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A geracao de 1790 € a idéia do império luso-brasileiro Entre 1796 ¢ 1808, ocorreram mudangas criticas nas ati- tudes dos brasileitos ¢ dos portugueses, as quais iriam ter pro- fanda repercussio no desenvolvimento subseqiiente da América portuguesa, Influéncias internas ¢ externas combinaram-se ¢ in- teragiram para sugerir uma solucio peculiarmente luso-brasileira para os problemas do nacionalismo e do colonialismo, do repu- blicanismo ¢ da monarquia. Esse ensaio tenta delinear algumas ddessas mudangas, buscar as causas e esclarecer os resultados, Durante 0 més de outubro de 1786, Thomas Jefferson, © enviado dos Estados Unidos & Franca, recebeu uma carta da antiqufssima universidade de Montpellier assinada apenas com © pseuddnimo Yendek, O autor sugeria apenas que tinha um assunto de grande importincia para comunicar, mas, por ser estrangeiro, desejava que Jefferson recomendasse um canal seguro para correspondéncia, que Jefferson fez imediatamente. Em uma segunda carta, Vendek declarou-se brasileiro. A escravidio na qual seu pais se encontrava havia sido “tornada mais insu- portavel a cada dia, desde a época de vossa gloriosa indepen- déncia®, escreveu ele. Os brasileiros haviam decidido seguir o exemplo dos norte-americanos, continuava, quebrar os grilhdes que os atavam a Portugal, ¢ “reviver sua liberdade”. Pedir 0 auxilio dos EUA era 0 propésito de sua visita A Franga, “A 158 KENNETH MAXWELL natureza nos fez habitantes de um mesmo continente”, Vendek disse a Jefferson, “c, consegitentemente, compatriotas em um. certo grau”.! Vendek, José Joaquim Maia ¢ Barbalho, que marcou um ‘encontro secreto ¢ reuniu-se com Thomas Jefferson préximo a ‘Nimes, cra natural do Rio de Janeiro? Ele havia ingressado na Faculdade de Medicina de Montpellier em 1786, tendo anterior- mente se matriculado na Universidade de Coimbra, em Portugal, ‘onde estudou matemitica.? B possfvel que Maia tenha sido incumbido por comerciantes do Rio de Janeiro de entrar em contato com o enviado american. Ele, provavelmente, fazia parte de um grupo de estudantes que, durante os primeiros anos da década de 1780, haviam-se unido em Coimbra, ju- rando trabalhar pela independéncia de sua patria Um relato preciso da resposta encorajadora, embora ndo compromete- dora, de Jefferson a Vendek chegou ao Brasil, trazida por Domingos Vidal Barbosa, um outro estudante brasileiro em ‘Montpellier Maia ¢ Vidal Barbosa nfo estavam sozinhos, nem em seus feitos educacionais nem em seu entusiasmo politico. En- tre a reforma da Universidade de Coimbra, empreendida pelo marqués de Pombal em 1772 e 1785, trezentos estudantes brasileiros 14 se matricularam.” Outros ou continuaram. seus cstudos ou foram diretamente para a Faculdade de Medicina de ‘Montpellier, onde quinze estudantes nascidos no Brasil matri- cularam-se entre 1767 € 1793.8 Vidal Barbosa, um proprictirio de terras da capitania de Minas Gerais, era um entusi propagandista dos escritos do abade Raynal, dos quais tinha por hébito recitar de cor algumas passagens.? Raynal exerceu uma influéncia dominante sobre 0 pensamento de muitos bra- sileiros educados, na década de 1780. Sua Histoire philosophiqe et politique des établisements et duu commerce des Ewropéens dans des dew Indes fazia, invariavelmente, parte das maiores bibliote- cas particulares da Col6nia, representando um manual exausti- vamente citado por muitos dos que se inspiravam no exemplo dos EUA.!” A Histoire de Raynal continha um extenso relato A geragio de 1790 e a ida do império luso-brasiiro 159 sobre 0 Brasil, descrevia Portugal em tom de desprezo, conde- nava a influéncia politica ¢ econémica britinica e recomen- dava que os portos brasileiros fossem abertos a0 comércio de todas as nagies.'' Em 1785, José Bonificio de Andrada e Silva, um paulista que se matriculara em Coimbra no mesmo ano que Maia, estava escrevendo poemas carregados de uma eston- teante profusio de herdis, que inclufa Rousseau, Locke, Voltaire, Pope, Virgilio ¢ Camées, ¢ atacando o “monstro horrendo do despotismo”!, José Alvares Maciel, filho de um abastado co- merciante, proprietério de terras ¢ coletor de impostos de Vila Rica (hoje Ouro Preto), ¢ contemporineo de Maia em Coimbra, viajou para a Inglaterra. Maciel passou um ano na Gra-Bre- tanha estudando técnicas fabris e, sempre que possivel, obtendo relatos da Revolugio Americana. Ele discutiu a possibilidade da independéncia do Brasil com comerciantes ingleses sim- patticos a idéia.'* Mesmo nos confins mais longinquos da América portuguesa, idéias ¢ opinides subversivas para o sistema colo- nial eram divulgadas. Em 1786, Antonio Pires da Silva Pontes foi denunciado a Martinho de Melo e Castro, secretério de Estado para os dominios coloniais, por seus discursos rebel- des, em Mato Grosso. Ponte havia afirmado que sua terra natal, Minas Gerais, tornar-se-ia “a cabega de um grande reino”.!* ‘A designagio de Minas Gerais como lider potencial de uuma colénia emancipada nao era de surpreender. A capitania havia-se tomado o centro cultural da fase tardia do Brasil co- Jonial.'® Entre os brasileiros natos de cor branca, havia uma clite altamente letrada. Por quarenta anos, os mineiros ricos haviam enviado seus filhos 4 Universidade de Coimbra. Em 1786, doze dios 27 brasileiros matriculados em Coimbra cram de Minas e, em 1787, dez dos dezenove.!” O decano da ge- racio mais velha dos bacharéis de nacionalidade brasileira era © cavalheiresco poeta Cudio Manuel da Costa, um advogado de posses de Vila Rica, que havia ingressado em Coimbra em 1749. Em 1759, ele havia sido cleito membro da Academia Brasitica dos Renascidos, uma associagio literdria ¢ histdrica de vida curta, uma das poucas iniciativas que genuinamente ten- 160 KENNETH MAXWELL taram abarcar a totalidade da América portuguesa como seu territério de influéncia. Acumulando terras ¢ escravos, 0 bem- sucedido ¢ joven brasileiro havia sido nomeado secretério do governo de Minas, cargo esse que ocupou entre 1762 ¢ 1765, ¢, novamente, de 1769 a 1773. Em 1771, foi designado ad- vogado da Ordem Terceira de Sdo Francisco de Vila Rica, uma das irmandades de maior prestigio da capital mineira.'* A clegante casa do poeta era um local de reunio pata os intelectuais da capitania. Durante a década de 1780, dentre os visitantes regulares constava 0 ouvidor de Vila Rica, Tomés Anténio Gonzaga, um legalista ambicioso ¢ afetado, filho de um dos confidentes de Pombal. O pai de Gonzaga era um magistrado nascido no Brasil, que serviu como ouvidor em Pernambuco, como juiz da Corte Suprema da Bahia, intendente- geral do ouro, primeiro-ministro da Casa de Inspesio da Bahia e ‘como juiz da Corte Suprema da cidade do Porto. Ele, pessoal- ‘mente, havia apresentado a Pombal a dissertagio de seu filho sobre as leis naturais. O tratado havia sido dedicado a0 mar- qués, descrito no prefacio como “aguele herdi, que amante da verdadeira ciéncia®. Tomés Anténio Gonzaga nasceu no Por- t0, mas foi criado quase totalmente no Brasil. Freqiientou 0 colégio jesuita da Bahia, tendo testemunhado a expulsio dos batinas negras em 1759. Em 1782 foi nomeado ouvidor de Vila Rica. H4 muito admirador das obras de Cléudio Manuel da Costa, ele préprio era um poeta de mérito ¢ originalidade. Esses dois homens formavam o centro de um grupo que in- dlufa Ignicio José de Alvarenga Peixoto, ouvidor de Sio Joao del Rey, ¢ Lufs Vieira da Silva, cénego da catedral de Mariana, a sede episcopal de Minas Gerais.!° Ignécio José de Alvarenga Peixoto, um brasileiro forma- do em Coimbra, havia composto alguns versos bastante éuli- cos em honra do marqués de Pombal ¢ de sua familia. Sua nomeagio para ouvidor da comarca de Rio das Mortes, em ‘Minas Gerais, foi uma conseqiiéncia desses esforgos poéticos. Ele proprio escolheu o cargo, tendo em vista as vastas terras, 8 escravos ¢ os interesses mineradores que possufa naquela [A geragio de 1790 e a idia do império luso-brasileiry 161 regio, embora 0 governo portugués nao costumasse sancio- nar iniciativas dessa natureza.2° Luts Vieira era um pregador conhecido ¢ elogiiente, muito procurado nas ocasides festivas e-solenes, que cram muitas no calendério eclesidstico de Minas Gerais. Um clétigo erudito ¢ ponderado, de cingiienta ¢ pou- cos anos, havia estudado no colégio jesuita de Sio Paulo, na década de 1750, tendo sido designado, em 1757, para a cite- dra de Filosofia no semindrio de Mariana. Em 1770, foi eleito comissério da Ordem Terceira de S4o Francisco de Vila Rica. Ls Vieira nao fazia segredo de seu entusiasmo pelos acon- tecimentos da América do Norte. Segundo cle, as poténcias curopéias nio tinham qualquer direito 20 dominio da Amé- rica, A monarquia portuguesa nio havia gasto o que quer que fosse na conquista do Brasil, os prdprios brasileiros haviam devolvido a Bahia 4 Coroa, tomando-a dos holandeses, ¢ ha- viam resgatado © Rio de Janeiro do dominio francés. Luis Vieira, um homem que nunca havia deixado o Brasil, tinha opinices bastante proximas &s dos estudantes conspiradores que haviam tentado negociar com Thomas Jefferson, na Franca." O citculo de Vila Rica nao era o tinico grupo de homens inteligentes ¢ de idéias semelhantes que se reuniam informal- mente para discutir poesia, filosofia ¢ os acontecimentos na Europa ¢ na América. Grupos como esse, formados por ad- vogados ¢ escritores, reuniam-se em Sao Jodo del Rey ¢ em outras partes da capitania, para conversas ¢ jogos de cartas.2? Os membros do circulo de Vila Rica, entretanto, pela quali dade de seus escritos, e também por sua posigio, influéncia ¢ iqueza, eram a nata da sociedade de Minas, Livros infor- ‘mages costumavam chegar a eles mais rapidamente do que 0s envios oficiais, que tinham de passar pela pesada burocracia que ligava Lisboa ao secretariado da capitania. A cosmopolita colecio de livros do cénego Vieira, que totalizava cerca de seiscentos volumes, continha a Histoire de PAmerique, de Ro- bertson, e a Encyclopédie, bem como as obras de Bielfeld, Voltaire © Condillac.?* Diz-se que ClSudio Manuel da Costa traduziu A riqueza das nagdes, de Adam Smith2* 162 KENNETH MAXWELL Letrada ¢ de mente aberta, a elite intelectual de Minas Gerais mostrou-se criativa ¢ original.2* A histéria da capitania tornou-se o tema do poema épico de Cliudio Manuel da Costa, “Vila Rica”, ¢ 0 assunto de uma longa dissertagio em prosa, repleta de tabelas estatisticas, também escrita por ele. Em 1781, Alvarenga Peixoto também espelhou esse poderoso sen- timento de si em seu canto genetliaco, um clogio entusidstico das riquezas, da gente e das promessas da terra brasileira. Ele comparou os feitos dos mineiros com os de Hércules, Ulisses ¢ Alexandre, ndo deixando de incluir escravos “fortes e valen- tes” em seu panegirico. Em uma frase portentosa, que bem poderia ser aplicada ao restante de seus compatriotas, ele afir- mou: “Eles si0 dignos de atengi0”.” Gonzaga, CiSudio Manuel da Costa e 0 cnego Luis Vieira ram homens “que tinham ascendéncia sobre os espfritos dos povos”, como disse a Alvarenga Peixoto, em 1789, 0 coman- dante dos Dragoes de Minas.** Os trés envolveram-se numa conspiragio para fomentar um levante armado contra a Coroa portuguesa, em fins de 1788 ¢ inicios de 1789.2” Muito mais tarde, uma investigacZo sobre a implicagio de um dos conspi- radores descreveu a intengéo do movimento mineiro como sendo “mudar 0 governo de Minas de mondrquico para de- mocritico”.!° Aquela época, contudo, até onde os fatos conhe- cidos o demonstram, a palavra democritico nunca foi wsada. ‘A Revolugio Americana foi considerada especialmente pertinen- te porque os conspiradores mineiros viam 0 curso dos aconte- cimentos na América do Norte como apresentando uma semelhanga notivel com sua prépria situagio. “Porque a Amé- rica Inglesa nada a obrigou ao rompimento, sendo os grandes tributos que lhes taxaram”, afirmou um dos conspiradores.*! A exigéncia, por parte do governo portugués, de que as colossais quantias em atraso, relativas a0 quinto real sobre a producio de ouro da capitania, fossem compensadas com a imposicz0 de um tributo per capita (a derrama) sobre a populagao de Minas fazia lembrar os impostos cobrados dos colonos ameri- canos. Os conspiradores concluiram que “o abade Raynal ti- A geragio de 1790 e a idgia do império luso-brasileiro 163 nha sido um escritor de grandes vistas; porque prognosticou © levantamento da América Setentrional, e que a Capitania de Minas Gerais com o langamento do tributo da derrama estaria agora nas mesmas circunstancias”.*? Sua intengio era a criagio de um estado republicano e constitucional em Minas Gerais. Parlamentos deveriam ser estabelecidos em cada cidade, os guais estariam subordinados a um parlamento principal. Uma universidade deveria ser fundada em Vila Rica. Os conspira: dores intencionavam a total revogagio de todas as leis © o6- digos do passado.’® Nio estd claro até que ponto as instituigoes a serem cria- das copiavam as da América do Norte. Hi indicios de que existia alguma oposigéo a uma imitagio servil do exemplo norte- americano — pelo menos no que se refere a0 brasio do Es- tado, ¢ talvez também em questdes mais fundamentais.° No entanto, circulava entre os conspiradores o Recweil de Loix: Cons- titutives des Etats-Unis de Amérique, publicada na Filadélfia em 1778, que continha os Artigos da Confederagio e as cons- tituigées da Pensilvinia, Nova Jersey, Delaware, Maryland, Caro- linas ¢ Massachuserts..” Os conspiradores possufam também comentarios constitucionais de autoria de Raynal e Mably.* Gonzaga, apesar de ter vilipendiado a democracia em seu tra- tado sobre a lei natural, era, mesmo Aquela época, um firme defensor da natureza contratual do governo. O rei, escreveu 0 jovem Gonzaga, era um mandatério do povo, um ministro de Deus, ¢ 0 objetivo de seu governo eta set titil 20 povo. A cida polémica entre Gonzaga € 0 governo minciro de Luis da Cunha Menezes, imortalizada nas Cartas Chilenas, centrava-se nos perigos de um poder arbitrério. Os memoriais enviados por ele 4 Corte, durante a década de 1790, enfatizavam vigo- rosamente os limites legais e morais 3s ages ¢ a0 poder do executive.” ‘A conspiragio mineira foi trafda. Juntamente com ou- tros, Gonzaga, Claudio Manuel da Costa, Alvarenga Peixoto ¢ © cénego Luis Vieira foram presos. A ideologia da Incon- fidéncia Mineira, entretanto, influenciada pelo sucesso da Re- 164 KENNETH MAXWELL, volugio Americana e pelo impacto das idéias de Raynal ¢ de outros no Brasil, projetou © movimento em um contexto muito mais amplo. Outros levantes, que custaram mais vidas e acar- retaram danos materiais muito maiores, haviam ocorrido an- tes. O levante de Vila Rica de 1720, por exemplo, teve ages mais dramiticas ¢ foi muito mais sangrento do que os nio- acontecimentos de 1788-89. Mas nenhuma das conspiragdes anteriores tivera motivac6es tio fandamentalmente anticolo- nialistas e t20 conscientemente nacionalistas. Membros de um importante segmento do grupo social no qual o governo me- tropolitano mais confiava, em termos do exercicio do poder ‘em nivel local, em uma das capitanias mais importantes, mais populosas ¢ mais estrategicamente localizadas do Brasil, ou ‘saram pensar que poderiam viver sem Portugal. Inspirados no ‘exemplo da América do Norte ¢ na teoria politica da época, haviam questionado o que até entZo era inquestiondvel. A nova atmosfera mental nao era algo que pudesse ser definido em termos concretos, mas era dbvia para todos, e, em especial, para os agentes do governo metropolitano no Brasil! Ho- mens de Minas pensaram que poderiam ser livres, indepen- dentes ¢ republicanos. A conspiracio mineira ocorreu num momento especial plano foi tramado antes da Revolugio Francesa, Mas as prisdes, o julgamento ¢ a sentenga dos implicados coincidiram com o crescente tumulto revolucionério que ocorria na Eu- ropa. Rumores de uma possfvel invasfo francesa circularam entre os conspiradores, mas tratava-se da Franga do Antigo Regime. A relagio cronolégica da conspiragio mineira ¢ da Re- volusio Francesa é importante. Os oligarcas de Minas acredi taram que podiam controlar ¢ manipular a vontade popular. ‘Tomaram como exemplo a Revolugio Americana, em que os reajustes politicos haviam-se dado sem sublevagGes sociais. Mas © exemplo dos patriotas americanos no os havia preparado para os acontecimentos da Revolugio Francesa e, em especial, para as repercussdes espetaculares da Revolugio Francesa nas Américas. A revolta dos escravos na ila acucareira francesa de AA gerasio de 1790 ea idéia do império luso-brasileiro 165. ‘So Domingos (atual Haiti), no decorrer de 1792, represen- tou um terrivel despertar para os senhores de escravos que haviam, ingenuamente, falado sobre epublica e revolta, sem se aperceber das conseqiiéncias sociais ¢ raciais de suas pa- lavras, O cientista, viajante e escritor britinico, John Barrow, que estava no Rio de Janeiro em 1792, notou a mudanca trazida pelo “poder negro”. “O encantamento secreto que fa- zia com que os negros tremessem na presenga de um branco, em grande medida, desfez-se”, escreveu ele. “A suposta supe- rioridade que fazia com que uma centena dos primeiros fosse mantida em terror ¢ submissio por um tinico dos witimos deixou de ser reconhecida”.*! Martinho de Melo ¢ Castro apercebeu- se, imediatamente, da ameaga que a revolta de Sio Domingos representava para © Brasil. Ele advertiu os governadores contra “0 pemnicioso e perverso intento que os clubes estabelecidos em Franga procuram propagar 0s abomindveis destrutivos princfpios de liberdade...”, a fim de, desse modo, concretizar “a fatal revolugio”. E ele avisava que eram esses abomindveis principios a causa do “fogo de revolta, insurreigio, fazendo levantar 0s escravos da ilha de Sao Domingos numa guerra civil entre huns ¢ outros... A inécua Sociedade Literéria do Rio de Janeiro, com sua devosao a Raynal e Mably, e sua suposta simpatia para com os conspiradores mineiros, era um alvo ébvio para 0 nervoso go- verno colonial. Em 1794, scus membros foram presos ¢ sub- metidos a longos interrogatérios. A sociedade, fundada em 1785 por Luis de Vasconcelos e Sousa, o antigo vice-rei, havia tentado formar um conclave privado e secreto onde “a boa fé € 0 segredo, de forma que ninguém saiba do que se tratou na Sociedade”. Democraticamente constituida, seu propésito era discutir “a filosofia em toda a sua extensio”. Dentre os papéis confiscados de Jacinto José da Silva, formado em Medicina em Montpellier, constavam duas notdveis cartas enviadas por tum colega, Manuel José de Novais de Almeida, que, de forma dramética, ressaltava o impacto da revolta em S40 Domingos sobre seus contemporiineos. Em fevereiro de 1791, 0 dt. No- 166 KENNETH MAXWELL, vais de Almeida havia escrito, em termos entusidsticos, sobre “a igualdade dos homens”, Mas, em 25 de maio de 1792, seus comentirios traziam um tom diferente. “Estou muito preocupa- do com as Américas”, disse ele a Silva, “O que aconteceu Id [Sio Domingos] demonstra 0 que poder um dia vir a acon- tecer-nos ¢ que Deus permita que eu nunca veja... Vende os esctavos que tens, generosamente concede-Ihes a liberdade “ terés menos inimigos”.** © exemplo da revolta antilhana era de especial interesse para os brasileiros brancos. Em Minas Gerais, a populacio, em 1776, excluindo os indios, era de mais de 300 mil, represen- tando 20% da populagio toral da América portuguesa. Mais ‘de 50% da populagio de Minas era negra, ¢ © restante dividia- se igualmente entre pardos ¢ brancos. Em 1786, a proporcio centre homens livres ¢ escravos era de 188.712 para 174.135.4# Na Bahia, a capital, Salvador, tinha uma populagao de 40 mil na década de 1790, e a populagio total da capitania era de cerca de 280 mil, representando 18% da populacéo total da América portuguesa. Metade da populagao era escrava, José da Silva Lisboa, um brasileiro formado em Coimbra e profes- sor de Filosofia na Bahia, estimava que apenas um quarto da populagio era branca.6 As tinicas sugestdes de natureza racial surgidas durante a conspiracio mineira vieram na forma de comentirios vagos atribufdos a Manoel da Costa Capanema, e os indicios que o vinculavam aos conspiradores cram tio ténues que ele foi ab- solvido pelo Tribunal da Algada.** Jos¢ Alvares Maciel via a presenga de um tamanho porcentual de negros na populagao como uma possivel ameaga & nova repiiblica, caso a promessa de sua libertagio pelos portugueses os induzisse a se opor aos nativos brancos. Alvarenga Peixoto recomendava que 0s escravos fossem alforriados, 0 que os tornaria defensores apaixonados do novo Estado ¢ comprometidos com sua sobrevivéncia. Ma- ciel, no entanto, apontou que essa solugio poderia ser con- traproducente, uma vez que os proprietarios ver-se-iam sem ninguém para trabalhar nas minas. Aparentemente, os conspi- ‘A gorasio de 1790 e aidéia do império lnso-brasileiro «167, adores chegaram a uma solugio de compromisso, pela qual apenas os escravos negros ¢ mulatos nascidos no Brasil seriam libertados, no interesse da defesa do Estado.*” A proposta, em si, era surpreendente para 1789, mas os conspiradores pare~ cem ter subestimado totalmente as conseqiiéncias de suas ages. Eles supuseram que a situagio poderia ser controlada com facilidade, ¢ também que o levante poderia ser instigado, manipulado ¢ controlado em seu proprio interesse. No clima de opinido que se seguiu 4 revolta de Si0 Do- mingos, a descoberta de planos de uma revolta armada dos artesios mulatos da Bahia, no decorrer de 1798, teve um im- pacto todo especial, pois os planos demonstravam 0 que os brancos pensantes ja haviam comecado a perceber: as idéias de igualdade social, se propagadas em uma sociedade onde ape- nas um tergo da populagio era branca, seriam, inevitavelmente, interpretadas em termos raciais. O episédio baiano revelou a politizagio de estratos da sociedade que mal tomaram conhe- ccimento da conspiragio mineira. Os advogados, magistrados ¢ clérigos de meia-idade (a maior parte deles abastada, mem- bros de irmandades racialmente exclusivas ¢ senhores de escra- vos) contrastavam de forma marcante com. 0s jovens artesios, soldados, meciros € mestres-escolas mulatos implicados na cons- piragio baiana. Amargurados ¢ anticlericais, os mulatos da Ba- hia opunham-se tanto aos brasileiros ricos quanto ao dominio portugués. A cles interessava 0 tumulto social, ¢ sua proposta era a de derrubada das estruturas existentes ¢ a de uma so- ciedade igualitéria e democrética, em que as diferengas de raga no scriam impedimento ao emprego ¢ & mobilidade social. O alfaiate pardo Joao de Deus que, 4 época de sua priséo, pos- suia no mais que 80 réis ¢ oito filhos, proclamava que “Todos [os brasileiros] se fizessem franceses, para viverem em igualdade e abundancia [...] destruir ao mesmo tempo todas as pessoas publicas, atacar os mosteitos, franquear as portas aos ‘que quisesem ssir[..] reduzindo tudo a uma inteira revolusi0, {que todos ficariam cos, tirados da miséria em que se achavam, cextinta 2 diferenga da cor branca, preta ¢ parda, porque uns 168 KENNETH MAXWELL. ‘outros seriam scm diferenga chamados ¢ admitidos a todos os sministétios e cargos.*® No foram os patriotas norte-americanos que deram 0 cxemplo a Jodo de Deus e seus companheiros. Foram os sans- eulottes. Nao foram as amenidades constitucionais dos EUA que 6s inspiraram. Foram as palavras de ordem da turba parisiense. ‘Manifestos escritos & mao apareceram por toda a cidade, em 12 de agosto de 1798.*° Enderesados ao “Poderoso ¢ Magnifico Povo Bahinense Republicano”, em nome do “supremo tribu- nal da democracia baiana”, os manifestos conclamavam pelo exterminio do “péssimo jugo reinol da Europa Os clérigos que pregavam contra a liberdade popular foram ameagados. Foi dito a “cada soldado e cidado, mormente os homens par- dos ¢ pretos”, que “todos serio iguais, nao haverd diferenga, 56 haverd liberdade, igualdade e fraternidade”.®! Quanto 4 es- ‘cravatura, nao restava dhivida: “Todos os cativos pardos e pre- tos ficariam libertos sem que houvesse mais escravo algum”.*2 © governo seria “democratico, livre e independente”.* “Estd para chegar 0 tempo feliz da nossa liberdade, o tempo em que todos seremos irmios, o tempo em que todos seremos iguais..”.5 Muito antes de terem sequer montado o plano mais rudi- ‘mentar, os artesios da Bahia foram pegos em flagrante.5* As causas da conspiragéo foram um amdlgama de ressentimentos sociais, carestia dos géneros alimenticios ¢ impacto das pa- lavras de ordem revolucionérias francesas. A nomeagio de um sargento-mor branco para o comando do regimento auxiliat dos pardos livres cruzou as linhas raciais ¢ colocou o regi- mento mulato cm uma relagio desfavorével com o regiment dos pretos livres, os famosos Henriques, que tinha como co- mandante um coronel negro.‘ O prego da farinha de mandioca, © alimento de subsisténcia bésico, havia subido, nos quatro anos anteriores, de 640 réis por alqueire para algo entre 1.280 © 1.600 réis.'” “A carne mais vil que pudesse haver [estava sendo vendida] por pregos que nao vale a metade”, segundo Lufs dos Santos Vilhena, professor de grego em Salvador. A geragio de 1790 e a idéia do império luso-brasleito 169 Os artesios ¢ soldados mulatos, muitos deles alfabetizados, foram receptivos & ideologia revoluciondria. ‘Mas 0 surgimento dos manifestos, na Bahia, a reivindi- cagio de “liberdade, igualdade ¢ fraternidade” ¢ a composicéo racial do grupo de conspiradores provocaram uma reacio to- talmente desproporcional aos incidentes em si. A partir de 1792, os senhores de escravos de todas as Américas mal escondiam sua preocupacéo quanto ao fato de que a revolugéo do Caribe se mostrasse contagiosa. Para os senhores de escravos brasilei- ros, pelo menos, os atos dos mulatos baianos tornaram 0 con- tigio uma realidade concreta. Apés 1798, todos os homens brancos da América portuguesa enfrentavam a pergunta apre- sentada pelo almirante Campbell, comandante da esquadra brasileira da marinha portuguesa, em inicios do século XIX: era realmente verdade que “os acontecimentos de Sio Domingos haviam claramente demonstrado que nao havia qualquer estabili- dade para a soberania dos brancos em um pafs necessaria- mente trabalhado por negros?”*? O governo de Lisboa suspeitava que homens mais im- portantes ¢ influentes poderiam estar por tris da conspiragio baiana, uma preocupacéo compreensivel, & huz dos aconteci- mentos de Minas Gerais. Além disso, correram, em Portugal, rumores de “que as pessoas principais dessa cidade [Bahia], por uma loucura incompreensivel e por no entenderem seus interesses, se acham infectas dos abominéveis prinefpios fran- ceses ¢ com grande afeigo & absurda pretendida constituicéo francesa...” Caso as tropas francesas aportassem, dizia-se, a cidade se juntaria a elas. Especificamente, o rico padre € em- presério Francisco Agostinho Gomes foi denunciado 4s autori- dades de Lisboa. O governador da Bahia, d. Fernando José de Portugal, recebeu instrugées para investigar essas acusagies.© Gomes era um homem erudito ¢ esclarecido, dono de uma biblioteca particular t4o boa quanto a que o cdnego Luts Vieira havia formado em Minas Gerais. Thomas Lindley, que © conheceu na virada do século, ficou singularmente bem-im- pressionado. “Em francés, notei a Enciclopédia de d’Alembert, 170 KENNETH MAXWELL. Buffon e Lavoisier; dentre nossos préprios autores, ele escolheu principalmente histéria natural, economia politica, viagens ¢ ‘obras filoséficas...; A América, de Robertson, cle recomendou em especial, ¢ também A riqueza das nagies, de Smith...”. Lindley também notou o quanto Gomes elogiava as obras de Thomas Paine.*! D, Fernando, entretanto, ndo encontrou nada que in- criminasse Gomes. As idéias ¢ 2 organizacéo da conspiracio baiana cram tais, escreveu ele, que nela “no entravam pessoas de consideragio, nem de entendimento, ou que tivessem conhe- cimento ¢ luzes...”.° Com relagéo ao padre, cle apontou a Lisboa que “o fito de ler jornais ingleses nao transformava 0 leitor em um Jacobino”, Além do mais, ele considerava al- tamente improvavel que qualquer das pessoas de maior im- portincia da capitania estivesse implicada na conspiragio baiana. Ele nao tinha qualquer indicio dessa participagio, nem entre os homens de negécios nem entre os ocupantes de car- {gos piblicos, ou entre as pessoas de posses, que, todos eles, reagiram. vigorosamente quando os papéis sediciosos apare- ceram. Os envolvidos na conspiragio cram todos da “classe ordindria”. “O que sempre se receou, nas colbnias, é a escra- vatura, em razdo de sua condigio e porque é 0 maior ntimero de habitantes deles”, disse ele a Lisboa. Portanto, “nio sendo tio natural que os homens empregados ¢ estabelecidos em bens € propriedades queiram concorrer para uma conspiracio ou aten- tado de que resultariam péssimas conseqtiéncias, vendo-se até expostos a serem assassinados pelos seus préprios escravos”. Ele nfo tentou “fazer... 2 apologia dos habitantes desta cida- de”, ele desejava “meramente expor meus sentimentos”. D. Fernando havia feito uma distingio de importincia vital, ¢ seus comentétios enfatizavam a mudanga ocorrida a partir de 1792. Os plantadores de agéicar ¢ seus apologistas descjavam “liberdade”, por certo, ¢ os mais letrados dentre eles cram discfpulos vidos dos pensadores europeus; mas as teorias que os atrafam davam voz e justificavam seus proprios interesses, ¢ esse interesse prdprio d. Fernando percebia no estar em conflito com a relacao colonial. A liberdade que os A geragio de 1790 ¢ a idéia do império luso-brasieiro = 171 fazendciros mais descjavam era a liberdade proposta pelo bispo Azeredo Coutinho, em seu memorial sobre o prego do agticar, apresentado a Academia de Ciéncias de Lisboa em 1792. Tra- tava-se da liberdade de cada um “ganhar 0 maior lucto com sett trabalho." A liberdade, para a iniciativa capitalista, nao era a libetdade que Jodo de Deus tinha em mente. Como d. Fernando percebeu, os mais firmes opositores das reivindicagées dos mulatos da Bahia seriam os grandes fazendeiros baianos, pois eram estes, € ngo Lisboa, quem mais teria a perder caso cessas reivindicagées fossem atendidas. , Paradoxalmente, a revolta dos escravos nas Indias oci- dentais havia tornado mais agudas as reivindicagées dos plan- tadores de agticar, que queriam libertar-se da interferéncia ¢ do controle do governo, da mesma forma como os acontecimentos de Sio Domingos haviam incentivado preocupagies a respeito do equilfbrio racial da populagio, ¢ produzido a situagio so- cioeconémica da qual emergiu a conspiracio baiana. O colap- so da producio agucareira francesa nas Indias ocidentais, na década de 1790, deu a Bahia a oportunidade de um renas- cimento econdmico. O acicar havia-se tornado tio lucrative € tio altos eram os precos obtidos nos mercados europeus que, segundo Luis dos Santos Vilhena, ‘néo hé quem no queira ser lavrador de agticar”.* Azeredo Coutinho, que antes de se tornar eclesidstico havia administrado uma usina de agi car no Brasil, pedia que plenas vantagens fossem tiradas das condig6es favordveis do mercado, criadas pela “revolugao ines- perada, acontecida nas colénias francesas”. A medida que sobe © preco do agicar, escreveu cle, “mais aumentario as nossas fabricas ¢ o nosso comércio”.” ( surto agucareiro foi em parte responsével pelo saldo fa- vordvel desfrutado pela Bahia, em seu comércio com a Metré- pole, durante a década de 1790, o que resultou na necessidade de enviar ouro de Portugal para o Brasil Isso representou uma espetacular reversio de circunsténcias. Apenas quarenta anos antes, 0 ouro brasileiro fornecia a base das exportagbes colo- niais para Lisboa. O ensaio de Azeredo Coutinho sobre 0 co- 172 KENNETH MAXWELL mércio de Portugal ¢ de scus dominios tentava racionalizar a nova situagio. “A Metrdpole, ainda que em tal caso seja deve- dora das colénias, necessériamente hé de ser em dobro credora aos estrangeiros”, escreveu ele, Bla, precisamente, hd de fazer para uns ¢ outros duplicados Jucros; ganharé nas vendas, ganhard nos fretes e nos transportes para todas as partes... Que importa, pois, que a mie deva a suas filhas, quando cla é em dobro credora aos estranhos? E, pelo

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