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22 Introdugao. A esta altura do relato devo virar uma pagina e tomar folego novo. Doravante evocarei o lado oposto da minha vida, a saber, aqueles aspectos pelos quais procurei modifica: o mundo. Isto me coloca em situagdo dificil com relagio aos leitores deste trabalho. Embora nfo tenha relatado, até agora, os meus esforgos gue visam mudar © mundo, 0s leitores os ¢onhecem melhor que qualquer outro aspecto meu, pela seguinte razo: todos os meus engajamentos se dio em forma de “discursos”, e 0 livro que os. leitores esto lendo é mais um de tais “discursos”. Com efeito: 0 presente é livro que forma o provisoriamente ultimo elo da cadeia. do meu engajamento. E este fato é, no fundo, 0 tinico aspecto meu que os leitores conhecem. Conhecem-me enquanto pessoa que discorre a fim de modificar 0 receptor da sua mensagem, sentem tal vontade minha durante a sua leitura. De forma que, embora nio tenha eu falado até agora do meu engajamento, os leitores esto perfeitamente conscientes dele. Reformularei, pois, a nova decolagem. Até aqui procurei descrever 0 mundo que me cerca, € maneira como me orientava nele a fim de investir contra ele. Doravante descreverei minhas investidas, e a maneira como 0 mundo a elas resistia. E tal descri¢So sera, ela propria, investida contra o mundo. Em outros termos: até aqui dei depoimento engajado quanto ao meu mundo, doravante darei depoimento engajado quanto ao meu engajamento. Em Suma: até aqui falei e escrevi a respeito de coisas e homens, ¢ doravante falarei e escreverei a respeito do meu falar e escreyer sobre coisas para homens. Falo e escrevo com entusiasmo. Falar ¢ escrever sio minha tara. Mas devo acrescentar duas reservas a tal afirmativa. Creio que nao me entrego inteiramente d tal tara, mas parte minha sempre 202 Vilém Flasser “observa outra, a qu: fala e escreve, para controla-la. De maneira que creio poder dizer que raras vezes perco a meta do meu falar e escrever de viste. Embora me embriague com palavras, no articulo para “me comunicar”, mas “para informar outros”. A segunda reserva é que creio estar sempre consciente do fato de que minha Ansia de publicar é efetivamente tara. Depois de toda conferéncia, depois de toda leitura de artigo meu, sinto nitidamente aquele gosto amargo na boca que é sintoma de embriaguez “superada”. Nao apenas porque sinto ter falhado sempre no esforco, mas principalmente porque sinto a dubiedade do proprio esforco. No sou portanto rigorosamente alcoélatra. Nao falo a despeito do gosto amargo, mas a fim de intensificar 0 gosto a tal ponto que me permita jamais pronunciar outra palavra. Viso esgotar a praga do dever-escrever até a iltima gota, a fim de me ver livre dela, Nao sei se tal atitude é caracteristica ou nao de muitos. Sei apenas que minha vivéncia é esta: verdadeiros exércitos de palavras se erguem constantemente no meu intimo, a fim de serem pot mim ordenados e dirigidos rumo aos outros, e minha salvagio seria a interrupgao de tal fluxo “inspirado”. Obvios diagnésticos psicolégicos do meu falar e escrever no me servem, conforme procurei dizer em outro lugar deste trabalho. Nao quero nem devo sarar da minha doenga, devo assumi-la. Digamos assim: j4 que fui atingido pela praga da palavra, devo procurar transformar a tara em instrumento para a modificagao do mundo e de mim mesmo. O fato de me pagarem, por vezes, por meu falar e escrever, é pois para mim motivo de surpresa constante. Acredito que a rigor deveria ser castigado pelo ‘meu falar, ou pelo menos pagar pela permisso de falar e escrever publicamente. Possivelmente estou de fato pagando por isto, conforme acreditava Guimardes Rosa. Apenas, pera mim, “pagar” tem significado ligeiramente diferente do dele. Nao sei distinguir claramente entre falar e escrever, entre ser professor e ser escritor como duas formas de engajamento. Falo como se estivesse escrevendo. A aula académica em esco- las brasileiras tem 50 minutos. Este 0 espago dentro do qual de- via articular-me. Dado tal desafio formal, tendia a esquecer que Bodenlos — Uma Autobiografia Filoséfica 203 havia alunos na minha frente. Via apenas os 50 minutos, como no Suplemento do Estadio via apenas as quatro paginas datilografadas. O desaparecimento dos alunos se devis também 0 niimero desumanizador (mais de 100 por aula). Mas, curiosa- mente, quanto mais os esquecia, tanto mais os prendia, Uma es- pécie de fascinio deve ter emanado de mim, do qual me dou conta apenas na retrospectiva. Coisa altamente suspeita, inclusive no sentido weberiano: meu carisma me tomnou nao lider, mas sedu- tor da juventude. Mas na época nfo me dava conta disto. Estava fascinado pelo desafio estético da forma da aula, ¢ relegeva 0 resto para o horizonte do meu engajamento. Obviamente havia temas que me foram impestos. Por exemplo “teoria da comunicagéo”, na Faculdade de Comunicacées e Humanidades da Fundagdo A. A. Penteado, ¢ “filosofia da ciéneia”, na Politécnica da Universidade de S. Paulo. Mas 0 temas no passavam de pretextos para a articulagao dos espagos igualmente impostos, Por exemplo, a Poli: dois semestres, ‘compostos de um niimero dado de aulas de 50 minutos. “Filosofia da ciéncia” era 0 material a ser moldurado para formar um todo de dois semestres, com grupos de aulas formando tocos dentro do todo, e toda aula formando um todo a sustentar-se individualmente. Se perdia uma aula (por feriado), ficava desesperado. Rompia meu projeto. Mas isto ndo € tudo. Os cursos se sucediam por varios anos. Era preciso formar espiral em ascensio indefinida. “Filosofia da ciéncia” era empresa ‘empolgante, por no ter horizonte. ‘Minha atitude estética perante os cursos era pedagogicamen- te suspeita. Nao correspondia as metas visadas pelos estabeleci- mentos que me pagavam. Tratarei deste problema quando discu- tir meus esforgos em manipular os “canais” pelos quais me co- municava. Mas devo confessar desde jé minha incapacidade de enquadrar-me nos estabelecimentos. Até na qualidade de “titular de cadeira”, na Penteado, fui sempre elemento estranho. Jamais venci minha aversfo a toda forma de academicismo. Fui tolera- do, a despeito disto, durante varios anos, principalmente porque os alunos exigiam minha presenca (por razdes que no coincidi- 204 Vilém Flusser am necessariamente com as metas dos estabelecimentos). Mas a influéncia dos alunos diminuia, e minha posigao de “funciond- rio” se enfraquecia, em conseqiiéncia. Embora as aulas tenham representado para mim o verdadeiro desafio, jamais perdi os receptores de vista. Jamais esqueci minha meta: provocar inquietagio nos receptores. Para ‘mim é esta a tarefa do intelectual em geral, e do professor em particular: provocar zonas de subversio intelectual em seu tomo. ‘Um dia encontrei um papel impresso sobre a minha mesa com os dizeres: “My mind is made up; don't confuse me with facts”. Foi para mim triunfo. Portanto: o tema a ser discursado era secundétio, tanto formal quanto existencialmente. Importava provocar diividas, ¢ isto era alcangdvel esteticamente. Visava libertar a juventude para ser ela mesma, De mode que meu carisma teve efeitos anticarismaticos a longo prazo (tinica desculpa). Resistirei a tentago de descrever meus cursos, embora tal tentagdo seja grande. Esbocarei apenas dois, ¢ resumirei os demais cursos e conferéncias em unico pardgrafo no final do presente argumento. | 23 Teoria da comunicagao Projetei, junto com Miguel Reale, a estrutura para uma escola de “Studium Generale” (ou “Ctoss Education”). Tal problema me tinha preocupado por anos, ¢ discuti sua viahilidade com Chomski, Quine e Santillana em Boston. Imaginavamos dois circulos de cadeiras, um cientifico e 0 outro humanistico, com a cadeira da teoria de comunicagio como ponto de cruzamento, Darei o esquema do projeto em outro lugar do presente trabalho. Tal posigao da cadeira da teoria de comunicagao (que reservei para mim) nao apenas the conferia funcdo especifica, mas provocava determinada definigdo da prépria teoria. Esta: “que teoria da comunicagdo seja metadiscurso de todas as comunicagdes humanas, de maneira que a estrutura de tais comunicagées se torne evidente”. Tratava-se de definigio de trabalho (“Working definition”) para a finalidade especifica da ‘A. A, Penteado. Tal definigdo provocou a estrutura da escola, © 0 programa do meu curso, Tratarei aqui apenas do programa, Era preciso, em primeiro lugax, definir 0 campo de competéncia da teoria, Em segundo lugat era preciso classificar 08 fendmenos dentro do campo. Tal classificagio devia partir de varios angulos, para dar ao campo profundidade. Finalmente era preciso poder aplicar os resultados do estudo na praxis da comunicagéo humana. Tal programa esta “aberto” para as diregdes seguintes: (I) a competéncia da teoria nao € dada; (2) ‘08 métodos da teoria no so dados; (3) a praxis da manipulagio dos fendmenos estudados nfo & dada. As premissas do programa siio estas: (a) a competéncia da teoria deve ser campo para a qual outras disciplinas ja estabelecidas so também competentes; (b) 0s seus métodos devem ser emprestados de tais disciplinas; ¢ (c) a praxis da manipulagdo deve ser elaborada originalmente. Redefinindo portanto: “Que teoria da comunicagdo seja 206 vVilem Flusser metadiscurso de todas as comunicagdes humanas de maneira que a estrutura de tais comunicagées se torne evidente, a fim de poder modificé-la”. “Comunicélogo” & quem dispe de instrumentos para a modificacdo das comunicagdes humanas, ¢ a teoria deve fornecé-los. Tal o programa da minha cadeira. Consiste pois de trés degraus de estudo. O primeiro procura definir a propria competéncia, € é “ontolégico” neste sentido. Pergunta: “que é comunicacio humana?”. O segundo procura por métodos de investigacao, e é “epistemolégico” neste sentido, Pergunta: “como comunicagdes humanas podem ser investigadas?” O terceiro procura por métodos para modificar a situacdo das comunicagdes, ¢ é “noeticamente engajado” neste sentido. Pergunta: “como devem ser comunicagées humanas € 0 {que posso fazer neste sentido?” Tal programa toma evidentes dois aspectos: (a) assim definida, a teoria da comunicagao nfo é “isenta de valor”, (cientifica), mas humanistica (engajada em valores); (b) assim definida, a teoria da comunicagao é um “Studium Generale”, porque sintetiza varias disciplinas. Procura generalizar varias disciplinas, a fim de desautonomizé-les e destecnologiza- las, conservando, no entanto, seu cardter “exato”. Em outros termos: assim definida, a teoria da comunicagio visa superar 0 saber tecnocratico por um saber engajado no homem. Variei os trés degraus do programa ao longo de varios cursos. Propus sempre novos critérios para a definigio do campo. Sempre novos métodos para a classificagao do campo. E meus alunos e eu procuramos, sempre de novo, influir nas comunicagdes que nos cercavam. Darei varios exemplos. Num dos cursos procurei utilizar a visio fenomenolégica como critério de distingdo entre comunicagao humana ¢ fendme- nos de outro tipo. Isto nos levou a distinguir entre “cultura” e “natureza”, tendo por critério 0 gesto humano. Gesto enquanto articulago de interioridade humana, expresso de “liberdade”, Era preciso definir “gesto” como espécie da classe “movimento do corpo humano”. O corpo humano se estabelecett em proble- ma. Depois era preciso distinguir entre pelo menos dois tipos de “gesto”: gesto contra coisa e gesto em diego de outro. O pri- Bodenlos ~ Uma Autobiografia Filoséfica 207 meiro tipo era chamade “trabatho", 0 segundo “comunicacao intersubjetiva”. O cana. de comunicacao do primeiro tipo era chamado “obra”, 0 do segundo, “0 proprio gesto”. A competén- cia da teoria ficou assim definida: a totalidade dos gestos enquanto articulagdes da liberdade. Em outro curso procurei utilizar a andlise existencial como critério de distingdo entre comunicagao humana ¢ fendmenos de outro tipo. Distinguiamos entre “estar comigo” (0 outro) e “estar & mao” (a coisa), Comunicagao humana era definida como as maneiras do “estar comigo”. Uma entre tais maneiras de estar ‘comigo se revelava a mcis fundamental: a da convengo que “dé sentido as coisas”. Portanto a codificac&o inter-humana que convenciona certas coisas em “simbolos”. Todas as demais comunicagSes se.fundamentam sobre esta. Surgiu problema da codificagio sem. cédigo pré-existente. Da “origem da comunicagdo”, portanto. A competéncia da teoria ficou assim definida: 2 totalidade de eddigos (0 mundo do “espirito”, portanto). Por falta de espago nao posso continuar enumerando as propostas para a definicéo da competéncia da teoria. Mencionarei apenas que os critérios marxistas (dialética homem-coisa) se iam revelando muito fecunéos, mas deixaram de ser elaborados por receio de “dedos-duros” em aula. Quanto a classificagdo do campo da competéncia, mencionarei alguns dos pontos de vista assumidos. (a) Nervos (comunicagdes auditivas, visuais, téteis, olfiticas ete.). Métodos indicados: fisiologia, behaviorismo etc. (b) Fungo (comunicagao de massa, de elite, closed circuit etc.). Métodos indicados: sociologia, psicologia social etc. (c) Dinamica (discurso, didlogo, rede, irradiagao, Arvore, elipse etc.). Métodos indicados: cibernética, teoria dos jogos etc. (d) Simbolo (comunicagdes denotativas, conotativas, imaginativas, conceituais etc). Métodos indicados: critica literdria, estética ete. (e) Informagio (comunicagdes originais, banais, kitsch ete.). Métodos indicados: teoria da informagao etc. (f) Mensagem (comunicagdes imperativas, indicativas, exclamat6rias, inquisitérias ete). Métodos 208 Vilém Flusser indicados: anélise légica etc. (g) Canais (comunicagdes unidimensionais, multidimensionais, diacrénicas, sincrdnicas etc.) Métodos indicados: psicologia da Gestalt etc. (h) Social (comunicagdes de trabalho, de consumo, de diversio etc.) Métodos indicados: economia, sociologia etc. E assim por diante. O importante em tais classificagdes € 0 overlapping de métodos, € darei um tnico exemplo, Comparamos um programa de TV sobre zoologia ¢ um livro de ensino de zoologia para escolas médias. Classificamos ambos de varias maneiras. O resultado foi surpreendente. Revelamos, especialmente no caso do livro, camadas “ideolégicas” tanto da mensagem como da forma inteiramente insuspeitas. Tivemos a sensagio de penetrarmos terra incégnita, de sermos bandeirantes a despeito da literatura pré-existente. O nosso trabalho se perdeu na sua maior parte. Nao apenas porque tudo na situagdo atual brasileira tende a perder-se se no se enquadra na tendéncia geral, mas também porque todo trabalho académico tende a perder-se na avalanche da superprodugdo generalizada. Os xerox das aulas estdo guardados em cantos empoeirados da biblioteca da Fundacio, como em tantas bibliotecas do mundo. Quem considera a quantidade de energia e fantasia criativa encostada no mundo inteiro tende a desesperar de todo engajamento em cultura. Quanto aos esforgos de manipular as comunicagdes em nosso redor, relatarei alguns grupos de trabalho que formamos: (a) reestraturagao da propria cadeira; (b) reestruturagdo da dinamica das proprias aulas; (c) reestruturag3o da propria escola; (@) reestruturagio da imprensa por meus proprios artigos e artigos dos meus alunos; (e) reestruturagdo de revistas por meus artigos © por revista feita pelos alunos; (f) reestruturagdo da TV por mim € um grupo de alunos; (g) ago sobre teatro, filme ¢ propaganda comercial por parte dos meus alunos; (h) organizagdo de exposigdes, mesas-redondas, happenings etc. por parte dos meus assistentes; (i) minha tentativa de reestruturar a Bienal de Si0 Paulo. Resumirei o resultado: encontramos duas resisténcias diferentes. Uma, a inércia do ambiente. A outta, as manipulagdes altamente eficientes do sistema vigente, A segunda era a decisiva. i | | | Bodenlos ~ Uma Autobiografia Filoséfica 209 As nossas tendéncias visavam manipular a comunicagao no sentido de libertar 0 receptor da tirania dos canais, e 0 sistema visava manipulé-las no sentido de submeter o receptor sempre mais perfeitamente. Em tal combate desigual ficamos vencidos. Falarei dos pontos (f) TV e (i) Bienal em ake lugar deste trabalho, por serem reveladores. Bis os resultados do meu engajamgnto na cadeira “teoria da comunicagao”. (a) Positivos: Aprendi muito. Criei amizade produtiva com meus assistentes oa ce © Alan Meyer. Conheci algumas pessoas excepcionais entre meus alunos, e tive influéneia sobre elas. Tive oportunidadg de elaborar algumas idéias sistematicamente. (b) Negativos: Nab consegui integrar-me no estabelecimento. Senti aversio pelo jogo de status no qual estavam empenhados os meus colegas. A maioria dos meus alunos visava diploma e carreira, coisa qug me desesperava. Tive efeito carismatico nao pretendido sobre alunos. O nivel intelectual de escols er, para mim, exasperante, E meus esforgos em mudar a situagao foram vencidos. Em retrospectiva, a possibilidade de retomar & cadeira se me apresenta pesadelo, Mas no queria el pasado por isto. Era experiéneia da situaco cultural brasileira, e| da situagZo académica do mundo. | 24 Filosofia da ciéncia curso na Politécnica pertencia a Milton Vargas, ¢ visava, tal qual o jé discutido, uma espécie de “Studium Generale”. A intengdo era de colocar varias cadeiras como espécies de barreiras para cortarem verticalmente os cursos horizontais da escola, ¢ forgar todos os alunos de todas as especializagées, desde a eletronica até a construcao naval, de passarem por elas. Tal intengdo acreditava poder destarte impor sobre 0 futuro tecndlogo ¢ funciondtio visio “geral e humanistica do mundo”. Assim expressa a intengdo revela o seu absurdo: manipular tecnélogos tecnicamente a fim de “humanizé-los”. Creio que tal absurdo caracteriza todos os esforgos da tecnocracia em pro! do “homem”. Na Poli isto se tornava palpdvel. Como mero substituto de Vargas, ocupava eu na Poli posigio subalterna. A minha tarefa era dar aulas, nfio preocupar- me com a estrutura do curso. Nisto minha responsabilidade e possibilidade de ago era muito menor que na A. A. Penteado. Mas aconteceu algo (alids, jamais oficialmente reconhecido) que transformou 0 curso em verdadeiro corte vertical através nao apenas da Poli, mas de amplas regides da universidade toda. Centenas de alunos se reuniam na aula, sentavam no chio e em torno da cétedra, ¢ formavam massa para mim amorfa, Quando procurei constatar a provenigncia dos alunos, constatei o seguinte: embora o curso fosse obrigatério para alunos da Poli, muitos néo participavam e faziam falsificar as “listas de presenga”. Mas havia numerosos alunos (e professores) da Filosofia, da Biologia e do Direito. E havia algo de sinistro em tomo disto: o fato era negado durante 0 seu préprio acontecer, e isto durante anos. Quando me lembro disto agora, ainda sinto calafrios. Tao sinistra era a coisa que nio a discuti nem sequer com o proprio Vargas. Uma espécie de pudor no permitiu fazé-lo. 212 Vilém Flusser A proveniéncia heterogénea dos alunos teve efeito sobre 0 tema do curso. Inicialmente tinha pretendido um curso destinado a tecnicos, e o tema ia ser aquela regio problemética entre ciéncia ¢ técnica, na qual conhecimento vira praxis, e pesquisa “pura” vira engajamento em prol do homem e da sociedade. Mas dada a composicao dos ouvintes modifiquei 0 tema. Assumi 0 curso enquanto tribuna da qual podia exercer influéncia sobre setor representativo da juventude académica paulista, e ampliei o tema sem perder o problema original de vista. Procurei focalizar a ciéneia enquanto discurso cumulativo de explicagdes “objetivas” de fendmenos, ¢ enquanto método historicamente determinado de humanizar a natureza e naturalizar 0 homem. Procurei portanto demonstrar perante a juventude a ruptura atual entre formalismo @ historicismo (entre estruturalismo ¢ marxismo) no exemplo central da ciéncia, E simultaneamente procurei enquadrar a filosofia da ciéncia no contexto maior de uma teoria da comunicagao generalizada. Assumi, nisto, 0 ponto de vista estrutural, mas procurei, na medida na qual as circunstancias 0 permitiam, fazer jus aos argumentos marxistas contra tal ponto de vista. Devo esclarecer isto um pouco, tanto a partir da minha autobiografia quanto a partir das circunstancias do préprio curso. Jé falei, em outro lugar deste trabalho, da minha dupla aproximagao da teoria da comunicagao: a partir da minha obsessiio lingiifstica, e 2 partir de uma filosofia da ciéncia como eu a entendia, A rigor, ndo havia nisto duplicidade. Ciéncia para ‘mim sempre tem sido uma maneira da falar, ¢ filosofia da ciéncia, portanto, parte da filosofia da lingua. Apenas, parte que tendia cancerosamente a invadir as demais partes. Creio que a filosofia da ciéncia encontrard sua posigdo apropriada apenas dentro de urna teoria de comunicagao a ser futuramente elaborada. Desde minha leitura de Schlick, em Praga, estava convencido de que ciéncia ¢ essencialmente discurso. Apenas assumia sempre perante a lingua posigio inteiramente diferente da assumida pelos neopositivistas. Creio que para eles lingua é mapa que espelha situagdes (Sachverhalte). Por isto ha para eles zo fundo apenas dois problemas: (a) 0 que pode, ¢ 0 que no pode Bodenlos ~ Uma Autobiografia Filosofica 213 | ser espelhado pela lingua? e (b) como posso distinguir entre espelhar correto, incorreto e cego (entre proposigdes verdadeiras, falsas ¢ nonsense)? O resultado de tal atitude é que para eles ciéncia passa a ser ou 9 tnico falar valido, ou pelo menos um falar muito privilegiado. Para mim lingua é outra coisa. Ja disse quando falei em Wittgenstein que para mim lingua é praga que age diabolicamente de dentro de nés para alienar-nos da realidade E, simultaneamente (e em conseqiiéncia disto) lingua ¢ nossa dignidade, Tem ela, para mim, colorido nitidamente religioso. Voltarei ao problema quando tratar dos| meus livros Lingua e Realidade e Histéria do Diabo. Desta forma me aproximava pelo avesso da interpretacdo marxista da ciéneia enquanto instrumento para a decomposigio da realidade e sua reformulagdo segundo regras lingiiisticas (regras do pensament)). Portanto, para mim as proposigSes cientificas nao refletem gituagdes da realidade, mas, pelo contrario, 2 realidade é decomposta em situagdes pela agao corruptora (analisadora) do discurso. No fundo creio que Wittgenstein (¢ um certo marxismo) concordardo com isto ‘Apenas receio que amos perdem 0 elemento decisivo em tal processo: 0 poder poético da lingua. Para mim ciéncia € poiesis em sentido diabélico: decomposiedo formal da realidade. Isto porém néo me conden necessariamente|a maniqueismo, como mostraré a seqiiéncia do presente arguménto. Sobre tal base de positivismo Iégi¢o, marxismo e andlise existencial acumulavamse livros. Kant nd original e na forma de Cassirer. Muito pesadzmente Jaspers, Nos bastidores estavam Nietzsche e Dewey a espreita. E no prosdénio, a tendéncia atual para a autonomizagio das varias ciéneias e para o fascismo tecnocrético profetizado por Marcuse e Hannah Arendt. Em tal clima, repito, diabdlico, se davam meus \diélogos com Vicente, Vargas ¢ Leénidas Hegenberg, que devem agora ser levemente esbogados. | Vicente, como eu, focalizava a filogofia da ciéncia a partir do positivismo ligico e da anilise existencial, ¢ alcangava visio nio totalmente diferente da minha, embora em clima diferente. Para ele, ciéncia era aspecto do projeto ocidental, pelo qual tal 214 Vilém Flusser projeto encobria a realidade. Era pois método para alienar 0 homem ocidental da realidade. Transformou-o em sujeito, € 2 realidade em conjunto de objetos. Profanava a realidade. O germe da ciéncia esta no judeu-cristianismo. O discurso da ciéncia nfo passa de desenvolvimento progressivo de tal germe. Mas 0 projeto mesmo instaurador da ciéncia é trans-humano. E revelagio de um poder instaurador negativo. © Nada é a divindade que se revela no Ocidente, e a ciéncia realiza tal poder nadificante progressivamente. A terrivel visio de Vicente difere da minha, por ser “reacionaria” pela sua prépria estrutura. Progresso cientifico ¢ afastamento da proximidade do Sacro. Para mim progresso cientifico é a maneira como o homem afirma sua dignidade perante a realidade, embora o faca diabolicamente. Mas para mim, a visdo de Vicente tinha a enorme virtude de colocar o problema da ciéncia com toda a nitidez dentro das coordenadas apropriadas: as religiosas. Precisava digerir Vicente (e com ele Heidegger € Nietzsche). A atitude de Vargas perante a cigncia é inteiramente diferente da de Vicente. Nao elaborarei aqui a sua filosofia da ciéncia, jé que ele esté ainda trabalhando nisto. Trés argumentos de Vargas, no entanto, devem ser mencionados, j que me influenciam: (a) o carater especifico das proposigées cientificas; (b) a trans-historicidade de tais proposigdes; ¢ (c) 0 cardter historicamente determinado da ciéneia moderna. A aparente contradigdo entre (b) ¢ (c) seré eliminada na exposigio seguinte. (a) As proposigdes da ciéncia tém carga de “verdade” diferente das da filosofia. Sao “restritas” no sentido de serem verdadeiras com relagio a situagbes determinadas. E sao “universais” no sentido de serem verdadeiras para todos os que aceitam a ciéncia como método de conhecimento. As proposigées da filosofia pretendem a validade universal, mas sio contestaveis dentro da propria filosofia. As cientificas nao pretendem a universalidade, mas so cientificamente incontestaveis. (b) As proposigbes cientificas sio formalmente verdadeiras. Por isto no podem ser jamais “falsificadas”, se forem “verdadeiras”. Creio ser isto Bodenlos ~ Uma Autobiografia Filoséfica 215 afirmativa que deve ser ruminada, Opde-se ao formalismo atual, para o qual proposigées, para serem cientificas, devem ser “falsificdveis”. Por exemplo, a Kuhn, para o qual depois de toda “revolugdo estrutural” proposigdes previamente verdadeiras passam a ser nonsense. E opde-se também a todo historicismo. Por exemplo, a0 dialético, para 0 qual Newton esté superado em Einstein, Para Vargas, 2 parte de Newton superada em Einstein nunca tem sido “ciéncia”, e a parte cientifica de Newton nao foi superada por Einstein, Para ele, portanto, ciéncia ¢ processo ‘cumulativo de verdades “eternas”. O argumento me parece ser perturbador e forte. (c) A despeito disto, ciéncia é atividade humana historicamente determinada. A ciéncia modema surgi no barroco e tem cardter barroco. Andlises da sua estrutura podem reveli-lo, O Renascimento tinha no seu germe outra ciéncia jamais realizada. Leonardo, ¢ nao Galileu, podia ter sido um fundador da ciéncia, e a fantasia exata, e nfo o experimento mental, podia ter sido o seu método fundante. Destarte a ciéncia perdeu toda uma dimensio, mas ndo deixou de ser “formalmente verdadeira” por causa disto, Apenas a ciéncia modema fere apenas aquela parte da realidade para a qual a mentalidade barroca esta aberta. Obrigatoriamente, tais argumentos deviam entrar no meu curso. Lednidas Hegenberg, professor da filosofia da ciéncia no ITA {espécie de MIT brasileiro), se tornou meu amigo quando eu dava um curso de Filosofia da Lingua em Sao José dos Campos. E positivista légico depois da crise popperiana. Nao discutirei suas opinides, nem nossa contenda sobre “teorias” no Instituto Brasileiro de Filosofia, publicada como separata da Revista Brasileira de Filosofia. O importante ¢ apenas que discuti com ele em curso na Poli, e tomava em consideragdo as sugestdes e argumentos por ele sugeridos ao longo do curso. Esbocarei o curso. Parti da premissa de que ciéncia moderna 6 discurso especifico, tanto com respeito aos seus simbolos, quanto & sua estrutura. Os simbolos tém fungo denotativa (sio clarcs e distintos) ¢ a estrutura é 2 de uma logica e matematica em desenvolvimento. A base do discurso & convengéo mais ou ‘menos inconsciente, que é uma conseqiiéncia de um determinado 216 Vilém Flusser “estar comigo” (Mitsein) caracteristico da burguesia do Ocidente. ‘Em tal sentido, ciéncia é uma forma de comunicagdo da burguesia Pode ser, portanto, analisada em dois niveis. No nivel do discurso préprio, pelos métodos do positivismo légico, ¢ no nivel da codificago convencional, pelos métodos da dialética materialista. E pois acessivel tanto ao formalismo quanto ao historicismo. Mas ambos 0s métodas nfo ferem o seu micleo, a saber, os fatos misteriosos que a ciéncia “conhece” e que “funcionam” mistério epistemol6gico, liguei no curso 20 mistério maior da capacidade humana para a simbolizagio, ¢ nfo procurei “explicé-lo”, Procurei mostrar como a ciéncia, tal qual a arte, a filosofia e a religio, langa rede simbélica em torno do homem, rede que depois passa a ser “verdadeira”, porque substitui misteriosamente a realidade. A dialética de tal substituicdo (0 fato de que simbolos velam e revelam significados) é a sua verdade. ‘Apenas a ciéncia emite proposi¢des que substituem a realidade de maneira diferente da das demais proposigSes, porque se baseia sobre convengao diferente. So verdadeiras intersubjetivamente para todos os que aceitam a sua codificagao corvencionada, ¢ so nonsense para 08 que no a aceitam. Pois a aceitagdo da codificagio néo é conseqiiéncia de ato deliberado. Somos obrigados a accitar tal codificagdo porque ela é expresso do nosso estar-no-mundo, a saber, nés sermos burgueses do século XX. Devemos aceitar a convencao da ciéncia por sermas 0 que somos. Por isto as proposigdes da ciéncia so, para nés, necessariamente verdadeiras. ‘A filosofia da cigncia 6 © eaforgo de superarmo-nos ¢ vermo-nos de fora. Nao podemos a nao ser “crer” na ciéncia (6 questo de crenga, e a ciéncia & fenémeno religioso). Mas podemos ver nossa crenga de fora e compara-la com outras. Ai captaremos a ciéncia como rede comunicativa dentro da qual estamos, mas sobre a qual agimos, Destarte a filosofia da ciéncia pode ter pelo menos duas utilidades. Pode, em primeiro lugar, desmitizar a ciéncia (descientifizé-la), ao mostrar ser ela no “a” verdade mas a “nossa” verdade. E pode, em segundo lugar, desautonomizar a cigncia (destecnocratizé-la), ao mostrar ser ela Bodenlos ~ Ima Autobiografia Filoséfica 217 uma forma humana de ser-no-mundo, Mis 0 que a filosofia nio pode é isto: no pode diminuir nosso espanto perante 0 mistério fundamental de que 0 homem é ser de dentro do qual brotam simbolos e estruturas ordenadoras. Espanto perante o mistério da alienagéo diabélica humana. Pode mastrar que a ciéncia € atividade humana historicamente determinada, mas € obrigada a deixar as origens de tal atividade na escuridao misteriosa. ‘© milagre da técnica, a surpresa sempre renovada ¢ jamais superdvel de que equagdes simbélicas 40 traduziveis para a realidade e 14 funcionam, tomei igualmente por inexplicavel. Apenas procurei iluminar um pouco tal milagre, Com isto procurei combater a tendéncia para a magificaco da tecnologia. Comentei Iongamente a sentenca wittgensteiniana, gegundo a qual todas as coisas obedecem as leis da ciéncia, porque do contririo nao seriam coisas. Procurei mostrar como as leis da ciéncia nfo “revelam” as estruturas da natureza, mas impdemp tais estruturas. Que “conhecer” néo significa “descobrir ordem” mas “impor ordem”. ‘Mas capitulei perante o fato de que certab ordens aparentemente funcionam melhor que outras. Que para ir Lua é mais inteligente orientar-se pelas equagdes de Einstein que pelas teses da antroposofia. O milagre é este. ‘Mas neste caso também a filosofia| pode tomar distancia ¢ iluminar o milagre de fora. Em primeiro lugar pode mostrar que © milagre da técnica no passa de caso especial do milagre maior da “préxis”, isto é, da capacidade humang de mergulhar sua mio para dentro da realidade. Pode mostrar que “técnica” nao passa de manifestagao historicamente condi¢ionada da simultanea transcendéncia e imanéncia humana, © que nio é, neste sentido, fendmeno novo. Nao é a técnica que é milagre, ¢ a situagHo humana. Por outro lado, a filosofia pode mostrar que técnica enquanto manipulagio da realidade nao t¢m interesse, j4 que nio manipula “realidade”, mas fendmenos|ad hoc concebidos. A fungio da técnica é modificar 0 homem que @ possui. Nao, portanto, manipular coisas e homens coisificados é a fungio da Técnica, mas modificar 0 homem pela propria praxis. Destarte a filosofia pode humanizar a técnica e evitar a tecnologizagao do ae Vilém Flusser homem. Creio ser isto o niicleo de todo verdadeiro marxismo. ‘Apenas a maiotia dos marxistas tende a minimizar 0 mistério por tris da mera possibilidade da praxis. Esta, aproximadamente, a mensagem do meu curso. Nao concordo mais com ela em todos os seus detalhes. Hoje modificaria muitos dos seus aspectos. Mas continuo sustentando a sua base Lutar, de um lado, contra as tendincias cientifizantes © tecnocratizantes (fascistdides), ao procurar desmistificar a ciéncia ¢ sua funcdo alienadora. E manter, de outro lado, aberto 0 espanto perante 0 mistério que toma possivel ciéncia ¢ toda comunicagao humana, Assim, 0 curso foi parte do meu engajamento em prot da falta de fundamento na qual me encontro. Assim: Iuta contra a circunstancia € busca de Fundamente. Externamente o curso estagnou em formalidades académicas, baseadas em ressentimentos pessoais, por sua vez baseados na situagio brasileira vigente. O curso foi transferido para a Faculdade de Filosofia, desbastada pela situago, ¢ em mio de “inimigos” curiosamente esquerdistas. Mas internamente 0 curso estagnou, porque nao se enquedrava nem no contexto menor (universidade), nem maior (situago brasileira). Morreu de morte natural, j4 que por osmose fui exchuido e exelui-me a mim proprio. Destarte perdi avenida importante para o meu engajamento. Mas nao creio ter sido inteiramente sem efeito. ‘Alguns entre os que me ouviram sero funciondrios ¢ tecnocratas futuros, mas com consciéncia um pouco intranguila, Reflexdes

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