínua”, de tal forma que Deleuze e
meio da relação letra/corpo, escritura/escitura, a objetificação do R na
Guattari renegam a separação entre os planos linguístico e estilístico, pois
superfície textual, fazendo-nos recuperar discussões históricas da filologia
“sendo um estilo não uma criação psicológica individual, mas um agen-
hispânica a respeito da especificidade do espanhol chileno, visto que pro-
ciamento de enunciação, não será possível impedi-lo de fazer uma língua
cessos de neutralização das líquidas r e l, elisão do r final, sibilação de r e
dentro de uma língua” (Ibidem, p. 41).
rr, pronunciação do grupo tr como pós-alveolar retroflexa (chr), represen-
Indagando a imbricação/produção de ‘uma’ língua dentro de ‘uma’ lín-
tam aí marcas da fala popular e inculta – não à toa, o R também sugere a
gua, é possível perceber como o trabalho poético pode promover o devir-
metáfora do “roto” como qualificativo que serve para depreciar, no Chile,
menor de uma língua maior (DELEUZE/GUATTARI, 2014), desvelando
pessoas de origem rural ou de comportamentos considerados grosseiros.
zonas de indiscernibilidade que as próprias línguas naturais conformam, Tais fenômenos fonéticos configuram polêmicas filológicas, visto que filó-
com seus espaços transicionais e sua dificuldade de distinguir fronteiras logos como Oroz rejeitaram, e outros como Amado Alonso aceitaram de
nítidas nos mapas dos dialetos, como aponta Malmberg (1966). Não à toa, forma modalizada, a tese de Lenz sobre a influência do mapuche na pro-
o contato com outras variedades do espanhol, por exemplo, em “Acordarse dução destes sons, o que evidencia uma problemática relação com o subs-
de las venganzas”, da série “La R de la escitura”,8 de Debajo de la lengua, do trato e com a herança indígena no funcionamento linguístico-discursivo
chileno Héctor Hernández Montecinos, funciona como elemento auto- desta variedade (cf. MUJICA, 2001). Os seguintes versos exemplificam esta
biográfico e de desconstrução de fronteiras linguístico-culturais: igualmente tensa relação que o sujeito estabelece com a língua materna:
“puto porque escribo/ puto porque leo/ a veces puta a veces madre/ mi R”
(MONTECINOS, op. cit., p. 182); “esta noche creo que la R/ es acostarse con
8 Nesta série de poemas, nota-se o diálogo intertextual de Montecinos com L’Abécédaire de
Gilles Deleuze, programa da televisão francesa, dirigido por Pierre-André Boutang, que un cadáver pícaro/ y engendrar un monstruo,/ pasar de la lengua materna
reúne uma série de entrevistas entre Deleuze e Claire Parnet. a la lengua mutante” (Ibidem, p. 187).

122 123
Processo semelhante ocorre, obviamente, não só na interseção de tempo que são afetadas pelas práticas translíngues que as atravessam, as
variedades linguísticas de um (dito “mesmo”) idioma, mas também nas produções literárias integram um complexo feixe de relações interdiscur-
experimentações discursivas que produzem a imbricação de ‘uma’ língua sivas do qual participam outras esferas do conhecimento como a história,
dentro de ‘outra’ língua, funcionando como uma espécie de experimen- a antropologia, a economia, a ciência, a religião, a política, entre outras
tum linguae (AGAMBEN, 2005) errático e derrisório, por meio da fricção (TODOROV, 2010, p. 2010).
(gozosa) entre distintos idiomas, tal como ocorre em textos latino-ameri-
canos atuais escritos em portunhol que analisaremos, mais detidamente, na portunhol como prática translíngue
próxima seção. A exploração desse movimento de translação entre mapas
linguísticos – i.e., do agenciamento do discurso literário, seja dentro da É interessante perceber que no transcurso da literatura contemporânea
(que se diz) “mesma” língua, seja dentro da (que é chamada de) “outra” latino-americana o portunhol vem sendo apropriado com diferentes fina-
língua – nos remete ao conceito de prática translíngue, que, segundo Lydia lidades discursivas e efeitos de sentido. O primeiro efeito que gostaria
H. Liu, participa da performatividade da língua, seja na dimensão da sub- de destacar nesta análise é o de polissemia. Para Orlandi (1998, p. 15), a
jetividade, seja na da cultura, circunscrevendo, e sendo circunscrita, simul- polissemia é o lugar do diferente na cadeia discursiva, funcionando numa
taneamente, pela contingência histórica em que tal processo discursivo se relação de contradição em relação ao mesmo (ao já-dito) representado
desenvolve (LIU, 1995). É importante também notar que a ênfase sobre as pela paráfrase. Nesse sentido, é possível perceber, por exemplo, na obra
práticas translíngues corresponde às abordagens mais contemporâneas dos perlongheriana, a exploração de efeitos polissêmicos do uso de termos
estudos de linguagem. De acordo com Suresh Canagarajah: que constituem o léxico tanto da língua portuguesa quanto da espanhola,
aproveitando-se, muitas vezes, de ambivalências significativas trazidas
Desafiando entendimentos tradicionais das relações linguísticas no mul-
tilinguismo, que postula que as línguas mantêm em separado suas estru- pelos chamados “falsos cognatos”, i.e., palavras que possuem grafia igual
turas e identidades mesmo em contato, o translinguismo considera que os ou semelhante em ambos os idiomas mas indicam sentidos distintos.
recursos verbais interagem sinergicamente para gerar novas gramáticas e Cito abaixo, a título de exemplificação, um trecho do poema
significados, para além da ideia de separação de suas estruturas. De acordo “Acreditando en Tancredo”, de Néstor Perlongher:
com essa definição, o prefixo “trans” aponta uma maneira de observar as
práticas comunicativas transcendendo a noção de línguas autônomas.9 El que en la cuenta acredita
(CANAGARAJAH, 2018, p. 31) del candidato amigable
descubre, cuando ya es tarde,
Tais apontamentos são fundamentais para pensarmos não só línguas, que se le ha ido la guita
mas também literaturas para além da ideia de autonomia, entendendo, y que lo que le debían
por um lado, que as línguas mantêm uma relação de sinergia entre si ya no lo puede cobrar,
ni siquiera protestar
intervindo em processos contínuos de gramaticalização e normatização
por tamaña tropelía,
umas das outras, e, por outro lado, que as literaturas são discursos que apenas chuparse el dedo
não pairam sobre um campo estético isolado. Pelo contrário, ao mesmo porque todo lo he pasado
Acreditando en Tancredo.
9 Tradução livre do original em inglês: “Challenging traditional understandings of language
relationships in multilingualism, which postulates languages maintaining their separate Ya no hay guerra: todo es paz.
structures and identities even in contact, translingualism looks at verbal resources as El matrero y el falaz
interacting synergistically to generate mew grammars and meanings, beyond their separate se juntan con el sotreta
structures. According to this definition, the prefix ‘trans’ indexes a way of looking at para arrancarle al atleta
communicative practices as transcending autonomous languages”.

124 125
de la inclinada nación lúnulas – canta – ostras desventradas um
del sacrificio la teta olor de magnólias e esta espira
– mas después del papelón amarelo-marijuana novelando pensões
si se jodió no fue al pedo baratas e transas de michê (está
porque todo lo ha pasado morrendo e canta) “hay...”
Acreditando en Tancredo. (madres-de-mayo heroínas-car-
[...] pideiras vazadas em prata negra
(PERLONGHER, 2000, p. 257) lutuoso argento rioplatense plangem)
“... cadáveres” e está
Nele, percebe-se uma utilização dúplice do verbo ‘acreditar’, que na morrendo e canta
acepção portuguesa significa ‘crer’, enquanto na castelhana, ‘dar crédito’ néstor agora em go-
zoso portunhol neste bar paulistano
ou ‘depositar em conta’, provocando uma polissemia que desestabiliza, iro- que desafoga a noite-lombo-de-fera
nicamente, por meio da contradição que distancia os sentidos de ‘crença’ úmido-espessa de um calor serôdio e on-
(valor político) e ‘dinheiro’ (valor econômico), o efeito de evidência em de (o Sacro Daime é uma – já então – un-
torno do tão acreditado (em outras palavras, do “tan-credo”) processo ção quase extrema) canta
seu ramerrão (amaríssimo) portenho: “hay
de redemocratização do Brasil, após o fim da ditadura militar, vinculado
(e está morrendo) cadáveres”
metonimicamente à figura de Tancredo Neves. Ao mesmo tempo que trata
(CAMPOS, 1998, p. 111)
de uma questão política brasileira, explicitada pela referência a Tancredo,
dentre outros fatores, Perlongher utiliza expressões que marcam a variante Nele a homofonia do verbo castelhano “hay” com a interjeição “ay/
portenha do espanhol, tais como “guita”, “matrero”, “sotreta” e “al pedo”. ai” (esp./port.) mobiliza uma interessante forma de apropriação crítica do
Esse mecanismo de transposição se dá não apenas no nível lexical, mas portunhol como índice simultâneo de intertextualidade e homenagem
também no discursivo, visto que o próprio autor argentino reconhece, no post-mortem, correlacionando as atividades de leitura e produção, mar-
ensaio “El portuñol en la poesía”, a relação dialógica de seu poema com cando relações dialógicas que se constroem no plano da discursividade
a tradição da literatura gauchesca. Vê-se, assim, nesse texto, que a polis- literária. O poema retoma algumas vezes a citação do famoso refrão “Hay
semia, gerada pelas relações translíngues/transdiscursivas, revela uma cadáveres” – do poema “Cadáveres”, de Perlongher – promovendo sem-
forma de apropriação crítica do portunhol, que funciona aí como estraté- pre, contudo, o processo de fragmentação do verso perlongheriano, ora
gia de inscrição do político na esfera do poético. pela sua suspensão através do uso de reticências, ora pela separação entre
Já no poema de Haroldo de Campos, dedicado à memória de seu verbo e complemento através do procedimento de enjambement ou da
amigo Néstor, intitulado “neobarroso: in memoriam n. perlongher”, per- interposição de enunciados entre parênteses. Essa fragmentação isola o
cebe-se outro tipo de funcionamento discursivo da prática translíngue do verbo “hay”, remetendo sua sonoridade à memória do desaparecimento
portunhol. Cito: dos corpos das vítimas da ditadura militar argentina – reafirmada pela
referência a “madres-de-mayo” (Madres de Plaza de Mayo) –, ao passo que
“hay
cadáveres” – canta néstor indicia a ideia de luto devido ao falecimento do poeta portenho, que viveu
perlongher e está os últimos anos de sua vida em São Paulo, onde faleceu em decorrência da
morrendo e canta Aids. Nesse contexto, a sonoridade de “(h)ay” se imbrica, indiretamente,
“hay...” seu canto de ao tom de lamento do tango. Não à toa, justapõem-se aí os verbos morrer
pérolas-berruecas alambres bo-
quitas repintadas restos de unhas e cantar, no gerúndio e no presente respectivamente (“[...] está/ morrendo

126 127
e canta”), denotando assim a simultaneidade entre as noções de perda e bial “em um muro de granada” (em port.). Ou ainda, sem qualquer tipo de
júbilo. Por isso mesmo, o exercício de apropriação da dicção perlonghe- alarde, a referência ao monumento histórico andaluz (La Casa del Chapiz)
riana, realizado por Haroldo nesse poema, assume-se também como invade a construção sintagmática: “e aquele dia a casa del chapiz deserta”.10
uma expressão em “gozoso portunhol”: zona de deslizamento signifi- Tal efeito de deslizamento abrupto de uma língua a outra ganha ainda
cante que, seja pela exploração da homofonia, seja pelo atravessamento de outros desdobramentos e matizes na literatura contemporânea, a tal ponto
outras palavras em espanhol na trama da textualidade (“berrueca”, “alam- que seria talvez possível falar, por um lado, em expressões literárias, como
bres”, “olor”) ou pela aproximação intradiscursiva (Haroldo/Perlongher, as de Haroldo e Perlongher, que se apropriam do portunhol, e por outro,
Perlongher/Puig – vide referência a Boquitas pintadas), faz com que a lite- em dicções que não ‘se apropriam de’, mas se produzem em portunhol.
ratura seja configurada enquanto espaço híbrido de invenção estética de Vejam-se, nesse sentido, os seguintes fragmentos de Mar paraguayo, de
uma língua(gem) de contato. Wilson Bueno:
Também em Galáxias, de Haroldo de Campos, ocorre outra forma
Un aviso: el guarani es tan essencial en nesto relato quanto el vuelo del
de aproveitamento estético do portunhol, que comparece em algumas das párraro, lo cisco en la ventana, los arrulhos del português ô los derramados
experimentações poéticas reunidas nesse livro. Leia-se, como exemplo, o nerudas en cascata num solo só suicídio de palabras anchas. Una el error
fragmento abaixo: dela outra. Queriendo-me talvez acabe aspirando, en neste zoo de signos,
a la urdidura essencial del afecto que se vá en la cola del escorpión. Isto: yo
reza calla y trabaja em um muro de granada trabaja y calla y reza y calla desearía alcançar todo que vibre e tine abaixo, mucho abaixo de la línea del
y trabaja y reza em granada um muro da casa del chapiz ningún holgazán silêncio. No hay idiomas aí. Solo la vertigen de la linguagem. Deja-me que
ganará el cielo olhando para baixo um muro interno la educación es obra exista. (BUENO, 1992, p. 13)
de todos ave maria em granada mirad en su granada e aquele dia a casa del La dança bruja de las horas, ah que dança, señor, señorito, sin el alma del
chapiz deserta nenhum arabista para os arabescos uma mulher cuidando de cururu, del cateretê, añaretãmeguá, la dança en la sombra, el error sin direc-
uma criança por trás de uma porta baixa y reza y trabaja y calla não sabia de ción de lo lúgubre, de las mariposas ô de la lluvia en los inviernos de mi
nada y trabaja não podia informar sobre nada y reza e depois a plazuela san niñez cativa de la lama, del polvo ô de las calles húmedas y de los pueblos sin
nicolás o branco do branco do branco y calla no branco no branco no branco suerte ni destino. Casa antígua. Mi tava, mi tavaiguá. (Ibidem, p. 20)
a cal um enxame de branco o branco um enxame de cal pedras redondas do
calçamento e o arco branco contendo o branco [...] (CAMPOS, 2004a, n.p.) É importante ressaltar na obra de Bueno o modo como o portu-
Publicada originalmente em 1963, essa galáxia haroldiana retrata a nhol ganha outro estatuto linguístico. Retomando o apontamento de
cidade de Granada (Espanha) nos tempos do franquismo. Além de alu- Canagarajah (2018), citado anteriormente, os elementos lexicais e morfos-
sões intertextuais a García Lorca e Antonio Machado, o texto configura-se sintáticos advindos do espanhol, do português e do guarani estabelecem
como interessante prática translíngue em que se produz uma espécie de aí uma forte sinergia, constituindo uma nova gramaticalidade, se bem que
deslizamento sub-reptício do espanhol ao português, borrando as fron- a partir de uma concepção absolutamente heteróclita de linguagem. Nesse
teiras linguísticas entre uma e outra língua, por meio do acoplamento de sentido, é possível encontrar nesses excertos o uso de signos ortográficos
sintagmas advindos de idiomas distintos, bem como do apagamento da do português, tais como -ss e -ç, em palavras como “essencial” e “dança”,
pontuação e de marcas gráficas como aspas e itálico, assumindo assim ou o acento circunflexo (como em “ô” e “português”) marcando um fecha-
a heterogeneidade enunciativa como condição material constitutiva da mento de timbre que seria desnecessário no sistema vocálico do espanhol.
escrita (cf. CORRÊA, 2004), de tal modo que as hierarquizações discursi- As regras de acentuação do português acabam também transversalizando
vas entre o narrado e o citado, ou entre o materno e o estrangeiro, perdem vocábulos pertencentes ao léxico hispânico, como “antígua”. Além disso, a
relevância. Para exemplificar, note-se no excerto acima que dos verbos 10 É importante mencionar que tal questão já foi apontada com acuidade, anteriormente, por
“reza calla y trabaja” (em esp.) passa-se, sem obstáculos, ao adjunto adver- Perlongher (2000) no ensaio “El portuñol en la poesía”.

128 129
tendência lusófona à contração de preposição com artigos, demonstrati- Seguindo a esteira dessa potencialização do portunhol enquanto
vos, dentre outras classes morfológicas, acaba gerando construções como veículo de recriação tanto da expressão linguística quanto da literária,
“en nesto”, “dela outra”11 etc. Douglas Diegues lança o movimento denominado potunhol selvagem. É
É interessante, assim, perceber que, no primeiro trecho citado acima, interessante notar em “Karta-Manifesto-del-Amor-Amor-en-Portunhol-
o texto de Bueno parece querer recuperar – a modo de diálogo diacrônico Selvagem” – na qual se critica a injustiça do contrato de criação da hidrelé-
com o galaico-português – um estágio arcaico do idioma que permitiria a trica Itaipu, que beneficia mais o governo brasileiro do que o paraguaio
confluência e a hesitação entre estruturas de raízes etimológicas diversas. – um uso estético da composição translíngue como instrumento de rei-
Isso se verifica, por exemplo, no convívio do artigo “Un” e da contração vindicação de mudança da política de integração regional, clamando por
“num” (prep. ‘em’ + art. indef. ‘um’) no mesmo período, assim como na uma abordagem mais afetiva e empática da relação Brasil-Paraguai:
alternância de palavras terminadas em -n e -m no mesmo sintagma (“la
Esta karta-manifesto aparece, ojerá, brota como flor selbagem del suelo fértil
vertigen de la linguagem”) ou no uso duplicado, quase gaguejante, de ter- de las playas imaginárias de las noches transnacionales de la kapital mun-
mos ortagraficamente distintos, mas que possuem significados iguais ou dial de la ficción 2008 [...]. Después de QUEMAR com fuego guaranítiko,
semelhantes (“solo só”, “señor, señorito”). Tal processo de hesitação faz fuego incorruptible, fuego del amor amor, fuego divino, fuego inumano, el
com que o enunciador aponte que as relações translíngues constituiriam o mencionado contrato mau de Itaipu Binacional, pedimos a Lugo y a Lula y a
lugar do equívoco que atravessa a própria formação desse discurso, como Itamaraty que inventem um nuebo contrato que de hecho seja justo y benefi-
cie de fato a ambos países em la mesma medida y si possível escrito em portu-
se uma língua fosse o ‘erro’ da outra. A potencialidade crítica dessa noção nhol selvagem, la lengua mais hermoza de la triple frontera, pues que nel por-
de equívoco precisa ser entendida, a meu ver, como uma performatividade tunhol selvagem cabem todas las lenguas del Brasil y del Paraguay (incluso las
disruptiva em relação aos agenciamentos glotopolíticos que produzem o ameríndias) y todas las lenguas del mundo [...]. (DIEGUES, 2008, n.p.)
planejamento do corpus de um idioma (KLOSS, 1969) de modo a dar-lhe
É importante ressaltar, com Diegues, que práticas translíngues, como
feição homogênea, como um sistema linguístico autônomo e constituído
a do portunhol, não se detêm apenas no âmbito de uma relação “binacio-
por relações opositivas, de acordo com a ótica saussuriana. Nesse sentido,
nal”. Não à toa, em La expresión americana, um dos textos que promovem
pode-se compreender a asseveração paradoxal de que “No hay idiomas aí”.
na contemporaneidade um processo de reatualização do discurso literário
Já no segundo trecho citado, o trabalho linguístico-literário de Bueno
parece tentar configurar, simultaneamente, uma espécie de língua crioula, latino-americano, Lezama Lima propõe uma redefinição espaçotempo-
tal como as que se desenvolveram em decorrência do processo de colo- ral das formações imaginárias construídas a respeito da terra americana,
nização em regiões fronteiriças ou de intenso contato entre línguas euro- elaborando, conforme assinala Ette (2012, p. 25), “mecanismos de inclu-
peias e autóctones. Essa estratégia discursiva de crioulização da expressão são que, em vez de criar [...] a identidade americana como resultado da
literária em portunhol evidencia-se aí por meio do uso de vocábulos que exclusão, adotem e transformem, de forma criativa, campos de força que
advêm de línguas indígenas, seja em construções sintáticas que criam des- se desenvolvem dinamicamente, expressando-se e comunicando-se uns
dobrametos significativos do sintagma topicalizado (“La dança bruja de com os outros”.12 Também caminha nessa direção a crítica de Haroldo de
las horas”), funcionando como índices de transposição cultural (“cururu”, Campos a respeito do modo como a tradição logocêntrica pensa monolo-
“cateretê”, “añaretãmeguá”), seja em cláusulas apositivas desgarradas ao gicamente a língua literária como uma “koiné de mão única”, ao invés de
final do período (“Casa antígua. Mi tava, mi tavaiguá.”) que projetam pensá-la como uma prática translíngue que reescreve/remastiga distintas
autor e leitor (plurilíngues/pluriculturais) não mais fixáveis em posições
enunciativas biunívocas. 12 Tradução livre do original em inglês: “mechanisms of inclusion that, instead of creating
[...] American identity as a result of exclusion, creatively adopt and transform dynamically
11 Grifos meus. developing fields of force, expressing and communicating them to others”.

130 131
culturas, em busca de uma “politópica e polifônica civilização planetária” ______. Sequestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório
(CAMPOS, 2004b, p. 255). de Mattos. Salvador: FCJA, 1989.
Desse modo, essa comunicação selvagem que se produz aí em portu- ______. Crisantempo: no espaço curvo nasce um. São Paulo: Perspectiva, 1998.
nhol, de maneira intencionalmente heteróclita, configura outra perspec- ______. Galáxias. São Paulo: Ed. 34, 2004a.
tiva sobre o político, visto não no escopo da ideia de nação, mas justamente ______. Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira. In:
Metalinguagem & outras metas. São Paulo: Perspectiva, 2004b, p. 231-256.
a partir daquilo que permanece recalcado na constituição da memória
CELADA, M. T. Acerca del errar por el portuñol. Tsé Tsé, 7/8, Buenos Aires, p. 262-
histórica latino-americana, a saber: a relação entre Brasil e seus vizinhos 264, outono/2000.
hispanofalantes. É necessário, contudo, refletir que essa escuta polifônica ______; PAYER, M. O. Sobre sujeitos, língua(s), ensino. Notas para uma agenda.
do outro na (trans)língua (AUTHIER-REVUZ, 2004) tensiona a relação In: PAYER. M. O.; CELADA. M. T. (orgs.). Subjetivação e processos de identificação.
sujeito/alteridade, colocando em xeque o próprio “ter-lugar-na-lingua- Campinas: Pontes, 2016, p. 17-42.
gem” (AGAMBEN, 2005). Derrida (1997, p. 59), ao discutir a questão do CORRÊA, M. O modo heterogêneo de constituição da escrita. São Paulo: Martins
Fontes, 2004.
“monolinguismo do outro”, sinaliza, nesse sentido, uma relação desejante
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Postulados da linguística. In: Mil platôs: capitalismo e
do sujeito com a língua (atravessada pela falta) que faz com que a escrita
esquizofrenia. [Vol. 2]. São Paulo: Editora 34, 1995, p. 11-60.
poética se produza a partir do outro (uma língua que “não se possui”) e
______. Kafka: por uma literatura menor. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
que volte sempre para o outro. Do mesmo modo, em Diegues, assim como
DERRIDA, J. El monolingüismo del otro. Buenos Aires: Manantial, 1997.
em Bueno, Campos e Perlongher – ou ainda em outros autores cujas obras
DIEGUES, D. Karta-Manifesto-del-Amor-Amor-en-Portunhol-Selvagem. O
espero discutir em futuros trabalhos –, a escrita em portunhol representa Globo, Rio de Janeiro, 17/08/2008.
uma potência do translinguismo, enquanto vontade de (se) dizer a partir ETTE, O. Worldwide: living in transarchipelagic worlds. In: ETTE, O.; MÜLLER,
de um lugar linguístico-discursivo que vem do outro e que se endereça ao G. (eds.). Worldwide. Archipels de la mondialisation. Archipiélagos de la
outro como forma de interpelação, ao mesmo tempo estética e política. globalización. Madrid/Frankfurt: Iberoamericana/Vervuert, 2012, p. 21-59.
______. Por uma história literária da globalização: estudos transárea e literatura
de viagem. In: ANDRADE, A. et al. (orgs.). Caminhos do hispanismo: vozes críticas,
referências bibliográficas tendências teóricas. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015, p. 36-82.
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VIRNO. P. Gramática da multidão: para uma análise das formas de vida cultura que não fosse também um documento da barbárie” (BENJAMIN,
contemporâneas. São Paulo: Annablume, 2013. 1996, p. 225) parece planar pelo romance de Alison Spedding, De cuando
en cuando Saturnina, publicado em La Paz em 2004. A ambiguidade das
formas culturais aceitas e a opressão que retêm são contestadas direta-
mente na obra. E por isso vemos explodir a Coricancha1 em Cusco. Pode
ser a destruição da história uma forma de protesto? E se a cultura ofi-
cial encena a identidade indígena como forma de produção capitalista,
ao mesmo tempo que perpetua a discriminação racial? A autora, em um
artigo prévio à publicação do romance, “Quemar el archivo: un ensayo
en contra de la Historia” (2003), assinala que nas sublevações contem-
porâneas na Bolívia, como a de Chulumani, “a queima de arquivos – o
alicerce do trabalho da História – é um ato frequente”2 (p. 388). Contra
essa forma da história, classificada e venerada nos museus, fixada segundo
protocolos acadêmicos ocidentais, a autora enfatiza a memória coletiva. E
por isso escreve um romance feito de vozes: De cuando en cuando Saturina
desde o subtítulo se define como “Uma história oral do futuro”,3 apresen-

1 Templo incaico dedicado ao culto solar, sobre o qual se edificou a igreja de São Francisco,
que se encontra na cidade peruana de Cusco, centro geográfico, religioso e político do impé-
rio Inca.
2 As citações dos textos de Alison Spedding e de sua fortuna crítica estão traduzidas do caste-
lhano para o português no corpo do artigo pela autora. Em nota, será consignado o original:
“la quema de los archivos – el cimento del trabajo de la Historia – es un acto frecuente”
(SPEDDING, 2003, p. 388).
3 “Una historia oral del futuro” (SPEDDING, 2010[2004], capa).

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tando-se como forma histórica contra-hegemônica. Se “a História então nal transnacional, onde o movimento e a tradução são constantes. A base
é escritura”4 (SPEDDING, 2003, p. 374), a memória oral com sua formula- linguística do romance, na qual as outras línguas são traduzidas, é o cas-
ção contraditória, feita de versões superpostas e a implicação pessoal do telhano andino, uma forma linguística híbrida, altamente influenciada
falante, definiria uma forma histórica mais próxima dos atores não insti- pelas línguas andinas sintática e lexicamente. É, por tanto, um castelhano
tucionais, e que, ao contradizer os grandes monumentos do passado (no expropriado, muito distante da correção acadêmica imposta ainda hoje
caso, o incaico),5 permitiria questionar as versões hegemônicas da história pela Real Academia Espanhola, onde seria palpável o processo de des-
que sustentam as estruturas do poder. Mais ainda, no artigo anteriormente colonização. Em certa maneira, Spedding realiza a proposta do escritor
citado, Spedding incorpora trechos do romance que ainda não tinha sido peruano Gamaliel Churata, que em El pez de oro, publicado em La Paz em
publicado, fusionando escrita acadêmica e ficção. Desta maneira explícita, 1957, reclamava a necessidade de escrever “em índio”: “E ainda assim isso
a autora aproxima a escrita da história da escrita literária, especificamente será possível só se somos capazes de fazer do espanhol – solução provisó-
do gênero de ficção científica, pois “no mesmo estilo em que o/a escri- ria e aleatória – o que o espanhol fez de nós: mestiços”7 (CHURATA, 2012,
tor/a de ficção científica projeta seu ambiente contemporâneo para um p. 153). A proposta é radical porque sugere transladar à língua a violência
‘futuro’, o/a historiador/a projeta o seu para um passado”6 (SPEDDING, (sexual) da conquista, pois, como assinala Sueli Carneiro (2003, n.p.), “a
2003, p. 379). Spedding, no seu romance De cuando en cuando Saturnina violação colonial perpetrada pelos senhores brancos contra as mulheres
projeta para a Bolívia um futuro descolonizado, mas que também não negras e indígenas e a miscigenação daí resultante estão na origem de
escapa da crítica. A autora consegue formular um mundo “retro-futurista” todas as construções de nossa identidade nacional”. Churata, com a sua
(GUITIÉRREZ LEÓN, 2011, p. 76), pois a forma política e social que assume afirmação, denuncia que a língua não escapa dessa violência, e que é nela
o país, chamado agora de Qullasuyu Marka, é a do retorno às formas de que a descolonização deve iniciar.
vida pré-hispânica. Nesse novo estado, sem exército nem políticos, o colo- No romance de Spedding, junto com esse espanhol programaticamente
nialismo foi superado e a dignidade das nações indígenas recuperada, mestiço, aparecem frases em aimará ou inglês traduzidas em notas de rodapé
mas permanecem formas de concentração do poder e de subordinação de pela autora. Essa estratégia privilegia a visibilidade da língua andina no
gênero. A luta contra essa opressão fundacional movimenta a narrativa, texto, mas também sua inteligibilidade: a mediação da tradução e a inclusão
em que Saturnina Mamani Guarache, a Satuka, disputa quem pode agir e de um glossário final com termos em inglês e aimará permitem o acesso de
fazer falar a história aos diferentes poderes estabelecidos. uma diversidade de leitoras/es. O idêntico trato dado ao inglês e ao aimará
coloca estas línguas em uma relação horizontal e questiona o predomínio do
as vozes aimarás do futuro inglês como língua da tecnologia. De fato, o romance realiza uma inversão
dessas premissas, ressaltando a contemporaneidade do andino. Isso ques-
Quem fala no romance? E o que fala? Uma das características mais mar- tiona a associação do originário com o passado do discurso do multicul-
cantes dessa obra é a mistura de línguas que ela propõe: o castelhano turalismo, tal como sublinhado por Silvia Rivera Cusicanqui (2010, p. 59):
andino, o aimará e o inglês/spanglish. Isso configura um mundo ficcio-
a noção de “origem” nos remete a um passado que se imagina quieto, estático
e arcaico. Tem aqui a recuperação estratégica das reivindicações indígenas
4 “La Historia entonces es escritura” (SPEDDING, 2003, p. 374).
e a neutralização de sua pulsão descolonizadora. Ao falar de povos situa-
5 A protagonista retruca a uma jornalista que discutia que a Coricancha não era uma cons- dos na “origem”, a coetaneidade dessas populações é negada e são excluídas
trução colonial: “É sim! Os incas eram uns imperialistas de merda também” [“¡Sí lo es! Los
incas eran unos imperialistas de mierda también”] (SPEDDING, 2010, p. 215).
das lidas da modernidade. Outorga-se a elas um status residual e, de fato,
6 “en el mismo estilo en que el/la escritor/a de ciencia ficción proyecta su ambiente contem-
poráneo hacia un ‘futuro’, el/la historiador/a proyecta el suyo hacia un ‘pasado’” (SPEDDING, 7 “Y aún así esto será posible sólo si resultamos capaces de hacer del español – solución pro-
2003, p. 379). visional y aleatoria – lo que el español hizo de nosotros: mestizos” (CHURATA, 2012, p. 153).

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são transformadas em minorias, amoldadas em estereótipos indigenistas do se sustenta com o dinheiro que recebe de seus navegadores de excelência,
bom selvagem guardião da natureza.8 e tem o contrabando e o pirateio dos meios de comunicação exteriores
Em contradição com essa imagem, no romance de Spedding, o aimará como práticas cotidianas. Como define ironicamente a protagonista: “– ...
se constitui como condição de futuridade.9 Pois é essa língua materna a o paraíso verde combinado com a utopia anarquista. Pode crer...! A uto-
que permite a excelência na programação e navegação estelar dos mora- pia arcaizante [...] Em combinação, incômoda mas aparentemente está-
dores de Qullasuyu Marka. A convivência das diversas línguas em uso, o vel, com o neoliberalismo online e uma economia de remessas, não é?”11
hibridismo patente do castelhano e o inglês, desenvolve a resistência lin- (SPEDDING, 2010, p. 277). Como assinala Anabel Gutiérrez León (2015,
guística que pedia Churata. Raquel Alfaro assinala que o plurilinguismo p. 168), essas práticas estariam vinculadas ao conceito aimará de ch’ixi,
do romance tem como objetivo ressaltar o papel estruturante (na fala e no definido por Silvia Rivera Cusicanqui como uma reunião não dialética
pensamento das personagens ) do aimará: de contrários: “propõe a coexistência em paralelo de múltiplas diferenças
culturais que não se fundem, mas que antagonizam ou se complementam.
A intervenção da esfera do spanglish por parte do aimará e o castelhano Cada uma se reproduz a si mesma desde a profundidade do passado e se
andino, resultado este último da influência contínua da língua indígena
sobre o castelhano, então, mostraria a repetição (invertida) do procedimento
relaciona com as outras de forma contenciosa”12 (RIVERA CUSICANQUI,
de deslocação realizado com sucesso no caso do castelhano, além de sugerir 2010, p. 70).
que os processos de resistência que acompanham a essa intervenção linguís- Mas essas práticas cotidianas são negadas pelo discurso oficial. Por
tica seguem atuando e conseguindo resultados.10 (ALFARO, 2010, p. 346-7) isso, as vozes do romance, nas suas práticas de fala, constituem um relato
alternativo, uma história oral do futuro. Para isso o romance se apresenta
Assim, as vozes aimarás do futuro falam aimará, spanglish e caste-
como uma compilação de testemunhos organizados por uma jornalista
lhano andino. São línguas impuras nas quais se percebe a convicção da
(enviada especial da Universal Free Feminist Network) que anos depois das
relação como fundamento das línguas e da vida social. Os falantes, depen-
gravações as disponibiliza em forma de livro (as conversas seriam grava-
dendo da situação, desenvolvem estratégias que misturam as línguas. Do
das no final da década de 80 e fariam referência a fatos acontecidos entre
mesmo modo, politicamente, o estado de Qullasuyu Marka, que fechou
2070 e 2086. A introdução da compiladora está assinada em 2092). O pro-
suas fronteiras para se fortalecer e resguardar da contrarrevolução e, ao
pósito seria etnográfico, como evidencia o título da introdução, “Desde os
mesmo tempo, foi isolado por um duro bloqueio comercial (a alusão ao
Andes aos Asteroides. Vozes da Revolução Desconhecida”13 (SPEDDING,
projeto cubano é evidente), ainda que se proclame livre do capitalismo,
2010, p. 9), e a conclusão da mesma: “Esta é a primeira vez que a ‘Cortina
de Ferro nos Andes’ se abre para dar uma olhada a um povo misterioso e
8 “la noción de ‘origen’ nos remite a un pasado que se imagina quieto, estático y arcaico. He
ahí la recuperación estratégica de las demandas indígenas y la neutralización de su pulsión
legendário”14 (Ibidem, p. 10), mas também político, pela filiação feminista
descolonizadora. Al hablar de pueblos situados en el ‘origen’ se niega la coetaneidad de estas
poblaciones y se las excluye de las lides de la modernidad. Se les otorga un status residual, 11 “… el paraíso verde combinado con la utopía anarquista. ¡Yah…! La utopía arcaizante […]
y de hecho, se las convierte en minorías, encasilladas en estereotipos indigenistas del buen En combinación, incómoda pero aparentemente estable, con el neoliberalismo online y una
salvaje guardián de la naturaleza” (RIVERA CUSICANQUI, 2010, p. 59). economía de remesas, ¿no?” (SPEDDING, 2010, p. 277).
9 Spedding, com esta proposta, lembra intelectuais como Umberto Eco, que Na busca da lín- 12 “plantea la coexistencia en paralelo de múltiples diferencias culturales que no se funden,
gua perfeita colocava o aimará como uma das candidatas a essa condição. sino que antagonizan o se complementan. Cada una se reproduce a sí misma desde la
profundidad del pasado y se relaciona con las otras de forma contenciosa” (RIVERA
10 “La intervención de la esfera del spanglish por parte del aymara y del castellano andino,
CUSICANQUI, 2010, p. 70).
resultado este último de la influencia sostenida de la lengua indígena sobre el castellano,
entonces, mostraría la repetición (invertida) del procedimiento de dislocación llevado a 13 “Desde los Andes a los Asteroides. Voces de la Revolución Desconocida” (SPEDDING,
cabo con éxito en el caso del castellano, a la par de sugerir que los procesos de resistencia 2010, p. 9).
que acompañan a esta intervención lingüística siguen obrando y consiguiendo resultados” 14 “Esta es la primera vez que la ‘Cortina de Hierro en los Andes’ se abre para dar una mirada
(ALFARO, 2010, p. 346-7). a un pueblo misterioso y legendario” (Ibidem, p. 10).

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da jornalista. Nesse sentido, o romance ecoa a literatura de testemunho, na multilíngue e multicultural” do texto, propõe diferentes possibilidades de
qual a figura do compilador/a aparece como mediador/a textual de quem leitura em relação à ordem dos capítulos: a ordem narrativa escolhida
profere o discurso, em muitos casos não letrada/o. Na definição de John pela compiladora, marcada com a letra S; a ordem dos fatos centrais,
Beverley (2004, p. 103), marcada com a letra T; e a ordem dos fatos do passado, marcada com a
letra P. Além disso, também apresenta a sequência Q, cuja leitura destece
Por testemunho entendo [...] uma narrativa [...] contada em primeira pes-
soa por um narrador que é também um protagonista ou testemunho real “tanto a ordem narrativa como temporal”16 (Ibidem, p. 12). Essa organi-
dos eventos que ele ou ela conta. [...] A situação de narração no testemunho zação caracteriza o romance como experimental e implica “um jogo da
comporta uma urgência de comunicar, um problema de repressão, miséria, amarelinha”17 (2010, p. 12) no processo de leitura; assim, o texto se coloca
subalternidade, encarceramento, luta pela sobrevivência, implicado no ato em relação explícita com a Rayuela de Julio Cortázar. Esta seção termina
mesmo da narração. A posição do leitor do testemunho é semelhante à de
um membro do júri em um tribunal. À diferença do romance, o testemunho dando liberdade ao/à leitor/a para se movimentar dentro do romance:
promete por definição estar primariamente concernido com a sinceridade “para que vocês possam navegar como desejem”18 (Ibidem, p. 12).
em lugar de com a literariedade.15 O que poderia ser um alarde técnico ou uma referência intertextual
apresenta ao/à leitor/a os modos de funcionamento da oralidade e de pro-
Como veremos, o encarceramento, a repressão e a luta estão presentes
dução da história oral: “Quem relata a quem? E quando? Evidentemente,
no texto de Spedding, que implica, como resposta à última característica
sempre se relata depois dos fatos, mas a relação entre o momento da
desse tipo de obras, uma “aparência” de verdade da literariedade. Mas o
conversa e o, ou, os momentos dos fatos relatados é bastante variável”19
próprio Beverley já problematiza as fronteiras da invenção entre um e outro
(Ibidem, p. 11). Isso implica que a ordem que diversas memórias atribuem
gênero. Um dos exemplos da literatura de testemunho boliviana, citado no
aos fatos pode discordar, como também os fatos selecionados por cada
próprio romance, é Si me permiten hablar... Testimonio de Domitila, una
interlocutor/a, que fala desde sua subjetividade. Além disso, outros desa-
mujer de las minas de Bolivia, organizado pela escritora brasileira Moema
fios podem aparecer no relato. No artigo “Quemar el archivo...”, a autora os
Libera Viezzer em 1976. Nele, como no romance de Spedding, o feminismo
descreve ao definir a história oral:
se vincula com a vontade de fazer emergir outras vozes para a história.
A partir desse modelo formal, o romance se configura como o dis- A “história oral” geralmente consiste na compilação de lembranças pessoais,
da vida de uma pessoa ou daquilo que escutou de outros. Isto não é muito
curso direto (e portanto em primeira pessoa) de uma das personagens, problemático quando se limita ao “testemunho” o relato de uma pessoa só.
ou como um diálogo entre duas delas, mas com o pressuposto de uma Porém, surgem várias dificuldades quando se tenta utilizar material proce-
organização autoral. Dessa maneira, ecoando outros referentes, como o dente de várias pessoas para compor um relato histórico de certo aconteci-
Quixote de Cervantes, a obra se mostra na sua condição de artefato lite- mento ou série de acontecimentos. Deixando de lado a questão do que deve
ser feito com elementos que não correspondem aos conceitos ocidentais da
rário. Mas Spedding (2010, p. 11) vai além nessa explicitação dos mecanis-
realidade (isto é, o que um ocidental considera inverossímil, impossível ou
mos construtivos, pois, logo depois da introdução da compiladora, nos inexistente e, portanto, classifica como “mítico”, “mágico”, etc.), diferentes
oferece um “Manual para a usuária”, que além de apontar para o “caráter

15 “Por testimonio entiendo […] una narrativa […] contada en primera persona por un narra- 16 “si quiere experimentar con un orden que desteja tanto el orden narrativo como el temporal,
dor que es también un protagonista o testigo real de los eventos que cuenta. […] La situa- [puede] intentar rastrear la secuencia Q” (SPEDDING, 2010, p. 12).
ción de narración en el testimonio envuelve una urgencia de comunicar, un problema de
17 “un juego de rayuela” (Ibidem, p. 12).
represión, miseria, subalternidad, encarcelamiento, lucha por la supervivencia, implicado
en el acto mismo de la narración. La posición del lector del testimonio es semejante a la de 18 “para que Uds. puedan navegar como deseen” (Ibidem, p. 12).
un miembro del jurado en una corte. A diferencia de la novela, el testimonio promete por 19 “¿Quién lo relata a quién?¿Y cuándo? Por supuesto, siempre se relata después de los hechos,
definición estar primariamente concernido con la sinceridad en lugar de con la literariedad” pero la relación entre el momento de la conversación y el o los momentos de los hechos es
(BEVERLEY, 2004, p. 103). bastante variable” (Ibidem, p. 11).

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informantes podem dar versões muito diferentes do que é supostamente o a partir do nosso futuro para o seu passado (que é ainda o nosso futuro).22
mesmo acontecimento.20 (SPEDDING, 2003, p. 370-1) (BURDETTE, 2011, p. 119-120)

Na história oral do futuro que o romance de Spedding compõe, estas Frente à história oficial de Qullasuyu Marka, que constrói o relato his-
versões alternativas não são ocultadas, e o/a leitor/a deve reconstruir o tórico por sucessão de ‘momentos constitutivos’ que fundamentam suas
relato a partir das diversas variantes. Mas o que também a superposição de estruturas de poder, as vozes das personagens nos transmitem uma his-
versões está assinalando é a concepção de uma história não linear. Frente tória não estatista (BURDETTE, op. cit., p. 121), mas anarquista. Assistimos
à necessidade ocidental de construir a história pela seleção dos fatos rele- à sabotagem contínua das versões oficiais, sob o olhar irônico da prota-
vantes e sua distribuição numa sucessão ordenada cronologicamente, o gonista, a Satuka. Os fatos narrados no romance não incluem (fora o epi-
romance ensaia outras lógicas de experimentar o tempo. Hannah Burdette sódio da destruição de Fobos) aventuras épicas, mas atentados e ataques
assinala que o tempo do romance estaria organizado pela noção aimará de hackers aos poderes estabelecidos. Um dos trechos mais significativos do
nayra pacha. Elizabeth Monasterios define esta noção como “‘ver com os romance é aquele que Spedding inclui no seu artigo: na antiga praça de
olhos o tempo antigo’, que alude a uma necessidade vital de situar-se histo- São Francisco, em La Paz, a Satuka e sua amiga e amante Fortunata assis-
ricamente no presente olhando o passado que está diante dos nossos olhos tem a um vídeo comemorativo dos 50 anos da Liberação da ex-Bolívia.
e caminhando de costas para o futuro, tempo desconhecido que não pode A narração das imagens é pipocada de comentários corrosivos e asso-
ser visto”21 (MONASTERIOS, 2015, p. 41-2). A experiência do tempo que a bios por parte delas, e a retórica triunfalista é confrontada com o suposto
leitura propõe, com a inclusão de vozes e variantes distintas, aproximaria modelo superado: “‘E o que tem de novo?!’, falou a Satuka. ‘Fora que se
o/a leitor/a dessa perspectiva: saúda a wiphala nas sextas em lugar de saudar a bandeira boliviana nas
segundas!’”23 (SPEDDING, 2010, p. 63).
O romance “começa”, por assim dizer, num momento longe no futuro e vai se
aproximando a nós no tempo através das memórias das protagonistas, sem
tocar nunca o momento do nosso presente (ou o momento em que o livro as vozes são vozes de mulher: a lógica compositiva
foi escrito e publicado, faz já vários anos). A Liberação, nesse sentido, pro-
jeta-se na leitura como um evento possível de um futuro próximo, ao passo Como já foi comentado, a compilação ficcional do romance tem um
que para as protagonistas já passou mais de meio século desde esse aconte- intuito político. Todas as entrevistadas são mulheres e busca-se com isso
cimento. O efeito que isto produz é o de olhar para trás olhando o futuro: a
mostrar o seu protagonismo na história. Ao mesmo tempo, a interlocu-
escritora nos mostra um futuro hipotético, enquanto as narradoras olham
tora ideal para relato seria mulher, como deixa explícito o “Manual para a
usuária”. O fio condutor da trama é o percurso vital de Saturnina Mamani

20 “La ‘historia oral’ generalmente consiste en la recopilación de recuerdos personales, de la


vida de uno o de lo que se ha escuchado de otros. Esto no es muy problemático cuando se 22 “La novela ‘comienza’, por decirlo así, en un momento lejano del futuro y va acercándose
limita al ‘testimonio’, el relato de una sola persona. Sin embargo, surgen varias dificultades a nosotros en el tiempo a través de las memorias de las protagonistas, sin tocar nunca el
cuando se intenta utilizar material procedente de varias personas para componer un relato momento presente (o el momento en que se escribió y publicó el libro, hace ya varios años).
histórico de cierto acontecimiento o serie de acontecimientos. Dejando de lado la cuestión La Liberación, en este sentido, se proyecta en la lectura como un evento posible pertene-
de qué se debe hacer con elementos que no corresponden a los conceptos occidentales de la ciente a un futuro cercano, mientras que para las protagonistas ya ha pasado más de medio
realidad (es decir, lo que un occidental considera inverosímil, imposible o inexistente y, por siglo desde la incidencia de este acontecimiento. El efecto que esto produce es el de mirar
tanto, clasifica como ‘mítico’, ‘mágico’, etc.), diferentes informantes pueden dar versiones muy atrás mirando al futuro: la escritora nos hace ver un futuro hipotético, mientras que las
diferentes de lo que es supuestamente el mismo acontecimiento” (SPEDDING, 2003, p. 370-1). narradoras miran desde nuestro futuro hacia su pasado (que es todavía nuestro futuro)”
21 “‘ver con los ojos el tiempo antiguo’, que alude a una necesidad vital de situarse histórica- (BURDETTE, 2011, p. 119-20).
mente en el presente mirando el pasado que está delante de los ojos y caminando de espaldas 23 “‘¡¿Y qué hay de nuevo…?!’ dijo Satuka, ‘¡Excepto que se saluda a la wiphala los viernes en
al futuro, tiempo desconocido al que no se puede ver” (MONASTERIOS, 2015, p. 41-2). vez de saludar la bandera boliviana los lunes!’” (SPEDDING, 2010, p. 63).

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Guarache,24 famosa navegadora espacial, e, junto à voz dela, também ouvi- uma sociedade em que a heterossexualidade não ordene não só todas as
mos as vozes de sua companheira Fortunata Alvisuri, de Imelda e Cleoje relações humanas, mas também sua própria produção de conceitos e de
Mamani, irmã e mãe da Satuka, e de Feliciana, codinome de uma das inte- todos os processos que escapam também à consciência” (WITTIG, 2017,
grantes do comando Flora Tristán. A alternância das vozes forma uma p. 269). Segundo Wittig, a heterossexualidade, ao ser estabelecida como
trama de narrativas que se tece como forma solidária de resistência ao parâmetro de pensamento, não só assegura a subordinação de gênero, mas
apagamento da voz e agência femininas. Além dessas vozes, também apa- também a de raça ou de classe:
rece uma voz sem corpo, a da avó Alcira, que comparece no romance em
Sim, a sociedade straight baseia-se na necessidade do diferente/outro em
forma de caveira que a Satuka consegue fazer falar. todos os níveis. Não pode funcionar econômica, linguística ou politicamente
Trata-se, portanto, da construção de um discurso descentrado, no sem tal conceito. Essa necessidade do diferente/outro é ontológica para
qual a autoridade do narrador pulveriza-se em vozes de natureza distinta: todo o conglomerado de ciências e disciplinas que denomino pensamento
mulheres profissionais, como a Satuka e Fortunata, mulheres comercian- straight. Mas o que é o diferente senão o/a dominado/a? (Ibidem, p. 269-70)
tes, como Imelda, mulheres guerrilheiras, como Feliciana, mas também
A proliferação das vozes afirma contrariamente uma lógica inclusiva.
mulheres mortas, como a avó Alcira. Desta maneira, questiona-se um dos
Além disso, para propor uma alternativa epistemológica ao pensamento
procedimentos formais que sustentam a voz única da história (e da lite-
ocidental, o romance se aproxima do pensamento aimará. Já foi assina-
ratura): o narrador, que é quem outorga uma coerência (conveniente e
lado como isso é feito em relação à organização temporal do romance,
contingente) aos fatos e à intervenção dos personagens, que não deixam
mas outros elementos são postos também em jogo. Entre eles, destaca
nunca de estar definidos pelo gênero. Romper com esses papéis de gênero
a personagem Alcira, pois a morte não exclui sua fala. Na experiência
é um dos intuitos do romance, junto com mostrar uma rede de relações
aimará da morte, os mortos são seres próximos que intervêm no coti-
femininas, que transitam da amizade e o afeto familiar à lealdade polí-
diano. O romance torna explícita essa intervenção que se dá como dis-
tica e ao desejo sexual, e que questionam a heteronormatividade imposta
curso. Eduardo Viveiros de Castro assinala entre os Tupi-Guarani uma
(até no futuro imaginado), como assinala Adrienne Rich (2010, p. 40): “A
relação semelhante com os defuntos: “a diferença vivos/mortos não pode,
identificação entre mulheres é uma fonte de energia e de poder feminino
para os Tupi-Guarani, ser concebida como oposição simples, formal ou
potencial, contido e minimizado pela instituição da heterossexualidade”.
real. […] Há uma positividade da morte, paradoxal porque não implica
A luta contra as instituições patriarcais que se dá em todo o romance
uma visão da vida como negatividade. […] os Tupi-Guarani arriscam
se joga internamente nessa composição estrutural. Alison Spedding na
uma dupla afirmação: isso e aquilo, o vivo e o morto, o eu e o Outro”
sua obra quebra com as formas hegemônicas do discurso histórico, que
(VIVEIROS DE CASTRO, 1986, p. 28).
são ao mesmo tempo reflexo de uma epistemologia da exclusão. Monique
A lógica que escuta a morte dentro da vida, e o passado dentro do pre-
Wittig revela essa continuidade entre as formas do pensamento ocidental
sente, não privilegia uma voz única, mas formas coletivas de participação
e a heteronormatividade: “A consequência dessa tendência à universali-
social fundadas na relação de reciprocidade que organiza a vida andina.
dade é que o pensamento straight não consegue conceber uma cultura,
No caso de Qullasuyu Marka, a transformação política abandona as formas
parlamentares das democracias liberais, para uma organização em comuni-
24 A personagem de Saturnina Mamani Guarache é a protagonista de uma trilogia com-
posta por Spedding no final da década de noventa. O primeiro romance, de 1997, Manuel dades sociais (ayllus) e grêmios. Isso implicaria também uma transforma-
y Fortunato, está situado na época colonial, a poucos anos da chegada dos espanhóis e ção da noção de identidade, que na fórmula usada por Gamaliel Churata
pertence ao gênero picaresco. El viento de la cordillera, o segundo romance da série, é um
em El pez de oro se resume na equação: “Ego: tú-multo” (CHURATA, 2012,
thriller que ganhou o XIV concurso nacional de romance “Erich Guttentag” em 1996 e foi
finalmente publicado em 2001. De cuando en cuando Saturnina, iniciado em 1996 e publi- p. 349). Aqui a identidade se define como alteridade não genérica, mas
cado em 2004, é o último romance e também dá nome à trilogia.

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próxima e coletiva. Marco Thomas Bosshard destaca a correspondência ção metafórica e da oposição complementar. Movemo-nos em um universo
entre o individual e o plural nessa concepção: “Esse ato de sentir o outro onde o Devir é anterior ao Ser, e a ele insubmisso.
ou de sentir-se no outro é constitutivo para a concepção do eu de Churata Esta lógica da coexistência das entidades e das vozes é explicada por
como parte integral de um coletivo. O ego deve ser entendido como um Rosario Rodríguez com a imagem do tecido, caraterística do contexto cul-
tu múltiplo” (BOSSHARD, 2014, p. 126). Da mesma forma, De cuando en tural andino: “a metáfora é, ademais, a do estendido e tecido de um têxtil
cuando Saturnina, com o direito dado à fala e à interlocução como fórmula andino que se pensa em pleno fazer-se, porque a obra entrecruza muito
de organização, desenha uma identidade conversacional e em movimento. finamente os fios do não fechamento, a ambiguidade, o humor, a contra-
Finalmente, a aparição da voz de Alcira destaca a prática xamâ- dição, inclusive o absurdo e, talvez sobretudo, os vazios presentes em toda
nica, realizada por uma mulher, a Satuka.25 Trata-se de uma cerimônia trama em execução”27 (RODRÍGUEZ, 2016, p. 86).
de ch’amakani, isto é, segundo o próprio glossário do livro, “literalmente,
dono da escuridão; espírita, que chama e faz falar os ânimos dos vivos,
as almas dos mortos, os espíritos dos morros, rios, e quanto ser espiri-
a disputa pelas ruínas
tual se deseje consultar”26 (SPEDDING, 2010, p. 322). A prática xamânica se Mas quem pode fazer falar as mortas? Essa pergunta articula a ação
concebe, segundo descreve Viveiros de Castro para os arawetés, como um do relato. O ‘presente’ da ficção, isto é, umas conversas entre a Satuka e
deslocamento da enunciação: “Assim, a forma típica de uma frase é uma Fortunata que não são referidas como lembranças e que contêm grande
construção dialógica complexa: o xamã canta algo dito pelos Maí, citado parte da tensão da trama, é constituído pela prisão da Satuka: “Não temos
pelo morto, referente a ele (xamã), por exemplo… Quem fala, assim, são nem exército nem Presidente... Mas seguimos tendo prisão. Uma merda,
os três: Maí, morto, xamã, um dentro do outro” (VIVEIROS DE CASTRO, não é?!”28 (SPEDDING, 2010, p. 221). Quem ordena essa prisão é o conselho
1986, p. 549). Esta formulação xamânica promove a simultaneidade da dos Amawt’as, que é o grêmio mais poderoso de Qullasuyu Marka. E o
elocução, a escuta de uma fala dentro de outra e a aparição de pontos de crime da Satuka é um atentado contra a história. Ele é duplo: por um lado,
vista múltiplos que entram em jogo no romance de Spedding. Por isso, a fazendo parte do comando anarco-feminista Flora Tristán, a Satuka liderou
caveira que fala vai além de uma aparição mágica ou fantasmal. Ela com- a explosão da Coricancha em Cuzco em 2081; por outro lado, ela exerceu de
porta um questionamento da epistemologia ocidental e sua necessidade ch’amakani sem permissão, uma prática apenas reservada aos amawt’as, e
do ‘Outro’ como complemento negativo da ordem que se quer afirmar, o que é pior, escondeu a caveira de Alcira, de grande valor por se tratar de
como denunciava Wittig. Ao descrever os cantos xamânicos arawetés, uma das participantes da liberação de Qullasuyu Marka, pois ela é “ch’aman
Viveiros de Castro (op. cit., p. 27-8) explicita que tayka ou Benemérita da Pátria” (Ibidem, p. 10) e seus restos devem estar em
não se trata do jogo especular de reflexos e inversões entre Eu e Outro, com Tiwanaku, à disposição dos amawt’as. Em ambos os casos, ela atenta con-
sua pulsão implícita de simetria geométrica e estabilidade de forma, mas tra as versões hegemônicas da história: a glorificação do passado incaico
de um processo de deformação topológica contínua, onde Eu e Outro, Ego à custa da exploração da identidade indígena (as ações de Satuka no Peru
e Inimigo, o vivo e o morto, o homem e o deus, o devorado e o devora- atentam várias vezes contra esse paradoxo) e a possibilidade de fazer falar o
dor, estão entrelaçados – aquém ou além da Representação, da substitui-
passado, e portanto escrever a história, que pode estar apenas em determi-
27 “la metáfora es, además, la del tendido y tejido de un textil andino que se piensa en pleno
25 Quando criança, a Satuka foi atingida por um raio, o que na concepção mítica aimará quehacer, porque la obra entrecruza muy finamente las hebras del no cierre, la ambigüedad,
implica sua capacidade para falar com os/as mortos/as. el humor, la contradicción, incluso el absurdo y, quizás sobre todo, los vacíos presentes en
26 “Ch’amakani literalmente, dueño de la oscuridad; espiritista, que llama y hace hablar a los toda trama en ejecución” (RODRÍGUEZ, 2016, p. 86)
ánimos de los vivos, las almas de los muertos, los espíritus de los cerros, ríos, y a cuánto ser 28 “No tenemos ejército ni Presidente… Pero seguimos teniendo cárcel. ¡Una mierda, ¿no…?!”
espiritual se desee consultar” (SPEDDING, 2010, p. 322). (SPEDDING, 2010, p. 221).

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nadas mãos. A caveira da avó Alcira, o objeto em disputa, é o passado, por- o empreendimento ficcional de José María Arguedas. A imagem que
que ela enuncia literalmente o passado. Um passado que não condiz com Vargas Llosa criticava como falsa e intolerável tem se realizado; os indí-
a versão oficial: “O que sim havia era um caos... nada como o que ensinam genas organizam de novo sua própria sociedade, mas nela existem ques-
a vocês agora no Yachaywasi; eu me admiro de como se fabrica a história. tões urgentes a serem resolvidas. Spedding não cria uma utopia tranqui-
Agora dizem que a história que ensinavam antes eram puras mentiras de lizadora (a guerra de liberação narrada é bem cruenta). De fato, Paola
q’aras mas agora será mentiras de amawt’as, diria eu”29 (Ibidem, p. 68). Mancosu propõe definir o romance como um olhar distópico desde o
Qullasuyu Marka e o Peru são descritos como termos opostos pela futuro: “Distópico porque o planeta – e suas periferias trans-globais –
sua relação com os/as indígenas: enquanto o primeiro realiza uma revolu- está longe de ter solucionado problemas como o racismo, as discrimina-
ção descolonizadora que expulsa os q’aras – segundo o glossário, “pessoa ções de classe e de gênero, o livre trânsito das fronteiras ou a violência
não camponesa, não índia, da classe média”30 (Ibidem, p. 332) – do territó- institucionalizada”32 (MANCOSU, 2018, p. 7).
rio, o segundo marginaliza os/as indígenas a ponto de classificá-los gene- A atitude política que encarna a Satuka é a da rebelião permanente,
ticamente para poder exercer ocupações subalternas, como figurantes nas e sua prisão nos vários contextos políticos explicita essa atitude. Em
celebrações incaicas, profissionais de limpeza ou, diretamente, mendigos, Qullasuyu Marka, a rebelião, como indicado, tem a ver com os poderes
aplicando a esse controle social o nome cínico de “Ministério de Apoio de Satuka como ch’amakani, com a concentração do poder em mãos dos
Econômico”. Como assinala Rosario Rodríguez (op. cit., p. 82), amawt’as e a subordinação de gênero que ainda impera nessa sociedade.
Spedding, desse modo, vai além das reivindicações de descolonização que
o Baixo Peru no seu conjunto é construído como uma forte possível imagem
espelho – com diferenças pelo meio, claro – da “nação” que teria chegado a transformavam a Bolívia na época de escrita do romance (no colofão a
ser a Bolívia do futuro, se não tivesse acontecido a revolução de liberação. autora assinala os anos 1996 e 2000 como o da composição, essa segunda
Em outras palavras, na ordem e a lógica que organizava a nação criolla no data na prisão de Miraflores em La Paz, e o ano de 2002 como o da versão
passado (Bolívia e Peru basicamente) e na que rege a do futuro (o Baixo final, antes portanto da queda de Gonzalo Sánchez de Lozada e da chegada
Peru como caso paradigmático), os índios e sua cultura são situados desde
uma margem de desprezo tal que os mesmos acabam por não fazer parte da de Evo Morales ao poder). No romance, a crítica se estende às estruturas
comunidade nacional.31 sociais originárias, que mantêm uma forte tendência patriarcal.
Na história tecida no romance, em 2022, Qullasusy Marka, depois
Mas apesar da descolonização, Qullasuyu Marka não se apresenta da guerra de Liberação, fechou suas portas, desenvolveu uma economia
como um modelo. São várias as referências irônicas no romance à “uto- autárquica, fundada na agricultura e no intercâmbio de produtos, e se
pia arcaica”, expressão cunhada por Mario Vargas Llosa que questionava organizou por ayllus e grêmios. O mais ativo dos grêmios é o Sindicato
a que Satuka pertence, apelidado de Space Engineering and Applied
29 “Lo que sí había era un caos… nada como lo que enseñan a Uds. ahora en el Yachaywasi, Astronomy Corporation “Qullasuyu” plc, o qual realiza serviços de nave-
yo mey admirado de cómo se confecciona la historia. Ahora dicen que la historia que ense- gação, fornece remessas em dinheiro internacional e cujos membros são
ñaban antes era puras mentiras de q’aras pero ahora será mentiras de amawt’as, diría yo”
(Ibidem, p. 68). os únicos que viajam regularmente fora do país e do planeta. Mas o mais
30 “Q’ara, persona no-campesina, no-india, de la clase media” (Ibidem, p. 332). poderoso dos grêmios é o dos amawt’as. O retorno às formas de religio-
31 “El Bajo Perú en su conjunto es construido como una fuerte posible imagen espejo – con sidade pré-hispânicas dá preeminência a esses personagens, pois estão
diferencias de por medio, claro está – de la ‘nación’ que hubiera llegado a ser la Bolivia del presentes na maioria das práticas da vida social: “Supostamente é apenas
futuro, de no haberse producido la revolución de liberación. En otras palabras, en el orden
y la lógica que organizaba la nación criolla en el pasado (Bolivia y Perú básicamente en la
mira) y en la que rige la del futuro (el Bajo Perú como caso paradigmático), los indios y su 32 “Distópica porque el planeta – y sus periferias trans-globales – están lejos de haber solucio-
cultura se ubican desde un margen de desprecio tal que los mismos acaban por no formar nado problemas como el racismo, las discriminaciones de clase y de género, el libre tránsito
parte de la comunidad nacional” (RODRÍGUEZ, 2016, p. 82). de las fronteras o la violencia institucionalizada” (MANCOSU, 2018, p. 7).

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mais um grêmio que se ocupa do culto e do bem-estar espiritual e também lizar atos espirituais e pelo abuso de tais atos como meio de controle, e a
dirige a educação. Mas todos sabemos que para eles o culto e a educação Santuka a leva a termo dentro da prisão. Caracteristicamente, sua arma
são bastante amplos e assim mexiam em tudo”33 (SPEDDING, 2010, p. 118). será o rumor, que como a memória coletiva é ubíquo e ardiloso: “No dia
Eles concentram o poder, pois têm acesso às forças da natureza, do espírito que ache alguém que comece a contar uma das histórias que você mesma
humano e dos mortos, e a maioria da população os teme. Mas sua organi- espalhou, e com detalhes que você não colocou. Nesse dia você vai saber
zação é claramente androcêntrica. As mulheres podem se iniciar, mas sua que o conto adquiriu vida e pode ficar escutando”36 (Ibidem, p. 256).
possibilidade de chegar aos postos mais altos é nula: Entre a avó Alcira e Satuka existe um vínculo muito forte que resiste
ao embate dos amawt’as. Trata-se de um vínculo feminino contra uma
Quantas mulheres tem no Conselho de Amawt’as? Quantas mulheres ch’ama-
kanis tem, alguma amawt’as de província sequer? Falam que te foi dada para autoridade ainda claramente patriarcal. Na sua decisão de não entregar
qulliri, qaquri, receitar ervas, fazer massagem nas grávidas e tchau. E depois, a caveira, ela se opõe ao Willkaqamani, autoridade máxima, que não por
ainda que aceitem você para níveis superiores, tem que praticar segundo eles acaso é seu próprio pai. Assim, contra a lei do pai no ayllu, a Satuka esconde
dizem. [...] Se eu vou praticar, vou praticar segundo o que bem entender, e o passado. E onde? Significativamente em El Alto, que é a cidade indígena
não segundo uma panelinha de homens”34 (Ibidem, p. 192).
que fica em cima de La Paz, e que no romance foi destruída durante a
No romance, apresentam-se duas revoltas feministas dentro de guerra de liberação por um míssil nuclear lançado pelo governo. Agora é
Qullasusy Marka iniciadas pela Satuka: uma é pública, realiza-se por vias um lugar de morte, totalmente abandonado pelos resíduos nucleares ainda
institucionais, e pretende negar o acesso masculino às missões no exterior ativos, uma ruína do futuro. Mas como afirma Walter Benjamin, a ruína,
para evitar confrontos internacionais; trata-se de uma guerra dos sexos onde os efeitos do simbólico se apagaram, é o lugar crítico por excelência
com audiências públicas e estratégias políticas, que explicita a tensão de e nela descansa a história: “No campo da intuição alegórica, a imagem é
gênero dentro do país, apesar de noções como o chachawarmi, a com- fragmento, ruína. Sua beleza simbólica se esvanece, quando atinge a luz
plementaridade entre homem e mulher, difundidas ideologicamente mas da teologia. A falsa aparência de totalidade se desfaz. O eidos se apaga, a
não postas realmente em prática: “‘Cadê a complementaridade se afinal os parábola morre, seu cosmos interior resseca. Nos rébus secos que sobram,
homens seguem ocupando os postos diretivos. O mallku manda e a t’alla só jaz uma intuição, acessível para o meditativo confuso” (BENJAMIN, 1986,
faz de apoio e adorno nas festas, ainda que seja ela quem realmente manda p. 30). Nesse lugar de assombração, de dor, de vazio, lugar espectral da
por debaixo do pano. Por que temos que ser sempre a eminência parda, história, nesse buraco caracteristicamente indígena se salva o passado, que
o poder por trás do trono e não o trono mesmo?’ [...] ‘Buscamos outro significa, na lógica andina, fazer andar o futuro.
modelo’ falavam. ‘Não o Novo Poder, mas o Contra-Poder’”35 (Ibidem, p.
112). A outra revolta é silenciosa. Trata-se da disputa por quem pode rea- e o futuro? pura pornografia
33 “Supuestamente es sólo un gremio más que se ocupa del culto y del bienestar espiritual y O comando Flora Tristán, como foi indicado, é um grupo de ação política
también manejan la educación. Pero todos sabemos que para ellos el culto y la educación es
bastante amplio y así se metían en todo” (SPEDDING, 2010, p. 118). feminista, cujo nome lembra a escritora franco-peruana que no século XIX
34 “¿Cuántas mujeres hay en el Consejo de Amawt’as?¿Cuántas mujeres ch’amakanis hay, se posicionou com seus escritos a favor do socialismo e contra as estrutu-
amawt’as de provincia siquiera? Te dicen que te ha sido dada para qulliri, qaquri, recetar
hierbas, masajear a las embarazadas y chau. Y después, aunque te acepten para niveles supe-
riores, tienes que practicar según lo que dicen ellos. […] Si yo voy a practicar, voy a practicar gris, el poder detrás del trono y no el trono mismo?’ […] ‘Buscamos otro modelo’ decían.
según me parece a mí y no según una camarilla de hombres” (Ibidem, p. 192). ‘No el Nuevo Poder, sino el Contra-Poder’” (Ibidem, 112).
35 “‘Qué hay de la complementariedad si al fin los hombres siguen copando los puestos direc- 36 “El día que encuentres a alguien que empieza a contarte una de las historias que vos misma
tivos. El mallku manda y la t’alla sólo funge de apoyo y adorno en las fiestas, aunque sea ella has hecho correr, y con detalles que vos no has puesto. Ese día sabrás que el cuento ha
quien realmente manda entre bambalinas. ¿Por qué tenemos que ser siempre la eminencia cobrado vida y puedes echarte a escuchar” (Ibidem, p. 256).

150 151
ras patriarcais dominantes na sua sociedade. Esse nome, e também aquele referências bibliográficas
da Rede de Capacitação Feminina Clorinda Matto de Turner, ou a menção
ALFARO, Raquel. Alison Spedding. De cuando en cuando Saturnina (Saturnina
a Domitila Chungara, fazem visível uma genealogia de resistência femi-
from time to time): una historia oral del futuro. Bolivian Studies Journal,
nina na área andina. Depois da explosão da Coricancha, com as represá- Pittsburgh, 15-17, p. 346-349, 2008-2010.
lias policiais às diferentes integrantes, o grupo deve repensar sua linha de BENJAMIN, Walter. Magia e técnica. Arte e política: ensaios sobre literatura e
ação. E se reorganizam como produtoras culturais de um específico bem história da cultura. [Trad.: Sergio Paulo Rouanet]. São Paulo: Brasiliense, 1996.
de consumo: vídeos pornográficos de grande popularidade que socavam ______. Documentos de cultura. Documentos de barbárie. Escritos escolhidos. São
o sistema patriarcal e colonial. Paulo: Cultrix/Edusp, 1986.
Nas sociedades contemporâneas a pornografia37 comporta, como BEVERLEY, John. Subalternidad y representación. Madrid: Iberoamericana, 2004.
assinala Monique Wittig, uma normalização da violência contra a mulher: BOSSSHARD, Marco Thomas. Churata y la vanguardia andina. Lima: CELAP/
“Imagens pornográficas, filmes, fotos de revistas, cartazes publicitários Latinoamericana Editores, 2014.
nas paredes das cidades constituem um discurso; e esse discurso cobre BURDETTE, Hannah A. Futurismo arcaizante: descolonización y anarcofeminismo
en De cuando en cuando Saturnina. Bolivian Studies Journal, Pittsburgh, 18, p.
o nosso mundo com seus signos; e esse discurso tem um significado: sig-
115-133, 2011.
nifica que as mulheres são dominadas” (WITTIG, 2017, p. 266). Além de
CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América
moldar as práticas que são encobertamente permitidas, o discurso porno- Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: Ashoka Empreendimentos
gráfico serve de ameaça: Sociais; Takano Cidadania (org.). Racismos contemporâneos. Rio de Janeiro:
Takano Editora, 2003. p. 49-58. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/
O discurso pornográfico é uma das estratégias da violência que é exercida enegrecer-o-feminismo-situacao-da-mulher-negra-na-america-latina-partir-de-
sobre nós: ele humilha, degrada, é um crime contra a nossa “humanidade”. uma-perspectiva-de-genero/>. Acesso em 7 abr. 2019.
Como tática de assédio, possui outra função, a de advertência. Ordena-nos a
CHURATA, Gamaliel. El pez de oro. Madrid: Cátedra, 2012.
ficar na linha, e mantém no passo aquelas pessoas que tendem a se esquecer
de quem são; conta com o medo. (WITTIG, op. cit., p. 267) ECO, Umberto. A busca da língua perfeita. Bauru/SP: Edusc, 2001.
GUTIÉRREZ LEÓN, Anabel. Después del Pachakuti. Tiempo mitológico aymara y
É possível, então, pensar numa pornografia feminista? Diretoras de ciência ficción. Mitologías hoy, Barcelona, 3, p. 75-85, 2011.
cinema contemporâneas, como a argentina Albertina Carri e seu filme Las ______. De cuando en cuando Saturnina. Trilogía de una índia rebelde, de
hijas del fuego, de 2018, querem responder com seus trabalhos que sim. No Alison Spedding: mitología y subversión en los Andes. In: USANDIZAGA, Helena;
FERRÚS, Beatriz (orgs.). Fragmentos de un nuevo passado. Inventario de mitos
universo do romance de Spedding, a resposta não só é afirmativa como
prehispánicos en la literatura latinoamericana actual. Berna: Peter Lang, 2015.
tem um clamoroso sucesso econômico e de público, apesar de sua distri-
MANCOSU, Paola. Tiempo e historia en De cuando en cuando Saturnina. Bolivian
buição clandestina. Studies Journal, Pittsburgh, 23-24, p. 1-23, 2017-8.
O romance, por essas vias alternativas, próprias do hacker e da pirata- MONASTERIOS, Elizabeth. La vanguardia plebeya del Titikaka. Gamaliel Churata
ria digital, mas também das profundas conversas entre mulheres, propõe y otras beligerancias estéticas en los Andes. La Paz: Plural/IFEA, 2015.
transformar os modos da história, os relatos hegemônicos. E como modelo, RICH, Adrienne. Heterosexualidade compulsória e existência lésbica. Bagoas, 5,
coloca um filme pornográfico em que é possível a liberação da libido em p. 17-44, 2010.
um contexto não capitalista, não patriarcal, onde a sexualidade não signifi- RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Ch’ixinakax utxiwa: una reflexión sobre prácticas y
que nem posse nem submissão, mas a associação livre dos corpos. discursos descolonizadores. Buenos Aires: Tinta Limón, 2010.
RODRÍGUEZ MÁRQUEZ, Rosario. Borroneando la nación, sus contornos y
alrededores: a propósito de la última novela de la trilogía de Spedding. Estudios
Bolivianos, La Paz, 24, p. 65-93, 2016.
37 Agradeço a Barbara Florez Valdes por compartilhar sua pesquisa sobre o tema.

152 153
SPEDDING, Alison. Quemar el archivo: un ensayo en contra de la Historia. Temas
sociales, La Paz, 24, p. 367-400, 2003.
A língua como shibboleth, o ensaio como sotaque:
______. De cuando en cuando Saturnina. Una historia oral del futuro. La Paz: uma leitura de Vivir entre lenguas, de Sylvia Molloy
Mama Huaco, 2010.
Pablo Gasparini
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Araweté: os deuses canibais. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1986.
WITTIG, Monique. O pensamento straight. In: BRANDÃO, Izabel; CAVALCANTI,
Ildney; COSTA, Claudia de Lima; LIMA, Ana Cecilia Acioli (Org.). Traduções
da cultura. Perspectivas críticas feministas (1970-2010). Florianópolis: EDUFAL/
UFSC, 2017.

Em “Cruces bilingües”, décimo quarto capítulo ou, melhor dizendo, frag-


mento de seu livro Vivir entre lenguas, Molloy (2016) refere-se à experiên-
cia bíblica do “shibboleth”. Trata-se de um momento da guerra entre os
gileaditas e a tribo de Efraim em que os primeiros, vencedores da bata-
lha às margens do Jordão, estão a postos ao longo do rio para impedir a
fuga dos inimigos sobreviventes. Para distinguir os seus do exército der-
rotado, aqueles que aspiravam atravessar o Jordão foram submetidos a um
teste que hoje entenderíamos como prosódico. O soldado encarregado de
vigiar a passagem exigia que qualquer um que desejasse atravessar para o
outro lado do rio dissesse a palavra “Chibolete”.1 Se a pronunciasse com o
sotaque dos da tribo de Efraim, era imediatamente decapitado:
Os gileaditas tomaram as passagens do Jordão que conduziam a Efraim.
Sempre que um fugitivo de Efraim dizia: “Deixem-me atravessar”, os
homens de Gileade perguntavam: “Você é efraimita?” Se respondesse que
não, diziam “Então diga: ‘Chibolete’”. Se ele dissesse: “Sibolete”, sem con-
seguir pronunciar corretamente a palavra, prendiam-no e matavam-no no
lugar de passagem do Jordão. Quarenta e dois mil efraimitas foram mortos
naquela ocasião. (Juízes 12:5,6)

Molloy faz uma rápida referência ao termo, e isso, na verdade, para


dar peso histórico a um episódio semelhante, embora já pertencente
à era moderna: o controle genocida de fronteira imposto em 1937 pela
República Dominicana aos imigrantes haitianos. Molloy conta que
durante a ditadura de Trujillo, ao imigrante haitiano que cruzava a fron-
teira por motivos de trabalho:
1 Transcrevemos aqui esta palavra como aparece na história bíblica (onde a forma “Sibolete”
também é encontrada para expressar o acento dos efraimitas). No restante do trabalho,
escreveremos shibboleth, como faz Molloy.

154 155
Se lo detenía, se le decía decir la palabra perejil (o, dicen otros, tijera colorada, Em “Cruces bilingües”, a referência ao shibboleth apoia uma das muitas
y si la pronunciaba con la erre gutural del francés y con la jota trabajosa, se reflexões pessoais que Molloy reúne em torno de sua múltipla condição de
le negaba la entrada y, en más de un caso, se lo mataba. El perejil era su shib-
falante de espanhol, inglês e francês. Vivir entre lenguas, nesse sentido, é um
boleth, como para los miembros de la tribu de Efraín.2 (MOLLOY, 2016, p. 35)
livro que, como Desarticulaciones, funde a história autobiográfica com o
Se pensarmos que um dos sentidos da palavra hebraica shibboleth é ensaio.4 Acreditamos que, além da organização fragmentária que é predo-
“espiga”, parece que a ênfase está colocada aqui em separar a palha do grão, e minante em Vivir entre lenguas, as possibilidades narrativas do shibboleth
isso sempre a partir de quem se ergue como o fatídico operador dessa debu- (a vida como sobrevivência), a sua conflituosa territorialidade e a singular
lha linguística que condena o outro, sempre indicado como inútil, descar- maneira em que figura a subjetividade, permeiam, ou melhor dizendo, per-
tável, supérfluo (quando não sobrevivente) ao seu extermínio e destruição. mitem ler criticamente tanto o “romance familiar” que Molloy traça nestes
Dizemos sobrevivente porque não é irrelevante que esse outro que será textos, como certas persistências de sua atividade crítica5 e até, talvez, a
sacrificado seja alguém que tenha menos uma vida do que uma sobrevi- forma em que este ensaio se inscreve entre outros que, como os de Silvia
vência: a do guerreiro derrotado no episódio bíblico; a do agricultor que Baron Superville (1998) e Etel Adnan (2014), também refletem sobre a pro-
atravessa a fronteira em busca de sua sobrevivência material no caso dos dução artística e intelectual sob o signo da coexistência entre várias línguas.
imigrantes haitianos do chamado “Masacre del Perejil”. A dinâmica do shi-
bboleth também envolve, acima de tudo, uma lógica territorial. Os episó-
dios convocados por Molloy supõem, de fato, a criação ou cuidado de uma
o “romance familiar”
fronteira em seu sentido mais literal: a demarcação das margens do Jordão
“Mi madre había perdido el francés de sus padres, era monolingüe, por
pelo exército gileadita e o fortalecimento criminoso do controle da fronteira
ende, argentina” (p. 10)6 – conta Molloy no fragmento de Vivir entre len-
entre a República Dominicana e o Haiti em 1937. Eles envolvem também a
guas, que tem o mesmo título da nossa seção (“Novela familiar”). A con-
língua como territorialidade, e isto tanto na direção apontada pelo geógrafo
fissão parece decisiva para estabelecer, no fragmento seguinte, as filiações
brasileiro Rogério Haesbaert3 (2007), como no sentido territorial de George
de cada uma de suas línguas (espanhol, inglês e francês), a diacronia de
Steiner (2002), embora neste caso a lógica do shibboleth impossibilite toda
sua aprendizagem e a dinâmica dessas línguas na família. O inglês aparece
pretensão extraterritorial através da intransponibilidade mortal dos limi-
filiado, como em Borges, ao pai e à família paterna, suas tias e sua avó. O
tes espaciais e linguísticos. Finalmente, o shibboleth envolve uma leitura do
francês vem do lado materno, já que a família de sua mãe é descendente
subjetivo e do cultural puramente flusseriana, uma vez que o mais próprio
do sujeito seria imperceptível para os seus olhos ou, neste caso, para os seus de franceses. Em sua família nuclear, no entanto, falam o espanhol (e não
ouvidos. Ao que parece, nem os efraimitas nem os haitianos conseguem 4 González Roux (2016, p. 1) vê um tríptico formado por Varia imaginación (2003),
ouvir aquilo que os condenará: o seu próprio sotaque. Se em “Habitar a casa Desarticulaciones (2010) e Vivir entre lenguas (2016): “Los tres son libros de relatos que for-
na apatridade”, ensaio incluído por Vilém Flusser em seus Bodenlos. Uma man un tríptico en el cual la forma breve, como retazos de escritura impulsados por el
recuerdo y el olvido, o por la deriva del recuerdo, esboza reflexiones sobre la identidad a
autobiografia filosófica, lemos que “cada pátria, à sua maneira, cega aquele partir de la lengua, la modulación de la memoria, la experiencia de la escritura y la lectura”.
que nela está intrincado” (FLUSSER, 2007, p. 224), aqui podemos dizer que 5 Achamos que não é necessário explicar o lugar ocupado por Sylvia Molloy na crítica acadê-
cada idioma silencia seu som para aqueles que são os seus falantes. mica latino-americana. Diremos que, além de sua vasta produção bibliográfica em revistas e
contínua participação em congressos e eventos internacionais, ela é a autora de La diffusion
2 As citações de fragmentos em língua estrangeira deste capítulo serão mantidas na língua de la littérature hispano-américaine en France au XXe siècle (1972, original em francês); Las
original da edição utilizada, devido ao fato de que, em muitos casos, as análises estão rela- letras de Borges (1979); Acto de Presencia: la literatura autobiográfica en Hispanoamérica
cionadas à materialidade linguística dos textos abordados. (1997, original em inglês); Poses de fin de siglo. Desbordes del género en la modernidad (2013),
3 Haesbaert (2007) define “território” como um espaço apropriado por determinadas relações entre outros títulos.
de poder (sejam elas jurídico-políticas, culturais ou econômicas). A língua é, assim, uma das 6 Todas as referências a Vivir entre lenguas serão feitas, doravante, diretamente com a indi-
formas de apropriação do espaço. cação da página.

156 157
o inglês ou o francês), e isso em razão da falta que o “romance familiar” Embora a mãe, uma “senhora burguesa argentina” (p. 13), não esteja
coloca desde o primeiro momento. Devido ao fato de que sua mãe é, ao inscrita na área social a que se refere Sayad (exceto pelos traços de desam-
contrário da família paterna, monolíngue em espanhol, a língua nacional paro e falta a que retornaremos), o mundo da imigração aparece incessan-
é estabelecida como a língua da interação familiar: temente visto (e fundamentalmente escutado) por Molloy a partir do hete-
rogêneo mundo hispânico em seu país de residência, os Estados Unidos.
El hecho de que mi madre no hable inglés impone el español en las reu-
No fragmento “Bilingüismo inmigrante”, descreve a língua fronteiriça de
niones de la familia paterna. Condescendientes, mis tías, que son perfecta-
mente bilingües, se adaptan; yo siento vergüenza. Cuando se dirigen a mí uns trabalhadores salvadorenhos: José Ramírez Salguero, seus irmãos e
contesto en inglés, para lucirme, y para hacerles ver que no soy monolingüe outros compatrícios. Trata-se de um spanglish particularmente sonoro no
como mi madre. (p. 12) momento de falar sobre o que, segundo a lógica de Sayad, definiria esses
salvadorenhos como imigrantes, isto é, o seu trabalho.8
O monolinguismo “vergonhoso” da mãe é repetidamente enfatizado
durante todo o texto. Ela e suas irmãs são descritas como sujeitos que Si José es algo bilingüe, sus hermanos y compañeros lo son menos. Eso ha
dado origen a un idioma intermedio, donde la sintaxis es española pero el
foram privados da possibilidade de falar outra língua, da qual ainda exis-
vocabulario técnico, sobre todo el que se refiere a materiales de construc-
tem vestígios de origem incerta: ción desconocidos en El Salvador, es en inglés o algo que se le asemeja. Así
coexisten el martillo y el taladro con el shirra, que pronto aprendí era el
Pero digo mal en llamarla monolingüe. El bilingüismo que hubiera podido sheetrock, con el toile por toilet, el rufo, el trim, el besmen y la boila. Cuando
ser suyo, el que le robaron los padres subsistía, como resto, en algunas con- vienen José y los suyos a hacer algún trabajo en casa caigo en esa mezcla con
versaciones caseras. Así tanto ella como mi tía usaban constantemente pala- toda naturalidad, después de todo no tengo idea de cómo se dice sheetrock
bras francesas cuando hablaban de moda y de costura. [...] Como islotes de la en español. (p. 38)
otra lengua flotaban en la conversación. Acaso remitían a recuerdos precisos
de sus infancias semibilingües; o acaso no fueran más que una simple afecta- Penso que é relevante, para a leitura de Vivir entre lenguas, comparar
ción de señoras burguesas argentinas. En todo caso me permitían construir esse “idioma intermedio”, tão frequente nas populações imigrantes, com
una imagen menos lingüísticamente desamparada de mi madre. (p. 13)
as repetidas restrições da família Molloy no sentido de não misturar suas
Embora Molloy enfatize repetidamente a origem imigrante de seus línguas. No fragmento intitulado “Territorio”, descreve a escola bilíngue de
pais (ambos são argentinos, filhos de estrangeiros), dir-se-ia que a situa- sua infância, e a punição que consistia em assinar o black book se um estu-
ção de falta e desamparo linguístico que é atribuída ao materno inscreve dante fosse pego falando espanhol durante o período da manhã, que era
esse lado em uma lógica propriamente imigrante. Apelamos aqui para a exclusivamente em inglês (se o livro fosse assinado três vezes, a aluna era
distinção feita por Abdelmalek Sayad (1998) entre “estrangeiro” e “imi- expulsa da escola). Molloy nos conta o total respeito e consentimento de
grante”. Segundo Sayad, para poder apreender a verdadeira situação das seus pais por esse sistema pedagógico, que estabelecia uma divisão rígida
pessoas que cruzam fronteiras nacionais, devem ser superadas as limi- de tempo e espaços linguísticos, algo que era reproduzido em sua própria
tações do mero status legal, pois se desse ponto de vista a categoria de casa: “La casa reproduce las divisiones en la novela familiar: español con la
estrangeiro anula qualquer outra, ela estaria escondendo o frágil estatuto madre, inglés con el padre” (p. 19).
social e político da alteridade imigrante.7 Na contracorrente daquela Molloy clandestina que fala, quando não
é ouvida por seus pais, “switcheando” com sua irmã (“como una suerte de
7 Referimo-nos especificamente aos capítulos “Imigração e convenções internacionais” e lengua privada”),9 ou da Molloy que lê intimamente o impessoal espanhol
“A ordem da imigração na ordem das nações”, nos quais Sayad distingue o diferente lugar
social ocupado pelos imigrantes (sujeitos a políticas de assimilação, e geralmente em situa- 8 “Trabalhador e imigrante são” – afirma Sayad (op. cit., p. 54) – “quase um pleonasmo”.
ção laboral irregular) e pelos estrangeiros (aqueles que podem fazer com que sua diferença 9 Por “switcheo” (p. 19), Molloy refere-se ao code-switching, isto é, à alternância de línguas que
seja lucrativa simbólica e economicamente) – cf. SAYAD, op. cit., p. 235-263 e p. 265-286. frequentemente ocorre na comunicação de sujeitos bilíngues. Longe de ser entendido como

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“hay” nos cartazes de feno (“Hay”) pelos campos de seu país de residência de vanguardia” que caracterizou o primeiro Borges. Falta só uma década
(p. 25), a autofiguração prosódica pública de Molloy obedece ao mandado para o nascimento de Molloy em Buenos Aires e não resulta surpreen-
da família de não misturar as línguas. E isto parece também válido para dente então que a sua família ouça e compreenda a mistura de sotaques
o deslocamento do sotaque de uma língua para outra, algo sancionado (até mesmo do inglês no espanhol) como mais um gênero do condená-
até quando se trata de uma mera brincadeira. Assim, a criança Molloy vel “cocoliche”. De acordo com Sarlo (1996), essas reticências prosódicas
recebe uma forte reprimenda de uma de suas tias de língua inglesa por conseguem se combinar com o fervoroso poliglotismo da elite intelectual
imitar divertidamente o modo como elas pronunciavam o sobrenome de argentina devido a um singular raciocínio. Nas polêmicas linguístico-li-
Belgrano, um herói nacional argentino – dito como “Belgraahno” pela terárias do primeiro terço do século XX, deveríamos distinguir entre um
pequena e lúdica Molloy (p. 61). “cosmopolitismo legítimo y un cosmopolitismo babélico” (SARLO, 1996,
“Yo nunca hablé con acento, quiero decir acento que delatara que pasaba p. 171), ou seja, entre a “buena heterogeneidad” de todos aqueles que
de un idioma a otro” (p. 60), confessa a autora, abrindo a porta na sua vida têm o espanhol como língua de nascimento e, portanto, poderiam falar
adulta para a época dos mandados familiares de sua infância, ou melhor, uma outra língua sem o risco da contaminação (sem o risco – segundo o
para o tempo de L’Enfantin, de Péju: “un tiempo primordial que nunca deja grupo martinfierrista – de ter que disfarçar uma “pronunzia exótica”), e
de suceder” (LIENDO, 2014, p. 1).10 Se a passagem de um território para uma “heterogeneidad conflictiva” (Ibidem, p.174), característica dos imi-
outro é guardada, como ilustrado pela lógica do shibboleth, pela exigência grantes e de sua suposta e incontrolável propensão macarrônica. Dessa
da supressão de um sotaque “outro”, por uma ferrenha escuta do estrangeiro, maneira, a regra familiar de “no mezclar” parece querer evitar o risco de
vale aqui se perguntar pelo que deveria ser pago se o sotaque fosse percebido, se atravessar a linha que separa imigrantes de estrangeiros, no sentido de
isto é, pela razão desse escrupuloso cuidado em que os territórios linguísti- Sayad (1998), o que no contexto da Argentina do início do séc. XX repre-
cos (que também são familiares) não se misturem ou não virem, como diz sentava uma fronteira simbólica e social.
uma tia paterna, uma espécie de “cocoliche” (p. 61), aquela língua entremeio Em diversos momentos de seu ensaio, Molloy se mostra consciente do
de italiano e espanhol que na Argentina foi atribuída, a partir de um famoso território linguística e socialmente fraturado que significa falar como imi-
palhaço do circo-teatro dos irmãos Podestá, aos imigrantes italianos. grante ou falar como estrangeiro. No fragmento “Derroches bilingües”, por
O “problema do sotaque” foi um argumento mobilizado na discus- exemplo, vemos uma Molloy que, ao fazer uma ligação para uma “amiga de
são cultural dos anos vinte. O “Suplemento explicativo” da revista Martín París”, (re)descobre a plenitude de sua habilidade para falar a língua fran-
Fierro (número 8-9; agosto/setembro, p. 56, 1924) inclui uma forte réplica cesa. Ela diz se sentir “como un nuevo rico que descubre su inesperada – o
a um escritor da chamada literatura popular, e nela o principal grupo de en mi caso postergada – riqueza” (p. 44). Quando desliga, percebe que o
vanguarda argentino se declara “argentinos sin esfuerzo, porque no tene- trabalhador polaco que estava fazendo alguns consertos em sua casa tinha
mos que disimular ninguna ‘pronunzia’ exótica”. O tema foi, como sabe- ouvido que ela falava francês e que “se maravillaba” de seu poliglotismo.
mos, explorado por Sarlo (1995) em sua leitura do peculiar “criollismo Molloy nos informa que o trabalhador polaco tem dificuldade para falar
em inglês e que, às vezes, até se comunicam por gestos. Mesmo assim, antes
um efeito de certa incompetência linguística em qualquer uma das línguas, o code-switching de ir embora, o polonês arrisca dizer alguma coisa em inglês, alguma coisa
pode ser considerado como a marca de uma competência bilíngue sofisticada (cf. DEPREZ, que para Molloy parece ser inicialmente algo como deers ou bears, mas que
1994, p.190 et seq.).
“después de varias repeticiones y cierta mortificación de ambas partes” (p.
10 Refiro-me aqui à leitura que Liendo (op. cit.) faz da Enfance obscure de Pierre Pejú
(Gallimard, 2011). Relacionando o conceito de Pejú com o “bloc d’enfance”, de Deleuze, e o 42) descobre que era birds, pássaros. As conclusões resultam significativas
“noyau d’enfance”, de Bachelard, a autora conclui que os momentos de L’Enfantin “Son algo em relação à forma como podemos ver projetado o romance familiar de
más que la sorpresiva nota final en la historia de una vida o la esperada versión retrospec-
tiva de su principio: representan una fisura en el sistema narrativo (orgánico o no) del yo”
Molloy e os próprios mandamentos sociais e culturais da Argentina de sua
(Ibidem, p. 26). infância no multicultural Estados Unidos de sua maturidade:

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[o polonês] estaba intentando decir pájaros en inglés. Era su intento de ao vê-lo “tan extrañamente vestido y en compañía de indios”, e, como
hablar la otra lengua como la había hablado yo por teléfono, lujosamente depois de olhar com grande aturdimento para ele por um grande período
– un bird bien vale un qu’a cela ne tienne – y yo, todavía enajenada por mi
de tempo, os soldados “ni me hablaban ni acertaban a preguntarme nada”
coqueteo lingüístico y mi performance en francés, no había entendido. Me
sentí culpable. (p. 45) (NUÑEZ, 1971, p. 87). Como na cena análoga do cativo Aguilar, narrada em
Historia Verdadera de la Conquista de la Nueva España (1568) por Bernal
Esta Molloy com culpa de sua “riqueza” linguística, de ter atravessado, Díaz del Castillo, a corporalidade indígena que adotaram ou se apropriou
poderíamos dizer, o Jordão do shibboleth, ou de não ter ficado, como meta- dos cativos espanhóis confunde os soldados ao ponto de impedir ou adiar o
foriza no fragmento “Vuelo Directo”, em uma das “incómodas, desconcer- reconhecimento. É então que tanto Aguilar quanto Alvar utilizam a língua
tantes (y a menudo humillantes) escalas” próprias dos “trabajosos despla- para tentar dissipar o constrangimento de seus pares. “Dios y Santamaría
zamientos lingüísticos de los menos afortunados”, de aqueles que “viven y Sevilla”, arrisca dizer Aguilar, em um espanhol “mal mascado y peor pro-
entre un idioma postergado y otro idioma que no dominan del todo” (p. nunciado” (DÍAZ DEL CASTILLO, 1977, p. 102), que Molloy (op. cit., p. 447),
56), recupera a dupla figuração que Steiner (2002) elabora de Nabokov: em relação a Alvar, lê como próprio de um “hispanohablante no español”.
um Hotelmensch (isto é, um deslocado, uma “víctima de la barbarie polí- Como acontece com a sua corporalidade híbrida, podemos pensar que a
tica del siglo” (STEINER, 2002, p. 21), mas também um escritor que passa língua de Alvar não responde mais a nenhuma das variantes regionais da
“de una lengua a otra como un turista millonario” (Ibidem, p. 21). Já em península; e por isso, perturba, desloca o sistema estabelecido de identi-
referência ao romance familiar de Molloy, poderíamos concluir que parte dades e reconhecimentos.
de sua riqueza linguística é oferecida como compensação à pobreza ou O sotaque, a prosódia estrangeira como desestabilizadora de um reen-
“desamparo lingüístico” atribuídos a sua mãe monolíngue: “quise, desde
vio apaziguador a uma identidade anterior e já (re)conhecida, é algo que
muy temprano, recuperarlo [ao francês] en su nombre” (p. 14), declara
interpela Molloy, cujo romance familiar, talvez como um eco dos manda-
no fragmento significativamente intitulado “Pérdida”. E se o inglês vira a
mentos glotopolíticos da Argentina das primeiras décadas do século XX,
principal língua de sua vida acadêmica (como prova a escrita de At face
se preocupou em traçar territórios linguísticos firmes e bem estabelecidos.
Value. Autobiographical Writing in Spanish America, estudo publicado
Não havia ali lugar (pelo menos na área mais legitimada da vida cultural)
pela Cambridge University Press, em 1991), a sua tese de doutorado será
para qualquer tipo de espanhol (ou inglês ou francês) “mal mascado y
escrita em francês e com uma emotiva dedicatória: “A mémoire de mon
peor pronunciado”, pois se resignar a esse shibboleth não garantia o gozo
père” (MOLLOY, 1972, n.p.). Evocar o pai (bilíngue) na língua (recuperada)
de uma subjetividade (social e cultural) plena. Antes do que isso, qualquer
de sua mãe parece ser não só toda uma síntese de seu romance familiar,
sotaque era, paradigmaticamente, mero “cocoliche” (com todo o dano que
mas também aponta para uma figura autoral que prefere se dizer menos a
este imaginário linguístico infligia a qualquer pretensão de se dizer a par-
partir das sempre difusas origens do que a partir dos constantes desloca-
tir de um sujeito consolidado).11
mentos e ressignificações de legados e filiações.

11 Ennis (2007) argumenta que o “cocoliche” pouco ou nada está relacionado à vontade de
o ethos acusmático diferenciação própria de qualquer gíria (e, nesse sentido, distingue o “cocoliche” do “lun-
fardo”). O imaginário linguístico chamado «cocoliche» traduziria antes o esforço (sempre
Em um trabalho acadêmico sobre Los Naufragios de Alvar Nuñez, Molloy fracassado) de conseguir falar a língua mais lucrativa do mercado simbólico (para esses
imigrantes italianos: o espanhol normativo-escolar), marcando assim o lugar de uma subje-
(1987) centra-se na cena em que o sobrevivente da fracassada expedição de tividade caracterizada pela falta. Ao contrário da rigidez da gíria, um vocabulário de conhe-
Narvaez, depois de anos de peregrinação entre os vários grupos indígenas, cedores que funda comunidade por identificação, o “cocoliche” integra e simultaneamente
mostra o fracasso da integração (cf. ENNIS, op. cit., p. 299-300). Em Gasparini (2018) apro-
contacta novamente os cristãos. Trata-se de uma cena relevante da famosa ximo essa dinâmica do “cocoliche” à da “lalangue” no sentido de Alemán (2012, p. 63), isto
relación de 1537. Alvar descreve a “gran alteración” que os espanhóis têm é, como “encuentro traumático, sintomático y solitario con la lengua”.

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Vivir entre lenguas narra, entre muitas outras coisas, o romance de ori- ida definitiva para a Inglaterra (a terra de seus avós; seus pais nasceram
gem de certa inquietação intelectual como forma de conjurar o romance nos Estados Unidos) como um verdadeiro “going home” (p. 55). Molloy
familiar. Sustentamos isto porque são incessantes os momentos em que também resgata o título original de uma de suas obras, The Purple Land
Molloy, para além dos mandados familiares que, de alguma forma, conti- that England Lost (em relação às falidas invasões britânicas em Buenos
nuam em sua vida adulta, faz surgir como objeto de indagação teórica a Aires), significativamente abreviado nas traduções argentinas como La
experiência daquele transgressor switcheo entre o inglês e o espanhol que tierra purpúrea. O fragmento “Para no perder el hilo” quebra, no entanto,
em sua infância e juventude apenas arriscava se dizer como “lengua privada” essa ferrenha distinção de domínios:
com sua irmã e que causava o desespero, quando feito entre o espanhol e o Cuenta un amigo que cuando Hudson escribía y no encontraba una palabra
francês, de Madame Suzanne, sua professora naquela língua. Como o sota- en inglés la reemplazaba inmediatamente por la palabra en castellano para
que, o switching é uma experiência que perturba a estabilização do familiar: así poder seguir la narración sin perder el hilo. No otra cosa hace uno de sus
“La mezcla, el ir y el venir, el switching pertenece al dominio de lo unheimli- personajes, un inglés instalado en la Argentina que, después de haber vivido
años among the gauchos, se había olvidado casi de su lengua materna. Cuando
che que es, precisamente, lo que sacude la fundación de la casa” (p. 15). intentaba hablar inglés con algún visitante, comenzaba en esa lengua pero
Como se a força dessa perturbação do familiar fosse transportada e luego vacilaba y su español, más fluido, interfería la conversación y la aca-
estimulasse uma área de seus interesses e estratégias de leitura, Molloy paraba. Terminaba hablando, dice Hudson, en unadulterated Spanish. (p. 58)
indaga, como fizera com o Alvar Nuñez de Los Naufragios, uma série de
Se Molloy logo declara que teria gostado de ver “esos borradores de
autores caraterizados pelo bilinguismo familiar e/ou literário: Canetti (p.
Hudson, ver su adulterated English, marcado por ese vaivén lingüístico
24), Nabokov (p. 68), Conrad (p. 23), Roa Bastos (p. 24), Calvert Casey (p.
del que es presa el escritor bilingüe” (p. 58), é porque ela mesma, como
62), entre outros, sem esquecer um Juan Francisco Manzano – “de quien confessa no fragmento intitulado “Afterthought”, geralmente começa a
se podría decir que manejaba dos lenguas, la propia, oral, y el español escrever em uma língua diferente daquela que finalmente será a língua do
decimonónico del amo” (p. 74). O livro é precedido, além disso, por duas texto. Trata-se de “una escritura pasajera, un desperdicio, algo que no va
epígrafes: uma de Vicente Huidobro e outra de Fabio Morábito. Entre a durar” (p. 70), mas que permite não unicamente “no perder el hilo”, mas
todos esses nomes, vou me deter na figura de Hudson, um escritor de lín- também abrir o caminho de uma escrita inicialmente resistente. Estas são
gua inglesa nascido na Argentina, a quem Molloy dedica dois fragmentos formas daquilo que, no fragmento intitulado “Frontera”, chamará, muito
de Vivir entre lenguas. propriamente, “escribir ‘en traducción’” (p. 69).
No primeiro deles, intitulado “Mansiones verdes y tierras purpúreas”, Cabrera (2016) detecta, em uma análise genética dos manuscritos
Molloy traça, no que diz respeito às filiações linguísticas e culturais em do multilíngue Manuel Puig, esse mesmo procedimento em seus rotei-
torno deste autor, dois âmbitos plenamente territorializados: a leitura ros cinematográficos e até mesmo em alguns de seus textos literários,
escolar e argentina de Hudson, por um lado, e as identificações familia- por exemplo, em seu romance Maldición eterna a quien lea estas páginas,
res, linguísticas e, por fim, nacionais do próprio Hudson, do outro. Se escrito “al mismo tiempo en inglés y en español” (CABRERA, op. cit., p.192).
para o primeiro desses âmbitos, Molloy lembra a argentinização do seu Cabrera revisita algumas leituras críticas desse romance, leituras que afir-
nome (“Guillermo Enrique” por “William Henry”), a falta de menção ao mam repetidamente que nesse texto “El español no suena ‘español’ ni el
tradutor nas edições argentinas e o “tono apaisanado” (p. 54) do próprio inglés, ‘inglés’” (Ibidem, p.192). Porém, ainda mais importante que essa
narrador, aponta para o outro, para a convicção de Hudson de ser inglês observação (usual em textos escritos, para tomar a expressão de Molloy,
(apesar de ter nascido em Quilmes), a maneira como o autor se refere aos “en traducción”) é a leitura de Cabrera no sentido de analisar como essa
argentinos (em terceira pessoa sob a designação de the natives), à língua indeterminação da língua do original seria transferida para um aspecto de
deles (“the vernacular en lugar de Spanish”, p. 53) e a compreensão da sua composição dos personagens de Puig. Seguindo o conceito de “voz acus-

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mática” de Michel Chion, Cabrera afirma certa “disyunción entre las voces nhol, que permeia sua biografia e do qual só restariam, a julgar por uma
y el lugar que supuestamente las determina” (Ibidem, p. 176), uma incon- citação do poeta, alguns “borborygmes de langage” (p. 51). Molloy traz a
gruência “entre la voz y el cuerpo de donde emana, entre quien habla y su definição de borborigmo de Julio Casares: “el ruido de tripas producido
voz que suena, en principio, extraña” (Ibidem, p. 176-177).12 por las flatulencias intestinales” (p. 51). Em seguida, passa a resenhar algu-
Considerando que Vivir entre lenguas termina com uma pergunta mas declarações da sobrinha do poeta, Silvia Baron Supervielle, que con-
sem resposta: “¿en qué lengua soy?” (p. 76), poderíamos arriscar que o fessa que Jules “había impuesto el francés como lengua casera: era el único
romance familiar de Molloy, caracterizado por uma ferrenha territoria- idioma que hablaba con su mujer, uruguaya como él” (p. 51). O título do
lidade social, sobrevive na autora como gratidão e reconhecimento (para fragmento alude assim à violência imposta àquela mulher, sobre a qual
o pai, o inglês; para a mãe, o francês). Contudo, essa gratidão não poupa Baron Supervielle diz que falava francês com grande esforço, o que leva
as suas próprias linhas de fuga, a pergunta pela validade ou pelas razões Molloy a uma conclusão brilhante sobre esse sistema de opressões: “Los
desses mandados e histórias familiares. É, nessa fuga, e em tudo o que ela borborigmos en español del marido habían pasado a ser los borborigmos
supõe de perda de territórios estáveis e consolidados, que Molloy inscreve en francés de su mujer. A qué precio se es poeta” (p. 51-52).
a sua tarefa intelectual, um ethos acusmático13 a partir do qual cada um dos Como muitas vezes acontece nos fragmentos de Vivir entre lenguas
capítulos ou fragmentos de sua vida podem virar ensaio. Se Molloy, pode- (e podemos arriscar: também em Desarticulaciones), o final deles nunca
ríamos afirmar, com Flusser (2007, p. 83), “vive ensaisticamente”, ou seja, é dispersivo ou ocasional, nem interrompido, mas geralmente fornece
torna-se aquela que não só “escreve ensaios”, mas para quem “a própria algum elemento que leva à releitura e ressignificação do mesmo. Aqui esse
vida é ensaio para escrever ensaios”, é porque ela teve a coragem, através elemento talvez assinale para o fato de que Silvia Baron Supervielle é uma
do trabalho intelectual, de cruzar a linha do familiar, uma passagem que tradutora, como se a sobrinha tivesse conseguido abrir uma passagem de
interfere (para ganho de seu pensamento e escrita) na plena identificação circulação libertadora naquele relato de imposição masculina e familiar.
com qualquer um de seus idiomas. Embora os elementos trazidos pelo fragmento estejam relacionados
ao tema do livro e à própria vida de Molloy, é curioso que ela não men-
molloy, baron supervielle, adnan: cione um ensaio de Silvia Baron Supervielle em que esta famosa tradutora
outros viveres, outras línguas medita, precisamente, sobre o seu bilinguismo. O texto, escrito a convite
da Embaixada da França na Argentina, em 1997, intitula-se “El cambio de
Em “Violencia”, Molloy convoca a figura do poeta Jules Supervielle, “sujeto lengua para un escritor” e está inserido em um livro de mesmo nome que
bilingüe uruguayo-francés” (p. 51), para se referir a sua ideia de que um também reúne ensaios sobre tradução, a literatura de Borges e as pontes
escritor só pode ser escritor em uma língua. Molloy nos informa que Jules literárias entre Argentina e França, entre outros tópicos.
Supervielle, ao se pensar como poeta francês, decide se afastar do espa- Convoco este título porque El cambio de lengua para un escritor, de
Silvia Baron Supervielle, poderia ser lido como uma espécie de anti-Vivir
12 De acordo com Goldchluk, “en el terreno de la escritura, el español fue para Manuel Puig,
entre lenguas. Isso não apenas pelos aspectos formais que tornam o ensaio
una lengua de traducción, de llegada, antes que una lengua ‘materna’, y la escritura, algo que
debe construirse, nunca ‘natural’ y nunca una copia de la oralidad” (GOLDCHLUK, 2012 apud menos uma experiência de reflexão do que uma confirmação das certezas
CABRERA, 2016, p. 50). Longe de uma simples oralidade que Puig representaria na literatura, da autora, mas porque fundamentalmente o ethos que ali se mobiliza é sin-
o seu trabalho seria uma escuta que desarticularia a artificialidade dessa suposta oralidade
e, nesse sentido, Giordano afirma que “Puig no escuchó la voz de algo sino algo en una voz” gularmente outro. Assim, ainda que ambas as autoras se façam a mesma
(GIORDANO, 2011 apud CABRERA, op. cit., p. 102). pergunta – Molloy: “¿en qué lengua soy?”; Baron Supervielle: “¿En qué len-
13 Falamos aqui de ethos no sentido mais plenamente retórico, isto é, como a construção do gua existo?” (BARON SUPERVIELLE, 1998, p. 110) –, as resoluções para essa
“carácter moral del orador” (ARISTÓTELES, 1978, p. 43), ou em outras palavras, a construção
de sua autoridade discursiva.
pergunta não poderiam ser as mais diferentes. Enquanto Molloy prefere

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adiar essa resposta questionando o ferrenho postulado que liga identidade nhecer como Silvia Baron Supervielle sua ascendência imigrante, não se
e língua, Baron Supervielle prefere responder de forma plena. Sobre a sua presta para a construção de mitologias pessoais, mas, ao contrário, para a
radicação em Paris e sua adoção da língua francesa, lemos: sua desconstrução através de um tom despojado, relutante em se inscrever
em genealogias que não estejam referidas ao imediatamente experimen-
Algo me dijo: aquí es, aquí soy.
tado: a busca de supostas raízes transcontinentais não é o seu métier, e sim
A medida que me devolvía mi imagen sobre el papel, la zona descampada se
transformaba en la fuente de una creación absoluta. Se me estaba dando la a pergunta pelo difuso da memória e pela deriva sempre aleatória de seus
posibilidad de crearlo todo a un tiempo: la lengua, la forma y su perfil sobre restos. Silvia Baron Supervielle, andando por Biarritz, escreve:
la hoja, un escrito sin género preexistente, una música inesperada. A medida
El tambor vasco resuena dulcemente alrededor de Biarritz y de la frontera
que las huellas, esta vez mías, iban poblando los papeles, me iban también
cercana. Del lado de España, se halla el país de los antepasados de mi madre,
creando. Yo renacía, no de este lado ni del otro del océano: renacía de mi
nacida en el Uruguay; del lado de Francia, el país de mi padre argentino,
propio misterio. (BARON SUPERVIELLE, op. cit., p. 11).
vinculado a la provincia francesa del Béarn por su abuelo materno. El dulce
Esta retórica do encontro com uma língua que pode dizer a “zona tambor me devuelve a la meditación. ¿Por qué razón zarpan los viajeros que
sean o no sean navegantes? ¿Qué incitó a los vascos y a los bearneses, a emi-
profunda” (Ibidem, p. 11) de um indivíduo lembra não só Héctor Bianciotti grar hacia el Nuevo Mundo? (Ibidem, p. 73)
e suas habituais declarações sobre a pertença que sentiu a partir da pri-
meira vez que teve contato com a língua francesa,14 mas também a voz Diante desse sujeito que passeia pelos territórios de seus antepassa-
ficcional de seu personagem Adélaïde no seu primeiro romance escrito dos, é surpreendente que em Vivir entre lenguas essa possibilidade nunca
nessa língua (Sans la misericorde du Christ, 1985), pois é nesse romance seja resgatada e que, no máximo, em uma das poucas cenas genealógicas
que a língua francesa aparece figurada como a única capaz de dizer o ínti- de todo o livro, a narradora, longe de se colocar no lado de lá (europeu)
mo.15 Nada desse movimento encontramos em Molloy, que apesar de reco- para se perguntar sobre seu passado, prefira se pensar a partir do aquém
(argentino) para fazer da Europa um passado incognoscível e perdido, que
14 Para uma análise crítica dessa identificação, recomendamos Giordano (1999); para uma lei- só pode ser recuperado através da conjectura:
tura psicanalítica, Amati-Mehler (2005); e para uma fonte das afirmações de Bianciotti, seu
próprio discurso ao ingressar na Academia Francesa de Letras (BIANCIOTTI, 1997). Vale a “Perder” una lengua, quedarse deslenguado. En la familia de mi madre eran
pena aqui um trecho em que Bianciotti agradece ser incorporado a essa instituição: “Mais once hermanos. Los tres mayores hablaron de chicos el francés de sus padres,
c’est tout un pays, le pays de ma première naissance, l’Argentine, qui, avec moi, Meisseurs, que me imagino espeso, meridional; luego la familia se volvió monolingüe.
vous remercie. Un pays jeune où une tradition des mieux établies est l’amour de la France, Los padres, mis abuelos, ¿seguirían hablando su francés en privado, cuando
où dire ‘la France’ equivaut à dire ‘la Culture’, dont l’Académie française demeure le sym- se contaban cosas, cuando hacían el amor? Nadie puede contestar esa pre-
bole des symbols. Et m’y voici, en cette Académie française que jadis, de l’autre côté de
gunta. Es como si el francés, en esa familia, se hubiera escondido en el clóset.
l’Océan, j’imaginais tel un palais inaccesible, à l’intérieur duquel se dressait, avec majesté
-et cela me paraît vrai aujourd’hui- l’ombre purpre du cardinal de Richileu, son fondateur” Pienso: si yo hubiera tenido hijos, ¿en qué idioma les hubiera hablado? ¿Cuál
(BIANCIOTTI, op. cit., p. 10). habría reprimido? (p. 14)
15 Neste romance, dois argentinos se encontram em um café parisiense, um é o narrador, o outro,
Adélaïde Marese, a protagonista da história. Ambos os personagens são construídos, segundo “Imagino”, “Pienso”: a dimensão eminentemente reflexiva com que
Giordano (1999), com referências autobiográficas e aspectos da subjetividade de Bianciotti. Molloy estabelece a relação com as línguas de sua vida a alivia do peso que
Em suas conversas, que são conduzidas em francês (por preferência de Adélaïde), as refle-
xões interlinguísticas não são incomuns. Em um delas, Adélaïde expõe seus sentimentos e essas línguas poderiam ter em virtude de sua própria carga familiar e sim-
idéias em relação ao espanhol: “Il y a longtemps que je vis ici. J’ai l’impression... comment
dire?... d’un rétrécissement... ce mot peut sembler péjoratif... Non, rien de tel. C’est très difficile
à dire.. En espagnol, tout semble être à l’extérieur, et en fait, tout est á l’exterieur, le monde suis entrée en elle mais elle est entrée en moi... le croirez-vous? Je ne marche pas de la même
n’est pas... je cherche le mot... amadoué” (BIANCIOTTI, 1985, p. 46). Diante da exterioridade do façon, je me tiens autrement, je sens autrement... Tout est devenu plus réservé, plus discret,
espanhol, Adélaïde resgata a intimidade da língua francesa: “[...] cette langue [el francés] que plus intime... Dire soledad c’est dire quelque chose de vaste, d’universel... on se sent un peu
j’avais apprise, que tout au moins j’avais appris à lire, par moi-même, comme um défi, comme un héros... La solitude, en revanche, est à vous tout seul... elle est en vous, vous n’avez qu’à la
quelqu’un qui cherche une porte de sortie... cette langue m’a accueillie... Je ne sais pas si je dissimuler si vous voulez que l’on vous permette de vivre...” (BIANCIOTTI, 1985, p. 46-47).

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bólica. Não há lugar, em Molloy, para qualquer tipo de “borborigmo”, no soy?”) habilitava, em Molloy, o âmbito reflexivo, poderíamos dizer que,
sentido que Jules Supervielle dava a este termo, nem para trauma, como em Adnan, é a pintura o que a libera de qualquer resolução ao estilo do
ela aponta sobre Calvert Casey, em “O calvo o dos pelucas” (p. 62-63), ou “aquí es, aquí soy” de Baron Supervielle. Adnan voltará a escrever em fran-
ainda mais enfaticamente sobre os paradigmáticos nomes de Elie Wiesel cês e, ainda que isto, como ela mesma admite, se relaciona com “la paix
e Olga Bernal, já vinculados aos desastres da história do século XX, em entre l’Algérie et la France” (Ibidem, p. 21), seu relato deixa transparecer
“Lengua y trauma” (p. 64-65). A mudança de uma língua para outra, em que foi a sua passagem para a nova linguagem da pintura o que despren-
Molloy, obedece a razões puramente circunstanciais (por exemplo, con- deu as suas línguas não só do seu “romance familiar”, mas também da sua
versar com uma amiga francesa) e, fundamentalmente, profissionais, isto inevitável carga histórica e traumática.17
é, no seu trabalho como professora e pesquisadora de literatura. Adnan não fala árabe, ainda que confesse pintar em árabe (referindo-
Talvez esta maneira meio disfórica e, às vezes, até operacional, de se a seu trabalho artístico com a caligrafia dessa língua). E, em uma vida
descrever a sua convivência poliglota aproxime Molloy da forma como atravessada por incessantes deslocamentos de território (Paris, Nova York,
a poeta e artista Etel Adnan narra os seus deslocamentos linguísticos Beirute, Califórnia), muitos motivados, como no caso de Molloy, pelo tra-
em Écrire dans une langue étrangère (2014), outro ensaio autobiográfico balho acadêmico – ela estuda na Sorbonne e em Berkeley e se torna pro-
de formação linguística escrito por uma mulher. Apesar das suas enor- fessora de filosofia em um pequeno college perto de São Francisco (CA) –,
mes diferenças contextuais (em Molloy, trata-se do conflito de línguas Adnan escreverá poesia e prosa em inglês e francês. A escolha da língua
imigrantes em um Estado-nação e, em Adnan, das línguas de diferen- é dada pela conjuntura e por suas necessidades: se o seu primeiro poema
tes nacionalidades em um império), ambas estão lidando com filiações em inglês (língua que ela aprende, vertiginosamente, nos Estados Unidos)18
familiares e, até mesmo, com a recuperação de uma das línguas de sua ocorre em um lampejo de inspiração depois de ver na televisão uma crua
infância: o francês (materno) no caso de Molloy e o árabe (paterno) no matéria sobre a guerra do Vietnã (Ibidem, p. 23), em seu retorno tempo-
caso de Adnan.16 Contudo, aquilo que talvez mais aproxime estas autoras
rário a Beirute, no início dos anos 60, escreverá em francês em razão de
é certa insubmissão à plena identificação romântica entre língua e iden-
ter encontrado emprego nas páginas culturais de uma revista nessa lín-
tidade, algo que é ainda mais surpreendente no caso de Adnan, já que
gua. E, da mesma maneira que escreverá Sitt Marie-Rose, o seu principal
o seu “vivir entre lenguas” está inscrito em cruéis processos de violência
romance, em francês, quando ela volta para a Califórnia, retornará à lín-
política que afetam sensivelmente a escrita em uma determinada língua.
gua inglesa. As razões para esta mudança de línguas não só se devem a
Durante a Guerra da Argélia, por exemplo, Adnan tem repugnância pela
Adnan se considerar “une personne de l’éternel présent” (Ibidem, p. 31),
escrita em francês, e esta repulsa em razão de seu envolvimento emocional
mas também, principalmente, a um certo conhecimento, talvez cético,
nessa guerra a leva ao mesmo quebrado terreno entre vida e língua em que
sobre os aparentes direitos ontológicos de seu passado linguístico:
também se movem Silvia Baron Supervielle e Molloy: “J’étais perturbée
dans un domaine fondamental de ma vie: celui de la pleine expression Retour en Californie. Qu’allais-je faire d’autre en Californie si ce n’est peindre
de mon moi” (ADNAN, 2014, p. 21). Se esta inquietação (“¿en qué lengua et aussi écrire? [...] Je dirais même que mon écriture est influencée, ou même
pousse – como on dit que les plantes poussent – par ou sur le sol que j’habite.
Donc quand j’écris en Amérique, j’écris en anglais.
16 Ressalte-se que tal recuperação no caso de Adnan se dá por meio da pintura. Nascida em
1925 em Beirute, filha de mãe grega de Esmirna e pai árabe de Damas (Síria), Etel Adnan
fala, com cinco anos, grego e turco e, por causa de sua educação escolar, o francês. O pai,
ex-funcionário do Império Otomano, tenta lhe ensinar árabe com um velho dicionário ára- 17 “Je compris vite que c’était pour moi un noveau langage et que cela apportait une solution à
be-turco. A ideia era que Adnan transcrevesse as frases do árabe. Embora o método não mon problème: je n’avais plus besoin d’écrire en français, j’allais peindre en arabe” (ADNAN,
prospere, em sua vida adulta, Adnan, que nunca aprendeu a língua de seu pai, passará para op. cit., p. 22).
a pintura versos de diferentes poetas árabes, em uma obra pictórica com a caligrafia daquela 18 Grifo aqui o advérbio, pois Adnan confessa que “Conduire une voiture sur une autoroute
língua que lhe valeu amplo reconhecimento no campo artístico. américaine c’était comme écrire un poème avec son propre corps” (ADNAN, op. cit., p. 20).

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Que puis-je dire du fait que je n’utilise pas ma langue maternelle et que o “habitat apropriado para o ‘exilado nos picos do coração’”, aquilo que
je n’ai pas la moindre sensation, alors que je devrais en avoir une en tant Adorno destaca ao ilustrar com a figura de um aprendiz de língua o modo
qu’écrivain, de communication directe avec mon public? C’est comme me
como o ensaio trabalha com os conceitos:
demander ce que j’aurais été si j’avais été quelqu’un d’autre. Il n’y a pas de
réponse à de telles questions. C’est como essayer de tenir des réflexions dans O modo como o ensaio se apropria dos conceitos seria, antes, comparável ao
ses propres mains. (Ibidem, p. 29) comportamento de alguém que, em terra estrangeira, é obrigado a falar a lín-
gua do país, em vez de ficar balbuciando a partir das regras que se aprendem
Não obstante, as diferenças históricas e culturais que, insistimos, podem na escola. Essa pessoa vai ler sem dicionário. Quando tiver visto trinta vezes
ser assinaladas entre os ensaios da crítica-escritora Molloy e a pintora-poeta a mesma palavra, em contextos sempre diferentes, estará mais segura de seu
Adnan, encontramos em ambas uma certeza comum que diz, à maneira de sentido do que se tivesse consultado o verbete com a lista de significados,
Melman (1992, p. 37), que não há nada na língua que garanta uma identi- geralmente estreita demais para dar conta das alterações de sentido em cada
contexto e vaga demais em relação às nuances inalteráveis que o contexto
dade. É com tal convicção que essas histórias constroem seu enredo e jogo funda em cada caso. (ADORNO, 2003, p. 30)
de interesses ou, aproveitando a figura da pintora libanesa (“essayer de tenir
des réflexions”), seu escorregadio e fragmentário fluxo reflexivo. Caso substituamos a visualidade com que Adorno inscreve esta peda-
gogia da alteridade (“Quando tiver visto trinta vezes a mesma palavra...”)
à guisa de conclusão pelo auditivo, poderíamos imaginar o ensaísta como aquele que consegue
ouvir a sua própria língua como outra e dessa maneira poder tornar-se
Dizíamos no início deste capítulo que a dinâmica do shibbolet supõe a ouvinte de seu próprio shibboleth. Esse privilégio não levará, obviamente,
naturalização prosódica do próprio, isto é, a não percepção do próprio ao extermínio, mas a fazer do sotaque o reconhecimento e marca de sua
sotaque que só pode ser escutado, inscrito em certa territorialidade, pelo relatividade no dizer. Como o episódio em que Molloy diz falar inglês
outro. Experiências como as de Molloy ou Adnan, ou melhor, relatos sem sotaque, embora seu interlocutor a confunda com alguém da Índia
construídos da maneira como fazem Molloy e Adnan parecem querer (p. 62), o sotaque – talvez pela sua capacidade, como afirma Melman (op.
estabelecer um eu capaz de investigar a si mesmo e, portanto, de se ouvir, cit.), de poder superar qualquer interdito – nunca é neutro e tem sempre
ou para tomar um conceito de Nancy (2014), capaz de ser a sua própria algo a oferecer à escuta. Saber reconhecer o que o sotaque transparece (ou
caixa de ressonância. O custo da operação, para continuar com a bela deixa entreouvir) dos próprios afetos e, por sua vez, saber se distanciar das
imagem acústica de Nancy, é preservar para esse eu um espaço desim- atribuições e filiações territoriais em que ele geralmente é inscrito; saber,
pedido, livre de qualquer definição a priori, de qualquer sujeição a um enfim, detectar e se dizer a partir dos desbordamentos e incongruências
mandado ou mito de origem. dessas inscrições é talvez a lição que Molloy, como ensaísta de suas vidas e
O que é necessário para se ouvir? Molloy diria: profundidade e certo suas línguas, nos deixa nesses fragmentos que são, por sua vez, o testemu-
vazio; um ponto onde a língua ou línguas ficam liberadas de sua pretensão nho da sua sobrevivência linguística.
de capturar totalmente aquele que a fala, permitindo um ‘eu’ que não se
mostra na infalibilidade de seu dizer, mas sim como um sujeito dado ao referências bibliográficas
desafio da incerteza e a busca, sempre adiada, por respostas. Montaigne,
AA.VV. Suplemento explicativo de nuestro “Manifiesto”. A propósito de ciertas
talvez o grande ausente de Vivir entre lenguas, é o modelo inaugural dessa
críticas. Martín Fierro. Segunda época, año 1, n. 8-9, Buenos Aires, agosto/
enunciação: seus Essais, gênero que “inventou”, estão escritos na língua setembro, p. 56, 1924.
que seu pai interditou para antepor o ensino de latim e grego. O ensaio ADNAN, Etel. Écrire dans une langue étrangere. Tusson: L’Échoppe, 2014.
nasce, dessa maneira, como o gênero do deslocado linguístico ou, para ADORNO, Theodor. O ensaio como forma. In: Notas de literatura. [Trad.: Jorge de
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Mais um rondó: notas sobre a tradução, inserem. É curioso, desde já, notar a predominância do estilo satírico e
lúdico implicado nessa linhagem. O caso específico destes sonetos e ron-
o lúdico e a metalinguagem dós de tropos metapoético sugere a atitude da paródia, própria da des-
Marcelo Diniz sacralização das próprias formas adotadas e descritas pelos poemas. De
certo modo, elas descrevem uma tradição de dessacralização das formas
que se conjuga a outras dessacralizações propriamente modernas: dessa-
cralização do sujeito poético articulada à profanação dos procedimentos
poéticos. Pode-se dizer que essa linhagem de textos remete a certa dinâ-
mica em que o sujeito poético, longe de ser concebido pela genialidade,
é flagrado em sua banalidade, por vezes, circunstancial, mas que denota
Podem-se evidenciar dois aspectos da prática tradutória na história da
justamente o espaço democrático da interatividade lúdica.
produção literária ocidental, dois aspectos que se conjugam de uma
forma muito peculiar. Primeiramente, a prática tradutória é uma opera-
ção sistemática na poética das línguas modernas, ou seja, é uma atividade vega/gregório/glauco1
intrínseca à produção de uma longa tradição da poesia ocidental, que, EL SONETO (Lope de Vega, 1562-1635)
em língua portuguesa, se pode delinear de Sá de Miranda a Haroldo de
Un soneto me manda hacer Violante,
Campos, por exemplo. Em segundo, essa prática tradutória sistemática
Que en mi vida me he visto en tal aprieto:
e intrínseca à produção literária parece estabelecer o valor da tradução Catorce versos dicen que es soneto,
segundo um sentido muito distinto do sentido instrumental da própria Burla burlando, van los tres delante.
tradução. Pode-se descrever essa distinção da seguinte forma: por um Yo pensé que no hallara consonante,
lado a tradução instrumental pretende um acordo que restitua o sentido Y estoy en la mitad de otro cuarteto;
do discurso da língua de origem, ou seja, a tradução instrumental, de Mas, si me veo en el primer terceto,
certo modo, está implicada com o estabelecimento de um pacto de ori- No hay cosa en los cuartetos que me espante.
gem; distintamente, a tradução poética parece sempre se comprometer Por el primer terceto voy entrando,
não com a restituição, muito menos com um pacto, mas com a multipli- Y aun parece que entré con pie derecho,
cação e desdobramento do sentido e seu possível impacto como finali- Pues fin con este verso le voy dando.
dade. A tradução poética é operada segundo a dinâmica da apropriação e Ya estoy en el segundo, y aun sospecho
produção, ou seja, operar um discurso voltado à multiplicação e à poten- Que estoy los trece versos acabando:
cialidade imanente à própria operação. Contad si son catorce, y está hecho.
O convite deste estudo é o de observar alguns aspectos relevantes deste
procedimento da tradução poética no que tange ao tropos da metalingua- UM SONETO (Gregório de Matos, 1636-1696)

gem, ou ainda do metapoema. Talvez pela plasticidade da forma breve, Um soneto começo em vosso gabo:
talvez pelo próprio potencial multiplicador da forma fixa, a linhagem de Contemos esta regra por primeira,
Já lá vão duas e esta é a terceira,
poemas que se apresenta aqui tange à história e à reflexão do soneto e do
Já este quartetinho está no cabo.
rondó. No caso específico aqui apresentado, a atenção se detém em certos
sonetos e rondós que, além de autoexplicativos, são também autorremis-
1 Os sonetos de Lope de Vega, Gregório de Matos e Glauco Mattoso foram colhidos no Teoria
sivos, ou seja, apresentam o protocolo de explicitar a tradição em que se do soneto (MATTOSO, 2005).

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Na quinta torce agora a porca o rabo; La rime, avec deux sons, frappât huit fois l’oreille;
A sexta vai também desta maneira: Et qu’ensuite six vers, artistement rangés,
Na sétima entro já com grã canseira, Fussent en deux tercets par le sens partagés.
E saio dos quartetos muito brabo. Surtout, de ce Poème il bannit la licence;
Lui-même en mesura le nombre et la cadence;
Agora nos tercetos que direi?
Défendit qu’un vers faible y pût jamais entrer,
Direi que vós, Senhor, a mim me honrais
Ni qu’un mot déjà mis osât s’y remontrer.
Gabando-vos a vós, e eu fico um rei.
Du reste, il l’enrichit d’une beauté suprême
Nesta vida um soneto já ditei; Un sonnet sans défaut vaut seul un long Poème.
Se desta agora escapo, nunca mais; (BOILEAU, 2007 [1872])
Louvado seja Deus, que o acabei.
APOLO, DE SEU FOGO, SEMPRE FOI AVARO
É interessante perceber como, no caso desses poemas, o humor é
estruturado a partir da evidência da técnica e da sua redução mecânica. Sobre esse tema, diz-se que esse deus bizarro,
a fim de desafiar todo poeta francês,
A técnica é cômica quando mecânica. A enunciação é vazia, desgastada,
inventou, do soneto, as rigorosas leis:
de má vontade com o próprio fazer: “No hay cosa en los cuartetos que me fixou, nos dois quartetos de mesma medida,
espante” (Vega); “Na sétima entro já com grã canseira,/ E saio dos quar- duas rimas em cada, oito vezes ouvidas;
tetos muito brabo” (Gregório). Ao se fazer sonetos sobre se fazer sonetos, e, em seguida, seis versos que, iguais no rigor,
vê-se a forma desauratizada como um afazer gratuito em seu contorcio- unissem, em tercetos, sentido e primor.
baniu, sobretudo, qualquer indolência,
nismo. Pode-se depreender, nesses poemas de Lope de Vega a Gregório, o próprio deus mediu-lhe número e cadência;
a declinação de certa retórica do embaraço, que muito deve ao tropos da proibiu que um verso fraco aí pudesse entrar
destreza, de herança medieval. O sujeito se apresenta comprometido com e que palavra dita ousasse retornar.
as dificuldades do ofício, apresentando-se menos como um gênio ins- e tudo enriqueceu de beleza suprema,
um soneto perfeito vale um longo poema.2
pirado e mais como um corpo que transpira em sua performance. Este
sujeito cômico conjuga-se perfeitamente com o formalismo caricaturado O soneto, segundo o argumento de Boileau, é assumido conforme
em mecanismo autotélico. A redução técnica da descrição da forma opera o valor simbólico da forma erudita e racional e como um dispositivo de
a paródia do sujeito poético: em lugar do poema como expressão do gênio, emulação da língua. A importação da forma italiana pela França implica
ele se oferece ao leitor como operação em curso, ao mesmo tempo banal o acréscimo dos protocolos formais (a alternância das rimas masculinas
e à sua disposição. e femininas, o rigor do verso alexandrino, a interdição da repetição). O
Estes sonetos parecem o flagrante em negativo da apologia do soneto soneto e a língua, assim conjuminados, configuram o projeto propria-
que se confirma no Renascimento. Em seu processo de canonização, o mente clássico em que a forma opera a elevação da língua e a língua opera
soneto encarna o ideal do virtuosismo formal, com o argumento fetichista a elevação da forma. Saídos das mãos do deus da beleza e do rigor, o argu-
da dificuldade, tal como virá a expressar no mito de Boileau: mento que descreve o soneto remete justamente à concepção estetizante e
APOLLON DE SON FEU LEUR FUT TOUJOURS AVARE transcendental da forma, tão cara à história do soneto e à recusa de que é
alvo nos séculos mais recentes dessa história.
On dit, à ce propos, qu’un jour ce dieu bizarre,
Voulant pousser à bout tous les rimeurs françois,
Inventa du Sonnet les rigoureuses lois;
2 Tradução minha do poema de Boileau, publicada pela primeira vez no ensaio de minha
Voulut qu’en deux quatrains, de mesure pareille, autoria intitulado “A tradução como interlúdio” (DINIZ, 2015).

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No entanto, o que se opera no par de sonetos de Lope de Vega e Gregório ao tema: o soneto como perversão, o que se identifica em tantos outros
de Matos é de outro argumento. Pode-se observar os vestígios de uma vida sonetos de sua lavra.
da forma fixa marginal porque muitas vezes relegada à menoridade do uso Nos dois primeiros sonetos, os primeiros quartetos apresentam o
da forma, mas que remete a certa ecologia poética desde seus primórdios: motivo de sua composição: trata-se de sonetos por encomenda (Violante,
uso circunstancial e epistolar que, no caso do soneto de Gregório, indicia- em Vega; vosso gabo, em Gregório), informação reforçada pela interlo-
-se na narrativa que o introduz no Códice Asensio-Cunha: Ao Conde da cução explícita com o leitor. No de Glauco, não há segunda pessoa. É o
Ericeira Dom Luís de Menezes pedindo louvores ao Poeta não lhe achando próprio leitor fazendo (“Já li Lope de Vega e li Gregório”) sem encomenda
ele préstimo algum. Os sonetos de Vega e Gregório parecem expressar mais explícita; é o próprio leitor fazendo por ser forçoso fazê-lo para ser reco-
uma dinâmica da partilha em que o soneto se implica, do que sua apologia nhecido (“tentando fazer algo meritório”). Enquanto os dois primeiros
formal, que o concebe segundo uma transcendência quase imperfectível. sonetos terminam por verbos significativos de um fecho em stacatto (está
É sob essa perspectiva da dinâmica da partilha que se pode conceber um hecho, em Vega; o acabei, em Gregório), o de Glauco exclama: “Que puta
terceiro nome nesta série, o poeta contemporâneo Glauco Mattoso, que dá tema!”. Soa, no verso final de Glauco, além do orgulho, certo gozo espe-
prosseguimento à glosa gregoriana de Vega: cífico da forma, certa alegria que parece dizer que tudo foi feito gratuita-
mente e que pode ser feito de outra maneira, deixando ao futuro leitor o
Já li Lope de Vega e li Gregório,
prazer da obra aberta em forma fixa.
pois ambos sonetaram do soneto,
seara na qual minha foice meto
tentando fazer algo meritório. cortázar/haroldo
Não quero usar o mesmo palavrório,
mas pilho-me, no meio do quarteto, A série de sonetos até aqui apresentada não se autodefine como procedi-
montando a anatomia do esqueleto. mento de tradução. Ou ainda, se é possível enxergar a operação tradutória
No oitavo verso, o alívio é provisório. na sequenciação destes sonetos, percebe-se certa zona difusa em que a
Contagem regressiva: faltam cinco. tradição da imitação incorpora a tradução desviante como um de seus
Mais quatro, e fico livre do problema. procedimentos. Pode-se falar de uma tradução difusa, ambivalente, como
Agora faltam três... Deus, dai-me afinco!
glosa ou paródia, mas que, de qualquer modo, sinaliza uma operação
Com dois acabo a porra do poema. constante da tradução poética, que poderia se conceber como a tradução
Caralho! Só mais um! Até já brinco!
Gozei! Matei a pau! Que puta tema!
do procedimento. A tradução poética estaria assim implícita não somente
como um dos modos da intertextualidade, o que remete o soneto à tradi-
Glauco classifica sua glosa como revisitação, o que, de certa ção discursiva a que ele pertence, mas como um dos modos imitação do
forma, acentua o aspecto circunstancial do tema, bem como a natureza procedimento, o que remete à tradição/sobrevivência do procedimento
de exercício do soneto. O primeiro quarteto define sua intenção: “seara na formal ele mesmo.
qual minha foice meto,/ tentando fazer algo meritório”. No segundo quar- O que se encontra em outro braço desta série que remonta ao jogo
teto, enuncia-se de novo o mal-estar da forma (“No oitavo verso, o alívio entre os sonetos de Vega e Gregório apresenta a tradução com maior pro-
é provisório”), humor que se reforça na contagem regressiva dos tercetos tagonismo. É no capítulo “Lucas e seus sonetos” que o livro Um tal Lucas,
que se dizem impacientes quanto ao próprio poema: “Com dois acabo a de Julio Cortázar, apresenta os dois sonetos seguintes.3 Todo o capítulo é
porra do poema”. O tom irônico de orgulho ao fim do poema, reduzindo
3 Será utilizada aqui a tradução brasileira publicada pela Civilização Brasileira em 2014. A obra
o soneto ao baixo calão das exclamações, é o grão que Glauco acrescenta original de Julio Cortázar intitula-se Un tal Lucas e foi publicado pela primeira vez em 1979.

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dedicado a certa reflexão do soneto em geral e do soneto específico criado O jogo estrutural seria análogo ao palindrômico: um soneto cujos
pelo tal Lucas, protagonista ficcional de todo o livro, e de sua tradução pelo versos lidos em ordem inversa produziria um sentido diverso. Observa-se
poeta brasileiro Haroldo de Campos. Quanto à consideração do humor que o jogo de inversões do movimento de leitura do texto é reiterado pelo
que atravessa toda a narrativa destes sonetos, este capítulo é introduzido encadeamento das antíteses do primeiro quarteto (arriba/abajo, cima/
por certa reflexão em total sintonia com o humor a respeito da banalidade abismo, levanta/derriba). É segundo este jogo de antíteses que se enca-
e da engenhosidade implicadas nos sonetos anteriores: deia a sucessão das imagens do “náufrago que a la arena arriba” e a do
Com a mesma enfunada satisfação de uma galinha, de vez em quando Lucas
“visionario amarándose a un espejo”. Os polos antitéticos, de certo modo,
bota um soneto. Ninguém estranhe: ovo e soneto se parecem no que têm de espelham a própria leitura que a estrutura do soneto propõe, fazendo
rigoroso, de acabado, de terso, de fragilmente duro. Efêmeros, incalculáveis, o deste metassoneto um soneto que descreve o próprio movimento dos
tempo e algo como a fatalidade os reiteram, idênticos e monótonos e perfeitos. olhos em sua leitura, desde o primeiro verso, que se inicia de arriba abajo,
(CORTÁZAR, 2014, p. 169)
ao último verso, que se inicia como simétrico oposto de abajo arriba.
Para Lucas, “o rigor e a rigidez da forma” conduziram sua atenção Relevante, sobre essa representação da leitura, considerar o sujeito que
experimentação da estrutura, “coisa aparentemente demencial dada a indica o segundo quarteto: “quien en la alterna imagen lo conciba”; “el
inflexibilidade quitinosa desse caranguejo de quatorze patas” (Ibidem). É poeta de este paroxismo”, “obstinado hacedor de la poesia”, aquele que se
relevante a insinuação da metáfora orgânica que indiciam a comparação flagra em pleno movimento de subida e descida pela descrição cifrada no
com o ovo e a metonímia sugerida pelo adjetivo quitinosa. Não somente o soneto é o próprio leitor do poema.
aspecto da fertilidade monótona mas também o aspecto da pequena varia- O capítulo prossegue descrevendo a satisfação de Lucas, “como toda
ção genética estão latentes nessa imagem do soneto como um organismo galinha que bota seu ovo após um meritório empurrão retropropulsor”
em potencial. O resultado da “perseverança maníaca, cem vezes interrom- (Ibidem, p. 172), até narrar a chegada de seu amigo, “o poeta Haroldo
pida por palavrões e desânimos e bolas de papel no cesto” (Ibidem, p. 171), de Campos, a quem toda e qualquer combinatória semântica deixa exal-
é o Zipper sonnet, “que pode ser lido como quem sobe e desce como um tado a níveis tumultuosos” (Ibidem). A descrição de Haroldo feita por
‘zíper’” (Ibidem, p. 170): Cortázar corresponde a um traço relevante do experimentalismo do
soneto de Lucas, a sugestão análise combinatória remete todo o procedi-
de arriba abajo o bien de abajo arriba
este camino lleva hacia sí mismo mento experimental do soneto à tradição lúdica do barroco, que explora
simulacro de cima ante el abismo a forma fixa de modo a conceber a vertigem do infinito matemático em
árbol que se levanta o se derriba forma poética. Aqui já se insinua a linhagem dos sonetos em questão
quien en la alterna imagen lo conciba nesse capítulo, a qual será explicitada somente no final. É do poeta bra-
será el poeta de este paroxismo sileiro que recebe, “com uma estupefação maravilhada, o seu soneto ver-
en un amanecer de cataclismo tido ao português e consideravelmente melhorado, como se pode verificar
náufrago que a la arena al fin arriba
a seguir” (Ibidem):
vanamente eludiendo su reflejo
antagonista de la simetría ZIPPER SONNET
para llegar hasta el dorado gajo
de cima abaixo ou já de baixo acima
visionario amarrándose a un espejo este caminho é o mesmo em seu tropismo
obstinado hacedor de la poesía simulacro de cimo frente o abismo
de abajo arriba o bien de arriba abajo árvore que ora alteia ora declina
(CORTÁZAR, op. cit., p. 171-172)

182 183
quem na dupla figura assim o imprima experimenta a produção de um sujeito que não é prévio ao texto, mas que
será o poeta deste paroxismo provém do jogo anônimo da linguagem em sua potência diferenciadora.
num desanoitecer de cataclismo
É segundo a lógica da diferenciação que se revitaliza em Lucas a busca
náufrago que na areia ao fim reclina
por um outro zíper sonnet “cuja dupla leitura fosse uma contradição recí-
iludido a eludir o seu reflexo
proca e ao mesmo tempo a fundação de uma terceira leitura” (CORTÁZAR,
contraventor da própria simetria
ao ramo de ouro erguendo o alterno braço op. cit., p. 175). Longe de estabilizar o personagem na contemplação da
autonomia do objeto, essa poética o engaja na produção de um outro
visionário a quem o espelho empresta um nexo
refator contumaz desta poesia soneto, insinuando a vertigem com o infinito lúdico que, de certo modo,
de baixo acima ou já de cima abaixo acompanha toda atmosfera obsessiva em que Lucas se banha. E assim, o
(CORTÁZAR, op. cit., p. 172) capítulo se encerra com a nomeação da linhagem barroca de sua experi-
mentação: “Mas de coisas assim se alimenta a poesia, e numa dessas, quem
O soneto chega a Lucas acompanhado de uma carta que o descreve: é que nos diz, ou diz a um terceiro, que vai acolher essa esperança para
“não é realmente uma versão: é antes uma ‘contraversão’, muito cheia de mais uma vez a saciar, sossegar, Violante” (Ibidem).
licenças” (Ibidem, p. 173). A contraversão haroldiana investe na imitação
Toda dinâmica da produção dessas peças é o acolhimento dessa espe-
do procedimento do original combinado às dificuldades de outra maté-
rança de saciar e sossegar Violante. De certo modo, o jogo do virtuosismo
ria linguística, a língua portuguesa. Daí ou uso do “procedimento infra-
ressignifica a forma como performance, o que tornaria o leitor mais pró-
tor” (Ibidem) que perfaz as rimas dos quartetos: “escamoteação viciosa,
ximo de uma cena satírica dramática do que de uma expressão lírica. A
transtrocada por uma pseudossimetria também perversa” (Ibidem). Cabe
forma se dá como dispositivo da produção da diferença e não como finali-
considerar o acolhimento afetivo experimentado por Lucas diante dessa
dade autotélica e estetizante. Cortázar parece insinuar, com essa remissão
versão: “[...] um belo jogo poético se potencializava, e agora, coisa igual-
final ao soneto de Lope de Vega, a lembrança do próprio contexto de que o
mente bela, Lucas podia saborear o seu soneto sem a inevitável restrição
soneto barroco foi colhido: a peça satírica La Niña de Plata, de 1613.
que significa ser o autor e tender portanto e insensatamente à modéstia e
à autocrítica” (Ibidem).
O jogo tradutório, o “gesto do tradutor como outridade irredenta e voiture/guinness
duplicidade irrisória” (Idem, p. 174) parece promover a liberação da auto-
Um exemplo similar ao que se viu desdobrar do soneto de Lope de Vega
ria. Todo o repertório teórico acionado pelo comentário de Haroldo a res-
peito de sua contraversão explicita a operação da tradução na dinâmica é o do rondó de Vincent Voiture, retomado pelo de Gerald Guinness, em
da diferença, na lógica do “traditradutore, que assim, ‘derridianamente’ que, com a mesma liberdade de traição e fidelidade de senso estético, se lê
[...] difere suas diferenças (différances)” (Ibidem). As imagens que suce- mais um caso de ambiguidade, da tradução difusa como paródia, explo-
dem com a reflexão deste jogo tradutório concebem a natureza maquínica rada em um texto metapoético. Ei-los:
do soneto, “relojoaria que só excepcionalmente consegue dar a hora certa (VINCENT VOITURE)
da poesia”, mas também orgânica, uma vez que o comentário do tradu-
M’a foi, c’est fait de moi, car Isabeau
tor é nomeado como uma biópsia (Ibidem). A tradução do soneto, longe m’a conjoré de lui faire un Rondeau:
de estabilizar o sentido segundo o regime de identidade ou equivalência, cela me met dans une peine extrême.
o que remeteria justamente ao uso instrumental da tradução, opera seu Quoi! treize vers: huit en eau, cinq en ême;
potencial de diferenciação, sugerindo implícita a metáfora da metástase je lui feroist aussitôt un bateau.
como produção da diferença. E é, nessa lógica da diferença, que Lucas En vois là cinq pourtant en un monceau,

184 185
faisons en huit en invoquant Brodeau, texto em que esse rondó foi concebido por um poeta cortesão, filho de um
et puis mettons, par quelle stratagême, mercador de vinhos.
m’a foi, c’est fait.
Esses rondós foram colhidos em Author Luden’s: essay’s on play in lite-
Si jeu pouvoir encor de mon cerveau
tirer cinq vers, l’ouvrage seroit beau; rature, editado por Gerald Guinness e Andrew Hurley.5 Como o próprio
Mais cependant me voici dans l’onzième, título explicita, trata-se de uma coletânea de ensaios teóricos e traduções
et si je crois que je fais le douzième que concebem o jogo como uma creative activity inerente à literatura. Ao
en voilà treize juste de niveau apresentar o livro, explicita Guinness em seu prefácio: “Auctor Ludens é
m’a foi c’est fait.
um livro mais sobre o jogo prático do que sobre o sogo teórico”.6 Composto
de uma série de ensaios sobre o tema, uma das seções do livro, chamada
(GERALD GUINNESS)
de Inter-lude, dedicada ao que Guinness define como play-translations, é
My word, I’m done for. Froggy Isabeau encabeçada pelo rondó de Voiture e pela versão do editor.
wants me to English V. Voiture’s rondeau. Ao compará-los, observa-se o protocolo da linhagem explicitada: o
The jobs enough to make me lose my cool.
A rondeau’s thirteen lines, eight rhyming o, five ool: rondó de Guinness cita Voiture como modelo; o rondó de Voiture cita
Byron might pull it off – but me? Oh no! Victor Brodeau (+1540), poeta valet de chambre de François I, contem-
I’ve written five, protesting, in a row porâneo de Clément Marot (1496-1544), que também era cultuado por
and soon I’ll sneak to eight by naming Poe. Voiture. A geração a que faz referência Vincent Voiture é a dos Grand
(Why him, you ask. Because Poe rhyme, you fool.)
Réthoriqueurs, poetas da corte que cultivavam o legado medieval com-
My word, I’m Donne.
Undone? Not quite. Creative juices flow preendendo a poesia como uma segunda retórica, a de língua vulgar, em
the more they’re squeezed; strict forms encourage show. relação à primeira retórica, em Latim. Trata-se da geração que antecede
The proof ’s right here: eleven line to rule, e, manifestamente, é recusada pela Plêiade, que a condena como arte do
and now a twelfth, and in a second you’ll
virtuosismo vazio, circunstancial e frívolo. Essa condenação em muito
count thirteen rhymed, and metered nicely – so
my word, I’m done contribuiu para que a poesia francesa não compusesse o rondó por quase
um século. Vincent Voiture é um nome relevante na retomada dessa forma
Vincent Voiture (1597-1648) é um poeta e prosador do classicismo fixa após essa lacuna.
tardio, contemporâneo de Lope de Vega (1562-1635) e de Gregório de No rondó de Voiture, salta aos olhos a semelhança de enunciação que
Matos (1623-1696). “Relegado nas margens do classicismo tardio e afas- se observou no jogo entre Lope de Vega e Gregório de Matos. De novo, o
tado”,4 como descreve Sophie Rollin, Voiture pertence a uma geração de sujeito tomado pela peine extrema, que assume a ambivalência da dificul-
poetas e prosadores franceses que fazem da badinage (brincadeira) a esté- dade extrema que remete à plasticidade da forma, como também ao ins-
tica do galant homme. Voiture teve sua obra publicada somente dois anos trumento da escrita, a pluma que se implica neste estilo. De novo, o jogo
após sua morte, quando seus poemas e sua prosa conheceram o sucesso em que a escolha vocabular atende à lógica do imperativo significante de
de onze edições em apenas um decênio. Seu prefácio, escrito por seu uma estrutura de apenas duas rimas, que condiciona a imagem do bateau
sobrinho Martin Pinchêne, é considerado o primeiro tratado de esthétique que irrompe ao fim do quinto verso. De novo, a dessacralização da forma
galante, fazendo de Voiture o nome de referência principal dessa estética.
Maneirismo e galanteria, le ludique et le burlesque, portanto, fazem o con- 5 Este livro foi publicado pela John Benjamin Publishing Company, em 1986, como segundo
volume da série Cultura Ludens.
4 Tradução minha do original: “Relégués dans les marges du classicisme, attardés et égarés” 6 Tradução minha do original: “Auctor Ludens is a book about play practice rather than play
(ROLLIN, 2005, n.p.). theory” (In: GUINNESS & HURLEY, 1986, p. vii).

186 187
como estratagema, como embaraço mental: “Si jeu pouvoir encor de mon Voiture sem me ocorrer a poesia satírica de Gregório e no que resulta nes-
cerveau/ tirer cinq vers, l’ouvrage seroit beau”. De novo, o jogo poético da tas notas de estudo. Acredito que seja impossível que um leitor brasileiro
enunciação autoexplicativa elaborando a disponibilidade da forma, a aces- o leia sem remetê-lo, ao menos, ao soneto de Gregório. Isabeau e Froggy
sibilidade de qualquer sujeito que a tome para si. De novo, a declinação Isabeau perderam o nome próprio em meu rondó, no entanto a bela que
do tropos do virtuosismo e da destreza no sentido da interatividade aberta me dana reitera o tom burlesco com os caprichos da forma. Acrescento
com a forma fixa, insinuando sua potencialidade de multiplicação. ainda a cláusula rimada, que deve ser evitada no rondó, mas que me parece
O rondó de Guinness dá-se ao requinte de, engenhosamente, enxertar reforçar a sonoridade burlesca justamente por incorrer em hipercorreção.
certo comentário a respeito da evolução do verso inglês e insinuar a refe- As reverências a Vincent Voiture, a Victor Brodeau e a Gerald Guinness
rência a um texto capital no que tange à concepção construtiva e mental não estão presentes. Que estas notas compensem essa ausência.
do poema moderno: “and soon I’ll sneak to eight by naming Poe./ (Why
– Mais um rondó! – demanda-me, sem dó
him, you ask. Because Poe rhyme, you fool.)”. Observa-se ainda a deriva-
da pena, a bela que me dana: - Oh,
ção metonímica de bateau, em Voiture, para “I’ve written five, protesting quem me dera mais um deste poema!
in a row”, em Guiness, explorando hiperbolicamente o sentido do escrever Que seja! Treze versos: cinco em ema
como um trabalho excessivo, de um escravo das galés. De novo, a tradu- de modo que este quinto rime em ó.
ção concebida como operação da diferença. Em ambos, o mesmo humor E lá vou eu tecendo este filó
por cujo fio deslizo-me tão-só
com a encomenda. O de Guinness dá-se ao luxo de definir o pedido pelo para rimar, após o oitavo, o tema:
verbo vago do verso: “wants me to English V. Voiture’s rondeau”. Rondó, mais um rondó.
tradução, paródia? O que deseja Froggy Isabeau? Se um dia em pingo d’água eu der um nó
livro-me logo deste quiproquó;
do décimo primeiro, o estratagema
é pendurar, no doze, um diadema
mais um rondó a fim de, ao derradeiro, encerrar só
mais um rondó.
Essas linhagens em sonetos e rondós divertem o leitor não apenas por
tratarem de forma lúdica as próprias regras que as constrangem. O leitor
referências bibliográficas
também prova o exercício engenhoso do paradoxo intrínseco à tradução
literária: um exercício autoirônico de se traduzir diante da impossibili- BOILEAU, Nicolas. Oeuvres complète de Boileau: acompagnées de notes historique
dade de tradução. Traduzir passa-se por se fazer mais um poema que, et littéraires et précédées d’une étude sur sa vie et ses ouvrages. França: Garnier
tanto em forma quanto em conteúdo, atenda às exigências de ser sobre Frères, 1872. (Digitalizada em 2007). Link: http://books.google.com/books.
[Acesso em 15/05/2019].
a própria forma com que é feito, bem humorado malgré-lui, e que acres-
CORTÁZAR, Julio. Um tal Lucas. [Trad.: Paulina Watch; Ari Toitman]. São Paulo:
cente seu grão. A impossibilidade da tradução, que no caso da tradução Civilização Brasileira, 2014.
instrumental é uma falta a ser compensada pela própria tradução, no caso DINIZ, Marcelo. A tradução como interlúdio. In: SCRAMIN, Susana; SISCAR,
dessa produção se oferece como sendo a própria possibilidade do texto a Marcos; PUCHEU, Alberto (orgs.). O duplo estado da poesia. São Paulo: Iluminuras,
se escrever, na medida em que a tradução é tomada segundo a prática da 2015, p. 81-87.
produção da diferença. GUINNESS, Gerald; HURLEY, Andrew (eds.). Auctor ludens: essay on play in
No caso que segue abaixo, o grão do meu rondó é Gregório de Matos. literature. Philadelphia: John Benjamin Publishing Company, 1986. Link: http://
books.google.com/books?id=bGgUa33Txq0C&pg=PA92&dq=%22my+word,+I
Da sonoridade ao sentido, não vi como verter para o português o rondó de

188 189
%27m+done%22&lr=&hl=pt-BR&sig=l0PVhIQqYCggU2xKgNR9sfgMgm0#PP
R8,M1. [Acesso em 05/06/2019].
Sobre os autores
MATTOSO, Glauco. Teoria do soneto. Link: http://glaucomattoso.sites.uol.com.br/
teoriadosoneto.htm. [Acesso em 20/09/2006].
ROLLIN, Sophie. Les “fictions ingénieuses” de Voiture: des modèles exemplaires
du style galant. Loxias 10, septembre, 2005. Link: http://revel.unice.fr/loxias/
index.html?id=125. [Acesso em 01/06/2019].
ZINK, Michel et al. (orgs.). Histoire de la France littéraire [Tome 1]. Paris: PUF,
2006.

ANA MARIA LISBOA DE MELLO tem licenciatura em Letras Português/


Francês e respectivas literaturas pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS), Mestrado e Doutorado em Letras pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) na área de Teoria da
Literatura. Fez estágios de pós-doutoramento no Centre de Recherches sur
l’Imaginaire, na Université Stendhal, Grenoble III (1995-1996), com bolsa
do CNPq, na Sorbonne Nouvelle – Paris III (2004) e na University of Toronto
(2013-2014) com bolsa da CAPES. É membro do Centro de Literaturas e
Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL) da Universidade de Lisboa e
do Centre de Recherches sur les Pays Lusophones (CREPAL) da Université
de la Sorbonne Nouvelle. Tem experiência na área de Letras (subáreas:
Literatura Brasileira e Teoria da Literatura) com ênfase em poesia, narra-
tiva, teorias e críticas do imaginário. Vinculou-se em 2017 ao Programa de
Pós-graduação em Letras Neolatinas (PPGLEN), da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), é bolsista de Produtividade em Pesquisa 1C do
CNPq e editora da revista Alea: Estudos Neolatinos.

ANTONIO ANDRADE é licenciado em Letras Português/Espanhol, mes-


tre em Literatura Brasileira e Teorias da Literatura e doutor em Literatura
Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor
associado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), docente
permanente do Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas
(PPGLEN-UFRJ), Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq, mem-
bro do Grupo de Pesquisa/CNPq “Pensamento teórico-crítico sobre o
contemporâneo” e membro do GT Literatura e Ensino, da Associação
Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll).

190 191
Foi coordenador do PPGLEN (2015-2018), coordenador pedagógico do de Pós-graduação em Estudos de Literatura da mesma instituição. Bolsista
PNLD Espanhol – Ensino Médio (2018) com financiamento do FNDE, de Produtividade em Pesquisa do CNPq durante 27 anos. Autora e coautora
coordenador de área do PIBID-UFRJ com financiamento da Capes (2014- da organização de obras coletivas. Publicou artigos e capítulos de livros
2018) e membro da diretoria da Associação Brasileira de Hispanista (2012- no Brasil e no exterior. Exerceu a função de coordenadora do Núcleo de
2014). Atualmente realiza estágio de pós-doutoramento na Universidade Estudos Canadenses da UFF durante longos anos. Atuou como editora-
de Potsdam (Alemanha) com bolsa da Capes. chefe responsável pela publicação de três números da revista Interfaces
Brasil Canadá (na época, Qualis A1). Coordenadora do grupo de pesquisa
ELENA PALMERO GONZÁLEZ é professora titular de Literaturas Hispano-
vinculado ao CNPq “Identidades em trânsito: estéticas transnacionais”.
americanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Bolsista de
Participante do GT Relações literárias interamericanas, da Associação
Produtividade em Pesquisa do CNPq. Tem Doutorado em Filologia pela
Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll).
Universidad Central de Las Villas (Cuba, 1997), estudos de pós-doutorado
na Université Paris IV-Sorbonne (França, 2005-2007), na Universidade de MERITXELL HERNANDO MARSAL é professora na Universidade Federal de
São Paulo (Brasil, 2016) e um Estágio Sênior (Capes) na Yale University Santa Catarina (UFSC), atua no Programa de Pós-graduação em Estudos de
(Estados Unidos, 2017). É editora-chefe da revista Alea, publicação do Tradução (PGET) e no Programa de Pós-graduação em Literatura (PPGLit)
Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas (PPGLEN), da UFRJ. da UFSC. Pesquisa principalmente sobre literatura contemporânea e tradu-
Líder do grupo de pesquisa “Estudos Literários Interamericanos e ção, dando ênfase aos seguintes temas: movimentos de vanguarda literária
Transatlânticos” (CNPq/UFRJ). Atua nas linhas de pesquisa de literatura e política, feminismos, heterogeneidade e tradução cultural, colonialidade
comparada e história da literatura, com ênfase na literatura cubana, latino- e desigualdade na América Latina. Tem publicado artigos sobre estes
-americana e nas relações literárias interamericanas. temas em livros e revistas especializadas como Revista Iberoamericana,
Cuadernos Americanos, Letral, Fragmentos, Estudos de Literatura Brasileira
MARCELO DINIZ é professor de Teoria Literária e Literatura Comparada
Contemporânea, Criação&Crítica, Caracol, Caligrama, entre outras. Tem
do Departamento de Ciência da Literatura, da Faculdade de Letras, da
pesquisado especialmente a obra do escritor Gamaliel Churata e seus vín-
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pertence ao Programa de
culos com o pensamento andino, e atualmente está trabalhando na prepa-
Pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ. Traduz repertório que
ração de um livro de poemas inédito do autor. Traduziu Desglaç, da poeta
tende ao contexto clássico da poesia ocidental, escandindo dele certas
catalã Maria Mercè Marçal, para o português brasileiro, junto com Beatriz
dinâmicas e tópicas em que se insinua a presença do lúdico e da metalin-
Guimarães Barboza, publicado pela editora Urutau, em 2019.
guagem. De Clément Marot (1496-1544) a Raymond Queneau (1903-1976),
sua pesquisa em tradução perfaz certa linhagem de textos cujo recorte res- OTTMAR ETTE é catedrático de Literaturas Românicas da Universidade
salta sempre a performatividade do poema, o metapoema e as implicações de Potsdam (Alemanha). Sua venia legendi inclui Literaturas Românicas,
formais da tradução. É também poeta, autor dos livros Trecho (Aeroplano/ assim como Literatura Geral e Comparada. Em 2010, tornou-se mem-
Fundação Biblioteca Nacional, 2002), Cosmologia (7Letras, 2004), Rimas bro da Academia Europeia. Desde 2013, é membro titular, na categoria
(Col. Megamini – 7Letras, 2019) e +1 (Texto Território, 2019), além de Humanidades, da Academia das Ciências de Berlim-Brandemburgo
letrista de canção. (Berlin-Brandenburgische Akademie der Wissenschaften). Em 2014, foi
eleito membro honorário da Modern Language Association of America
MARIA BERNADETTE PORTO é doutora em Letras pela Universidade
(MLA). Desde 2015, atua como diretor do projeto editorial, de longo prazo,
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ – 1983), aposentada da Universidade
sobre os diários de viagem de Alexander von Humboldt (Ciência em
Federal Fluminense (UFF) desde 2017 e recredenciada junto ao Programa
Movimento), da Academia das Ciências de Berlim-Brandemburgo, com

192 193
duração de aproximadamente 18 anos. Publicou recentemente em portu-
guês e espanhol: O Caso Jauss. A compreensão a caminho de um futuro
para a filología, Tradução: Giovanna Chaves, Goiânia: Caminhos, 2019;
e Alexander von Humboldt: la aventura del saber. Nuevos ensayos hum-
boldtianos a 250 años de su nacimiento, Guatemala: F & G Editores, 2019.

PABLO GASPARINI tem professorado em Letras pela Universidad Nacional


de Rosario (Argentina). Fez Mestrado e Doutorado em Literatura
Hispano-americana na Universidade de São Paulo (USP) e pós-douto-
rado no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de
Campinas (IEL/Unicamp). Atualmente é professor livre-docente da USP.
Publicou El exilio procaz: Gombrowicz por la Argentina e, atualmente,
estuda as relações entre literatura argentina e deslocamento linguístico.
Está preparando o livro Puertos: Diccionarios. Literaturas y alteridad lin-
güística desde la Pampa.

PATRICK IMBERT, Ph.D. (1974), é Professeur éminent da Universidade de


Ottawa (Canadá) e diretor da cátedra Canada: enjeux sociaux et culturels
dans une société du savoir. Foi presidente da Academia de Artes e Ciências
Humanas da Sociedade Real do Canadá e é vice-presidente da Cité des
cultures de la paix. Publicou 300 artigos e 43 livros sobre transcultura-
lismo, exclusão/inclusão e literatura quebequense. Coordena o projeto,
financiado pelo CRSH (Conselho de Pesquisa em Ciências Humanas), Les
histoires qui nous sont racontées: des narrativités causales à l’instant trans-
culturel dans les littératures contemporaines: échapper à l’exclusion.

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primeira edição impressa
na gráfica eskenazi
viveiros de castro editora
em dezembro de 2019.

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