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FILOAGAMBEN auténtica Giorgio Agamben Bartleby, ou da contingéncia Traducao: Vinicius Honesko Revisdo da traducao: Claudio Oliveira SEGUIDO DE Herman Melville Bartleby, o escrevente Uma historia de Wall Street Traducao: Tomaz Tadeu 1* reimpressao Copyright ® 1983 by Gieraio Agamben. Originalmente pubicado pele Quoclivet Copyright da traducée de Bartleby, o escrevente: ums historia de Wall Street © 2015 Tomaz Tadeu Copyright © 2015 Auténtica Editora Titules originals: Bartleby 0 della contingenza ~ Giorgio Agamben Bartleby, the Scrivener: Story of Wall Street = Herrman Melville ‘Todos os diteitos reservados pela Auténtica Euitora. Nenhuma parte desta publicagso oderd ser reproduzida, seja por meios mecSnicos, eetrOnicos, seja via copia xerografics, sem a autorizagao prévie da Editor. cooroewnd2 04 cacao U0 rorora oust Gibson fsnnin Rane ies coatoupo3 os ste nuc/scavers foropa azarae Cudlo Olngira Cecilia Kearns conseino EorOMAL revo Gilson tannin (UFOP); Barbara Cassin Ceca Martins (Paris); Carla Rodrigues (UFR); Cléuafo mova cxarco Oliveira (UF); Danilo Marcondes (PUC- Diogo Droschi Bio}; Emani Chaves {UFPA); Guilherme on Castelo Branco (UFR) Jo80 Cares Sales Aero itencourt (UFBA); Monique David-Ménard (Paris), Deane eee Oltmpio Pimenta (UFO); Pedro Suseking — MTUROIEgICO de Heraklion, Crete, Grécia) (UFR; Rogerio Lopes (UFMG); Radrigo oasanncte Duarte (UFMG); Romero Alves Freitas EE (UFOP); Siavoj Zizek (Liubliana);, Vladimir Sefatle (USP) Dados internacionais de Catalogacao na Publicacso (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP Bras) prenPer aaaah Bartleby, ou da contingéneia / Giorgio Agamben ; tradusao Vinicius | Honesko -= Bartleby, 0 escevente : Uma histrie de WallStreet / Herman Mable; raducio Tomar Tedeu. ~ 1 ed 1. rena, ~ Belo Herzone | | Aentice Eder, 2015 ~ Fe/Agamten Tio criginal:Barteby oda coningenza/ Giorgio Agamben arte, | the Sctivener : A Story of Wall Street / Herman Neville ISBN 978-85.8217-517.0, 1. Filosofia ¢ fteratura 2. Melville, Herman, 1819-1891. Bartleby, 0 cescivao - Ciltca & interpretagao |, Titulo. I Serie, 14511915, cDD-195 Indices para catslage sisternstico: 1. Filosofia talana 195 @sruro autentica Belo Horizonte S40 Paulo Rio de faneiro Rua Carlos Turner, 420 ‘Av, Paulista, 2.073, Rua Debret, 23, sala 401 Silveira . 31140-520 Conjunto Nacional, Hosa? Centra. 2030-080 Belo Horizonte . MG 23° andar . Conj. 2301 ie de Janeiro . RD Tel. (55 31} 3465 4500 Cerqueira Cesar .01311-940 Tel: (65 21) 3179 1975, S80 Paulo. SP Tel.: (55 11) 3034 4468 Televencas: 0800 283 13 22 ‘wn.grupoautentica.com.br Sumario 55. 107. 109. Giorgio Agamben Bartleby, ou da contingéncia 11. 0 escriba, ou da criacao 26. A formula, ou da poténcia 35. O experimento, ou da descriacdo Herman Melville Bartleby, o escrevente Uma historia de Wall Street Coleco Fils Série Filé Agamben Giorgio Agamben Bartleby, ou da contingéncia Nam simul cum cathedra creavit Deus tabulam quamdam ad scriben- dum, que tantum grossa erat quan- tum posset homo ire in mille annis. Et erat tabula illa de perla albissima et extremitas eius undique de ru- bino et locus medius de smaragdo Scripturm verum in ea existens to- tum erat purissime claritatis. Res- piciebat manque Deus in tabulam illam centum vicibus die quolibet et quantiscumaue respiciebat vicibu, construebat et destruebat, creabat et occidebat... Creavit manque Deus cum predicta tabula penam quam- dam claritatis ad scribendum, que habebat in se Jongitudinis quantum posset homo ire in VC annis et tan- tumdem ex latitudine quidem sua. Et ea creata, precepit sibi Deus ut scriberet. Penna vero dixit: “Quid scribam?” At ille respondens: “Tu scribes sapienciam mean et criaturas omnes meas a principio mundi usque ad finem’” Libro della Scala, cap. xx 7 Gm latim no original. “Ao mesmo tempo que a cétedra, Deus criou uma tébua para escrever, tio grande que para petcorré-la um homem. levaria mil anos, Essa tébua era branquissima como pérola, e todas as, extremidades eram de rubi, sendo 0 centro de esmeralda. De fato, tudo que nela estava escrito era de uma puzissima clareza. E Deus olhava para essa tébua cem vezes ao dia (que quisesse), ¢a cada vez que olhava construia e destruia, criava e aniquilava... E com mencionada tabua criou Deus uma pena de clareza para escrever, cujo comprimento era tal que um homem precisaria de 95 anos para a percorrer, e assim também para sua largura. F depois de a ter criado, Deus ordenou-lhe que escrevesse para ele. Mas a pena disse: ‘O que escreverei?” E ele respondeu: ‘Tu escrevesa minha sabedoria e todas as minbas criaturas, And td aoe oa aes Uesue © principio do mundo ate o seu fim’. (IN.1) Como escrevente, Bartleby pertence a uma constelagao literiria cuja estrela polar é Akdki Akdkievitch (“ali, naquelas cdpias, estava para ele, de alguma maneira, contido todo o mundo.., certas letras eram as suas favoritas, e quando a elas chegava perdia completamente a cabega”), em cujo centro esto os dois astros gémeos Bouvard e Pécuchet (“hoa ideia nutrida em segredo por amtbos...: copiar”) ¢ em seu outro extremo brilham as luzes brancas de Simon Tanner (“eu sou escrevente” é a tinica identidade que ele reivindica) e do principe Michkin, que pode reproduzir sem esforgo qualquer caligrafia. Mais além, como um curto cinturdo de asteroides, os andnimos oficiais de justica dos tribunais kafkianos. Mas ha também uma constelagio filoséfica de Bartleby, ¢ é possivel que apenas esta contenha a cifra da figura que a outra se limita a tracar. O escriba, ou da criagéo 1.1. O léxico bizantino conhecido sob o nome de Suda registra, no verbete Aristételes, esta singular defini¢ao: “Aristoteles era o escriba da natureza, que molha a pena no pensamento”. Nas suas notas 4 tradugio do Edipo de ql Séfocles, Hélderlin cita, sem nenhum motivo aparente, tal passagem, subvertendo-a por meio de uma minima cor- regio: “Aristételes era o escriba da natureza, que molha a pena benévola (ewnoun em ver de eis noun)”. As Etimologias, de Isidoro de Sevilha, desse trecho conhecem uma versio diferente, que remonta a Cassiodoro: “Aristételes, quando perihermeneias scriptabat, calamum in mente tingebat” (Aristételes, quando escrevia o tratado sobre a interpre- tagdo — uma das obras légicas fundamentais do organon -, molhava a pena na mente). Em ambos os casos, decisiva nao & tanto a imagem do escriba da natureza (que jé se encontra em Atico*) quanto o fato de que o nous, o pensamento ou a mente, seja comparado a um tinteiro em que o filésofo miolha a propria pena. A tinta, a gota de trevas com a qual © pensamento escreve, é o préprio pensamento, De onde provém essa definiciio que nos apresenta a figura fundamental da tradicio filos6fica ocidental nas humildes vestes de um escriba e 0 pensamento como um ato, mesmo se muito particular, de escritura? Hé apenas um texto em todo o corpus aristotélico no qual encontramos uma imagem de algum modo similar, que pode ter forne- cido a deixa a Cassiodoro ou ao desconhecido metaforista; ela nao pertence, porém, ao organon logico, mas ao tratado sobre a alma. Trata-se da passagem do terceiro livro (430a) em que Aristoteles compara o nous, 0 intelecto ou 0 pen- samento em poténcia, a uma tabuleta para escrever sobre a qual nada esta escrito ainda: “como sobre uma tabuleta para escrever (grammateion) em que nada esta escrito em ato, assim acontece no nous”? ® Agamben se refere a Herodes Atico, retérico e politico ateniense de cidadania romana que viveu entre os anos 101 ¢ 177 d.C. (NT) 3 Una das estratégias argumentativas de Agamben, como é notério, encontra-se nas tradugSes (ou corregGes de tradugées) que faz tanto 12 FILGAGAMBEN Na Grécia do quarto século antes de Cristo, a escritura feita com tinta sobre uma folha de papiro nio era a tinica pratica corrente; com mais frequéncia, sobretudo para uso privado, escrevia-se gravando com um estilete uma tabu- jeta coberta por uma fina camada de cera. Em um ponto crucial de seu tratado, no momento de indagar a natureza do pensamento em poténcia e o modo da sua passagem ao ato da inteleccao, é ao exemplo de um objeto desse géne- ro que Aristételes recorre, provavelmente aquela mesma tabuleta sobre a qual estava, naquele momento, anotando seus pensarnentos. Muito mais tarde, quando a escritura com calamo e tinta j4 era a pratica dominante ¢ a imagem aristotélica corria 0 risco de parecer antiquada, alguém a modernizou no sentido depois registrado pelo Suda. 1.2. Na tradi¢4o da filosofia ocidental, a imagem fez fortuna. Ao traduzir grammateion por tabula rasa, 0 primeito tradutor latino do De anima a confiou a uma nova histé- tia, que deveria desembocar, por um lado, na “folha em branco” de Locke (“suponhamos que no principio a mente seja aquilo que se chama de folha em branco, privada de qualquer caractere, sem nenhuma “ideia’”) e, por outro, na incongruente expressao “fazer tabula rasa”. A imagem continha, de fato, a possibilidade de um equivoco, que certamente contribuiu para o seu sucesso. Ja Alexandre de Afrodisia havia notado que o filésofo deveria ter falado visa, da sua epitédeiotés, isto é, da fina camada de cera sensivel que nao de um grammateion, mas, de maneira mais pre dos classicos gregos como dos latinos. Para manter, portanto, esse scu modo de pensar, optamos por traduzir diretamente os trechos que ele cita (em sua tradugio ou com suas correcdes), sem recorrer as traducdes correntes disponiveis em portugués. (NT) GIORGIO AGAMBEN BARTLEBY, OU DA CONTINGENCIA 13 o recobre e sobre 0 qual o estilete grava os caracteres (nos termos dos tradutores latinos, nao de tabula rasa, mas de rasura tabulae). A observacio (sobre a qual Alexandre tinha especiais razSes para insistir) era, todavia, exata. A dificul- dade, que Aristétcles procura contornar com a imagem da tabuleta, é, de fato, aquela da pura poténcia do pensamento e de como seja concebivel a sua passagem ao ato. Pois, se © pensamento ja tivesse em si alguma forma determinada, ja fosse sempre alguma coisa (como é uma coisa a tabuleta para escrever), cle necessariamente se manifestaria no obje- to inteligivel e impediria, assim, a sua intelec¢4o. Por isso, Aristételes tem 0 cuidado de especificar que 0 nous “nado tem outra natureza senfo a de ser em poténcia e, antes de pensar, nao é em ato absolutamente nada”. A mente é, portanto, no uma coisa, mas um ser de pura poténcia, e a imagem da tabuleta para escrever sobre a qual nada ainda est4 escrito serve precisamente para representar 0 modo em que existe uma pura po~ téncia. Toda poténcia de ser ou de fazer algo é, de fato, para Aristételes, sempre também poténcia de no ser ou de nao fazer (dynamis mé einai, mé energein), uma vez que, de outro modo, a poténcia passaria desde sempre ao ato e com este se confundiria (segundo a tese dos Megiricos refutada explicitamente por Aristételes no livro Theta da Metafisica). Essa “poténcia de nao” € o segredo cardeal da doutrina aristotélica sobre a poténcia, que faz de toda poténcia, por si mesma, uma impoténcia (fou autou kai kata to auto pasa dynamis adynamia — Met. 1046a, 32). Como o arquiteto mantém sua poténcia de construir mesmo quando nao a coloca em ato e como o tocador de citara é tal por- que também pode nio tocar a citara, assim 0 pensamento existe como uma poténcia de pensar ¢ de nao pensar, como uma tabuleta encerada sobre a qual nada ainda est escrito (0 intelecto possivel dos filésofos medievais). E como a “4 FILOAGAMBEN camada de cera sensivel é de repente gravada pelo estilete do escriba, assim também a poténcia do pensamento, que em si nao é algo, deixa advir o ato da inteligéncia. 1.3. Em Messina, entre 1280 e 1290, Abraao Abulafia compés os tratados cabalisticos que, depois de permane- cerem manuscritos por séculos nas bibliotecas europeias, apenas no nosso século foram restituidos 4 atengdo dos nado especialistas por Gershom Scholem ¢ Moshe Idel. Neles, a criagio divina é concebida como um ato de escritura no qual as letras representam, por assim dizer, o veiculo material por meio do qual o verbo criador de Deus — assimilado a um escriba que move sua pena — incorpora-se as coisas criadas. “O segredo que est na origem da multidao das criaturas €a letra do alfabeto e toda letra é um signo que se refere a criagio. Como o escriba tem em mios a sua pena e, por meio dela, traz algumas gotas da matéria da tinta, prefigu- rando na sua mente a forma que guer dar 4 matéria — todos gestos nos quais a mio do escriba é a esfera vivente que move a pena inanimada que lhe serve de instrumento para fazer escorrer a tinta sobre o pergaminho que representa o corpo, suporte da matéria e da forma —, assim também atos similares so realizados nas esferas superiores e inferiores da criagio, como quem tem inteligéncia pode compreender por si, porque acerca disso é proibido falar mais.” Abulafia era um leitor de Aristételes e, como todo ju- deu culto do seu tempo, lia o filésofo por meio das tradugdes e dos comentarios arabes. Nesse momento, o problema do intelecto passivo e da sua relagao com o intelecto agente ou poético que Aristételes, no De anima, havia liquidado com poucas e enigmaticas frases) havia solicitado particularmente a acuidade dos falasifa (como eram chamados no Isla os dis- cipulos de Aristételes). Precisamente o principe dos jalasifa, GIORGIO AGAMBEN BARTLEBY, QU DA CONTINGENCIA 15 Avicena, havia concebido a criac¢ao do mundo como um ato da inteligéncia divina que pensa a si mesma. Também a criag4o da esfera sublunar (que, no processo emanacionista que Avicena tem em mente, é obra do tiltimo dos anjos-in- teligéncia, este que nao é outro sendo o intelecto agente de Aristételes) s6 podia, por isso, ser exemplificada com base no modelo do pensamento que pensa a si mesmo e, desse modo, deixa ser as miltiplas criaturas. Todo ato de criagio (como bem sabiam os poetas de amor do século XIII, que transformaram em mulheres os anjos de Avicena) é um ato de inteligéncia e, vice-versa, todo ato de inteligéncia é um ato de criagio, deixa ser algo. Mas, precisamente no De anima, Aristoteles havia representado o intelecto em poténcia como uma tabuleta sobre a qual nada esta escrito. Como consequéncia, Avicena, no seu maravilhoso tratado sobre a alma que os medievais conheciam como Liber VI naturalium, serve-se da imagem da escritura para ilustrar as varias espé- cies ou graus do intelecto possivel. H4 uma poténcia (que ele chama de material) que se assemelha a condigao de uma crianca que certamente um dia poder4 aprender a escrever, mas que ainda nao sabe nada da escritura; ha, depois, uma poténcia (que ele chama de facil ou posstvel) que € como aquela de uma crianga que comega a se familiarizar com a pena e a tinta e sabe apenas tracar as primeiras letras; ha, por fim, uma poténcia completa ou perfeita, que é aquela de um escriba perfeitamente senhor da arte de escrever, no momento em que nao escreve (potentia scriptoris perfecti in arte sua, cum non scripserit), Na tradigao arabe posterior, a criag4o foi, por isso, assimilada a um ato de escritura, eo intelecto agente ou poético, que ilumina o passivo e o faz Passar ao ato, é, por isso, identificado com um anjo cujo nome é Pena (Qalam). Nao é um acaso, portanto, se, ao tracar, na cidade santa, o plano da obra na qual trabalharia até a morte, 16 FILGAGAMBEN As iluminagées da Meca, 0 grande sufi andaluz Ibn-Arabi decidiu dedicar 0 segundo capitulo 4 “ciéncia das letras” (ilm al-hurfif). Tal ciéncia, que trata dos graus hierarquicos das vogais e das consoantes e das suas correspondéncias nos nomes divinos, assinala, com efeito, no processo de conhecimento, a passagem do inexprimivel ao exprimivel e, no processo da criag4o, a passagem da poténcia ao ato. A existéncia, 0 ser puro, que para os escoldsticos é sim- plesmente inefavel, é definida por Tbn-Arabi como “uma letra da qual tu és 0 sentido” e a passagem da poténcia ao ato da criagao é representada graficamente como o ductus que enlaca, em um sé gesto, as trés letras alif-lam-mim: J A primeira parte desse grafema, a letra alif: significa a descida do ser em poténcia em diregio ao atri- buto; a segunda, Jam: —) aextensio do atributo em diregio ao ato; ea terceira, mim: I a descida do ato em direcio a manifestacio. GIORGIO AGAMBEN BARTLEBY, OU DA CONTINGENCIA 17 A equiparagio entre a escritura e 0 processo da cria~ gdo é, aqui, absoluta. O escriba que nfo escreve (do qual Bartleby € a Gltima ¢ extrema figura) é a poténcia perfeita, que apenas um nada separa agora do ato de criac4o. 14. Quem move a mao do escriba para fazé-la passar ao ato da escritura? De acordo com quais leis acontece o transito do possivel ao real? E se ha algo como uma possi-~ bilidade ou poténcia, o que, dentro ou fora dela, a dispde a existéncia? E sobre essas perguntas que se produziu, no Isla, a ruptura entre os motecallemim, isto é, os tedlogos sunitas, e os falasifa, Contra estes, que mantinham fixo o olhar na tabuleta de escrever de Aristételes e que indagavam. os principios e as leis segundo os quais, no ato criativo, o possivel, que existe na mente divina ou na do artifice, acontece ou nao acontece, os asharitas, que representam a corrente dominante da ortodoxia sunita, sustentam uma opinido que nao apenas destréi os préprios couceitos de causa, lei e principio, mas que também torna vio todo discurso sobre o possivel e sobre o necessério, minando assim a propria base da pesquisa dos falasifa. De fato, os asharitas concebem o ato de criag4o como uma incessante e instantdnea produco de acidentes miraculosos, privados de qualquer poder de agir uns sobre os outros ¢, portanto, subtraidos de toda lei e de toda relacdo causal. Quando 9 tintureiro imerge o pano branco no banho de indigo ou quando o ferreiro tempera uma ldmina de metal no fogo, nao é a tintura que penetra no tecido para colori- -lo, nem o calor que se propaga pelo metal tornando-o incandescente; antes, € Deus mesmo que estabelece uma coincidéncia habitual, mas, em si, puramente milagrosa, gracas 4 qual se produzem a cor marrom no nano. no momento em que é imerso no indigo, e a incandescéncia 18 FILOAGAMBEN no metal a cada vez que é temperado no fogo. “Assim, quando o escriba move a pena, nio é ele a mové-la, mas esse movimento é apenas um acidente que Deus cria na mio: Deus estabeleceu, como habito, que o movimento da mio coincida com o da pena, e este com o produzir- se da escritura, sem que, por isso, a mio tenha qualquer influéncia causal no processo, uma vez que 0 acidente nao pode agir sobre um outro acidente... Pelo movimento da pena, Deus cria, portanto, quatro acidentes que de modo algum sao causa um do outro, mas simplesmente coexis- tem ao mesmo tempo. O primeiro acidente ¢ a minha vontade de mover a pena; o segundo, é a minha poténcia de mover-me; 0 terceiro, 0 préprio movimento da mio; © quarto, por fim, 0 movimento da pena. Assim, quando o homem quer algo e o faz, isso significa que primeiro foi criada para ele a vontade, depois a faculdade de agir e, por ultimo, a propria acio.” Nao se trata aqui simplesmente de uma concep¢ao diversa do ato criativo em relagdo Aquela dos filésofos; o que os tedlogos querem é quebrar para sempre a tabuleta de escrever de Aristételes, apagar do mundo qualquer experiéncia da possibilidade. Mas 0 problema da poténcia, expulso da esfera humana, transfere-se para a divina. E por isso que Ghazali, que, quando era um brilhante professor na madrassa de Bagda, havia sustentado de modo tenaz, no livro que se intitula A autodestruigao dos fildsofos, a posigao dos asharitas, mais tarde, no curso das suas andangas pela mesquita da Rocha, em Jerusalém, ou pelos minaretes de Damasco, vé-se obrigado a enfrentar novamente a ima- gem do escriba. No Renascimento das ciéncias religiosas, ele compe 0 apdlogo sobre a poténcia divina que comeca assim: “Um iluminado pela luz de Deus corre os olhos por uma folha de papel escrita com tinta preta ¢ lhe pergunta: “como é que tu, que antes tinhas uma alvura que cegava, GIORGIO AGAMBEN BARTLEBY, OU DA CONTINGENCIA 19 agora estas coberta de sinais negros? Por que tua face ficou ‘0 fui negra?””, Es injusto comigo, responde a folha, pois eu quem enegreceu meu rosto. Pergunte a tinta, que sem razdo alguma saiu do tinteiro para espalhar-se sobre mim. O homem dirige-se entao 4 tinta para obter explicagdes, mas esta responde remetendo-o 4 pena, que a tirou de sua tranguila morada para exilé-la na folha. Interrogada, por sua vez, a pena o remete 4 mao que, depois de té-la talhado e cruelmente dividido na ponta, imergiu-a na tinta A mio, que diz nio ser outra coisa sendo carne e miseros ossos, convida-o a dirigir-se 4 Poténcia que a moveu; a Poténcia, 4 Vontade, e esta, 4 Ciéncia, até que, de remis- sio em remissio, o iluminado chega, por fim, diante dos impenetraveis véus da Poténcia divina, desde os quais uma voz terrivel grita: “A Deus nio se pede satisfacio do que faz, ao passo que a vés serio pedidas satisfagdes”. O fatalismo islamico (ao qual deve seu nome a figu- ra mais obscura entre os habitantes dos Lager nazistas, 0 “mugulmano”) nao tem, portanto, as suas raizes em uma atitude de resigna¢ao, mas, a0 contrario, na limpida fé na operagao incessante do milagre divino. E certo, todavia, que do mundo dos motecallemim (€ dos seus correspondentes entre os tedlogos cristios) a categoria da possibilidade foi, nio obstante, apagada e toda poténcia humana destituida de fundamento. HA apenas o inexplicével movimento da pena divina ¢ nada que permita pressagid-lo ou esper4-lo sobre a tabuleta de escrever. Contra essa absoluta des- modalizacio do mundo, os falasifa permanecem fiéis a0 legado de Aristételes. Na sua intengdo mais profunda, a filosofia é, com efeito, uma firme reivindicacio da potén- cia, a construcdo de uma experiéncia do possivel como tal. Nao 0 pensamento, mas a poténcia de pensar; nio a escritura, mas a cindida folha 6 0 que a filosofia nao quer de nenhuma maneira esquecer. 20 FILBAGAMBEN, L5. E, todavia, a poténcia é justamente a coisa mais dificil de pensar. Porque se a poténcia fosse sempre e somente poténcia de fazer ou ser algo, entio, nés nio poderiamos jamais experimenta-la como tal, mas, segundo a tese mega- rica, ela s6 existiria no ato que a realiza. Uma experiéncia da poténcia como tal é possivel apenas se a poténcia for sempre também poténcia de nao (fazer ou pensar algo), se a tabuleta para escrever pode ndo ser escrita. Mas é precisamente aqui que tudo se complica. Como é possivel, com efeito, pensar uma poténcia de nado pensar? O que significa, para uma poténcia de ndo pensar, passar ao ato? E se a natureza do pensamento é ser em poténcia, o que pensara? No livro Lambda da Metafisica (1074b, 15-35), no ponto em que trata da mente divina, é com tais aporias que Aristételes se depara: A quest3o do pensamento implica algumas aporias. Ble parece ser 0 mais divine dos fendémenos, mas o seu modo de ser é problematico. Se, de fato, nio pensa nada (isto é, se se atém a sua poténcia de nio pensar}, 0 que tera de venerdvel? Sera como alguém que dorme. Se, ao contrario, ele pensa, em ato, algo sera subordinado a isso, uma vez que 0 seu ser nio é © pensamento cm ato, mas a poténcia; ele nao sera ser mais nobre, porque receberd a sua exceléncia do pensamento em ato (isto é, sera determinado por outra coisa, e nao pela sua prépria esséncia, que é a de ser poténcia). E, tanto se sua poténcia € o pensamento em poténcia (0 ous) quanto se ela é, ao contrdrio, © pensamento em ato (noésis), 0 que ele pensa? Ou a si mesmo ou alguma outra coisa. Se pensa alguma outra coisa, pensara ou sempre a mesma coisa ou sempre outra coisa. Mas nao hi, talvez, diferencga entre pensar o bem e pensar 0 que acontece? £ evi- dente, portanto, que pensar4 a coisa mais divina e venerivel e@ cem midanca Par antra lada ce ele Vema tty © See nye BE EEO tees oe we nao é pensamento em ato, mas poténcia de pensar, GIORGIO AGAMBEN BARTLEBY, OU DA CONTINGENCIA 21 é razodvel que a continidade do pensar se the torne cansativa. Além disso, é claro que, nesse caso, haveria algo mais excelente do que o pensamento, isto &, 0 pensado; com efeito, o pensar e o pensamento em ato pertencem também Aquele que pensa as coisas mais vis. Se isso deve ser evitado (existem coisas, de fato, que é melhor nio ver), o pensamento em ato nio poder ser o bem mais alto. Portanto, ele pensa a si mesmo, se 6 0 mais excelente, ¢ o pensamento & pensamento do pensamento. A aporia, aqui, é que o pensamento supremo nio pode nem pensar nada nem pensar algo, nem permanecer em poténcia nem passar ao ato, nem escrever nem nao escrever. E é para esquivar-se dessa aporia que Aristételes enuncia sua célebre tese sobre o pensamento que se pensa a si mesmo, que é uma espécie de ponto médio entre pensar nada e pensar algo, entre poténcia e ato. O pensamento que se pensa a si mesmo nfo pensa um objeto nem pensa nada: pensa uma pura poténcia (de pensar e de nfo pen- sar); € samamente divino e feliz é aquilo que pensa a sua propria poténcia. Mas a aporia, mal é desfeita, volta de pronto a se refazer. O que significa, de fato, para uma poténcia de pensar, pensar-se a si mesma? Como se pode pensar em. ato uma pura poténcia? Como pode uma tabuleta para escrever sobre a qual nada esta escrito voltar-se para si mesma, inpressionar-se? No seu comentario ao De anima, refletindo sobre o enigma da tabula rasa e sobre 0 pensamento que se pensa asi mesmo, Alberto Magno detém-se precisamente nessas quest6es. Averréis, com o qual ele declara “concordat em. tudo” e que havia concedido ao pensamento em poténcia @ lugar mais alto, fazendo dele um ser tinico e comum. a todos os individuos, havia tratado de modo resoluto 22 FILGAGAMBEN, precisamente desse ponto decisivo. E, entretanto, a tese aristotélica segundo a qual o proprio intelecto é inteligivel nao podia ser entendida no mesmo sentido em que se diz, de um objeto qualquer, que ele é inteligivel. O intelecto em poténcia no é, com efeito, uma coisa; ele é apenas a intentio por meio da qual algo é entendido, é apenas uma pura cognoscibilidade e receptividade (pura receptibilitas), € nao um objeto conhecido. Antecipando a tese de Wittgens- tein sobre a impossibilidade da metalinguagem, Alberto vé com clareza que dizer que uma inteligibilidade entende a si mesma ndo pode significar reific4-la, cindi-la em uma metainteligéncia ¢ em uma inteligéncia-objeto, A escritura do pensamento nao é a de uma pena que uma mio estranha move para gravar a cera décil: antes, no momento em que a poténcia do pensamento volta-se para si mesma e a pura receptividade sente, por assim dizer, o proprio nao sentir, nesse momento ~ escreve Alberto ~ “é como se as letras sé escrevessem sozinhas sobre a tabuleta” (et hoc simile est, stout si diceremus quod litterae scriberent seipsas in tabula). 1.6. E um lugar~comum afirmar que as rés grandes religides monoteistas concordam ao professar a criacio do mundo a partir do nada. Os tedlogos cristos opéem assim a criacao, que é um operari ex nihilo, ao ato do artifice, que &, a0 contrario, sempre um facere de materia. Nao menos decisiva é a polémica dos rabinos e dos motecallemim contra a opiniio, atribuida aos filésofos, segundo a qual é impos- sivel que Deus tenha criado o mundo a partir do nada, pois nihil ex nihilo fit. Essencial, em todo caso, é também a recusa da simples ideia de que algo como uma matéria (isto é, um ser em poténcia) possa preexistir a Deus. Mas © que significa “criar a partir do nada”? Tio logo olhamos mais de perto para o problema, tudo se complica e 0 nada GIORGIO AGAMBEN BARTLEBY, OU DA CONTINGENCIA 23 comega a assemelhar-se cada vez mais a um algo, ainda que muito particular. Maiménides, que, no Guia dos perplexos, declara pro- fessar a criag3o a partir do nada, tinha, porém, diante dos olhos uma passagem do veneravel midrash, conhecido como Pirké Rabbi Eliezer, “que perturba fortemente o tedlogo e o homem de ciéncia em sua £6”, pois nele figura algo que sé pode nos fazer pensar em uma matéria da criagdo. “De que coisa foram criados os céus?”, ai se lé. “Deus tomou a luz da sua veste e a estendeu como um lengol; a partir dai desenvolveram-se os céus, como foi escrito: ‘Ele se envol- veu de luz como de uma veste, ¢ estendeu os céus como um tapete’.” Por outro lado, 0 versiculo do Corao em que Deus apostrofa a criatura dizendo: “Nés te criamos quan- do tu eras nada (eras uma nao-coisa)” provava, segundo os Sufis, que essa ndo-coisa nio era um puro nada, uma vez que Deus, no ato de cria¢do, pudera voltar-se para ela dizendo: “Que tu sejas!”. O fato @ que, quando os tedlogos judeus, arabes ou cristios formularam a ideia de uma criag3o a partir do nada, o neoplatonismo ji havia chegado a conceber o mesmo principio supremo como o nada a partir do qual tudo procede. Assim como haviam distinguido dois tipos de nada, um que supera os entes, por assim dizer, do alto, e€ outro que os ultrapassa para baixo, do mesmo modo os neoplat6nicos distinguiram duas matérias, uma incorpérea e outra corpérea, que é como o fundo obscura e eterno dos seres inteligiveis. Cabalistas e misticos levaram ao extremo essa tese e, com sua costumeira radicalidade, afirmaram. sem meios-termos que o nada, do qual procede a criagao, é 0 proprio Deus. O ser (ou melhor, o super-ser) divino é o nada dos entes, e apenas afundando-se, por assim dizer, nes— se nada Deus péde criar o mundo. No De divisione naturae, Escoto Erigena, ao comentar 0 versiculo do Génesis (Gen. 24 FILOAGAMBEN 1, 2) terra autem erat inanis et vacua et ienebrae erant super faciem abyssi,* relactona-o as ideias ou causas primordiais de todos os scres que so ecternamente gerados na mente de Deus; e é apenas descendo nessas trevas ¢ nesse abismo que a Divindade cria o mundo e, ao mesmo tempo, a si mesma (descendens vero in principiis rerum ac velut se ipsam creans in aliquo inchoat esse). O problema que esta aqui em questao é, na verdade, o da existéncia, em Deus, de uma possibilidade ou potén- cia. Uma vez que, segundo Aristételes, toda poténcia é também poténcia de no, os tedlogos, mesmo afirmando a onipoténcia divina, estavam, ao mesmo tempo, obrigados a negar a Deus toda poténcia de ser ¢ de querer. Se em Dens houvesse, com efeito, uma poténcia de ser, ele po- deria também nio ser, e isso contradiria a sua eternidade; por outro lado, se ele pudesse nao querer aquilo que quer, poderia entdo querer 0 ndo-ser e o mal, e isso equivaleria a introduzir nele um principio de niilismo. Mesmo tendo em si uma poténcia virtualmente ilimitada — concluem os tedlogos —, Deus é, porém, vinculado 4 sua vontade e nao pode fazer ou querer outra coisa sendo aquilo que quis: a sua vontade, como 0 seu scr, é, por assim dizer, absoluta- mente privada de poténcia. Mas, ao contrario, é precisamente a poténcia divina a obscura matéria que misticos e cabalistas pressupSem a criagdo. O ato de criagdo é a descida de Deus em um abismo que nao é outro senao o abismo da sua prépria poténcia e impoténcia, do seu poder e do seu poder nao. Ou melhor, na radical formulacao de David de Dinant, cuja doutrina foi condenada como herética em 1210, Deus, o pensamento e a matéria séo uma coisa sé e esse abismo indiferenciado é 0 4 Em latim ne arivinal Tradnedo: “A terra estava vazia © vara. © trevas cobriam a face do abismo”, (N.T}) GIORGIO AGAMBEN BARTLEBY, OU DA CONTINGENCIA 25 nada do qual o mundo procede e sobre 0 qual eternamente se apoia. “Abismo” no é aqui uma metéfora: como Bohme afirmara sem meios termos, ele é, em Deus, a propria vida das trevas, a raiz divina do inferno, no qual se gera eterna- mente 0 nada. Apenas no momento em que conseguimos descer nesse Tartaro e fazer experiéncia da nossa propria impoténcia, tornamo-nos capazes de criar, tornamo-nos poetas. E o mais dificil, nessa experiéncia, nao sio o nada e as suas trevas, nas quais muitos permanccem para sempre aprisionados — o mais dificil é ser capaz de aniquilar esse nada pata fazer ser, a partir do nada, algo. “O louvor pertence a Deus”, escreve Ibn-Arabi no inicio das suas Iuminagées, “que fez existir as coisas a partir do nada e aniquilou o nada”. A formula, ou da poténcia IL1. E a essa constelacio filoséfica que Bartleby, o escrevente, pertence. Como escriba que cessou de escrever, ele é a figura extrema do nada do qual procede toda criagio 40 desse e, ao mesino tempo, a mais implacavel reivindic: nada como pura, absoluta poténcia. O escrevente tornou-se a tabuleta de escrever, nao é, a partir de agora, nada mais do que a sua folha em branco. Nao espanta, portanto, que ele permanega de modo tao obstinado no abismo da pos- sibilidade ¢ nao parega ter a menor intengio de dele sair. A nossa tradigao ética com frequéncia procurou evitar 0 problema da poténcia reduzindo-o aos termos da vontade e da necessidade: nao 0 que vocé pode, mas o que vocé quer ou deve é o sew tema dominante. f 0 que o homem da lei nao cessa de lembrar a Bartleby. Quando, 4 sua solicitagao para ir aos Correios (“no quer dar um pulo até os Correios [...]?”), Bartleby opde o frequente preferiria ndo, o homem da lei apressa-se em traduzi-lo por “Vocé nao quer?” (You will nof?), mas Bartleby precisa, com sua voz “suave e firme”: 26 FILORGAMGEN “prefiro nao” (I prefer not & a Gnica variante, que aparece trés vezes, da formula habitual: I would prefer not to. Se Bartle- by renuncia ao condicional, é apenas porque Ihe importa eliminar qualquer traco do verbo querer, mesmo que seja em seu uso modal). E quando o homem da lei procura honestamente, a seu modo, compreender o escrevente, as Jeituras 4s quais se dedica nao deixam davidas quanto as categorias de que pretende se servir: Edwards sobre a vontade ¢ Priesiley sobre a necessidade. Mas a poténcia nao é a vontade, ea impoténcia nao é a necessidade: apesar da “sensacado salutar” que aquelas leituras lhe inspiram, as suas categorias permanecem sem efeito sobre Bartleby. Crer que a vontade tenha poder sobre a poténcia, que a passagem ao ato seja 0 resultado de uma decisio que pée fim 4 ambiguidade da poténcia (que é sempre poténcia de fazer e de nao fazer) — essa é, precisamente, a perpétua ilusio da moral. Os tedlogos medievais distinguiam em Deus uma potentia absoluta, segundo a qual cle pode fazer qualquer coisa (até mesmo, segundo alguns, o mal, até mesmo fa- zer com que 0 mundo jamais tenha existido, ou, ainda, restituir a uma mog¢a a virgindade perdida), e uma potentia ordinata, segundo a qual ele pode fazer apenas 0 que esteja de acordo com sua vontade. A vontade é 0 principio que consente em colocar ordem no caos indiferenciado da po- téncia. Assim, se € verdade que Deus poderia ter mentido, perjurado, encarnado em uma mulher ou em um animal em vez de no Filho, ele, todavia, no o quis fazer, nem o podia querer, e uma poténcia sem vontade € de todo sem efeito,> nao pode jamais passar ao ato. 5 No original, “ineffettuale”. Esse termo — de emprego recente em Iingua italiana — remete 4 nogio de “irreal, sem concretude”. Agam- ben dele aqui se utiliza para marcar a ndo passagem da poténcia ao ato, a falta de “efetivagio” — “atualizacio” — da poténcia, (N.T.) GIORGIO AGAMBEN BARTLEBY, OU DA CONTINGENCIA, 27 Bartleby recoloca em quest4o precisamente essa supremacia da vontade sobre a poténcia. Se Deus (ao menos de potentia ordinata) pode verdadeiramente ape- nas aquilo que quer, Bartleby pode apenas sem querer, pode somente de potentia absoluta. Mas a sua poténcia n§o é, por isso, sem efeito,® ndo resta inatuada’ por um defeito de vontade: ao contrario, ela em toda parte ex- cede a vontade (tanto a prépria quanto a dos outros). Invertendo a anedota de Karl Valentin (“ter vontade, isso eu queria, mas nao tive a sensagio de podé-lo”), dele se poderia dizer que conseguiu poder (€ nio poder) sem, em absoluto, queré-lo. Dai a irredutibilidade do seu “preferiria nio”. Nao é que ele nao queira copiar ou que qucira nio deixar o escritorio — apenas preferiria no fazé-lo. A férmula, tio meticulosamente repetida, destréi toda possibilidade de construir uma relagio entre poder e querer, entre potentia absoluta e potentia ordinata. Ela é a formula da poténcia. IL. 2. Gilles Deleuze analisou o cardter particular da formula, aproximando-a daquelas expresses que os linguistas definem como agramaticais, como he danced his did, em Cummings, ou j’en ai un de pas assez, e atribuindo a essa secreta agramaticalidade o seu poder devastador: “a formula desconecta as palavtas ¢ as coisas, as palavras ¢ as, ages, mas também os atos linguisticos e as palavras: ela © No original, “ineffetuale”. (NT) 7 No original, “inativata”. Como no caso anterior, o que esté em. questo no argumento de Agamben é a passagem ao ato. Aqui, aptamos por “inaruada” pois se trata de um termo que faz parte do contexto das discussdes sobre poténcia ¢ ato na filosofia aristotélica, na qual, como € notério, Agamben frequentemente busca elementos para suas conceitualizagdes. (N.T.) ee FILOAGAMBEN suprime a linguagem de toda referéncia, segundo a vocacio absoluta de Bartleby, ser um homem sem referéncia, aquele que surge e desaparece, sem referéncia nem a si nem a outro”. Jaworski, por sua vez, observon que a formula néo énem afirmativa nem negativa, que Bartleby “nao aceita nem recusa, avanga e se retira no seu proprio avangar”; ou ainda, como sugere Deleuze, que ela abre uma zona de indiscernibilidade entre 0 sim e 0 nao, o preferivel e o nio preferido, Mas também, na perspectiva que aqui nos interessa, entre a poténcia de ser (ou de fazer) e a poténcia de nao ser (ou de nao fazer). E como se 0 #0 que conclui a formula, que tem carater anaférico — pois nao remete diretamente a um segmento de realidade, mas a um termo precedente, do qual, e somente do qual, pode extrair seu significado — se absolutizasse até perder toda referéncia, voltando-se, por assim dizer, sobre a prépria frase: ana- fora absoluta, que gira sobre si mesma, sem se remeter mais nem a um objeto real nem a um termo anaforizado (T would prefer not to prefer not to...) De onde provém a férmula? Uma passagem da carta a Hawthorne, em que Melville faz 0 elogio do nao contra 9 sim (For all men who say yes, lie; and all men who say no — why, they are in the happy condition of judicious, unincumbered travelers in Europe; they cross the frontiers into Eternity with nothing but a carpetbag — that is to say, the Ego*), foi citada como possivel precursora. A referéncia nio poderia ser mais equivocada; Bartleby no consente, mas também. nao refuta simplesmente, e nada lhe é mais estranho do que o pathos heroico da negagdo. Ha sé uma formula em * Em inglés no original. “Pois todos 0s homens que dizem sim, mentem; e todos os homens que dizem nfo... ora, eles esto na feliz condigio dos viajantes sensatos, livres de carga, que percorrem a Europa; eles cruzam as fronteiras em dizegio & Fternidade com nada mais do que uma trouxinha nas mos — quer dizer, o Ego”. (N.T) GIORGIO AGAMBEN BARTLEBY, CU DA CONTINGENCIA 29 toda a histéria da cultura ocidental que se mantém em suspenso, com a mesma decisio, entre o afirmar e o negar, a aceitag4o e a recusa, o colocar € o retirar. Morfolégica e semanticamente préxima 4 litania do escrevente, a férmula é registrada, entre outros, em um texto que era familiar, no século XIX, a qualquer homem culto: a Vida dos Filé- sofos, de Didgenes Laétcio, Trata-se do ou mallon, o “nao mais”,’o termo técnico com o qual os céticos exprimiam seu pathos mais proprio: a epoché, o estar em suspenso. “Os céticos”, escreve Didgenes na vida de Pirro, “nao usam essa expressio nem positivamente (thetikds) nem negativamente (anairetikos), como quando, refutando um argumento, dizem: “A Cila existe nao mais (ou mallon) que a Quimera’”. O termo, porém, também nio deve ser entendido como um verdadeiro comparativo: “Os céticos eliminam, com efeito, até o préprio ‘nio mais’; como, de fato, a providéncia existe nda mais do que nio existe, assim também o ‘nao mais’ é nao mais do que nao é”. Sexto Empirico refor¢a de modo igualmente meticu- loso esse particular cstatuto autorreferencial do ou mallon: “Assim como a proposi¢ao ‘todo discurso é falso’ diz que, ao mesmo tempo que outras proposigdes, também ela é& falsa, do mesmo modo a férmula ‘nfo mais’ diz que ela mesma é nao mais que nao €... E mesmo se essa expressi0 se apresenta como uma afirma¢4o ou uma negag4o, nao é, porém, nesse sentido que nds a empregamos, mas de ° No italiano, a expresso utilizada aqui por Agamben é “non piuttos- io”, De dificil tradugio para o portugués, 0 fildsofo a utiliza para traduzir o advérbio grego mdllon precedido na negagao ou: ou mdllon (“nio mais que”), e, no decorrer do texto, temos quatro variantes: “piuttosto”, “non piuttosto”, “piuttosto che” e “non piuttosto che”. En- tretanto, 0 sentido estd sempre ligado 4 ideia cética de suspensio do juizo de Pirto de Elis, como Agamben argumentard no texto. (NT) 30 FILGAGAMBEN modo indiferente (adiaphords) e em um sentido abusivo (katakhréstikés)”. Nao se poderia caracterizar com mais precisio o modo em que o escrevente se serve da sua obstinada fér- mula. Mas a analogia pode ser prosseguida também em uma outra diregio. Depois de ter comentado o significado da expressio ou matllon, Sexto acrescenta: “E eis a coisa mais importante: no enunciado dessa expressio, 0 cético diz o fenémeno e anuncia o pathos sem opiniao alguma (apaggellei to pathos adoxastds)”. Ainda que geralmente nao seja registrada como tal, também essa Gltima expressdo (pathos apaggellein) € um termo técnico do léxico cético. Encontramo-la, de fato, mais uma vez com o mesmo valor em outra passagem dos Esbogos pirronianos: “Quando dize- mos ‘tudo é incompreensivel’, nao pretendemos afirmar que o que os dogmaticos procuram ¢ por natureza incom- preensivel, mas nos limitamos a anunciar a sua paixio (to eautou pathos apaggellontes)”. Aggello, apaggello si0 os verbos que exprimem a fun- cao do aggelos, do mensageiro, que simplesmente leva uma mensagem sem lhe acrescentar nada ou que declara per- formativamente um evento (polemon apaggellein significa: declarar guerra). © cético nao se limita a opor a afasia 4 phasis, 0 siléncio ao discurso, mas desloca a linguagem, do tegistro da proposi¢ao, que predica algo de algo (legein tt kata tinos), para aquele do anincio, que nao predica pada de nada. Mantendo-se na epoché do “nao mais”, a linguagem faz-se anjo do fenémeno, puro antincio da sua paixdo. Como precisa 0 advérbio adoxastés, paixdo nio indica aqui nada de subjetivo; o pathos é purificado de toda doxa, de toda aparéncia subjetiva, é puro antncio do aparecer, ntima¢ao do ser sem nennum preaicado. Sob tal luz, a formula de Bartleby mostra toda a sua pregnancia. Ela inscreve aquele que a pronuncia na estirpe GIORGIO AGAMBEN BARTLEBY, OU DA CONTINGENCIA, 31 dos aggeloi, dos mensageiros. Um desses é o Barnabas kaf- kiano, do qual se diz que “talvez ndo fosse mais do que um mensageiro e ignorava o contetido das cartas que lhe eram confiadas, mas também. o seu olhar, 0 seu sorriso, o seu caminhar pareciam uma mensagem, ainda que dis- so ele fosse inconsciente”. Como mensageiro, Bartleby “tinha sido enviado para algum misterioso designio por uma providéncia onisciente, que um simples mortal nio pode sondar”. Mas se, mantendo-se obstinadamente em suspenso entre a aceitacdo e a recusa, a negacio e a posicio, a formula que ele repete predica nada de nada e se livra, por fim, até de si mesma, qual é a mensagem que ele veio nos trazer, o que a formula anuncia? IL. 3. “Por poténcia-possibilidade (dynamis) os céticos entendem uma contraposigio qualquer entre os sensiveis e 0s inteligiveis: desse modo, em virtude da equivaléncia que se encontra na oposi¢do entre as palavras e€ as coisas, nés chegamos 4 epoché, ao estar em suspenso, que é uma condi¢io em que nao podemos nem atribuir nem negar, nem aceitar nem refutar.” Segundo essa singular informa- ¢40 de Sexto, os céticos viam no estar em suspenso nao uma simples indiferenga, mas a experiéncia de uma possibilidade ou de uma poténcia. O que se mostra no limiar entre ser e nao ser, entre sensivel e inteligivel, entre palavra e coisa, nio é 0 abismo incolor do nada, mas a espiral luminosa do possivel. Poder significa: nem atribuir nem negar. Mas de que modo aquilo que-é-nio-mais-que-nio-é ainda conserva em si algo como uma poténcia? Certa vez Leibniz expressou a poténcia originaria do ser na forma de um principio, que se costuma definir como “principio de raz3o suficiente”. Este assim se enuncia: ratio est cur aliquid sit potins quam non sit, “ha uma raz3o pela a2 FILOAGAMBEN qual algo existe em vez de [piuttosto che] nao existir”. Na medida em que nio se deixa reconduzir nem ao polo do ser nem ao do nada, a formula de Bartleby (como o seu arquétipo cético) coloca em questio esse “mais forte de todos os principios” servindo-se precisamente do potius, do “em vez de” [piuttosto] que articula a sua escansio. Extraindo-o 4 forga de seu contexto, a formula emancipa a poténcia (potius, de potis, significa “mais potente”) tanto da sua conex4o com uma ratio quanto da sua subordinagio ao ser. Comentando o principio de razio suficiente, que o seu mestre Leibniz havia deixado sem. demonstragio, Wolff explica que é repugnante a nossa raz4o admitir que algo possa acontecer sem uma razao, Com efeito, ao se eliminar esse principio, “o mundo verdadeiro”, escreve ele, “transforma-se em um mundo de fabula, no qual a vontade dos homens serve de razio para o que acontece (mundus verus abit in mundum fabulosum, in quo voluntas hominis stat pro ratione eorum, quae fiunt)’. O mundus fabulosus, de que se trata aqui, é “aquela fabula absurda que contam as velhas e€ que na nossa lingua vernacula se chama Scharaffenland, pais de Cocanha... Tens vontade de uma cereja, € eis que ao teu comando aparece uma cerejeira carregada de frutos maduros. Por uma ordem tua, 0 fruto voa até a tua boca c, se assim 0 quiseres, divide-se pela metade no ar de modo a deixar cair o caroco e as partes murchas, para que tu nio as tenhas de cuspir. Pombas no espeto enchem o céu e se introduzem espontaneamente na boca de quem tem fome”. Aquilo que, na verdade, é repugnante 4 mente do filésofo nao é, porém, que vontade e capricho tomem o lugar da razdo na esfera das coisas, mas o fato de que, desse modo, © A expressio se constitui, em italiano, com o “piuttosto che”. Como salientamos na nota 9, em portugués se faz necessaria a utilizagio de equivalentes para dar conta da variagdo semantica da formula. (N.T.) GIORGIO AGAMBEN BARTLEBY, OU DA CONTINGENCIA 33 a ratio seja eliminada também do reino da vontade e da poténcia. “Nao apenas nio ha mais nenhum principio da possibilidade e nenhum principio da atualidade externo ao homem, mas nem sequer a vontade tem mais algum principio para o seu querer, ao contrario, é indiferente a querer seja o que for. Assim, tampouco quer porque deseja (ideo nimirum vult, quia libet): nao ha, de fato, nenhuma razo0 para que queira isto mais do que [piuttosto que] aquilo”. Nao é verdade, portanto, que, eliminado 0 principio de razio, o arbitrio dos homens tome o lugar da ratio, transformando o mundo verdadeiro em fabula; é verdadeiro precisamente o contrario, isto é, que, eliminada a ratio, também a vontade se arruina junto com ela. No ascético Scharaffentand, em que Bartleby sente-se em casa, ha apenas um em vez de [piuttosto] completamente liberado de toda ratio, uma preferéncia e uma poténcia que j4 nao servem mais para assegurar a supremacia do ser sobre o nada, mas existem sem razao na indiferenga entre ser e nada. A indiferenga entre ser e nada nao é, porém, uma equivaléncia entre dois principios opostos, mas 0 modo de ser de uma poténcia que se purificou de toda raz4o. Leibniz negava ao possivel toda auténoma puissance pour se faire exister,’ que era procurada fora dele, em Deus enquanto ser necessirio, isto €, “existentificante” (Est ergo causa cur existentia praevaleat non-existentiae, seu ens necessarium est existentificans). Subvertido por completo, o principio leibniziano assume entio uma forma de todo bartlebiana: “o nao haver razdo de algo existir mais do que [piuttosto che] ndo existir é a existéncia de algo nao mais que [non piuttosto che] nada”. A boutade do principe da Dinamarca, que resolve todo problema na alternativa entre ser e nio ser, a formula do escrevente opée um terceiro termo que “ Bm francés no original, “Poténcia para se fazer existir”, (N.T) 34 FILGAGAMBEN os transcende a ambos: o “mais que” (ou o “nio mais que”) [il piuttosto (0 il non piuttosto)]. Essa € a Gnica licdo a qual ele se atém. E, como o homem da lei parece intuir em determinado momento, a experiéncia de Bartleby é a mais extrema em que uma criatura pode se arriscar. Pois -ser, € por certo dificil, mas é a ater-se ao nada, ao na experiéncia propria daquele hdéspede ingrato, o niilismo, com o qual, j4 hd algum tempo, nos familiarizamos. E ater- se apenas ao ser e 4 sua necessaria positividade, também isso é dificil, mas nao é precisamente esse o sentido do complicado cerimonial da onto-teo-légica ocidental, cuja moral mantém uma secreta solidariedade com o héspede que gostaria de expulsar? Ser capaz, numa pura poténcia, de suportar 0 “nao mais” [il non piuttosto) para além do ser e do nada, permanecer até o fim na impotente possibilidade que excede a ambos — tal é a experiéncia de Bartleby. O biombo verde que isola seu escritorio traga o perimetro de um laboratério em que a poténcia, trés decénios antes de Nietzsche, e em um sentido de todo diverso, prepara © experimento no qual, libertando-se do principio de tazao, emancipa-se tanto do ser quanto do nao-ser ¢ cria sua propria ontologia. O experimento, ou da descriagéo IIL.1. A propésito de Robert Walser, Walter Liissi inventou 0 conceito de “experimento sem verdade”, isto é, de uma experiéncia caracterizada por falhar em toda telagdo com a verdade. A poesia de Walser é “poesia pura” (reine Dichtung), pois “se recusa, no sentido mais amplo, a reconhecer o ser de algo como algo”. E preciso alargar tal conceito como paradigma da experiéncia literaria, uma vez que nao apenas na ciéncia. mas também na poesia e no pensamento, se preparam experimentos. Estes nao dizem GIORGIO AGAMBEN BARTLEBY, OL DA CONTINGENCIA, 35 réspeito simplesmente, como os experimentos cientificos, a verdade ou 4 falsidade de uma hipétese, ao verificar-se ou nio-verificar-se de algo, mas colocam em questo o proprio ser, antes ou para além do seu ser verdadeiro ou falso. Esses experimentos sao sem verdade, pois neles a verdade esté em jogo. Quando Avicena, propondo sua experiéncia do “ho- mem voador”, desmembra e desorganiza, na imaginacao, pedaco por pedago o corpo de um homem para provar que, mesmo que fragmentado e suspenso no ar, ele ainda pode dizer: “eu sou”, que o existente puto é a experiéncia de um corpo sem mais partes nem érgaos; quando Cavalcanti descreve a experiéncia poética como a transformagio do corpo vivente em um autémato mecinico (“I’vo come colui ch’é fuor di vita / che pare, a chi lo sguarda, ch’omo / sia fato di rame o di pietra 0 di legno / che si conduca solo per maestria”") ou quando Condillac abre 4 sua estatua de méarmore 0 olfato e ela “nZio € mais do que odor de rosa”; quando Dante dessubjetiva o eu do poeta em uma terceira pessoa (“I’ mi son un”), em um homénimo genérico que atua como um mero escriba ao ditado de amor, ou quando Rimbaud diz: “eu é um outro”; quando Kleist evoca o corpo perfeito da marionete como paradigma do absoluto e Heidegger substitui o eu psicossomatico por um ser va- zio ¢ inessencial, que é apenas os seus modos de ser € tem. possibilidade apenas no impossivel, é preciso, a cada vez, levar a sério os “experimentos sem verdade” em que eles nos convidam a nos aprofundar. Aquele que ai se aventura, com efeito, arrisca nao tanto a verdade dos préprios enunciados ” Em italiano antigo no original. “Vou como quem est fora da vida / que parece, a quem o olha, com’homem / seja feito de ramas ou de pedra ou de lenho / que se move apenas por arti- ficio”. (N.T.) 36 FILOAGAMBEN quanto 0 proprio modo do seu existir e cumpre, no ambito da sua hist6ria subjetiva, uma mutagio antropoldgica a seu modo tio decisiva quanto foi, para o primata, a liberaco da mio na posigao ereta ou, para o réptil, a transformagio das extremidades anteriores que o converteu em passaro. F a essa espécie de experimento que Melville confia Bartleby. Se o que esta em jogo em um experimento cien- tifico pode ser definido pela pergunta: “em que condigdes algo poderA verificar-se ou, ao contrario, nao se verificar, ser verdadeiro ou falso?”, o experimento aqui em questio responde mais a uma pergunta como: “em que condigdes algo poder verificar-se e (isto é: ao mesmo tempo) nao se verificar, ser verdadeiro nao mais do que nao sé-lo?”. Somente no interior de uma experiéncia que, dessa ma- neira, tenha rescindido toda relagdo com a verdade, com © subsistir ou com o nio subsistir de estados de coisas, 0 “preferiria nao” de Bartleby adquire todo o seu sentido (eu, caso se queira, o seu nao-sentido). A formula evoca irresistivelmente a proposi¢io com que Wittgenstein, na conferéncia sobre a ética, exprime a sua experiéncia ética por exceléncia: “Maravilho-me com o céu, esteja ele como estiver”, ou ainda: “estou a salvo, o que quer que aconteca”. A experiéncia de uma tautologia, isto é, de uma proposicio que € impenetravel as condigdes de verdade, porque é sempre verdadeira (“o céu é azul ou nao azul”), corresponde, em Bartleby, a experiéncia do poder ser verdadeiro e, ao mesmo tempo, nio verdadeiro de algo. Se ninguém sonharia em verificar a formula do escrevente, € porque o experimento sem verdade nio diz respeito ao ser ou no ser em ato de algo, mas exclusivamente ao seu ser em poténcia. E a poténcia, enquanto pode ser ou nio ser, é, por definigdo, subtraida das condigdes de verdade e, sobretudo, a agio do “mais. forte de todos os principios”, o principio de contradicao. GIORGIO AGAMBEN BARTLEBY, OU DA CONTINGENCIA 37 Um ser que pode ser e, a0 mesmo tempo, nio ser, chama-se, em filosofia primeira, contingente. O experi- mento, em que Bartleby se arrisca, é um experimento de contingentia absoluta. IIL. 2. Nos Elementos de direito natural, Leibniz resame neste esquema as figuras da modalidade: possibile potest impossibile | non potest fieri Geu verum . est quicquid necessarium nom potest non { verum esse) contingens potest non A quarta figura, 0 contingente, que pode ser ou nao ser e, na sua oposi¢4o ao necessdrio, coincide com o espago da liberdade humana, deu lugar ao maior nimero de dificuldades. Se, com efcito, o ser conservasse em todo tempo e sem limites a sua poténcia de nao ser, por um lado © proprio passado poderia ser de algum modo revogado €, por outro, nenhum possivel passaria jamais ao ato nem poderia permanecer nele. As aporias da contingéncia sio, por isso, tradicionalmente temperadas por dois principios. O primeiro, que poderia ser definido principio de irrevoga- bilidade do passado (ou de irrealizabilidade da poténcia no passado) é colocado por Aristételes nos Mbios do pocta tragico Agatao: “Em relacao ao passado nao ha vontade. Por isso ninguém deseja que Troia tenha sido saqueada, porque ninguém decide sobre aquilo que foi, mas apenas sobre o que ser4 e é possivel; de fato, o que foi nao pode nao ter sido. Por isso Agatio tem razio em dizer: ‘Deus nao tem poder apenas sobre uma coisa: fazet com que ndo

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