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Livro Anwat de Psicandlise (2016), XXX-1, TEORIA E TECNICA PSICANALITICA O MEDO DO COLAPSO EA VIDA NAO VIVIDA Tuomas H. Ocpe! , Sko Francisco, EUA, Ha uma pequena cole¢ao de artigos psicanaliticos e de livros que mais afetou meu modo de pensar, e ndo somente sobre Psicandlise, mas sobre o que é estar vivo como ser humano. Eu incluiria nesse grupo “Luto e melancolia”, de Freud (1917), “Estruturas endopsiquicas consideradas em termos de relagdes de objeto”, de Fairbairn (1944), “Notas sobre alguns mecanismos esquizoides”, de Klein (1946), Aprender com a experiéncia, de Bion (1962), “O declinio do complexo de Edipo”, de Loewald (1979), bem como o artigo em que me concentro no presente trabalho, “Medo do colapso”, de Winnicott (1974). Winnicott pensando em voz alta sobre 0 medo do colapso “Medo do colapso” (1974), escrito no Ultimo ano da vida de Winnicott e publicado trés anos apés sua morte, é, a meu ver, sua Ultima grande obra.? Como 1. Esta discussao de Medo do Colapso 6 a nona de uma série de artigos em que estudo contribuigdes analiticas. ‘seminais. Discuti previamente trabalhos de Freud, Winnicott, Isaacs, Fairbaim, Bion, Loewal de Searles (Ogden, 2001, 2002, 2004a, 2006, 2007a, 2007b, 2010, 2011). 2. Ha alguma incerteza sobre quando Winnicott escreveu “Medo do colapso”. Em nota editorial para a publicagao inicial deste artigo na International Review of Psychoanalysis, a sra. Clare Winnicott (1974) escreve: "Este ‘artigo em particular fo iproposto para publicagao péstuma por ter sido escrito pouco antes da morte de Donald Winnicott fem 1971] e contém um primeiro enunciado condensado baseado em trabalho clinico corrente. [A formulagaio desses achados clinicos em torno da ideia central contida no artigo foi uma experiénoia significativa. Algo surgiu das profundezas do envolvimento clinico para a apreensao consciente e produziu uma nova orientagao para toda uma area da pratica clinica. Havia intengao de estudar mais alguns dos temas ‘especificos do artigo ¢ escrever sobre ele sem maior detalhe, mas 0 tempo nao permitiu que esse trabalho 5 ee 78 THOMAS H. OGDEN tes, este poderia ser resumido em uma frase ‘ou duas, [har atentamente para a complexidade que ite simples. Ao ler as linhas de abertura acreditava ter chegado a compreensao portante comunicar antes de morrer. oO tantos outros artigos importan a menos que se dedique um tempo para © se esconde sob sua superficie aparentement do artigo, nao resta divida de que Winnicott de algo que era novo para ele e que seria im artigo comega assim: Minhas experiéncias clinicas levaram-me recentemente, segundo acredito, a CO nova compreensio do significado do medo do colapso. (Winnicott, 1974, p- 87) Apalavra “experiéncias” aparece, discretamente, na frase de abertura do artigo como um termo comum, entretanto, pertence 4 esséncia do ensaio. As palavras “recentemente” e “nova” nessa frase s4o seguidas pelo uso da palavra “novo” mais duas vezes na frase seguinte: Meu propésito enunciar aqui, do modo mais simples possivel, algo que ¢ novo para mim e que talvez seja novo para outros que trabalham com psicoterapia. (p. 87) No terceiro e quarto periodos do ensaio ele escreve: Naturalmente, se o que eu digo € de algum modo verdadeiro, isso ja foi abordado pelos poetas do mundo; entretanto, os lampejos de insight que adveem da poesia nao nos absolvem da penosa tarefa de escapar, passo a passo, da ignordncia, rumo a nosso objetivo. Em minha opiniao, um estudo desta area limitada implica uma reconsideragdo de varios outros problemas que nos intrigam quando deixamos de trabalhar clinicamente tio bem quanto gostariamos... (p. 87) Quem, a ndo ser Winnicott, poderia ter escrito essas palavras? E mesmo Winnicott, se no me falha a memoria, jamais escreveu sobre isso dessa maneira. Ele nos diz que se ha alguma verdade no que acredita ter descoberto e que espera comunicar, sera sem diivida’uma verdade que os poetas conhecem ¢ tém captado através da poesia. Entretanto, como terapeutas, nao podemos nos dar ao luxo de nos contentarmos com lampejos de insight. As compreensdes sucintas dos poetas nfo “nos absolvem da penosa tarefa de eseapar, passo a passo, da ignorancia, rumo a nosso objetivo”. A linguagem tém um tom quase religioso. Nossa responsabilidade com nossos pacientes nao nos permite “absolver-nos da penosa tarefa” de usar a nés mesmos, conforme se fizer necessario, se quisermos ajudar nossos pacientes. Para isso, € preciso escapar “passo a passo, a partir da ignordncia”. Que tipo de ignorancia? Certamente ndo € ignoréncia da teoria analitica (conhecimento que Winnicott pressupée que 0 leitor possua, 0 que afirma duas Vezes adiante no artigo). O que entendo dessas palavras é que a ignordncia que devemos superar é a ignordncia emocional de nés mesmos. E necessario sermos Tosco filo" (p. 108) Em Explore7bes psicanalicas (Winnicot etal, 1969), uma selepdo de artigos publicados no publicados de Winnicott, os editores, em que Clare Winnicott esta incluida, datam “Medo do colapso” Como “escrito em 19637" Minha leitura do artigo levou-me a acreditar que a natureza esquematica deste arigo, eseilo sobre um tema muito importante para Winnicot, apoia @ afrmagao de Clare Winnicat (1974) de que ele fo eserto préximo da ocasiao da morte de Winnicot © MEDO DO COLAPSO EA VIDA NAO VIVIDA 79 capazes de experimentar 0 que é mais doloroso em nossas vidas e nos entender no que diz respeito a essas experiéncias. O tom nao é de pregacdo, mas de humildade e arrependimento em face das nossas préprias falhas (s6 mais tarde no texto tomamos conhecimento do suicidio de um dos pacientes de Winnicott). Winnicott nos diz que acredita que o que aprendeu sobre “esta drea limitada” (“o Significado do medo do colapso”) pode nos ajudar a chegar A compreensio de outros Problemas que contribuem para nossas falhas com nossos pacientes, E inconfundivel, ao ler estas linhas, que Winnicott deseja fervorosamente transmitir 0 enquanto ainda € capaz de fazé-lo. A escrita de Winnicott ao longo de sua vida analitica é comovente, nao porque ele abra o coragdo. Na verdade, ele diz muito pouco (diretamente) sobre ‘sua vida interior e muito menos sobre os detalhes de sua vida fora do consultério. Sua escrita € comovente por ele ser capaz de transmitir, através do uso da linguagem, o que é estar vivo para as experiéncias que descreve € para as ideias que desenvolve (que, como ele diz na frase de abertura deste artigo, so inseparaveis de suas experiéncias). O leitor poderia facilmente ultrapassar com pressa “as preliminares” que acabo de citar, da abertura de “Medo do colapso”, ansioso para chegar ao cerne do artigo. Mas isso seria perder a sua esséncia: nessas frases iniciais Winnicott mostra ao leitor © que significa viver (estar vivo para) a prdpria experiéncia, tanto no ato de escrever em si quanto (potencialmente) no ato da leitura. Winnicott diz que o que abordara sao “fenémenos universais” (p. 88), embora Possam ser mais evidentes em alguns pacientes nossos. O mais importante é que esses fenémenos universais, que aprendeu i de fato, possibilitam conhecer, por empatia, como é sentir-se assim quando um de nossos pacientes mostra esse medo [do colapso] de modo extremado. (O mesmo se pode dizer, na verdade, de cada detalhe da insanidade da pessoa insana. Nés © reconhecemos, embora esse detalhe [este aspecto da insanidade] possa no nos incomodar [no momento)). (p. 87) Como poderia Winnicott defender seu ponto de vista de forma mais clara e enérgica: para ser um terapeuta adequado, devemos usar nosso conhecimento pessoal de “como € sentir-se de tal maneira” — como se sente “insanidade”, embora nao estejamos presos a um “detalhe” particular dessa insanidade num dado momento. Como em “O uso do objeto” (1967),? em “Medo do colapso”, Witinicott inventa uma nova linguagem, propositadamente desorientadora para o que tenta transmitir. 3. Em “O uso do objeto", Winnicott usa o termo relacionado-ao-objeto (object-relating), que geralmente se refere a uma relagao de objeto (object-relatedness) madura, para tratar de uma situago de relagao primitiva (primitive relatedness) em que 0 objeto & "um conjunto de projegies" (1967, p. 88) € utiliza o termo uso do objeto (object usage) que geralmente significa beneficiar-se de outra pessoa, para se referir a uma forma adura de relagao de objeto na qual se reconhece 0 outro como suieito igual a si mesmo e apreende o fato de que a outra pessoa esta fora do alcance da sua onipoténcia psiquica. (Varios termos nesta Nota nao tém {radugao apropriada em portugués, a menos que usdssemos neologismos. Preferimos citar cada um deles no original, a despeito de tomar a leitura mais “acidentada’. (N. da T.)) i SS 80 THOMAS H. OGDEN Em “Medo do colapso”, Winnicott arranca os termos do seu uso comum de um jeito que desestabiliza o leitor. O mais importante entre essas palavras reinventadas ¢ 0 termo colapso: Usei deliberadamente o termo “colapso” por ser bastante vago ¢ poder significar diversas coisas. Em geral, a palavra pode ser tomada, neste contexto, para dar a entender o fracasso da organizaao defensiva. Mas imediatamente perguntamos: defesa contra 0 qué? E isso nos conduz ao sentido mais profundo do termo, uma vez que precisamos usar a palavra “colapso” para descrever o estado de coisas impensavel que dé base a organizagio defensiva. (Winnicott, 1974, p. 88) Cada vez que leio esta passagem, minha cabega comega a girar. Um conjunto de termos inter-relacionados ¢ introduzido, cujos significados escorregam e escapam. Tento tomar frase por frase. Winnicott diz: Em geral, a palavra [colapso] pode ser tomada neste contexto para dar a entender 0 fracasso da organizagao defensiva. (p. 88) Até ai tudo bem: colapso € 0 fracasso da organizag4o defensiva. A préxima frase diz: Mas imediatamente perguntamos: “defesa contra o qué?” (p. 88) Winnicott propde uma resposta a esta pergunta: Precisamos usar a palavra “‘colapso” para descrever 0 estado de coisas impensivel que dé base a organizagao defensiva. (p. 88) Aqui fica confuso: Winnicott parece dizer que “colapso” (que apenas uma frase antes afirmou ser o fracasso da organizag&o defensiva) € também o estado de coisas impensavel “que da base” 4 organizagao defensiva. Eu me pergunto, como pode o colapso significar tanto o fracasso da organizagao defensiva quanto 0 impensavel que da base a essa organizagao? Como se esse emaranhado de questées nao fosse suficientemente confuso, Winnicott acrescenta no paragrafo seguinte: o que “est por tras das defesas” (p. 88) so “fendmenos psicéticos” (p. 88) que envolvem “um colapso da consolidagao da unidadé do self” (p. 88). (A unidade do self é “um estado em que a crianga ¢ uma unidade, uma pessoa inteira, com um dentro e um fora, e uma pessoa que vive em um corpo, mais ou menos delimitado pela pele” [Winnicott, 1963, p. 91]. Ao atingir “o estado de unidade” a crianga torna-se uma pessoa, um individuo em seu proprio direito [Winnicott, 1960, p. 44].) Eno, o que temos até agora? O “colapso” é o fracasso da organizacao defensiva construida para proteger o individuo de um estado de coisas impensavel, psicdtico que envolve 0 “colapso da consolidagao da unidade do self”. O problema aqui reside no fato de a palavra ‘colapso” ser usada de varias maneiras diferentes. Outro problema reside no fato de a palavra ‘colapso’ ser usada repetidamente no proprio esforgo de definir 0 termo “colapso”. Acredito que a maneira confusa pela qual a palavra “colapso” esta sendo definida € produto do fato de que Winnicott pensa enquanto escreve, ou, para dizer de outro modo, usa a escrita como meio para pensar. Como ele disse no inicio, tudo 1 COUR TTR RS RET PTE REN I Pr ro nsenesrergy Rarer RNeeTRE MEERA IMRT ito so ode pam. frase a frase coisas pode 0 vel que onfuso, (p. 88) acdo da aéuma vive em > atingir proprio jefensiva psicético qui reside problema sforgo de sta sendo para dizer iicio, tudo O MEDO DO COLAPSO EA VIDA NAO VIVIDA 81 isso € novo e, eu acrescentaria, ele nao esta completamente seguro {ele ndo tem total certeza} de como colocar em palavras. Suas palavras nao estado desprovidas de significado; em vez disso, 0 significado esta em vias de ser pensado e mais cuidadosamente definido. Muitas perguntas surgiram: + Ocolapso é um surto psicético, um colapso mental (ou do estado de unidade)? * Sera que a organizagdo defensiva (que em si é psicética por natureza) serve para impedir uma catastrofe psicotica ainda pior? + A psicose é 0 “estado de coisas impensavel”, que “da base a organizagao defensiva”? ! + Como o colapso se oculta no futuro sob a forma de “medo do colapso”? ' O leitor precisa ser paciente e tolerar a confusdo enquanto Winnicott desenvolve 0 problema de como definir a natureza do “colapso”, que € 0 tema do seu artigo. Experiéncia vivida e nao vivida Winnicott parece fazer a seguir outra tentativa de abordar o tema, e comeca por afirmar para si mesmo os processos fundamentais pertencentes aos primeiros estdgios do crescimento emocional. Ele comega por onde todos nés devemos comegar a leitura de Winnicott: O individuo herda um proceso de amadurecimento. Este 0 conduz adiante na medida em que exista um ambiente facilitador... a caracteristica essencial [desse processo] é que ele tem uma espécie de crescimento préprio, sendo adaptado as necessidades mutaveis do individuo em crescimento. (p. 89) Com esta afirmagao sobre a relagao inicial mae-bebé em mente, Winnicott propde uma lista de “agonias primitivas” (p. 90) — uma forma de dor para a qual “a ansiedade nao € uma palavra suficientemente forte” (p. 89) —, cada uma acompanhada pela organizagao defensiva que se destina a proteger da vivéncia da agonia primitiva de base “que é impensavel” (p. 90). Essas agonias ocorrem durante © periodo em que o individuo esté em estado de dependéncia absoluta — momento em que a mae “supre a fungao de ego auxiliar ... momento em que 0 bebé nao separou © ‘ndo eu’ do ‘eu’” (p. 89). As agonias primitivas e as formas através das quais nos defendemos delas incluem: 1) Retorno ao estado nao integra¢do. (Defesa: desintegracdo.) 2) Cair para sempre. (Defesa: sustentar-se.)* 3) Perda da conivéncia psicossomatica, falha de interiorizago (Defesa: despersonalizagao.) 4) Perda do senso de realidade. (Defesa: exploragao do narcisismo primério, etc.) 5) Perda da capacidade de relacionar-se com os objetos. (Defesa: estados autisticos, relativos apenas a fendmenos do self.) E assim por diante. (Winnicott, 1974, p. 89-90) * No original: setfsnolaing. (N. da.) 82 THOMAS H. OGDEN O leitor deve fazer boa dose de trabalho: nao s6 precisa ler 0 artigo, deve também escrevé-lo. Vejo “Medo do colapso” como uma espécie de artigo inacabado (em minha opiniao, escrito no final da vida de Winnicott). Em minha leitura, ndo tento descobrir o que Winnicott “realmente quis dizer”. Em vez disso, tomo as ideias explicita e implicitamente declaradas de Winnicott como ponto de partida para 0 desenvolvimento do meu pensamento.‘ Abordo as agonias primitivas listadas acima sob 0 ponto de vista de que cada uma delas, por exemplo, “retorno ao estado nao integragao”, é uma agonia sé porque ocorre na auséncia de um vinculo mde-bebé suficientemente bom (estado de coisas que Winnicott chama de falha do ambiente facilitador).S Como Winnicott (1971) deixa claro em “Base para o self no corpo”, @ crianga pode “as vezes se desintegrar, despersonalizar e até mesmo por um momento abandonar o desejo quase fundamental de existir e de se sentir existente” (p. 261). A capacidade de se movimentar entre esses estados ¢ uma condig4o saudavel quando vivenciada dentro do contexto do vinculo saudavel mae-bebé. O bebé em estado de nao integragéo por si mesmo — fora do vinculo mae- -bebé — fica em condigao aterrorizadora. Para se proteger, Winnicott sugere, ele recorre a defesa psicdtica de desintegraco, ou seja, preventivamente aniquila a si mesmo (“defesa: desintegragao”). Acredito que a questao central aqui — embora eu deva lé-la no artigo — é que os estados sentidos toleraveis no contexto do vinculo mae-bebé sdio agonias primitivas quando a crianga precisa vivencié-las por conta propria. “Acrescento” o seguinte & lista total de agonias e as suas defesas, de Winnicott: quando desconectada da mae, a crianga, em vez de experimentar a agonia, ela evita a experiéncia ¢ a substitui por uma organizagao defensiva psicética (como adesintegragao). Da mesma forma, a agonia primitiva que Winnicott chama de “cair para sempre” € suprimida, pois seria insuportavel a crianga experimenta-la por si mesma. Imagino que a agonia de cair para sempre seja uma experiéncia como a retratada no filme de Stanley Kubrick, 2001: uma odisseia no espago, em que o astronauta flutua sozinho para 0 espago vazio, silente e sem fim depois que 0 corddo umbilical com a nave espacial ¢ cortado. A fim de nao sentir 2 agonia insuportavel de cair para sempre, a crianga se defende por meio de “autossustentacdio” — tentativa desesperada, na auséncia da mie, de manter coeso seu prdprio ser. Novamente, a ideia central aqui ¢ que a sensagao de cair para sempre é apenas uma agonia quando o eu infantil esta desconectado da mae (um ponto deixado para o leitor escrever). {Muito tem sido escrito sobre "Medo do Colapso". Esta além do escopo deste artigo comparar minha leitura com a de outros. Entre os artigos e livros que discutem esta obra, a meu ver, alguns se destacam pela relevancia particular em ralagao aos aspectos do artigo que enfoco: Abram (2012), Gaddini (1981). Green (2010), eC. Winnicott (1980) Parece-me que Winnicott simpliiga 0 conceito de colapso neste artigo quando atrbui sua origem "Yaha do ambiente faciitador” Parece estranho que Winnicot, sempre 0 pediatra,nBo reconheca o papel de mirades de rupturas, em oposigao a falhas do ambiente faciitador, como hipersensibilidade por parte da erianga, ou doenca fisica grave e/ou crénica, e assim por diante, que a toma inconsolével a despeito de quao boa a maternagem (o ambiente facitador) possa tr sido. pre PE RE TT I TT O MEDO DO COLAPSO EA VIDANAO VIVIDA 83 Winnicott (1974), ainda preparando o que ele chama de seu “Enunciado do Tema Principal”, diz: E errado pensar na doenga psicética como um colapso, ela é uma organizagio defensiva relativa & agonia primitiva. (p. 90) Portanto, uma das perguntas deixadas sem resposta na primeira parte do trabalho é abordada: 0 termo “colapso”, como Winnicott 0 usa, nao é sinénimo de surto > psicdtico; em vez disso, a psicose reside na organizagdo defensiva que ojindividuo utiliza para se proteger da experiéncia da “agonia primitiva”. Entretanto, permanece ainda sem solugdo a questo: se 0 “colapso” nao é um surto psicdtico, o que ¢ entéo? Apenas neste ponto do artigo Winnicott esté pronto para o que ele chama de “Enunciado do tema principal”, no qual aborda a questo: o que ele quer dizer com colapso? Ele comega a explicar: “Afirmo que o medo clinico de colapso é o medo de um colapso que ja foi vivido” (p. 90). Parece-me que, por algum motivo, Winnicott ; se equivoca em relacdo a seu tema principal. Acredito que 0 que ele quer dizer, e que; mais tarde diz varias vezes, é que 0 medo do colapso é 0 medo de um colapso que jd aconteceu, mas ainda nao foi vivido. Em outras palavras, temos formas de sentir ou de nao sentir os acontecimentos das nossas vidas. O pensamento de Winnicott sobre a relagdo do passado com o presente, num colapso que ocorre mas nao é vivido, difere do conceito de aprés-coup [Nachtrdglichkeit] de Freud (1918). Este ultimo refere-se 4 maneira como “experiéncias, impressdes e tragos de memoria podem ser revistos em uma data posterior para se encaixar com novas experiéncias ou com o surgimento de um novo estégio de desenvolvimento” (Laplanche e Pontalis, 1973, p. 111). No aprés- -coup, 0 acontecimento foi vivido, mas seu significado muda com o desenvolvimento psicolégico do individuo. No medo do colapso, o acontecimento nao foi vivenciado e esse atributo é que define sua relacéo com o presente. Acredito que o mais proximo da concepgao de Winnicott de um acontecimento nao vivenciado é 0 trabalho da Escola Francesa de Psicossomatica, para quem a experigncia emocional perturbadora demais para o individuo tolerar ¢ denegada da elaboragao psiquica e relegada ao dominio do corpo onde pode se desenvolver como doenga somatica ou perversao (de M’Uzan, 1984; McDougall, 1984). Winnicott, ao desenvolver seu “tema principal”, centra-se, em primeiro lugar, na dificuldade de se trabalhar com pacientes que esto em sofrimento por nao serem capazes de vivenciar 0 colapso que ocorreu no passado e, em vez disso, softem com 0 medo do colapso no futuro: 6. Faimberg (2007, 2013) faz uma importante contribuicao para a discussao sobre a relagdo entre passado @ presente em “Medo de colapso” (e em Nachtraglchkeit em geral). Ela concebe a vivéncia de um evento passado pela primeira vez no presente como algo que envoive um "duplo movimento: de antecipago (agonia primitiva) © de retrospeceao (dada pelas palavras do analista)" (2013, p. 208). Parece-me que a ideia de Faimberg de “antecipagao” e “retrospeccao” envolvida em um "duplo movimento” transmite o senso de um passado que ainda ndo foi vivenciado ‘procurando’ uma experiéncia no presente e, a0 mesmo tempo, 0 presente ‘procurando' no passado o que falta em seu estado atval. © MEDO DO COLAPSO EA VIDA NAO VIVIDA 85 colapso refere-se a ruptura do vinculo mae-bebé, encontra-se na defesa contra a experiéncia de ru Winnicott desenvolve na préxima frase: nao a um surto psicético. A psicose ptura do vinculo mae-bebé. © ego (de uma pessoa que sofreu colapso} é imaturo demais para reunir todos 05 fendmenos dentro da rea da onipoténcia pessoal, (p. 91) Ao ler este artigo, sem nao ser capaz de “ Oquee pre fico bruscamente detido neste ponto. O que significa Teunir todos os fendmenos dentro da area de onipoténcia pessoal”? a area de onipoténcia pessoal? Essa forma de onipoténcia é “pessoal” porque © individuo esta suficientemente maduro para ser capaz de se dedicar a essa maneira de pensar por conta prépria? Winnicott deixa claro que ele vé esse tipo de pensamento (na “area de onipoténcia pessoal”) como parte do desenvolvimento saudavel. © que vem a seguir é a minha interpretagao da declaragao de Winnicott a respeito da incapacidade de o ego imaturo reunir os fendmenos na érea de onipoténcia Pessoal. Acredito que o termo “onipoténcia pessoal” refere-se ao sentimento de ; fundo do mundo interno da pessoa que alcangou condigo de unidade, alguém que se tornou uma pessoa em seu proprio direito. Se essa suposigio estiver correta, a onipoténcia, nesse contexto, refere-se a interiorizagao da experiéncia inicial com a mie que foi capaz de criar para o bebé a ilustio de que o mundo é exatamente como ele quer ¢ precisa que seja. Embora a mae (0 ambiente facilitador) amadurega de modo a responder & necessidade cada vez maior do bebé por “cuidado negativo e negligéncia viva” (Winnicott, 1949, p. 245), que facilitaré o desenvolvimento dele Para condigao de unidade, a experiéncia inicial de “onipoténcia” — a experiéncia de © mundo ser apenas como deveria ser — permanece como elemento do mundo intemo inconsciente saudavel do individuo. Com essa concepgao do inconsciente em mente, Winnicott passa a abordar outra questo levantada no inicio do artigo: como 0 colapso ficara encoberto no futuro sob a forma de “medo do colapso”? A resposta de Winnicott a essa pergunta constitui 0 que considero uma das passagens mais bem escritas de seu artigo Aqui se deve perguntar: por que o paciente se preocupa [temendo o que aconteceré no futuro] por algo que pertence ao passado? A resposta deve ser que a experiéncia original de agonia primitiva nao pode adentrar o passado a menos que o ego possa, antes, reuni-la em sua propria experiéncia do tempo presente e sob o controle onipotente (assumindo a fungdo de apoio de ego auxiliar da mie (analista)). Em outras palavras, 0 paciente deve continuar procurando pelo detalhe do passado que ainda no foi vivenciado. A busca toma a forma de uma procura por este detalhe no futuro, (1974, p. 91, grifo do autor) Assim, 0 acontecimento passado, ocorrido mas nao vivenciado, continua a atormentar o paciente até ser vivido no presente (com a mae/analista). E, no entanto, apesar da beleza da resposta de Winnicott para a questdo que ele coloca, considero a resposta incompleta. Parece-me que uma das principais, se ndo a principal motivacdo para um individuo que ndo tenha vivenciado partes importantes do que aconteceu no inicio da sua vida, & a necessidade urgente de reivindicar partes perdidas de si mesmo, para finalmente se completar, englobando, tanto quanto for capaz, grande parte da sua vida nao vivida (ndo vivenciada). Entendo isso como : i O MEDO DO COLAPSO E A VIDA NAO VIVIDA 87 da em anilise através da experiéncia que paciente e analista vivem em conjunto € a0 longo do tempo, experiéncia de fatha significativa do analista, mas que nao ultrapasse © que o paciente pode tolerar. Winnicott deixa claro que o analista deve tentar manter @ experiéncia de colapso contida no consultério de modo que a hospitaliza¢éo nao Seja necessaria. E, ainda, a experiéncia de colapso “nao é suficientemente boa se nao incluir a compreensao analitica e insight por parte do paciente” (p. 92). Winnicott no vislumbra a cura pela catarse. O crescimento psicolégico ocorre através da experiéncia e da compreensao analitica da falha da mae/analista em uma situagao de dependéncia total. Paradoxalmente, o analista deve, simultaneamente!, falhar com © paciente de maneira significativa que rompa o vinculo entre paciente e analista durante o periodo de dependéncia, e ndo falhar com o paciente, vivendo com ele a experiéncia do colapso atual ¢ ajudando-o a entender essa vivéncia. Ilustragées clinicas Winnicott apresenta apenas quatro relatos clinicos sucintos em “Medo do colapso”. Em um deles, uma discussdo sobre 0 vazio (p. 93-5), descreve seu trabalho com um paciente que nao vivenciou o medo do vazio ou o medo do colapso e, em vez disso, “forneceu uma experiéncia de tipo indireto” (p. 94). O estado mental que Winnicott vé como base do vazio ainda-a-ser-vivido € apenas 0 sentimento de que “alguma coisa poderia ter sido” (p. 94). Nos dois exemplos clinicos que apresentarei, meu foco, tal qual Winnicott em sua discuss&o sobre o vazio, nao estard sobre as formas em que o medo do colapso se manifesta como projegao para o futuro de um colapso que ocorreu no passado. Em vez disso, vou enfocar as formas em que 0 colapso do vinculo mae-bebé no primeiro ano de vida e na infancia gera porgdes nao vividas da vida de um individuo que se tornam presenga continua sob a forma de sensagao de incompletude do eu (andloga a ideia de Winnicott, esse vazio ainda-a-ser-vivido se manifesta no presente, como sentimento de que “alguma coisa poderia ter sido” [p. 94]). No presente artigo, a partir da minha discussao da teoria e, agora, na apresentagao do material clinico, espero transmitir as maneiras em que concebo e trabalho com a necessidade fundamental de o paciente captar partes perdidas de si mesmo que nunca fizeram parte da vida, permaneceram nao vividas (e, assim, permanecem apenas como um aspecto potencial do self). Conforme a ilustragao que farei, a atitude analitica que reconhega e valorize as formas mais sutis e improvaveis em que um paciente pode tentar vivenciar pela primeira vez eventos nao vividos do passado ¢ fundamental para ajudé-lo a vivenciar aspectos de si que foram “perdidos” (ou seja, nao realizados). A primeira experiéncia clinica que discutirei ocorreu na andlise de quatro sessées. por semana, de uma mulher que sofreu de negligéncia grave quando crianga. Sua mae era deprimida — muitas vezes incapaz de sair da cama — e seu pai abandonou a familia quando a paciente tinha dois anos de idade. Durante esta longa andlise, a sra. L iria repetidamente “apaixonar-se” por homens que aparentemente retribuiam seu amor, mas que logo agiam como se nunca tivessem 88 THOMAS H. OGDEN manifestado qualquer interesse por ela. Apés ter passado algum tempo procurando um carro para comprar, ela me disse que um vendedor em uma das concessionarias tinha Sido muito carinhoso na forma de falar com ela. Quando sairam para um test driv ele Ihe disse que seria muito divertido dirigir 0 carro na estrada que percorre Big Sur. Apés comprar 0 carro, a sra. L. voltou a concessionaria para ver o vendedor. Sentiu-se “arrasada” quando ele, algumas vezes, depois de falar com ela por alguns minutos, “abandonou-a” para falar “com qualquer pessoa” que entrasse porta adentro do showroom . Depois de ser “ignorada” por ele durante essa visita, a paciente Sentiu-se “inconsolavel com a falsidades dele”. Nas duas semanas seguintes, a sra. L estacionou diariamente o carro na rua em frente a concessionaria para ver o vendedor. Durante os meses que se seguiram, nao conseguia pensar em nada que nao fosse como ansiava por esse homem. Conversei com a sra. L sobre a possivel conexdo entre sua experiéncia humilhante, decepcionante ¢ enlouquecedora com o vendedor € seu sentimento de que eu, também, a abandonava repetidamente, ao final de cada sesso, durante os fins de semana, e nas férias. A sra. L, furiosa com tal sugestdo, acusou-me de nao acreditar que 0 homem “com o qual estava envolvida” tinha mostrado interesse genuino por ela. Nao contestei sua crenga nem persisti comentando a transferéncia. Até mesmo enquanto conversava com a sra. L sobre as semelhangas entre o modo como ela se sentia em relac&o ao vendedor e como se sentia em relago a mim, notei que meus comentarios soavam como férmulas estereotipadas. Pareceu-me que a sra. L tinha todo 0 direito de se opor a eles — os comentarios eram impessoais, “pré-fabricados” e no feitos exclusivamente para ela ¢ para 0 que acontecia entre nds dois, consciente e inconscientemente. Com sua ajuda, coloquei um ponto final na forma como falava com ela. Tentei, ent&o, deixar minha mente “ir vagando”, a fim de prestar atenc&o a todos Os pensamentos e sentimentos que me ocorressem (minha experiéncia de reverie) durante as sessdes da sra. L. Entretanto, durante os meses subsequentes as minhas impensadas “interpretacdes” transferenciais, percebi que eu também sentia 0 novo Tumo que tomei como apenas mais uma “técnica analitica” pré-fabricada. Eu nao .conseguia, me deixar levar pela liberdade e vitalidade do pensamento. Lentamente cheguei aconclusdo de que o que havia de mais real no que ocorria entre mim e a sra. L. era a vivéncia de esterilidade de ambos os lados. Apés:conviver muitos meses com essa esterilidade na andlise, eu disse para a sra. L.: “Vocé veio até mim porque originalmente sentiu-se humilhada pela forma como foi rejeitada por um homem e, em seguida, tornou tudo pior para si mesma através do que chama de “espreita-lo”.* Isso pode surpreendé-la, mas passei a acreditar que tudo que a faz persistir na busca desses homens é sua parte mais saudavel”. * No original: tracking him. Nao foi encontrada tradugao melhor para 0 vocabulo tracking. O termo comporta inimeros sentidos, como substantivo ou verbo, entre eles encalco, rastreio, rastreamento, ir atrés, correr atras ‘etc. Na consulta ao dr. Ogden por uma sugestao de sindnimo para o vocabulo, ele sugeriu shadowing, que também nao tem um bom correspondente em portugués. Ele, no entanto, advertiu para “ndo usar ‘stalking’ pois seria a tentativa de amedrontar 0 perseguido’. (N. da.) © MEDO DO COLAPSO EA VIDA NAO VIVIDA 89 Sra. L.: Esta cagoando de mim? Analista: Nao, nunca falei mais sério, era crianga foi deixada para se criar sozii ausentou-se. Mas 0 seu mundo de gente fa Para uma infincia real com pais reais ¢ ai dizer que vocé morreu quando era crian de ser vista como quem vocé é. Quand de carros do outro lado da nua, parec até encontrar a pessoa desaparecida, Sra. L.: Tive a impressio, ja ha algum tempo, que vocé desistira de inim, que vocé continua a se encontrar comigo sé por no saber como sair dessa. Nao consegui me lembrar quando fora a tiltima vez que a sra. L. dissera algo to honesto e pessoal. Eu disse: “i por isso que eu Ihe disse que a ‘espreita’ é sua Parte mais saudavel. E a parte em que vocé ndo desistiu de si, a parte que se recusa | a desistir de si antes de vocé ter um relacionamento amoroso com uma pessoa real, ' um amor retribuido genuinamente tao forte quanto 0 que vocé deu. Sra. L.: Ea parte de mim da qual sinto mais vergonha. Sinto-me patética quando estou sentada no meu carro olhando para um homem, mas no sei mais o que fazer. A: Creio que a “espreita” € 0 que a mantém viva, é uma maneira de agarrar- ~se firmemente ao ultimo fio que a liga A vida. A alternativa é deixar-se morrer, literalmente, ou viver como zumbi. Sra. L.: Eu tinha pavor de zumbis quando pequena. Nao tinha medo de aranhas, cobras, vampiros ou assassinos em série, mas eu me esmerdeava de medo de zumbis, Essa foi a primeira vez que a sra. L. usou um termo obsceno, e a importancia de fazé-lo no passou despercebida para nenhum de nés. Pareceu-me que refletia © afrouxamento genuino da liberdade de pensar e exprimir seus pensamentos e sentimentos. No préprio ato de me dizer como temia tornar-se uma morta-viva, foi capaz de jogar merda, por assim dizer, no campo analitico antes estéril. 4: A pessoa morre se, de alguma forma, retirarem a merda das suas entranhas. As pessoas precisam das bactérias que fazem o cheiro da merda ser tao ruim. A voz da sra. L. estava muito menos constrita do que o habitual quando me disse: “E engragado ouvir vocé usar a palavra ‘merda’. Eu gosto. Parece que somos criangas em idade escolar transgredindo as regras e que vocé nao faz isso com. mais ninguém além de mim. Por incrivel que parega, nao sinto medo de ser expulsa da andlise.” No periodo subsequente de trabalho com a sra. L., a vivacidade da sesso que acabei de descrever permaneceu presente juntamente com crises de medo intenso de que cu a estivesse manipulando. Disse ter medo de que eu estivesse jogando um “jogo analitico” com ela, no qual a enganava para levar a sério 0 que acontecia entre nés, enquanto eu, impassivel, olhava de fora. Suas acusagdes me feriram numa proporgio de certo modo incomum para mim. Eu gostava da sra. L. e senti que tinha sido to honesto comigo mesmo e com ela (em meu papel de seu analista) quanto era capaz de ser. 4: Creio que quando vocé me acusa de ser manipulador, me mostra como é no ser vista, 0 que é ser invisivel. Voc sabe muito mais do que gostaria como é se sentir invisivel, a ponto de nao existir nem para si mesma. Conforme jé conversamos, quando vocé inha — 0 seu pai a abandonou, sua mae z de conta nao era um substituto adequado migos verdadeiros. Acho que nao € exagero 6a pequena, por falta de afeto e pelo desejo jo voeé se descreveu observando 0 vendedor eu-me um detetive dedicado que no vai desistir 90 THOMAS H. OGDEN Asra. L. manteve-se em siléncio pelo resto da sesso, de um modo que me pareceu profundamente triste. Hoje em dia, quando olho para tras para esse periodo de trabalho com a sta. L.. parece-me que persistimos por um periodo muito longo de esterilidade emocional Durante esses anos, um ou outro tentava evitar reconhecer o estado de coisas que existia entre nds (por exemplo, sob a forma de tentativas minhas de imitar uma experiéncia analitica com interpretagées transferenciais “pré-fabricadas” € experiéncias de reverie). Fomos em frente, apesar da esterilidade (a auséncia dela como ser humano vivo, que respira ¢ se esmerdeia), talvez porque de alguma forma sabiamos que precisévamos viver isso juntos antes que qualquer outra coisa pudesse acontecer. A verdade da ideia de que ela morrera quando era muito pequena sé poderia fazer sentido real apés ela experimentar comigo a falta de vida da analise — e sentir-se impotente para fazer algo a respeito. S6 entdo fomos capazes de encontrar palavras — embora parecesse que as palavras, como a palavra “merda”, é que vieram a0 nosso encontro — para podermos expressar 0 que viviamos naquele momento. ‘Ao refletir sobre essa experiéncia clinica, pode-se indagar como a minha compreensdo do que ocorreu na anélise da sra. L. difere das maneiras como usei algumas ideias de Fairbairn que foram uteis em meu trabalho clinico (Ogden, 2010). Tive experiéncias com os pacientes que compreendi em termos de vinculos de dependéncia entre objetos internos inconscientes, por exemplo, entre o “ego libidinal” de Fairbairn e 0 “objeto excitante”, € entre “o sabotador interno” e “o objeto rejeitador”. Eu diria que ha uma diferenga fundamental entre a concep¢ao de Fairbairn de relacionamentos de objetos internos que causam dependéncia e o modo pelo qual entendo o comportamento compulsivo de “espreita” da sra. L. © mundo de objetos internos de Fairbairn é construido como uma versio interiorizada de experiéncias vividas em relagdes de objeto insatisfatorias com a mae. Em contraste, © mundo inconsciente da sra. L. era moldado principalmente pela experiéncia nao vivida de relagdes de objeto iniciais insatisfatérias com a mae. A feroz determinacdo da sra. L. de clamar por sua vida nao vivida foi o motor que a levou A atividade sintomatica da “espreita”. Através desse comportamento de “espreitar”, a sra. L. procurou intensamente os aspectos nao vividos ¢ nao experimentados de si mesma € da sua vida passada e presente. Parece-me que os pacientes que viveram formas mais extremas de medo do colapso, como a sra. L., sentem-se oprimidos pelo fato de terem sido incapazes de viver (nao foram capazes de estar vivos para) a maior parte das suas experiéncias de vida. Tais pacientes acham extremamente doloroso sentir-se vivos — até mesmo a ponto de sentir prazer em resposta 4 sensacao de calor suave do sol em sua pele — porque provoca a dor do reconhecimento de quanto das suas vidas foi nao vivida. Muitas vezes, sentem-se amargurados pelo fato de a vida lhes ter sido tomada e de que nunca a recuperardo. Creio que essa dor geralmente toma a forma de uma combinagao de dor fisica (muitas vezes como parte de uma doenga fisica real) e dor emocional. Uma vez que boa parte da dor da experiéncia nao vivida é armazenada no corpo, naquilo que Bion (1948-1951) chamou de “estado protomental” (p. 154), nao é de estranhar que minha compreensao inconsciente da dor muitas vezes toma a forma de © MEDO DO COLAPSO E A VIDA NAO VIVIDA 91 vivéncia corporal minha ao trabalhar com um paciente. Por um periodo de tempo, durante o trabalho com esse tipo de paciente, a sra. Z, vivenciei uma fome fisica me roendo por dentro durante as sessdes, que abrandava ao me encontrar com o paciente seguinte. Levou bastante tempo para entender a maneira pela qual a sra. Z. me tomou como substituto para a sua vida nao vivida. No inicio da anilise, a sra. Z. me contou que quando um vizinho lhe perguntou se ela gostava de determinado restaurante no bairro, disse a essa pessoa que nunca estivera la, mas, na verdade, estivera ali intimeras vezes. Quando revejo essa.hist6ria, me dou conta de que a sra. Z., a0 conté-la, falava mais da verdade do que qualquer um de nds poderia reconhecer a época: ela frequentara o restaurante, mds nunca estivera realmente 4, no sentido de estar viva em sua experiéncia de ali estar. ‘Anos mais tarde, contou-me que durante os primeiros anos de analise fizera 0 registro num diario de cada uma das cinco sessdes que tivemos a cada semana, mas anotou apenas 0 que eu dizia e nenhuma unica palavra sua. Entendi a auséncia da sra. Z. do seu didrio da andlise como sua maneira de registrar sua propria ndo existéncia, seu proprio colapso sob a forma de ter rompido com a vida. : A anilise foi muito dificil e jamais me senti confiante de que ajudasse’a sra. Z. a tornar viva sua experiéncia. Depois de muitos anos de trabalho analitico, propus encerrar a analise. Disse a paciente que me parecia que eu deixara de ser de qualquer ajuda para ela poder mudar a maneira como vivia sua vida e que ela talvez pudesse se beneficiar do trabalho com outra pessoa. ‘Asra. Z. respondeu dizendo: “Nunca me ocorreu que encerrarfamos esta andlise antes de um de nds morrer”. Pensei, mas no disse, que ambos ja estavamos mortos em muitos aspectos. Ela prosseguiu: “Na verdade, nunca pensei que andlise estivesse ligada a mudanga”. Para a sra. Z., mudanga era um conceito sem sentido. Os mortos nao mudam, e ela estava morta. Nao terminariamos até um de nés morrer fisicamente (ambos ja haviamos morrido mentalmente na andlise). Surpreendeu-me que trazer 4 tona a ideia de encerrar a andlise servisse como impulso poderoso para discutir a desvitalizagao da paciente, minha desvitalizacao com ela e a desvitalizago da andlise. A sra. Z. disse, na sesso seguinte aquela em que levantei o encerramento da andlise, que havia algumas coisas que ela queria realizar em sua vida antes de encerrarmos: queria se casar, concluir sua pesquisa € publicé-la em livro. No decorrer dos anos seguintes de andlise, a sra. Z, realizou todas essas metas. Discutimos 0 fato de que se casar é diferente de fazer um casamento, € que haveria grande quantidade de trabalho a sua frente depois de pararmos, para ela poder alcangar esse objetivo. Encerramos a anélise cinco anos depois que toquei pela primeira vez no assunto. ‘Nos anos seguintes, desde que paramos de trabalhar juntos, a sra. Z. me escreveu le duas vezes por ano. Nessas cartas, me dizia que sentia que o fim da anélise errado quando o cerca d nao fora algo arbitrario; agora fazia sentido para ela termos enc fizemos e como o fizemos. Era imperativo que vivesse uma vida propria e nao emprestada ou roubada de mim. Sua vida agora parece Ihe pertencer para fazer 0 que pode, ¢ ela se sente grata a mim por desperté-la para o fato de que antes “eu eliminara a plenitude da minha vida”. 2 THOMAS H. OGDEN Acredito que a sta Z. nao viveu conscientemente o medo da morte, porque, ¢m certo sentido, ja estava morta. Para a sra Z., estar morta, estar ausente da sua propria vida, era uma forma de se proteger tanto da dor de viver no presente um passado ainda-a-ser-vivido, quanto da dor de perceber que estava “perdendo” (em ambos 0s sentidos da palavra) partes importantes de si mesma.* Resumo “Medo do colapso” de Winnicott é uma obra inacabada, ¢ exige que 0 leitor seja ndo apenas leitor, mas também escritor do artigo que, muitas vezes, aponta significados em vez de apresentar ideias totalmente desenvolvidas. O autor apresenta sua compreensao dos argumentos muitas vezes confusos, outras vezes enigmaticos, do artigo de Winnicott. No primeiro ano de vida ocorre um colapso no vineulo mae-bebé que forca a crianga a assumir, por si mesma, fatos emocionais com 0S quais é incapaz de lidar. Ela escapa da vivéncia de agonia primitiva ao gerar organizages defensivas, psicéticas por natureza, ou seja, ela substtui arealidade interna pela realidade externa, denegando assim sua vivéncia de fatos realmente eriticos da vida. Como 0 individuo ndo vive o colapso do vinculo mae-bebé quando ele ocorre na infancia, ele cria um estado psicologico em que vive com medo de um colapso que jé aconteceu, mas que ele nao vivenciou. O autor amplia o pensamento de Winnicott, sugerindo que a forca motriz da necessidade do paciente para encontrar a fonte do seu medo é seu sentimento de que partes suas foram perdidas e que ele deve encontré-las se quiser tomar-se uno. Fle sente o que restou da sua vida, predominantemente, como uma vida nao vivida. Unitermos: Winnicott, colapso, psicose, experiéncia, self, medo do colapso, vida nao vivida Tradugdo: Estevam Vaz de Lima Revisdo Técnica: Tania Mara Zalcberg Referéncias ‘Abram J (2012). On Winnicott’s clinical innovations in the analysis of adults. 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Em inglés, comporta, entre muitos ‘outros, tanto 0 sentido de perda, falta, auséncia quanto o de um sentimento de nostalgia ou saudade. (N. da T.) O MEDO DO COLAPSO E A VIDA NAO VIVIDA 93 ua a ¢ i ‘ a the history of an infantile neurosis. SE 17: 7-121. : 61621 ). Bion’s ‘catastrophic change’ and Winnicot’s ‘breakdown’. Riv Psych oe 4 (2010), Sources and vicissitudes of being in D.W. Winnicott’s work. Psychoanal 0. 79: Klein M (1946). Notes on some schizoid mechanisms. In Envy and gratitu 1963 (pp. 1-24). New York, NY: Delacorte Press/Seymour Laurence, 1975. : Laplanche J, Pontalis J-B (1973). The language of psycho-analysis. ‘Nicholson-Smith D, translator. ‘New York, NY: Norton. jl Loewald H (1979). The waning of the Oedipus complex. In Papers on psychoanalys}s (pp. 384- 404). New Haven, CT: Yale UP, 1980. 5 MeDougal ‘J(1984), The ‘dis-affected” patient: Reflections on affect pathology. Psychoanal Q., 53: 409. : Ogden TH (2001). Reading Winnicott. Psychoanal Q., 70: 299-323. 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