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NOTA DE APRESENTACAO Filosofia da Paisagem. Estudos & 0 quarto livro preparado no ambito do Projecto “Filosofia e Arquitectura da Paisagem” e conclui uma intensa investigactio desenvolvida entre 2010 e 2013. Este projecto, financiado pela Fundacao para a Ciéncia e a Tecnologia, iniciou o que cremos ter sido uma erspectiva inovadora no contexto filoséfico portugués: a elaboracdo das bases tedricas de uma filosofia da paisagem. Os prinefpios norteadores foram claramente enunciados no Sumério, de que transcrevemos os seguintes excertos: a) Aassungio da Paisagem como problema da filosofia: Categoria enformadora da percepgdo do mundo desde o inicio da Moder- nidade, a Paisagem s6 vem a constituir-se como problema em simulténeo com a consciéncia da degradacio das bases naturais da existéncia. Na actual situagao da Natureza como realidade em crise, ou mesmo ameacada pelo Perigo de extingao, no sio mais aceitieeis definigdes restritiens como as de “vista”, “panorama” ou “pano de fundo". Paisagem, hoje, remete para uma totalidade, um sistema de interaceto de muiltiplos processos naturais, sendo ao mesino tempo um espaco real, fundamento de todas as esferas de vida e condigio de desenvolvimento das comunidades humanas. FILOSOFIA DA PAISAGEM, b) Ocntendimento da Paisagem como categoria sintética: O Projecto “Filosofia e Arquitectura da Paisagem” assume a preméncia de uma abordagem da Paisagem como categoria sintética, que, reconhecendo a simbiose entre a horizontalidade das superficies vistveis e a profundidade dos processos invistveis, ultrapassa as nocdes mais restritas de “territ6rio” € “ambiente”, com as quais nio deveré ser confundida, Entre a totali- dade inapreensivel para que remete a ideia de Natureza e a singularidade dispersa dos elementos naturais, Paisagem ocupa o lugar mediador de uma totalidade concreta que contém em si tanto a dimensio natural como a marea humana. A correlacao entre as abordagens estética e ética: O ddingnéstico sombrio da perda do valor da natureza e das suas implicagées numa civilizagio inteiramente mecanizada esta presente, desde a primeira metade do século XX, nos ensaios de Georg Simmel e Joachim Ritter dedi- cados @ funcito da paisagem nas sociedades modernas, e de Ronald Hepburn sobre o desprezo do belo natural. Mas é a partir da década de 70, com inter- vengdes pioneiras de Theodor Adorno, Rosario Assunto e Arnold Berleant, que se impoe a recuperacio do sentido intrinseco do natural e a urgéncia de compreender a natureza fora de pardmetros antrépicos. Em simulténeo com a consideracio das qualidades estéticas préprias a paisagem ganha consisténcia a posigito de que na esteticidade quallitatioa do mendo natural se encontra intimamente implicada a questao do seu valor moral O primado do ser sobre a representagao: Ao associar-se a arquitectura paisagista, a filosofia da paisagem pode liber- tar-se da relagéo tradicional ao universo das representacées e das imagens (nomeadamente da hist6ria da arte e da literatura) para a inscrever numa perspectioa do habitar concreto. Problems cldssicos da tradicio, como 0 primado do belo natural ou do belo artistico, as condigdes da experiéncia estética ou a articulagio entre estética e ética ganham diferente amplitude e significado quando reportados a paisagem como dimensio do Ser. Ao associar-se a flosofia, a arquitectura paisagista pode libertar-se do estatuto ambiguo de ramo de especiatizagao da arquitectura e enquadrar a longs experiéncia de investigacio das complexidades naturais em partimetros da filosofia da natureza e da teoria do espaco. NOTA DE APRESENTAGAO “Filosofia e Arquitectura da Paisagem” (FilArgPais), que teve como instituigéo proponente o Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e como instituigao parceira o Centro de Estudos de Arquitectura Paisagista “Prof. Caldeira Cabral”, procurou dar cumprimento aos objectivos defi- nidos no documento da candidatura, quer com a tradugdo de textos classicos, quer com a produgao de materiais inéditos por parte de investi- gadores portugueses e estrangeiros convidados. Esses resultados vieram a lume em trés livros, cada um dos quais obedeceu a propésitos e formatos distintos. Filosofia da Paisagem. Uma Antologia (Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011; 2." ed., 2013) contém a tradugao e interpre- taco de algumas das mais relevantes teorias da paisagem produzidas no arco temporal iniciado por Georg Simmel em 1913. Os capitulos iniciais permitem captar o surgimento de concepgdes muito diversas, por vezes contrastantes, quanto A esséncia (I. A Paisagem entre Natureza, Campo ¢ Cidade) e 4 composicao da paisagem (II. Paisagem entre Natureza e Cultura). Nos subsequentes, séo discutidas as principais orientagdes que hoje em dia se confrontam a respeito da apreciacao e conservagio dos espagos naturais (UL. Apreciar a Natureza: O Estatuto do Belo Natural; IV. Entre Estética e Etica: O Futuro da Paisagem). Filosofia e Arquitectura da Paisagem. Um Manual (Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2012) foi concebido como um livro didactico cuja estrutura temética pretendeu, sem perder de vista um conceito integrado, por em relevo a coexisténcia de pontos de vista conver- gentes. Os capitulos obedecem a uma légica de progresséo: partindo da reiterada pergunta pela origem da nogao de paisagem e a transigo que operou com a ideia de Natureza (I. Antes da Paisagem), percorre leituras de indole cultural e hermenéutica (II. Expressies Culturais da Prisagem; IIL Interpretar a Paisagem), analisa propostas em matéria de proteccéo, defesa e requalificagéo (IV. Estética e Etica da Paisagem; V. Legislagto da Paisagems; VL. Redesehar a Paisagem) e encerra com a transformagao da Paisagem numa categoria prospectiva (VIL. Um Conceito para o Futuro). Filosofia e Arquitectura da Paisagem. Intervengdes (Lisboa: Centro de Filo- sofia da Universidade de Lisboa, 2013) reine parte dos contributos apre- sentados nas sessées do Seminério Permanente organizadas no periodo 2 FILOSOFIA DA PAISAGEM de vigéncia do projecto. A cargo de especialistas de dreas distintas ~ filo- sofia, arquitectura paisagista, psicologia social, ecologia e artes plisticas = consta das seguintes secgdes: I. Da Natureza &@ Paisagem; I. Heuristica da Paisagem; I. Eticas da Natureza; IV. Cidates Hubitdveis; V. Para Além da Representagto. Diversamente dos precedentes, que resultaram de um trabalho colec- tivo, 08 estudos do presente volume sao da autoria da investigadora- -principal. Aos ensaios e textos de conferéncias produzidos no ambito de FilArqPais, acrescentaram-se outras publicagdes anteriores, reformuladas tendo em vista a coeréncia global do livro. A proveniéncia é indicada no final de cada capitulo. Sem prejuizo da unidade, foram mantidas algumas repetigoes e sobre- posigdes de autores e teorias, precisamente daqueles que o curso da inves- tigagio mostrou serem os mais relevantes para consolidar os principios atrds enunciados. Como insistentemente defendemos ao longo de todas as actividades do projecto FilArqPais, por se aproximar mais de uma ideia do que de um conceito empirico, Paisagem ¢ insusceptivel de uma definigao candnica, mas Go-pouco pode ser compreendida pela acumulagio de resultados obtidos pelos saberes que se dedicam ao seu estudo enquanto objecto natural ou as suas interpretagdes enquanto tema da histéria cultural. A unidade nao pode provir de um somatério. Apesar do crescente interesse que congrega miiltiplas areas da cultura cientifica e das humanidades, um conceito integrado implica um pensa- mento heuristico prévio ao cruzamento interdisciplinar. A filosofia oferece esta possibilidade ao inserir a compreensio da Paisagem na questo maior da unidade e totalidade do real, mais precisamente na busca pelo funda- mento dessa unidade, que constitui a sua vocagio prépria. Mas mesmo que esse fundamento seja a Natureza, a derivagio nao ¢ imediata. De esséncia sintética, e ndo analitica— nao é. simples parte de um Todo, como sabemos NOTA DE APRESENTAGAO B depois da ligéo de Simmel -, a heuristica da paisagem teré sempre de recorrer a eixos conceptuais duplos. Na Parte I (Antropologia e Filosofia da Natureza), reconduz-se a filosofia da paisagem, apesar dos contornos especificos que ganhou na actualidade, a articulacdo de antropologia e filosofia da natureza, no tratamento que Ihe foi dado por pensadores como Kant, Feuerbach e Simmel. Os senti- mentos pela natureza, distintos daqueles que ligam os humanos entre si, e a condicao do homem como ser num mundo que contém mas transcende a esfera natural ilustram modalidades de sintese objecto-subjectiva fundada em operagées da sensibilidade enquanto pensamento sensivel da existéncia sensivel. A faculdade de julgar reflexionante, a ontologia da sensagio ¢ a metafisica da Vida sio modalidades dessa capacidade mediadora que permite aproximar o distante e tornar homogéneo o heterogéneo. As grandes concepgies de Natureza e de arte entroncam na meta- fisica classica, mas a delimitagao nitida entre as duas ordens a nivel dos primeiros principios de explicacao tende a esbater-se em face da expansao de realidades compésitas que vivem da mistura do dado natural e da modelagao humana, e que na Modernidade dewém objecto de teorizagao independente. A época moderna fez nascer essa categoria mista de natu- teza e cultura, a Paisagem, seja como zona intermédia entre a natureza (campo) ea cultura (cidade); seja por implicar um recorte visual, um modo de ver a natureza em secgdes ou angulos determinados pela atitude do observador; seja ainda na prépria criacdo do termo que comporta a trans- formacio da terra pelo trabalho e pela histéria: pays/paysage; paese/paesaggio; Land/Landschaft. Na Parte Il (Natureza e Arte: As Categorias Compésitas) introduzem-se duas categorias que vivem igualmente da composigao: 0 Jardim, exemplo por exceléncia dos elementos naturais modelados pela ideia e a mao humanas; e a Ruina, que se desprende do significado mais comum de alegoria da condiggo humana para ser olhada como afirmacao das poténcias naturais. A crise ecolégica — com a correlativa consciéncia de um mundo natural em declinio, e mesmo em perigo de extingao ~ obrigou a uma profunda alteracao de algumas reas da filosofia que reconduziam os seus principios a.uma ideia de Natureza como fundamento estdvel e fonte de permanente regeneracio vital. A ética assumiu uma consciéncia nao-antropocéntrica “ FILOSOFIA DA PAISAG e ampliou a nogéio de comunidade a seres néo-humanos cujos interes ou direitos, sendo respeitados, impdem restrigSes ao bom agir. A estes libertou-se da inflexdo subjectivista e volta a assumir a objectividade beleza, mas, por outro lado, ao confrontar o belo com a presenca de forma de fealdade, é solicitada a integrar também categorias negativas de p= ciagao. A renaturalizacio dos principios contida nesta abertura da fle ao contexto natural da vida estd, por isso, longe de ser consensual e Gem mnina linhas de orientag4o muitas vezes inconcilidveis. A Parte III (Paisagey e Ambiente: Um debate tedrico) & dedicada ao confronto entre os pring movimentos que nas tiltimas décadas se tém desenvolvido paralelame= a filosofia da paisagem ea estética ambiental. A Parte IV (Problemas de Filosofia da Paisagem) incide expressat sobre a categoria. As teorias que consideramos mais represents sio aqui expostas e discutidas em toro de cinco nticleos: 0 regress natureza a filosofia; a paisagem como natureza estética; a metafisice paisagem; a ética da paisagem ea relacdo entre paisagem e cidade Completam o volume um {ndice Analitico e um indice Onomass ‘Aos membros da Equipa ¢ a todos os colaboradores que contr para que as tarefas do projecto “Filosofia e Arquitectura da Pas chegassem a bom termo cabe o primeiro agradecimento. ‘Uma palavra de gratidao é devida aos Profs. Augustin Berque. Velayos Castelo, Daniela Kato, Gongalo Ribeiro Telles, Leonel dos Santos e Sandra Patricio Ribeiro, consultores cientificos que niharam com atencéo e sugestdes criticas o andamento dos trabalho Uma mencio especial de reconhecimento para a Prof. Manuela & “Magalhaes, coordenadora do Centro de Estudos de Arquitectura P “prof. Caldeira Cabral”, pela colegialidade com que aceitou o des uma parceria entre os dois centros de investigacao. NOTA DE APRESENTAGAO 5 A concretizagao do presente volume fica a dever-se & ajuda inestimavel de Victor Goncalves, Rui Cambraia, Samuel Rama e Maribel Mendes Sobreira, que na fotografia da capa e nas imagens escolhidas para os sepa- radores oferecem diferentes interpretades do espirito de uma filosofia da paisagem. E de Moirika Reker, pela preparacdo dos textos e organizacao dos indices. Agradeco ainda ao Sr. Mario Fernandes, pela formatagao e composigio de todos os livros de FilArqPais, tarefas sempre realizadas com eximio cuidado e extrema paciéncia pelas sucessivas revisdes dos materiais. Por fim, mas nao em iiltimo lugar, cumpre-me expressar os agradeci- mentos de cardcter institucional. A Fundagao para a Cincia ea Tecnologia, que aprovou o financiamento para 0 triénio 2010-2013 de “Filosofia e Arquitectura da Paisagem” (FCT PTDC/FIL-FIL/100565/2008), no ambito do Projecto “Promover a Producao Cientifica, o Desenvolvimento Tecnolégico e a Inovagao’” ‘Ao Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, instituiga0 propo- nente onde o projecto sempre encontrou a melhor receptividade e todas as condigées indispensaveis, agradego na pessoa do seu director Prof. Doutor Pedro Calafate. Também a Dr. Carla Meneses Simoes e & Dr.* Filipa Seabra, do secretariado, pela simpatia e disponibilidade. Filosofia da Paisagem. Estudos é publicado como volume 5 da colecgao ASTHETICA. Lisboa, Agosto de 2013, ADRIANA VeRissimo SERREO I ANTROPOLOGIA E FILOSOFIA DA NATUREZA O SENTIMENTO DA NATUREZA E AS IMAGENS DO HOMEM EM KANT, FEUERBACH E SIMMEL © capitulo prope uma leitura antropolégica do sentimento da natureza em Kant, Feuerbach e Simmel, Partindo do exercicio da sensibiliiade de um ser tomado ‘na dupla condiigao de referide a si e de aberto a0 mundo, o sentimento da natureza exprimea unidade indivisivel do humano. Mas sendo, por outro lado, modelaco pelas diferentes manifestacSes da natureza e tomando formas divergentes, sea a continui- dade e a harmonia, seja 0 conflito ¢ a distancia, é a propria ambivaléncia da natureza ‘humana que neste sentimento acaba por se revelar, ¢ dai a dificuldade em fundar uma Antropologia como teoria global do Homem. ‘L. O sentimento da natureza: de vivéncia humana a categoria filoséfica Ao conjugar a ineréncia a um sujeito com a abertura ao mundo natural, envolvendo num mesmo acto a vivéncia pessoal e a experiéncia externa, 0 sentimento da natureza destaca-se do elenco de todos os restantes sentimentos humanos. Subjectividade e objectualidade, interioridade e exterioridade Tetinem-se nesta particular modalidade do sentir, que implica uma ligacio directa com 0 mundo apenas permitida pelas capacidades mediadoras da sensibilidade. O sentimento da natureza tera, pois, de ser compreendido reconduzin- do-o as operagées sensiveis que estabelecem a continuidade entre homem e mundo. E compreender como no sentimento da natureza o humano se revela ‘num funcionamento sintético é jé identificar um ponto de partida para uma antropologia. Seré porventura a auséncia desta conjungdo entre o sensivel e © sentimental que sempre dificultou a abordagem filosdfica do sentimento. Perder 0 vinculo que o liga & sensibilidade, langando-o para o reduto intimista 20 FILOSOFIA DA PAISAS dos estados de 4nimo ou para a superficialidade das respostas emotivas (© mesmo que esvaziar a antropologia da dimensio filoséfica, confinans uma posicéo residual entre o psicologismo das flutuagdes efémeras de afectiva e 0 reducionismo cientifico da explicagéo por nexos causais. Accstreita afinidade entre sensibilidade e sentimento aproxima as dou que elegemos para ilustrar a confluéncia de antropologia e teoria da <= bilidade. Em Kant, Feuerbach e Simmel esta peculiar orientagio do s= reveladora de um modo unificado do ser humano, irredutivel 8 zon: dos estados interiores, confinados & esfera privada, e igualmente distin dindmica afectiva que emerge nas relagées interpessoais. As figuras do = estético, do ser sensteel e do individuo peculiar ilustram tres possibilis de elaborar uma vivéncia diiplice numa categoria compésita: trans directamente do sentir espontaneo para o pensar o sentir abordam o ho: na dupla referéncia a sie & realidade exterior. ‘Tendo embora em conta os diferentes horizontes problematicos enquadram, nao pretendemos recuperar as miiltiplas implicagbes do t interior de cada uma das doutrinas. Procuramos delinear um percurs parte da filosofia da sensibilidade e que, por via preferencial da raz tica em Kant, da ontologia da existéncia em Feuerbach, e da metatisica em Simmel, conduz.o sentimento da natureza de uma antropologia rnascendi até ao limiar da antropologia como filosofia global do humano Importa indicar os sucessivos passos que determinaram a selec: t6picos ¢ dos textos analisados, enunciados para jd na ordem das r= ‘ais adiante ajustados a exposicao de cada um dos autores: =o primeiro colhe a génese do sentimento em modalidades s= descrevendo o devir-sentimento da sensibilidade; —o segundo mostra a intervengao da variedade dos fenémenos na modelagao do sentir e no seu desdobrar miiltiplo; =o terceiro reconduz essa multiplicidade ja de si ndo-uniforme figuragGes tipicas e correlagdes paradigméticas, ora de harmoni nuidade, ora de conflito e afastamento, A no congruéncia entre o niicleo inicial - correspondente & ima sujeito como ser incindivel ~ e a dualidade divergente dos sentime: com a natureza, que conduz, pelo contrétio, a figura do homem © tensional, toma evidente a circularidade aberta, eliptica, inerente = pensamento antropol6gico, movendo-se entre unidade e complexida eM ri paa yida == con- econti- gem do bs para pmo ser ftodo o de entre 1, ANTROPOLOGIA E FILOSOFIA DA NATUREZA a a consisténcia, se bem que parcelar, de cada perspectiva e a incompletude da ideia de homem, que visa enquanto filosofia global. 2. Kant: 0 sentimento estético na tensio entre sujeito racional e natureza humana O sujeito livre da reflexiio estética Surpreender uma antropologia na critica kantiana dos juizos estéticos nao serd mais do que explicitar o enigma do gosto: um sentimento (subjectivo), que & também um poder de apreciar e emitir juizos (como se fosse objective); e uma maneira de pensar (Denkungsart) os fenémenos particulares da natu- reza regulada pelo principio (universal) da conformidade a fins, mas que neste caso se exprime como, e através, do sentimento (singular) de cada um. A ligacao da faculdade de julgar reflexionante e da capacidade de sentir, cuja sintese a priori entronca nas condigdes universais do animo (Gemiit), perma- neceré sempre indeterminada, s6 se revelando em exercicio, quando as facul- dades representativas suspendem 0 proceso constitutive do conhecimento para conservarem 0 simples jogo indeterminado do seu acordo reciproco. Evitando a minima sugesttio de causalidade, que remeteria a experiéncia estética para o plano condicionado das reacgSes empiticas, Kant usa termos como “suscitado", “despertado”, “ocasionado”, para sublinhar a presenca do aparecer fenoménico no desencadear inteiramente contingente que dé inicio temporal 4 reflexao. E num sentido diametralmente contrario ao do intimismo que deve ser lida a definigao inaugural da Analitica do Belo: a representagéo no ¢ referida as condigSes (determinantes) da objectivagéo que transformam © fenémeno em objecto (Objekt), mas referida ao objecto (Gegenstand) mesmo da representacio e conservada enquanto tal pelas sinteses sensfveis da imagi- nagio: Para distinguir se algo é belo ou nio, ndo referimos a representagio (Vorstellung) mediante o entendimento ao objecto (Objek!), com vista a0 conhecimento, mas [refe- imo-Ia] pela imaginacao (talvez ligada ao entendimento) ao sujeito e ao sentimento do prazer ou desprazer deste.! 1. Kitt der Urteishraf, § 1. A distingio entre Gegenstand, a coisa mesma dada pela sensibilidade 8 maginagio para que sobre ela vellicia, e a objectivagio das categorias do entendlimento que teans- forma a representagio em Objekt, é acentuada no §9. FILOSOFIA DA PAIS 'A imaginagdo concentra-se no aparecer das coisas desdobrando a: dades que se manifestam, compondo ¢ recompondo a multiplicidad= sensagbes e das figuras na unidade de uma forma sensivel. O entendi que tende a anular o momento de surpresa subsumindo-o num conhes prévio, mas insusceptivel de fornecer a essa ampliacio sensivel do 5: fim conceito adequado que estaria para além das categorias’, acom imaginacio na busca de inteligiblidade imanente que demora na & plagao e faz nascer 0 prazer. Ea reflexdo que estabelece a transica0 da sensi abjectiva & sensagio subjectiva, Resultante da auto-afecgao do sujeito P= proprio dinamismo reflexionante que decorre na temporalidade dist= {ko gosto, o prazer sobrevém ao movimento do pensar Sentimento (de > dlesigna a sensagio sentida de um efcito de si sobre si: “o sujeito ser ‘nesmno o modo como é afectado pela representacao"*. Nao esta propriamente iludido aquele ~ cada um de nds ~ que S satisfacdo imediatamente ao fendmeno recebidona sensibilidade e que i juizo “X ébelo” crendo apreender a beleza como uma propriedade int= “ioe coisas, Apenas Ihe falta a compreensao do processo da Beurtel qual o belo serd invariavelmente confundido com 0 agrado da heter Ait com o reconhecimento de um predicado abjectivavel. S6 0 esclan ja diferenga entre a ordem temporal da vivéncia ~ a sequéncia do prazer ao juizo (Utell) ~ ea precedéncia transcendental - 0 ajuiz prévio ao prazess ~ permite reconduzir a origem do sentido do belo foes universalmente-subjectivas cle um sensus communis, (Oe cada sorte actualiza 1 posteriori no acto comunicativo que o compartina, oO plador, portador singular das faculdades activasy racional e livte, j@ v ttividio confinado sua esfera privada; amplia-se, elevarse & sub = universal, tomando-se exemplar da “inteira esfera daqucles que representante da figura indeterminada da humanidade: a comur seres sensiveis-racionais, 2. CE. Kit der Urtelshnft, $14 5 Ck alierenga entre 0 “espanto” que & resslvido pela subsungio mum ne scab qu enoaao enenimento na busca fallada de um concen que N20 por ser precsamente da ordem do inabjecivavel KU, 6) 4. Kritik der Utes, $1 5. somes da complexa questo da presencia transcendental émotiva de em 089. 6. Keitsder Utena $8. ce SAGEM S quali- Bde das Emento, mento Sngular panha a eentem- ensacdo pelo seu Mendida sprazer) fem si Berio, ca Secontrr, Ss longo I. ANTROPOLOGIA F FILOSOFIA DA NATUREZA B Verdadeiramente partilhavel nao é 0 contetido transmitido dos veredictos sobre a beleza de X, mas a comunicabilidade do sentir, prévia a toda a comu- nicagéo em acto. O predicado belo cumpre, na teoria kantiana, a fungdo de uma quase-categoria que quase-objectiva nos juizos publicamente emitidos (ou seja, na linguagem) a subjectividade universal: ¢ ratio cognoscendi do a priori esté- tico. No juizo “esta rosa ¢ bela” confluem duas condigdes a priori, uma dupli- cidade exclusiva do estatuto mediador do sentimento de reflexéo - por um lado, 0 acordo entre a actividade heuristica da faculdade de julgar e a aparigao singular dos seres naturais, no quadro de uma visio teleolégica, e nao mecé- nica, da natureza; acordo esse sentido como harmonia entre a forma da fina- lidade (do sujeito) e a finalidade da forma (do objectoy; por outro, o sensus communis manifesta-se como acordo de miiltiplos consensos na imagem da racionalidade estética como voz universal (allgemeine Stimmung) ou sinfonia de vozes, Embora a Critica da Faculdade de Julgar n&o imponha qualquer restricio do campo dos objectos esteticizdveis, uma vez que a Beurteilung, nio sendo legisladora, nao pre~determina um dominio de aplicagao da sua legalidade, 0 sentimento do natural impde-se sobre o das obras artisticas como paradigma de esteticidade fundada no puro movimento admirativo’. A apreciagao que ajuiza a simples presenca das formas naturais em si mesmas revela, mais que a apreciagao mesclada, estético-cognoscitiva, dos produtos intencionais da arte, a vivencia do jogo animico — isento de interesse empirico, valor cognitive e valor moral -, que se dea ao mundo como favor (Guns), tornando-as incon- dicionadas, numa manifestagio de dupla liberdade que Kant exprime em termos de duplo alargamento: uum alargamento (Erweiterung) da representagio do objecto (Objekt) (bem como do sujeito) esta sem divida compreendiclo no juizo de gosto? 7. Kitt der Urteilstoft, § 12. Por ser a dinica em que esta correlagto se di, a experiencia estética Aistingue-se de todas as outras formas de reflexdo (sem ligagSo com a capacidade de sentir) © de todos 0s outros sentimentos (sem ligagio com afaculdade dejulgr). 8. $6 as coisas naturais, que podemos distingulr espontaneamente das artfciais, despertam 0 interese intelectual, no jé pela forma mas pela sua prépriaexisténcia,e revelam a ainidade com a disposigdo moral da bela alma (ef. KU, § 42). 9. Krk der Urteiska,§ 12. Pn FILOSOFIA DA A natureza humana do sublime Suscitado por manifestacdes da grandeza ilimitada ou da potén dida da natureza selvagem, destituida porém “de encantos e de pens vivéncia do sublime tem inicio numa desconformidade entre a recer= da sensibilidade e o mundo fenoménico, que anula qualquer expec Prazer. O sublime é desencadeado por uma ruptura no equilibrio gerada pela instabilidade entre atracgio e repulsio; atraido pelas o sensiveis das formas para 0 que nelas, ¢ através delas, se insinua c forma (formios), e dai retraido, sustido, perante essa excedéncia qu algo de incognoscivel: 0 que no seio da espacio-temporalidade da = nao se di jé como fenémeno. Nao parte da observacdo desta mon deserto ou deste vulcio, mas do pressentimento da imponéncia, da ix € da violéncia eruptiva que os envolve e extravasa. O ponto de bifu= capacidade de sentir emerge neste desajustamento entre limite, recon identificavel, e auséncia de forma, por excessiva ¢ inapreeensivel. Apenas a imaginagao, nao o entendimento, é chamada a dispo proprias medidas sensiveis, méximos nao compatativos, esforgand apreender no sensivel o inteligivel, por captar conjuntamente (zusav na unidade de uma intuigo o que é da ordem do pensivel, nao jé do Esforgo esse sucessivamente encetado, e por fim fracassado como se negativo: quer de inadequacéo entre “o medir de olhos” (Auge= Pequeno em face do imensamente grande; quer do medir de forcas d=: fente que tenta resistir a um poder maior. A razao intervém para p vazio de esquemas com ideias e esclarecer o verdadeiro sentido do (Unlust): néo se deve chamar sublime & grandeza, mas ao “que é 2 mente grande"; ndo se deve chamar sublime a forga a que ainda o resisténcia, mas a “forga (Macht) que nao tem poder (Gewnlt) sobse isto 6 a razdo ja enquanto instancia doadora de inteligibilidade, m= nuando ainda implicada num processo cujo desfecho sé vird = aquando da reposicao do equilibrio. Esgotada a aventura da imagin ‘aria, a razdo entra em cena como nova actriz. principal, pontuand= 10, KritikderUstelskra, 26, ML, Respectivamente, §25 © §28. Reunimas aqui, sem os distinguir, os esquemas avaliagdo da grandeza e os esquemas dindmicas, na referencia, respectivamente, ravio pritica, [BDA PAISAGEM Potincia desme- Bde perigos””, a b= receptividade = expectativa de brio do animo, pelas qualidades Bsinua como sem pei que anuncia iede da natureza Seontanha, deste >. da imensidio Ge bifurcacdo da Se reconhecivel e pel. spor das suas Sforgando-se por fexscmmenfassen) So js do sensivel. Goma sentimento = (Augenmaf) do = forgas do impo- preencher 0 do desprazer “que é absoluta- Senda oferecemos it) sobre nés”” Sade, mas conti- 6 wirs a ocorrer s imaginacgo soli- atuando-se esta geas matemiticns da Gee 3 razi0 tesricae 8 I, ANTROPOLOGIA E FILOSOFIA DA NATUREZA B inversio de papéis pela distingao entre sublime impréprio (da natureza) e 0 sublime préprio (do sujeito) ‘0 sublime da natureza é uma expressio impropria e[..] $6 deve ser atribuido com propriedade & maneisa de pensar, ou melhor, a0 seu fmdamento na natureza humana." A calma fruigao falta somente a compreensao da sua génese transcen- dental: “ele falar do belo como se fosse uma propriedade constitutiva das coisas", O sublime parte, inversamente, de uma vivéncia incapaz de se auto-compreender, perturbada que é por emogdes contraditorias. Kant constréi a Analitica do Sublime como uma pega tinica em que a exposigio e deducao coincidem: tendo como fundamento a moralidade como Faktum da razio prética, fica previamente garantida a comunicabi dade dos juizos. Mas fé-lo também segundo os parametros do drama trégico. © desprazer corta 0 decurso desta experiéncia em duas fases descontinuas, como dois mondlogos de duas personagens distintas, que s6 no fim poderéo ser interpretados na unidade de um processo. Uma diferenga patente na significativa alteracao impressa a linguagem da fenomenologia do sublime, protagonizada nao por “ele” ou “cada um" que julga, mas reconduzida ao movimento divergente das faculdades despersonalizadas e supra-individuais, como um desajustamento que se dé “entre elas” e que é sentido “em nés”, Nas modalidades pelas quais a razo supera a fase de desprazer e resta- belece a contra-finalidade em finalidade, na interpretacao do alcance deste “préprio” referido & maneira de pensar e & natureza humana, advertem-se duas imagens desta antropologia cuja base, a conjungao da natureza humana eda razao pratica, é mista e intrinsecamente conflitual. Na orientagio estético-intelectual, a satisfagao provém da ampliagio da imaginagao que se engrandeceu num esforgo quase criador — “nao se trata de uma satisfacio relativa ao objecto [..], mas de uma satisfacéo relativa ao alar- gamento da imaginacao em si mesma", Pertence ao interesse tedrico da taz30 que as suas ideias, irrepresentéveis, possam ser figuradas intuitivamente, possibilidade que a imaginagao oferece ao pensamento na producao intensiva de esquemas livres, por sua vez visionada na natureza exterior como apre- 12, Krit der Urtelsn § 30 1. Kirt der Urteistaf, $6 1A. Krite der Urteitserap, § 25. FILOSOFIA DA PAISAGEM sentago (Darstellung) da ideia de infinito. O conflito torna-se entao mediador 0 desacordo, convertido em acordo directo da razdo teérica e da imaginacio. repie a discordancia em concordncia. A gemuina alegria face a natureza com imagem visivel do invisivel exige porém a cultura das ideias para que se ultr2- passe 0 fascinio dos encantos naturais e se compzeenda na exuberdncia e na grandiosidade a subrepcéo que projecta a excessividade da ideia (o invistve em nds) sobre a natureza visivel (fora de nds). Na orientagio estético-moral, a faléncia da imaginacao é avaliada tamb Positivamente, mas ja do ponto de vista inteligivel, como a capacidade ci resisténcia da natureza humana quando confrontada com um poder maio: Subsiste ainda um ingrediente estético na figura do espectador que se transpe para cenérios de devastagio e violéncia nos quais, como ser fisico, nao pode Participar sem sucumbir e ser esmagado, mas cuja situagio de distancia lhe permite passar do medo real ~ “desde que ela exerca a sua accao sobre nés — a0 medo atenuado pela seguranga. A disposi¢o moral continua a ser reque- rida para separar nessa imagem de si mesmo, de um lado, a fragilidade, d outro, 0 nticleo inviolavel da personalidade moral. Dai que 0 acordo fina lizado pela razéo prética nao restabeleca um prazer sensivel, mas um sent mento diferente, de auto-estima (Selbstschitzung) e de respeito por uma outr2 forga, a lei imperativa, esta sim, a poténcia & qual nao é possivel opor qualquer resistencia. O sentido préprio do sublime desvenda-se na incomensurabili- dade entre a moralidade em nds ea natureza em nds: Assim, a sublimidade ndo esta contida em nenhuma coisa da natureza, mas apenas ‘RO nosso nimo, na medida em que podemos tornar-nos conscientes de serm superiores a natureza em nés, e dai, & natureza fora de nés, desde que ela exers2 sua acco sobre nds." A dupla antropologia da Estética Triunfo do sentimento sobre a sensibilidade (e da razio pratica sobre 2 faculdade de julgar), o sublime nao instaura uma visio estvel da naturez2 $6 a bela rosa, a forma esteticizada na harmonia da calma contemplacdo, ni a imponente montanha ou a tempestade destruidora, subsiste para além d= experiéncia pessoal, quer no espaco comunitério da discussio publica, que 15, Kritikder Utes, $28 SAGEM Sador; macio, scomo pultra- Bena isivel pbre a Erez. em da S quer | ; | an woop arog Op opeprsOAUp 1 ANTROPOLOGIA E FILOSOFIA DA NATUREZA Z na investigagao tedrico-teleolégica sobre 0 outro enigma que se coloca a facul- dade de julgar: 0 das formas organicas auto-finalizadas. Desprazer (sublime) e prazer (belo) nao sio simétricos nas fontes originatias, A horizontalidade simboliza a abertura e pacificacao do ser sensivel-racional, que prossegue no conhecimento comum e na efectivagio da liberdade num mundo conforme a fins. A verticalidade institui a desproporgao entre a natureza humana e o mundo natural; na incerteza do lugar que nele ocupa, o homem desliga-se da consideracio atenta do mundo para se centrar em si, Ao mesmo tempo curvatura, auto-concentracao e projecgio da infinitude na natureza"s, 0 sentimento sublime é origindrio moralmente e revelador da humanidade moral: “mesmo que o homem houvesse de sucumbir diante dessa poténcia, a humani- dade (Menscitheit) na nossa pessoa nfo ficaria rebaixada. Mas 36 0 belo ¢ esteticamente originario, revelador e gerador da huma- nidade (Humanitif) que se realiza em actos de partilha e de simpatia num mundo comum: Porque humanidade (Humanitit) significa, por um lado, o sentimento universal da participacio (Teilnchnungsgefth), por outro, a faculdade de poder comunicar inti mamente ¢ universalmente; duas propriedades que, tomadas em conjunto, consti- tuem a sociabilidade propria da humanidade (Menschieit).” 3. Feuerbach: O ser sensfvel na polaridade entre amor e dependéncia Oestatuto fundador da sensibilidade Feuerbach tematiza a esséncia humana no quadro de uma concepgdo unitéria de ontologia e antropologia expressa por uma categoria multifun- cional, a Sinnlichkeit, principio englobante das instancias reais e operador de ‘uma mesma dinamica de sintese presente em todos os niveis da existéncia. Existéncia é sensibilidade — formula, antropologicamente, a continuidade entre sentidos e pensamento e, ontologicamente, a homogeneidade dos entes mundanos (humanos e nao humanos), coexistindo em comunidades de seres sensiveis unidos por lacos de afinidade e parentesco. Existir é sentir ¢ ser sentido — descreve a existéncia na composigio dupla e altemnante de elementos 16, “A apreenséo de um objeto, de resto sem forma e sem finalidad; di unicamente a ocasiao de se tomar conscincia dele eo objecto€ utilizado de maneira subjectivamente final e no julgado por ele mesmo.” (KU, $30) 17, Kritk der Urtelstoah,§ 60. 8 FILOSOFIA DA P passives e elementos activos, bipolaridade entre afeccéo e dinamism vVidade e dadiva, logos e paths. Considerados do ponto de vista estrutural, os prineipios fundam ‘neue Philosophie sao reconduzidos a trés ~ & unidade de Eu e corpo, = bilidade de ser-sujeito e ser-objecto e a “unio do homem com 0 hom priori existenciais, constantes de uma existéncia coesa e indivisivel, com na esséncia do homem integral (ganzer Mensch), figura da racionalidase totalidade antropoldgica contraposta as concepgSes abstractas, du parcelares da racionalidade modema, ‘A coincidéncia procurada entre 0 homem como objecto da filos seres humanos concretamente existentes ~ solidaria de um filosofar no solo concreto da “ndo-filosofia’ conduz, do ponto de vista primado da passividade, cuja condigao itima de possibilidade resic: sidade e permeabilidade do corpo: Pois o que & 0 corpo, sendo a passividade do eu? [..] E em cada sensacs spiritual que seja, ndo ha mais actividade do que passividade, ndo hs do que came, nao hé mais eu do que nio-eu." Abertura e ligacdo nao se separando, a inteira existéncia repouse sagio, mattiz: de todos os vinculos do ser com 0 ser. A ontologia d: determina a integralidade das ligagdes de um ser inserido no mune seu habitante e nao face a0 mundo na posigio distanciada da rep: Modo tinico, que nao admite cisbes substanciais nem hierarquia de f= a sensibilidade nao é mais que a razdo devolvida a sua auténtica hum de poder relacional. Dos segredos do ser ao primado do amor humana Oseré [..] um segredo da intuigdo, da sensagdo, do amor. E ja a partir das virtualidades subjecto-objectivas da sensibilié intuigto e 0 amor divergem, diferenciando-se apenas pelo grau de px da apreensio e pela intensidade da capacidade unitiva; aquela cise 418, Einige Bemeriangen sider den “Anfong der Philosophie", Gesammelte Werke, Her ‘Wemer Schatfenhaver, Betlin, Akademie Verlag, 1967 e's. (= GH), 8, 181-183. CE. Gi losophie der Zukunft, § 37: "eu sow um ser real, um ser sensivel 0 corpo pertence amin ‘ corpo na sta totaidade é 0 meu eu, a minha propria esséncia” 19, Grundsitze der Philosophie der Zukunf, 834. i mais Spirito Be sen Bsacio feomo tacio, dades, Sidade que a dade § para Pi sim, 1. ANTROPOLOGIA E FILOSOFIA DA NATUREZA 2 profusio multi-sensitiva, esta para a singularidade qualitativamente deter minada. A intuicdo (Anschauung) é a visdo sensivel da natureza e do mundo em geral, um modo imediato, nao velado, sem interposicio de representagdes © conceitos, que apreende fracgdes de ser numa escala de perspectivas e tanto Pode incidir nos espagos mais chegados como alcangar a contemplagao dos mais longinquos lugares do firmamento. Apotease das sensagdes, aliadas num Pensamento integrador que as universaliza e amplia, & intuigao associam-se tracos afectivos (a admiracao e a alegria) e intrinsecas qualidades éticas como © desinteresse, o respeito pelo objecto como fim em si mesmo, e a gratidao?, A conjuncio dos sentidos numa espiritualidade sensivel, teordtica ¢ estética, Sinaliza a diferenca basica entre sensibilidade restrita do animal e a sensibili- dade ampla do “sensualista absoluto”®. A intuigdo provém da enbeca. O amor, por seu lado, emana do poder do coracio, © Srgao expansivo, liberto do sentimentalismo intimista e hiper- subjectivo do eu ensimesmado*, para se apegar aos seres préximos, presentes aqui ¢ agora, retirando-os da indiferenga. Discriminador e potenciador de qualidades, conta um por um os mais infimos pormenores e as mais imper- ceptiveis diferencas, dota cada singular de consisténcia tinica, eleva cada finito um valor infinito. ‘Séna sensagio, s61n0 amor, ¢ que “este” ~esta pessoa, esta coisa, ou se, o singular, Possui valor absoluto, é que o finito ¢0 infinito — é nisto e sé nisto que consiste a infi- nita profundidade, divindade e verdade do amor. Climax da sensibilidade e de uma concepsao fraterna do ser, o amor-senti- mento carece ainda, para que a dinamica passive-activa se venha a completar, da reciprocidade de ser-amado; noutros termos, da conjungo do prin- “ipio geral do Sensualismo com o princfpio da alteridade pessoal, ou do 20, “Nido esquesas, na gratiddo para com o homem, a gratddo pela sagrada Naturezal” (Das Wesen des Christus, GW 5,454). 21. “$5 por isto o homem é iomem, porque no é um sensualista limitado como o animal, mas um sensualista absoluto, porque objecto dos seus sentidos, das suas sensaqies, nlo é este ou aquele sensivel, mas todo 0 sensive,o infnito, e objecio puramente por si mesmo, quer dizer, em fungio do Drazeresttico.” (Wier den Dualismus von Leib und Seve Fleisch und Gest, GW 10, 143-164), 2 “Amor e coragio sio idénticcs. Sem amor no ha coragio. O coragio nio é uma faculdade Particular ~o coragio ¢o homem na medida em que ama.” (WCh, GWS, 138-139) O contraste entre o nino (Gemi, autocentrado, egoist, projective e doentio eo cara (Herz) aberto ao mundo, alegre ¢ ‘expansivo, ¢ longamente explanada na 2edigdo de WCh, GW5, 480-183. 23, Grundsitze der Philosophie der Zulu, § 34 30 FILOSOFIA Da Pats Altruismo. 86 na acgao reciproca em que um outro eu me converte num tu (para ele) nasce a subjectividade plural, como simultaneidade a= Tu. Qualquer existente, sem excepgao, é amavel (objecto de amor), m= amante (Sujeito de amor). A identidade de existir e amar como forma sentir dé-se entre humanos, quando a coexisténcia ontolégica se tr em convivéncia antropolégica, fruto da dialéctica quaternaria que s. Eu e Tu, individuos singulares e simultaneamente interpessoais: “o amado, o que nao pode ser amado nao existe.’ Radica aqui, nesta ciagdo gradativa de humano endo humano no plano do amor, o mo qual o mesmo Feuerbach que conduz uma critica veemente a todas 2s religiosas e filoséficas de sobrenaturalismo, desde o criacionismo nicismo, pelo empobrecimento do estatuto da natureza e da sua di qualitativa, e que celebra a natureza como sinénimo de realidade ¢ e= alianga (Bund) de todos os seres, nao destacou, nesta fase do seu pe nenhum especial sentimento pela natureza, Sentimento, na sua méxima acepgio, nao é um estado afectivo us projectaco sobre o outro; & partilha de sensacdes que desponta na ins presenca, do convivio e da comunicagao: o individuo isolado tem s. intuigdes, mas nao sentimentos: Sensagies tem-nas o homem isoladamente, por si, sentimentos apenas dade. $6 no sentimento conjunto (Mitgefl) & que a sensagio se eng: sentimento. [..] Portanto, 56 através da partlha (Miteilung) que o home= ppara além da sensa¢ao meramente egoista até ao sentimento ~ sensac é sentimento.* Toda a atitude, intuitiva ou afectiva, para com os seres naturais ¢= pela relagio inter-humana e pela consciéncia genérica, precedid proceso de diferenciagéo que tanto ocorre a nivel individual, n prévia de eu e tu, como no plano universal do género e da incamacao © téria da razo, onde nasce a separagio entre consciéncia de si h consciéncia da alteridade natural, O sentido humano da nature: consciéncia, quer no sentimento, é derivado, nio origindrio. 24, “Apenas a sonsbilidade resolve o segredo da acgia reeiproca, Sé sores sensiveis age ‘0s cutros. Eu Sou eu ~ para mim ~ e:20 mesmo tempo tu ~ para o outro, Mas 36 0 sensivel” (Grunisitze der Philosophie der Zaku, § 3). 25. Grunusitz der Philosophie der Zukunft, §34 26, Das Wesen ces Chrstentums, 2} edi, GW, 458-45 SAGEM = mim) geEue is nio ena do sforma Benire enioé Bieren- pe pelo persies p meca- Bidade paco de gento, lateral Bia da Bcies e Somuni- Be té a0 iSecleva etihada ediada ge um Singio Smuni- — jer na Beto ser 1 ANTROPOLOGIA E FILOSOFIA DA NATUREZA 3 (©cu comega por preparar o seu olhar nos olhos de um tu, antes de poder suportar a visio de um ser que nao the reflecte a sua propria imagem. O outro homem & 0 vvinculo entre mim e o mundo. [..J Um homem que existisse absolutamente, apenas para si, perder-se-ia sem identidace e sem diferenga no oceano da Natureza; nao se captaria nema si mesmo como homem, nem & Natureza como Natureza.O primeiro objecto do homem ¢ 0 homem. O sentido da natureza, aquele que comeca por nos abrir a consciéncia do mundo como mundo, é um produto posterior, porque 86 surge através de um acto de separacio do homem relativamente a si mesmo.” O antagonismo dos sentimentos pela natureza Na iltima fase do pensamento de Feuerbach, a relagdo entre Homem- -Natureza, ainda inscrita, nos textos da filosofia do futuro, numa visio equilibrada, seré perturbada por um foco de discérdia, tanto mais acentuado quanto coincide com a radicagao da filosofia da sensibilidade numa filosofia da natureza. As duas versdes de Des Wesen der Religion, que procuram concretizar 0 homem do mundo (Welfmensch) também como homem da natu- reza (Naturmensch)®, identificam uma outra constante antropoligica, que reorienta globalmente a compreensio do sentimento. Partindo da anélise das religides naturais, manifestagdes arcaicas em que o género humano pode ser surpreendido num estado quase origindrio e de envolvéncia imediata no ambiente, Feuerbach detecta nessas formas ancestrais a situagao de nao familiaridade com os elementos, a terra e as forgas cdsmicas, sentidos como silenciosos, porque nao respondem as interrogagies, e indiferentes a0s seus desejos e pedidos ~ “o primitivo é um estranho na natureza”®. © homem, embora ser da natureza, no a habita pacificamente, tendendo, paradoxalmente, a anular essa distancia e desconforto através de mecanismos de dominio, reverso de uma insatisfacéo e incompletude perante a natureza sentida como alteridade muda. ‘Nio é relevante para o tema deste capitulo seguir as metamorfoses de um mecanismo universal cujos primérdios remontam ao antropomorfismo ingénuo dos cultos animistas, mas que gradualmente ganha contornos de um antropocentrismo consciente, teoricamente elaborado, que percorre a histéria das religiGes, a mentalidade cultural, a ciéncia e a prépria filosofia, num cres- 27. Das Wisen des Chrstontums, GW 5, 165-166 28, (Ther Spirtualismus anid Materialism besonders in Becihneng auf die Willensfihet, CW 11,175 28. Das Ween der Religion (Erste Fassung) (18462); publicacio de Francesco Tomaso Feuerbach ela natura non woman Ricstrucione genetcn dell Essen della religion con publi inedit, Firenze: La Nuova Italia Editrce, 1986, p. 238. in Ludoig one degli 3 FILOSOFIA DA PAISA cendo auto-afirmativo, de cariz politico, da superioridade do homem, da acgdo e pensamento, e da correlativa despromogao da natureza a ins! segunda, coisa morta ou material amorfo de que pode dispor a seu bel-pr: “Ohomem coloca-se agora no vértice do mundo como o alfa e o Smega dele Nem acompanhar a elaboracio da categoria filosdfica de natureza iio-it (uicht-menschliche Natur), que da voz ao fundamento, dignificando-o e | tando-o de quaisquer residuos de antropomorfismo. Importa sublinhar a integracdo desta arqueologia do humano em situa de estranheza na antropologia, por via de um mecanismo nuclear que sus: a existéncia no processo ininterrupto da vida. A natureza é a base (Basis), = apenas o correlato, ¢ 0 fundamento omnipresente desde os mais elementax actos quotidianos — respiracao e alimentagio— até As mais complexas operac do pensamento, num entendimento da vida como permanente movime circulatério entre assimilagao e exteriorizagao. A vida & conceptualizada aa uma nova dialéctica quaternéria, cujo principio é a dependéncia (Abhiingigk cujos termos sio a caréncia, ou necessidade (Bediirfnis), e a frutgio, a satura preenchida da sensibilidade. Cada patamar da existncia envolve a conjun a miitua transformagao de ambos: ao carecer (da natureza), sou depend de um outro ser que é independente de mim; ao fruir (a natureza), torno <3 ser independente de mim num ser para mim. Aquilo de que me sinto dependente é, parao meu sentimento, para a minha in sensivel, em suma, para mim, quer um ser para si, quer um ser para mim; o pri «aso [acontece] ao nao poder existir sem ele, ao precisar dele sem que ele pr. mim; este [acontece] na medida em que eu 0 fruo. Em verdade, jé a propria n sidade (Bedirfuis) expressa ambos os aspectos: a dependéncia da minha exis relativamente a0 objecto da caréncia e, a0 mesmo tempo, o ser dele para m= A globalidade dos actos e dos pensamentos para com os seres nz rais sustenta-se nesta ambivaléncia, geradora de rivalidade e de desni iminentes. Pendendo para um ou outro dos pélos, oscilando entre a tendén para a inferioridade (servilismo), ou a tendéncia para a superior‘ (dominio), nao pode ser erradicada. Acompanha este comportamento es tneo uma consciéncia inconsciente, que associa respectivamente a déncia & humildade (da necessidade) e 0 dominio ao orgulho (da fruicas A dualidade de atitudes ¢ duplicada na configuraco moral dos sentimen 90. Das Weser der Religion (Erste Fassung),p-278, 31. Das Weer der Religion (Erste Fassung), pp. 222-224, Bacéo Bienta s} nao stares acies Mento Be por Bizit) e Bracdio gancio Bente Bo esse Bixicio meio Brice de — = § natu Sniveis Biéncia Sridade iSspon- depen- Raicio). Brentos L ANTROPOLOGIA E FILOSOFIA DA NATUREZA 8 ena divisio intema & consciéncia moral: ora como pacificagéo, ora como remorso®, Os elos positivos da compaixio, da gratidéo e do cuidado nao foram quebrados, mas atenuados na sua espontaneidade e inocéncia. Quando 0 originério é a rivalidade e nao o parentesco amigavel, a eticidade intrinseca do amor tem de ser conquistada. Nao ¢ ponto de partida, mas posigio racional. Porque uma constante antropolégica nao conduz s6 por si a um comporta- ‘mento justo, ndo seré a antropologia, mas a ética, que exige uma vigilncia autocritica ¢ a auto-restrigao do agir, a regular o plano de direitos e deveres para com os sensiveis naturais. No tracado de uma ética do futuro, extensiva ‘205 seres no-humanos em que os animais sero expressamente integrados, a relagio do homem com a natura mater passara da alternativa entre depen- déncia (cega e temerosa) e dominio (soberba antropocéntrica) a dependéncia equilibreda, capaz, tanto no sentir como no agir, de encarar e tratar a natureza como um Tu. Mas 0 que vale para © homem face ao homem, vale também para ele face & natu reza. Ble 6 ndo apenas o Eu, mas também o Tu da natureza.” 4. Georg Simmel: a condicéo humana na tensao entre a vida eas formas O indivtduo como ser peculiar Nenhuma dimenséo de universalidade (a razdo ou a esséncia humana) sustenta a visio do mundo simmmeliana, t0-s6 a similitude de uma condigio geral de existéncia, individualmente protagonizada e conduzida em termos exclusivamente individuais. Autocentrado e dotado de autonomia relativa, © individuo vive, por outro lado, implantado como ser cultural e social em miiltiplas esferas supra-individuais de pensamento e de actuacao cujas formas © atravessam, numa imbricagao dos modos de existéncia, ao mesmo tempo insular e peninsular, de coesdo e de co-relacGo, figurada nas imagens da “asa”, da “ponte” e da “porta’™. A ética, ou arte da vida, consiste em “crescer a partir da propria raiz”, pela modelagao da identidade pessoal no seio das miiltiplas instancias, ja dadas, da 52 “A cartncia ¢ [.] temente a Deus, humilde,religiosa, mas a fruiglo ¢ orgulhosa, esquecida de ‘Deus, ireverente, frivola.” Das Wesen der Religion, §28, GW 10, 32 3. Carta afullus Duboc (27 de Novembro de 1860), GW'20,311, 34 CE osensaios "Der Henkel” e “Briicke und Tir" FILOSOFIA DA PAISAGEM vida objectiva, procarando afirmar-se como individualidade, no pela negacio dessas dimensdes comuns, que nao podem ser anuladas, mas apropriando-se delas, fazendo-as suas, coordenando o proprio e o comum numa configuracéo singular: No se trata da unicidade (Einzigkit), mas sim do proprio ser peculiar (Eigenkett) «em cuja forma se desdobra cada vida organica e, em primeiro lugar, a vida psiquica, © facto de crescera partir da prépria raz. [.] na sua realidade essencial 0 individuo 6 uma unidade vivente para a qual e na qual os elementos compardveis € 0s incom paraveis, plenamente coordenados, ¢ dai sem diferenca alguma quanto ao estatuto, se entrelagam e cooperam. O individuo é © homem inteiro, nio o resto que petma- rece quando dele se retira o que partilha com os outros: A contemplagao estética retine as experiéncias subjectivas de um individuo que é também uma existéncia objectiva, por isso, sempre em risco de se diluir no anonimato ou na uniformidade, mas visando ao mesmo tempo resguardar a identidade peculiar, a sua lei individual. A ambos modos subjaz 0 conflito, para Simmel fundador e inapagavel como tragédia da vida, mas igualmente a possibilidade aberta de devir forma vion, ser um todo em cada momento do processo da existéncia, no préprio seio da dispersdo e da dissociagio. A verda- deira oposicao no se da simplesmente entre vida e forma, mas entre a forma vivente e as formas cristalizadas. Percepciio e sentimento na intuigao da natureza No multimodo complexo da existéncia, as experiéncias da natureza salva- guardam a apreensio unitéria da realidade natural, fenémenos e elementos subtraidos ao destino da cristalizagio que impende sobre as realizagées cultu- rais, incluindo a forma autonomizada da obra de arte: esta é um definitivo, um concluso, que possui incorporado um valor que dispensa a subjectivacao. A objectividade natural, ao invés, é a propria continuidade das formas e do curso vital, que perduram na consciéncia subjectiva, integradas como impres- sbes, emogies e significagées no fluxo da alma psiquica, que, tal como a vida orginica, nfo admite hierarquias ou cisdes. Na intuicio estética reside a tinica via de apreender como valor subjectivo a realidade objectiva da natureza. 35, “Das individuelle Gesetz. Fin Versuch tiber das Prinzip der Ethik” (1913), in Das divide Gesete, Philosophische Excuse, hrsg. von M. Landmann: Suhrkamp, Erste Auflage, 1987, pp, 222-203. I. ANTROPOLOGIA E FILOSOFIA DA NATUREZA 3% Onascer do sol natural ¢ 0 quadro existem certamente ambos enquanto realidades, 'mas o primeiro sé encontra 0 set valor ao continuar a viver (Weiterieben) em sujeitos psiquicos |... E justamente esta [objectividade natural] - o mar e as flores, os Alpes 0 céu estrelado— possui o que podemos chamar o seu valor unicamente pelos seus reflexos nas almas subjectivas.[..] Assim, 0 produto das poténcias (Mace) simples- ‘mente naturais no pode ter valor sendo subjectivamente, enquanto, inversamente, o produto das poténcias subjectivas possui objectivamente um valor. Nos ensaios que dedica a estética da natureza, Simmel nao reporta o indi- yiduo ao homem em geral ou a uma esséncia atemporal, mas ao homem da Modernidade, que mantém ainda aceso o sentido do natural, mas perdeu, definitiva e irremediavelmente 0 sentido da Natureza como realidade espé- cio-temporal omni-abrangente, a Grande Natureza (Allnatur)— um todo isento de partes, desprovico de limites e de fracturas, em que a geracdo de forma- ges coincide com 0 curso continuo da vida. Uma dupla cisao est’ na base do sentimento da natureza, descrito em “Philosophie der Landschaft”. Cindido da totalidade e amputado de uma das suas esferas identitérias, 0 homem moderno ~ que seccionou a Natureza em partes isoladas, soltas e indepen- dentes, que no espirito analitico da ciéncia e da divisio do trabalho ganham autonomia de coisas espaciais ~ sé a pode recuperar parcialmente mediante um acto perceptivo que consolida elementos soltos, pedacos desgarrados, numa nova unidade de sintese: a paisagem. A atmosfera animica do contem- plador, a unidade dos seus estados psiquicos, penetra essas pecas soltas funde-se nelas, sintetizando-as num complexo vital, que “penetra todos 03 Pormenores, sem que se possa indicar um s6 deles responsavel por ela”. A percepgao que transforma as pecas em paisagens, ou porgies (Stiicke) da vida natural, 6 0 primeito paso, ainda afectivamente neutro, da intuigio estética, a que se sucedem, como ingredlientes incindiveis de uma visio em crescendo de aprofundamento, a impressio sentida (sentimento) o valor reconhecido. A visibilidade de uma paisagem ea irradiagao afectiva que dela emana sdo as faces do mesmo sentimento especial, a Slimmung, conjugagao de duas individualidades num acordo quase-intersubjectivo, sentido em sintoria, na consonancia que passa de nds para ela ¢ a0 mesmo tempo dela para nés: Logo, se Stimmung significa 0 universal, isto & 0 que ndo se prende a nenhum. elemento singular, precisamente desta paisagem, masno o universal de muitas paisa- 56, “Der Begriff und die Traghdie der Kultur’, GA (- Georg Simmel Gesamtaugebe. Herausgegeben von Otthein Rammeted, Frankfurt am Main: Sahrkamp, 1989 ess), 12, p. 202-203, 37, “Philosophie der Landschaft’, GA, 12, p.479, FILOSOFIA DA PAISAG sens, deve-se designas a ela e a0 devir desta paisagem [..] enquanto um ¢ mesa acto, como se as miitiplas energias da nossa alma, as que wem e as que sera exprimissem cada uma no seu timbre (Ton), em unissono, uma e a mesma pal Como sentimento da unidade da e com a natureza, a Stimmung faz >= desse nivel que é © espirito subjectivo. Mas por sentimento nio se & entender a mera subjectividade de um eu pessoal, mas da instancia de presente num individuo humano, que ao sentir se torna num elemento da preservado na corrente vital. Uma antropologia unitéria de percep¢ao e se ‘mento revela-se nesses momentos em que os fragmentos de natureza gan valor nas almas subjectivas. Dar valor nao significa a valoragao extrinseca ou a atribuigao de cat rias, mas a ligagao das partes fragmentadas & unidade vivente de que elementos, a restituigéo da unicidade peculiar do conjunto, a apreensa Jei individual desta paisagem. O valor coincide com a consondncia express resultante da unidade (a condensagao gerada pela multiplicidade), da cons nuidade sem hiatos de interior e exterior, e da intensidade expressive = ressalta dos minimos e imperceptiveis pormenores. Tal como no rosto da pessoa amada nao podemos dizer se amamos o & ‘vemos ou se vemnos.o que amamos, assim cada paisagem é fusio de um timiam peculiar do contemplador com um rosto tinico da natureza, que se desta sem realmente se desprender do continuunt vital. Uma porcéo de naturs viva devém assim um rosfo expressivo da natureza”. A visualidade ops -pictérica da apreensao das concordancias aliada & musicalidade da cons nancia sinfénica permite a tradugio, sempre imperfeita, da Stimmung = atmosfera ou por tonalidade e timbre. As imagens miiltiplas da condi¢éo humana Jé em “Philosophie der Landschatt” ¢ claro o procedimento filoséfice Simmel: descrever exaustivamente uma faceta singular, uma perspective realidade, para ir destacando, por énfases reiteradas, a sua peculiaridai como fendmeno pico. Comecando do interior, prossegue em expanss centrifuga de dentro para fora dele, do centro préximo para as periferias, = que 0s contomos desse fragmento se desvanecam, estabelecendo depois, = 38. thi, pp. 149.150. 29. CE, pata a analogia entre paisagem e rosto, 0 ensaio "Die sthetsche Bedeutung, des Ges (0 signitiad esttico do rsto. I ANTROPOLOGIA E FILOSOFIA DA NATUREZA 2 sucessivas analogias, as similitudes com outros fenémenos. O tipo, em Simmel no é uma esquematizagéo, nem uma classificagio vazia. Emerge do singular, € dado a ver directamente num exercicio da filosofia como pedagogia da intuigéo, que reata, gracas is analogias, a comunidade de pertenca de cada fragmento a Vida, em si mesma inapreensivel enquanto forma. ‘A dificuldade em que o acordo deste sujeito e desta paisagem seja mais do que uma presenga volatil apenas guardada na alma individual é esbatida em “Die Alpen”, que aborda os tipos de paisagem como fisionomias conjuntas do humano e do natural: imagens tipicas da vida, a) A vida como continuidade. O mer é a imagem da vitalidade e continui- dade das formas viventes ~ 0 curso continuo da agua que se desdobra em ondas, linhas imanentes e limites apreensiveis, mas sem limitagio real nem existéncia auténoma, na cadéncia do esquematismo repetitivo eda dinamica ondulante. Mobilidade (intuigao directa do movimento) € repouso, agitagio e tranquilidade fundem-se no sentimento da conti- nuidadle, sem fronteiras, como desenvolvimento aberto e possibilidade de comunicagio. A vida como relatividade de opostos. Inserida num conjunto em que © linear e o macigo nao se podem desligar, porque depende tanto da forma como do quantum, a montana, fisionomia da vida enformada, € tipificada por uma sintonia mais complexa: ~ associa o inquietante face a contingéncia e a irregularidade das silhuetas dos picos e o reconforto pela unidade do conjunto: a solidez da materialidade pesada e presa a base impede o desgarrar das formas dos montes. Relatividade dos opostos, a que acrescem outros contrastes ~ a sugestao de vida e morte, de agitacio e paz das massas rochosas cobertas de vegetacao organica onde se conjugam as duas poténcias da existéncia, as instdncias produ- tivas e corrosivas do tempo; ea tensdo do baixo que atrai o olhar para o alto ~ posigio implantada na ligacdo entre base e cume. ‘O.cume da alta montanha gelada: 0 paradoxo da vida conelusa. Se nas imagens anteriores predomina a visualidade perceptiva, a Stimmung da alta montanha funda-se num sentimento de situagio que ocore quando se esta dentro dela. Na escalada, ou na subida que transpoe niveis dé-se o desapego do solo, mas a impressdo da altura ¢ ainda e sempre comparativa, relativa aos niveis inferiores. E sé quando se FILOSOFIA DA PATSAGE atingem os cumes mais altos, e quando 0 solo esté coberto de neve, fa paisagem se toma “perfeitamente conclusa” (colkommen fertig), se fios que a prendam & base e oferece “o fmpeto (Wuckt) insuperave! sua simples existéncia™®. |A impressio de eternidade da superficie gelada, privada de vegetacs habitacSes humanas, incélume & marca do tempo, sem vestigios de cres conjugada com a direccéo exclu mento organico e sinais das estagdes, o do absolutamente alto ~ esta p para o céu, limpo de nuvens ~ a impress nlm de toda a projeccdo antropomeérfica: “as nossas imagens psiquicas == determinam aqui nenhuma imagem psiquica do ambiente”. Vida concly parecendo, como qualquer obra pronta e definitiva, no carecer de qualg subjectivacio, actua analogicamente “como 0 incondicionado". Radica aqui, no sentir-se com a méxima energia em-faceda vida 0 sentiment tibertagdo que devernos & paisagem nevada em alguns momentos solenes. A com efelto, a incessante telatividade dos opostos, a determinacio de ead pelo outro edo outro por eada um, amobilidade ondulante na qual cada co Pijetir unieamente como um ser condicionado. Mas da impress2o da alta mont hoge até nés um pressentimento e um simbolo contraposto que na sua mas levacio a vida se liberia naquilo que nao cabe mais na sua forma, mas esti 3m dela ¢ em face dela.* © paradoxo de estar na vida e ao mesmo tempo “acima e & frente d= suspenso ene terra e céu numa altura sem profundidade, entre imanco= ¢ transcendéncia, tanto pode mostrar, nesse constante evidenciar das seme Ihangas que catacteriza o estilo simmeliano: a imagem do individuo, se: fronteira entre incompletude e perfeigao ideal, ou a suspensio do tragico relatividade da existéncia na expectativa libertaciora de pertencer a um 8 englobante. 40. Die lpm, GA 14, p.302. 4. Thid, GA‘, p-303. "Filosofia da Paisagem” e “Os Alpes” esto traduzidos para portugués c= pps BAceM cresci- sclusiva BS para ges no prclusa, Balquer Bento de BA vida Sda um Bs pode pentanha maxima SS acima B dela”, jnéncia seme- j ser de Beco eda Em todo 1 ANTROPOLOGIA E FILOSOFIA DA NATUREZA Conclusio A tensiio entre a unidade da ideia e a multiplicagao das imagens O presente capitulo inscreve-se numa reflexdo sobre 0 sentimento da natureza e procurou confirmar a fecundidade do ponto de vista sensivel na constituigéo de uma antropologia unitéria. Nao sendo mais que a sensibili- dade sentida, é por via da sensibilidade — seja da percepgao que reflecte (reflek- tierende Wahrnehmung)®, de Kant, da sensacio ontolégica de Feuerbach ou da intuigdo consonante de Simmel - que o sentimento pode ser trazido a filosofia, Se a unidade do sujeito do sentir teré sido amplamente mostrada nos autores tratados ~ filésofos do sujeito, nao de instancias anénimas, e das sinteses reais, nao idealizadas -, igualmente patente terd ficado a emergéncia de uma duali- dade que nao funciona segundo a duplicidade alternante de um esquema compensatério. Prazer e desprazer, amor e dependéncia, relatividade e conelusividade da vida nao s4o simples contrastes. Colocam o homem entre ‘experiéncias origindrias, quer de prolongamento sem barreiras, quer de limite © incompreensibilidade. Imagem: {oi 0 termo intencionalmente usado para vincar o horizonte proble- mitico e interrogador da Antropologia, filosofia que se libertou do essencia~ lismo metafisico, mas que ndo prescinde da busca de racionalidade, mesmo perante experiéncias ou tragos parcialmente inobjectivaveis. Na circularidade entre a fundamentacao da ideia de Homem ~ que descreve tracos constitutivos —e a explicitacdo em imagens multiplicadoras das manifestagées do humano, ‘© pensamento da Antropologia é incompativel com posicées estaticas e defini- ‘Ges restritivas. Exige um pensar dgil, tal a plasticidade compreensiva do juizo reflexionante, do filosofar em elipse ou da multiplicacao das analogias. ‘Mais que resumir os t6picos tratados ou recuperar semelhancas transver- sais enunciaria algumas possibilidades ainda abertas de amplificar 0 tema para além dos nitcleos tratados. A correspondéncia entre 0 modo da pergunta e a dualidade das explicitagoes Dotado, como 0 conhecimento e a moralidade, de um fundamento a priori, © sentimento integra a esfera da racionalidade, na fungio de mediador, no plano arquitecténico, entre as legislagdes tedrica e pratica da razfo. A critica 42, Kritdeder Urtelsog, Einleitung VI, AKN, 191. 0 FILOSOFIA antiana dos sentimentos estéticos responde 8 questi, 88 fundadorae jinconclusiva: O que é 0 ‘Homem?, mas nao deixa oxo inerente & antropologia transcendental entre 0 conjunto activas e 0 fundo abissal da natureza humana. Quem é 0 Homem? A ontologia da Sinnlihket & me explic tantos da existoncia na comunidade de uma essénciay gus no Gal, se realizano proprio existir. Mantenclo-se sempreno plan crs erealidade ¢ obtida por Feuerbach no movimento Ps “irmogao da esséncia indivisa e a exsténcia malipla dos hu mente existentes ‘Quem somos nis? Simmel parte igualmente do homem qualquer separacio entre a universalidade da razio ea P individuo, sem incorrer dai no atomismo. A situagao indiv vierlitucle de uma condicSo comm ligada que est & base ppara a qual remete cada fenémeno ou manifestagio indivi feja 2 vida do individu, seja& descrigdo anal6gicn da filosofs de totalidade. O sentimento da natureza: entre eticidade ¢ experiéncia dos lim A ambivaléncia do humano reflectida no sentimento dana centre 0 polo expansivo que confina com uma ética da vid que 0 abre ao incondicionado ou o conduz até ao limiar de pressentido. Pola capacidade sinttica da sensibilidade ¢ de nina me pensar, o belo é modelo da comunidade tica e politica eme rete Liberdade e legalidade. Mas pela faléncia da sensibi humana ligarse a um poder que a excede: @ sublimidade & sob o poder da lei, que reverencia ‘ele e acima dele. Em Few do amor culmina na ideia da natureza como espace de cocxisté Giias, “repdblica” de humanos ¢ néo-humanes: Por sua de dependéncia seré, nos siltimos escrites, dramatizada om ristencial, sintoma da finitude radical de um Bu que °° injo-humanae se situa “na marge de um abismo insondave va oneonancia dissonante da altura ou a imagem do oS existéncia percebida como “mais que vida" 6 inserida por = 15, Vorlesngon der das Wesen der Religion, GW 6, 249. I. ANTROPOLOGIA F FILOSOFIA DA NATUREZA 4 viduo como composigio de realidade e idealidade e integrada na esfera das exigéncias ideais*, Oesvaziamento da natureza eo declinio do natural O pélo complementar do tema, a filosofia da Natureza, aqui apenas aflo- rado como termo do sentimento, e ndo como concepgio ou ideia, mostraria, no arco temporal da Critica da Faculdade de Julgar, de 1790, & “Filosofia da Paisagem” de 1913, um enfraquecimento na gradual perda da consisténcia e da propria certeza das fronteiras do natural. O contemplador kantiano ainda distingue espontaneamente as obras artisticas das formas naturais e o inte- esse pela existéncia destas mediatiza estética e teleologia. A nogao de natu reza nao-humana seré 0 derradeiro esforgo de Feuerbach para manter 0 fundamento real e a sua autonomia para além de todo o antropocentrismo € antropomorfismo. A estética de Simmel é jé perpassada pela nostalgia da redugéo da Natureza a simples aparighes que aguardam o olhar intuitivo que as reanime como express6es vivas. Passar da imagem do Homem as imagens da Natureza ~ do genitivo subjectivo ao genitivo objective — sera tema para outras reflexes complemen- ‘ares. © capitulo retoma, com alguns desenvolvimentos pontuais,o artigo “Sentimento da Natureza e Imagem do Homem: Kant - Feuerbach — Simmel”, Philasophian, Lisboa, 30 (2007), 208-224, “Das individuelle Gasetz. Ein Versuch liber das Prinzip der Ethik, cit, seogbes 89, A ETICA DA NATUREZA EM LUDWIG FEUERBACH Interpelar o pensamento de Ludwig Feuerbach no ambito das relagées entre filo- sofia e ecologia poderd parecer, & luz. das exigéncias do rigor histdrico, um labor in- coerente ou uma tentativa de reconstituigo demasiado forgada. Faltam de facto 20 fil6sofo, como em geral a mentalidade do seu tempo, pelo menos dois dos tragos que festruturam a consciéncia ecolégica actual: por um lado, o alerta face a uma natureza gravemente ameagada ou mesmo comprometida na sua sobrevivéncia; por outro, a certeza dle serem os erros acumullados da aogao humana o factor que mais teré contre buido para tal desagregacio. Esta consciéncia configura, do ponto de vista teérico, uma ideia de natureza, ¢ de “natural”, cuja autenticidade se tomou inteiramente problematica e lanca sobre o homem o peso de uma dupla perspectiva ética, culpa- bilizando-o pela irreversibilidade dos erros j& cometidos e responsabilizando-o pela conservagio do que ainda rest, 1., Feuerbach, pensador da Natureza Sem Ihe serem inteiramente estranhas, as consequéncias da actividade humana sobre o meio, nomeadamente as alteragdes provocadas no clima, so referidas por Feuerbach de um modo genérico e evidenciam a clara inspiragao de um motivo ja desenvolvido por Herder, sem que lhes esteja associada a conotacio de efeitos negativos, muito menosa ideia do homem como predador das espécies vivas ou destruidor do seu ambiente’. Alguns outros tépicos, muito sugestivos do ponto de vista da biografia intelectual de Feuerbach e do 1. 1. Feuerbach, Voriswngen iter das Wesen der Religion (1851), GW 6, 193-194; sobre as alteracbies do Iabitat cos animais (id. 150); as consequéncias da caca so aludidas em Das Wesen der Religion (1846), GW 10, 64 nota, As reflewSes de J.C. Herder acerca da influéncia da cultura sobre o clima podem st lidas na tradusio parcial das ieen zu einer Pilsophie der Geschichte der Mensckhet, in M. Ribeiro Sanches © A. Verissimo Setrio, A incoxgio do “Homem”. Raga, Cultura e Histéria na Aleranha uo ‘lo XVII, Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2002, pp. 310-31 FILOSOFIA DA PAISAGEM seu modo de fazer filosofia, sublinham a diferenga entre o filosofar do campo © 0 da cidade, aquele vivificado pelo ar puro dos espagos livres, em conso- nancia com o status naturalis, este reprocuzindo a estreiteza de horizontes dos espacos fechados e contaminado pelas impurezas do ar citadino?, Em outros contextos, a comparacio entre 0 campo e a cidade pretende vincar 0 contraste entre natureza e histéria, respectivamente, um modo de vida processando-se em ritmos lentos ¢ na familiaridade com os lugares naturais, ¢ um outro deter- ‘minado pela velocidade e a répida mutagao do curso dos acontecimentos?. A intuigao da desagregacio ambiental, da acumulagao de residuos ou da escassez dos recursos basicos ¢ estranha ao pensador oitocentista, tal como a imagem do homem que ameaga 0 seu meio e, por extensio, o seu planeta, parcialmente compreensivel tendo em conta a existéncia passada numa discreta povoacio bavara, retirada dos centros urbanos e protegida dos fumos fabris cujos efeitos nocivos alguns contemporaneos, mais atentos aos aspectos negativos da revolugio industrial em expansio, jd denunciavam‘, Apesar destas restrigdes, Feuerbach nao deixa de ser uma voz decisiva a favor de uma dignificacio incondicional da natureza. Desconhecido ou esquecido quando se buscam as primicias da articulagéo entre filosofia e ecologia, mereceria certamente no contexto do século XIX o lugar de direito tantas vezes conce- dido a Nietzsche — ao sentido matricial da fidelidade & Terra — ou a Spengler = a0 declinio da civilizagio que arrastaria também a natureza, destinada a descaracterizar-se, falha de capacidade regenerativa. Tanto a ideia de niilismo como a de dectinio podem com facilidade ser convertidas em “premonigo” de uma queda, de um desaparecimento total da civilizagio envolvendo os valores culturais e prépria Terra’. Jé 0 contido optimismo de Feuerbach nao 2. A expressio “ar empestado” (vospetete Lyf) tem coma alvo o inguinamento mental da flosofia da cidade, partcularmente a filosofia da escola, que coincide em grance medida com a especulagSo fechada sobre si mesma e cujos mecanismos naturais de pensamento, por insufidenteestimulagio dos dados sensoriais, se encontrariam “obstruidos”; Av Karl Riedel. Zur Berictigung seiner Skizxe (1839), GW9, 45. 3. Das Wisen der Religion, GW 10, 46-7, 4. Eocaso do poeta John Ruskin, que ndo s6 lamentava os efeitos nocives da técnica edo urbanismo, ‘mas pressenta ji os danos causados pela proliferagao da indtistria do carvéo sobre a paisagem natural; cf, Paolo LY Angelo, Eseton deli natura. Beleza natural, paesagya, arte ambiental, Rema-Bari: Laterza, 2000, p. 52-53. 5, O lugar nietzscheano e spengleriano na genealogia da ideia de “ocaso” cvilizacional é proposto, fo Ambito da geoflesofia, por Luisa Bonesio, Olire if paesaggia. I funghi ta etetio e gels, CCasalecchio: Arianna Editrice, 2002, pp. 27-42 ("La Terra del tramonto”) SISACEM © campo B conso- mtes dos B outros gontraste sendo-se mo deter- mentos’ es ou da BI como planeta, numa & fumos sspectos, "Apesar fe uma quando iereceria = conce- ipengler nada a Biilismo jenigao” Endo os Bch nao I ANTROPOLOGIA E FILOSOFIA DA NATUREZA, 6 associa 0 movimento emancipador da histéria humana & antecipagao de uma decadéncia que se exerceria sobre o mundo natural Mas outros temas-chave, quer do ponto de vista da concepeao de natu- feza quer da antropologia, encontram-se bem vivos nos seus textos, como @ tadicagéo terrena do humano ou a consideragio da multifuncionali- dade da natureza, como origem e base, mas também como medida e limite, dda vida. Para além da insisténcia no saber de uma origem e na conten¢ao da acco, sera ainda de realcar o apelo ao lugar do homem como habitante da natureza. Mesmo sem a perspectiva de um declinio, a posigéo de Feuerbach relativamente & natureza ~ seja na sua globalidade, seja nos seus elementos particulares ~ manifesta uma atitude de profundo respeito, tanto mais notavel quanto se processa numa pura ordem de reflexo e nao se pde reactivamente como resposta defensiva perante um perigo jé instalado. A sua dignificaca inequivocamente defendida ao longo de toda a obra, contemplando nomea- damente os deveres humanos para com 0s animais, constitui uma surpreen- dente antecipagao de debates e preocupacdes que se colocam como desafios urgentes ao pensamento e a actuagio dos dias de hoje. 2. Autonomia e valor intrinseco da Natureza Serd importante comegar por identificar algumas linhas fundamentais da filosofia da natureza, ou da natureza encarada como ideia filos6fica, um tema decisivo na visio feuerbachiana do mundo, que se reconhece na concep¢o pessoal que gradualmente elabora e nas criticas a outras doutrinas, a seu ver incompletas ou negativas, contra as quais se insurge. Elaborada por vezes como problema independente, outras vezes em articulago com a antropo- logia, a concepgao de natureza, sofrendo nao obstante uma evolugio, conserva constantes as orientagdes fundamentais iniciadas nos primeiros escritos. No seu aspecto mais essencial, a natureza apresenta-se como o fundamento de toda a existéncia, que nao deve ela mesma a sua existéncia a um ser distinto dela, sendo por consequéncia dotada de inteira independéncia. Independente na origem, nao possuindo um comego temporal determinado, e indepen- dente no seu existit, prossegue autonomamente o seu curso como principio de geracdo imanente, obedecendo unicamente aos seus préprios ritmos internos de desenvolvimento. A expresso mais forte da natureza é a vida, realidade animada que subsiste e se renova através dos ciclos de nascimento e morte dos individuos. FILOSOFIA DA PAISAGEM ‘A defesa do seu valor intrinseco ressalta claramente no confronto ‘veemente, muitas vezes polémico, com o leque de posigSes religiosas ¢ filo- séficas que lhe atribuem um estatuto de ser secundario, ou mesmo negativo. E sio elas, por um lado, 0 criacionismo, que a coloca no estatuto de derivado do acto criador, por sua vez arbitrario, de uma subjectividlade absoluta, Por ser ctiado, o mundo nao possui um significado positivo, mas derivado, suspenso do acto da vontade divina que o trouxe a existéncia a partir de um nada, O mesmo “nada” que sustenta a Idgica especulativa de Hegel, para quem a natureza é posta pelo espirito como um negative com o qual se defronta para adquirir a plena consciéncia de si mesmo’. Seja como obra da vontade, seja como posigao do pensamento absoluto, nao possui estatuto originario, reme- tida paraa condicao de ser segundo na ordem da génese ou momento segundo na ordem do valor. ‘A incapacidade de colher 0 sentido organico ¢ tipica do mecanicismo, par- ticularmente visado por destituir a natureza de sopro vital e de movimento préprio, quando Ihe empresta um modo de funcionamento fixo e repetitive semelhante ao das méquinas. Olhar para o mundo em geral, e para o vivo em particular, sob a figura exclusiva do encadeamento uniforme de causas equi- vale a converter a vida em morte, o vivo em coisa inerte, impondo ao mundo uma estabilidade em tudo contraditéria com a diferenciacio imanente € a diversidade qualitativa exibida pelo curso natural’. A par de uma natureza 6. A associagio entre a criagio do mundo a partir do nada e a consequente desvalorizagio dele come ‘bra do cracor perpassa por inimeros textos; podem ver-e os seguintes capitulos ce Das Wise des CCiristentums (1841): "O segredo da Natureza em Deus", "O segredo da providéncia e da c partir donada”, “O significado da criagao no judaismo”. 7. O fragmento Zul, de 1827-28, € um dos primeiros testemunhos da distanciagdo de Feuerbach relativamente ao ensinamento hegeliano, cua ilosofia ¢interpretada em sentido logcistae, portant antinaturalista. A pergunta "Como se relaciona 0 pensar com 0 ser, a Légict com a natureza?” responde no sentido da precedncia da natureza (ser) sobre o espitito (pensar): “a Ligia s6 chega 2 natureza, porque o sujeito pensante encontra previamente fora da Légicr um sex imediato, uma haureza [..” Fragmiente zur Charakterisitmcnes philsophischen curriculum itae (1846), GW 10, 156 8, Ao longo de toda a década inaugurada pelos Gatien fiber Tad und Unserbtcikeit, de 1831, 2 critica do mecanicsmo, quer apresente uma feigio manista, como a de Hobbes, ou dualista, como a de Descartes, &soidiria de um organicismo de feicio animist, cujas figuras inspiradoras comesam por ser Giordano Bruno a filosofia da natureza do Renascimento italiano, e posteriormente Leibniz. Sere a filosfia da natuzeza do jovem Feuerbach, podem consultar-s: Peter Come, “Feuerbach und die [Naturphulosophie. Zur Genese der Anthropologie und Religionskriik es angen Feuerbach”, Neve Zet- _schrf fir systmatcche Theologie, Bertin, 11 (1968), 3793; Leonardo Casini, Feuerbach Posture Ii pantesno dale Lesion di Exiangen, Centro di Ricezca pet le Scienze Moral e Socal Istituto di Filosofia della Uni versth di Roma, Firenze: Sanson, 1975; A. Verlssimo Sertdo, “O espiito do pantelsme. Feuerbach eo [Renascimento italiano”, Revista da Faculdade de Letras, Lisbos, 13/14 1990) 29.36. SAGEM conto filo- Bativo. Eivado Bor ser spenso Sad. Bem a @ para & seja meme undo B par- mento Etitivo woem Sequi- pundo = ce ee Eire = zi. ae un. Behe o 1, ANTROPOLOGIA E FILOSOFIA DA NATUREZA. ” organica, pitysis, cuja esséncia ¢ o principio vital, indispensavel para pensar 0 ritmo de sucessio dos fenémenos e seres, Feuerbach considera-a também de ‘um ponto de vista sincrénico, como “totalidade simulténea” ou comunidade. Oconceito de natureza como simultaneidade permite dar conta de uma coeséo actual, de um todo cujos elementos possuem individualmente uma impor- tancia e um valor desprezados pela visio em sucesso. Todos os elementos de um conjunto constituem a natureza, vista agora como somatério, um todo ‘coeso mas aberto, constituido pela co-presenca dos seus membros. Se a visdo processual tem como matriz a transiéncia temporal do finito, a natureza-todo apresenta-se segundo 0 esquema do espaco, isto é, uma comu- nidade regida pela coordenagao e coexisténcia dos finitos - modalidades de um estar em conjunto que Feuerbach adjectiva como “Iiberalidade” ou “tolerancia”’-, participando cada um de direito proprio, na plenitude das suas diferencas e qualidades insusceptivel de se resumir numa figura tinica. Natureza tende, pois, a coincidir com realidade, sendo mesmo definida como © “somatério da realidade” (Inbegriff der Wirklichkeit), incluindo nesse “estar com” também 0 ser humano, inserido na totalidade real de que ¢ insepardvel. Inaugura-se assim uma ideia de realidade estruturada na bipolaridade Natu- reza-Homem, modo essencial de toca a existéncia e de que nem o filésofo se pode alhear, como se fosse um espectador isolado ou um puro sujeito cognos- cente, e nao um ser total: “O fildsofo deve ter a natureza por amiga; 2 natu- zeza ¢ inteiramente sabedoria, raz0. Aquilo que ele pensa, ela fé-lo, € isso que ele vé nela.” Ela é para a filosofia, para o pensamento em geral, a alteridade nio redutivel ao pensar, o elemento vivificante de um pensar que recusa a abstraccao e aspira a permanecer na conexao com o ser. E neste contexto que a natureza se assume também como um paradigma ético para a filosofia, como Heil, na dupla acepcao de satide e salvacio, modelo de simplicidade, sobrie- dade e racionalidade inerente que deve ser compreendido e seguido: [A filosofia é a cidncia da realidade na sua verdade e totalidade, mas o somatério da realidade 6 a natureza (natureza no sentido mais universal do termo). Os segredios _mais profundos residem por isso nas mais simples coisas naturals, que o fantasios0 cespeculativo que apela ao além calca debaixo dos pés. O retomo & natureza é a “inca fonte da salvacio."" 9. Zur Krk der Hegelechn Philosophie (1839), GW9, 17. 10. CartaaJ. A. K, Roux (Maio de 1837), GW 17,289. 11. Zur Kitt der Hegelschen Philosophie, GW9, 6. FILOSOFIA DA PAISAG ‘A leitura negativa do curso do idealismo na época moderna, de Desca a Hegel, incide em grande medida na separacao que gradualmente se instituindo entre sujeito (cognoscente ou moral) e natureza, incorrendo = hipersubjectivismo virado sobre si mesmo ¢ apartado do mundo, que to= ilusoriamente a natureza como reflexo das suas operacdes intelectuais produto da elaboracio categorial, logo, como mera cbpia destituida da cura do original, Nos textos fundadores do projecto de uma reforma da filosofia e da ict de uma neue Philosophie — as Vorliufige Thesen zor Reformation der Philosophie & Grundsiitze der Philosophie der Zukunft - Feuerbach cruza a filosofia da natux com uma ontologia elaborada luz do principio Sensibilidade (Sinnlichkeit) caracteriza a sua doutrina plenamente amadurecida. Para a nova filosof ser nao 6 um conceito vazio, o conceit de maxima generalidade e dest de qualquer contetido concreto que se aplicaria indistintamente a tudo o pode ser pensado. E 9 ser concreto, 0 ser sensivel, a posicao de existén: ser que existe independentemente do pensamento e da linguagemy poss por si mesmo verdade e realidade: “A existéncia, mesmo sem dizibili tem por si mesma sentido ¢ azo." Da ontologia sensivel decorre a in consisténcia do real, a unidade e solidez de um tinico mundo, de todas as instincias e de todos os seus seres, entes plenos, nao sombras, entes reai: aparéncias, Promovido ¢ também 0 valor das individualidades, ou mais p samente, a irredutibilidade do singular a um plano de generalidade no qu anularia a qualidade pregnante da presenga. O ser concreto é a prépria éncia desdobrada na multiplicidade dos existentes e na singularidade ies tivel de cada um, ‘A implicagao mais significativa para uma visio apotestica da reals encontra-se porém na tese do ser como sujeifo: “Ser 6 algo no qual nao ap eu mas também os outros, ¢ sobretudo também o proprio objecto, estio ‘cados. Ser significa ser sujeito, significa ser para si.” A nogao de sujeito ps a identificagao com 0 eu autoconsciente e auto-reflexivo do idealismo ser integrada, sem privilégio nem exclusividade do humano pensante, = visio realista e plena da existéncia. 42, Grunaaitze der Philosophie der Zukunf (1843),§ 28, GW 9,308. 13, Grundsite der Philosophie der Zukunft § 22, GW 9, 304. Uma hicida exposigio da. om feuerbachiana & apresentada por Werner Maihofer em “Konkrete Existenz. Versuch philosophische Anthropologie Ludwig Feuerbach” in Exist und Ordnung Festschrift um 60, Geburtstag Frankfurt arm Main: V. Klosterman, 1962, 246-28 = PAISAGEM. I. ANTROPOLOGIA F FILOSOFIA DA NATUREZA 4” fe Descartes A ontologia prepara a dignificacio e promogdo do mundo, mundo de Bente se foi Sujeitos que sio também objectos, no enquanto o contrario do pensamento endo num ou o destitufdo de pensamento, mas simplesmente em fungao da posiggo que /que tomou cada um desempenha na relacdo a outro, o que converte a realidade sensivel dectuais ou num tecido de inter-relagdes, sob o modo originério da subjecto-objectividade Eda da fres- de todo o existir. Beda ideia pecs 3. Uma tipologia das atitudes: entre instrumentalizaao e gratidio de natureza petkeit), que Sendo a apreensao do real tanto mais verdadeira quanto menor a inter {filosofia, 0 vengao de estruturas subjectivas de mediag3o ou de esquemas predeter- = destituido minados, a multifacetada ontologia da existéncia requer que a conctegio se eo que coloque também ao pensamento como seu critério de verdade. E necessério pasténcia, 0 que © pensamento nao perca o contacto com o real, que seja ele mesmo coin- = Possuindo: Gidéncia de ser com ser, pensamento concreto. 0 primado advém aos modos Eeibilidade, sensiveis de apreensao do ser e, entre estes, aos imediatos, como a intuicao ea inteira sensivel, que se ligam directamente as coisas sem interposicao de véus, conser- idas as suas vando vivo no préprio pensar 0 elemento ontologicamente mais forte, sinté- S reais, nao tico por exceléncia, que é a sensagio. mais preci- A intuigao (Anschawung) 6 uma visio em cuidado e aprofundamento do Eno qual se sensivel. Preside-lhe uma légica de proximidade, uma visio em escala que Popria exis- tanto pode alcancar os mais longinquos céus como incidir nos seres mais Sede irredu- chegados. A intuigao nao é em rigor um conhecimento, que separa o objecto da sua representagao ou do seu conceito"; é j4 pensamento sensivel, um saber g realidade que decifra 0 livro do mundo e o desvenda na multiplicidade e variedade dos B20 apenas seus caracteres e vocdbulos. Sido impli- O filésofo ndo detém a exclusividade da contemplag3o. Partilha-a com sito perde @ atencao do botanico que trata das suas plantas e do mineralogista que smo para cuida dos seus cristais, que ligam estudar e amar, raz30 e sentimento, ou em Sate, numa linguagem feuerbachiana, cabeca e coragio, Partilha-a com o religioso natura~ lista que celebra em adoragéio temerosa e veneradora a sua relacao de divida para com o mundo natural", Reconhecedora da qualidade, geradora de $62 ontoiogia 1H, Para a explanagbo da imediatez dos mods sensiveis, por opcsicio a0 moxlo representative, Bch Sher dic que separa representagio e objec, e ao conceptual, que subsuineo particular num plano de gene Erik Wolf talidade, Grundsitze der Philosophie der Zukunft $§39 e 44 15. Ct. Voresingen iter das Wesen dr Religion (1. conferéncia). 50 FILOSOFIA DAP alegria, decotre na paridade de uma relacao de respeito pelo objecto, ‘em si mesmo, valorizando a natureza como um bem a observar, 2 admirar, nao a usar. Feuerbach enfatiza 0 poder da intuicio quando = ‘a0 amor, essa capacidade que o coracao tem de retirar os seres da ind de conferir a cada finito um cardcter absoluto, um valor infinito'’. No = posto, encontra-se o utilitarismo, a visd0 determinada pelo interesse Jada pela antecipacio calculista dos proveitos, movida pela funcionalics resscira que reduz um ser & posse ou ao lucro: que seja meu ou que meio para mim. © egoismo do uso, instrumentalizando os seres como s gerador de disparidade, como ressalta do contraste dos dois tipos de = [A intwigdo prética & uma intuigSo suja, manchada pelo egoismo. Nels “Gono-me com uma coisa apenas por minha causa. Ngo a into em f ho fundo, ela 6 uma coisa desprezivel [.]- A intuigio prética & uma in satisfta em si, pois nela eu relaciono-me com um objecto que nido é d= igual & minha, A intuio teézica, pelo contrério, uma intuigao chia de {ita om si mesma, ber-aventarada, pois para ela o objecto & um abjecto tudmiragio, que brilha na luz. da livre inteligéncia, magnifico como urs transparente como um cristal de montana; aintuigéo da teoria é uma in tia, intuigdo pratica, pelo contrrio, uma intuigio insti.” A contemplagio deve o seu primado ao desinteresse, ausén vontade de possuir, o que supde um descentramento, mas ndo uma = de si. O proprio conceito de estética traduz, na terminologia de Feue equiparacio de sujeito e objecto no plano sintético da subjecto-obje ‘A liberdade da natureza é solidaria da liberdade mental do sujeito. Feuerbach associa por vezes a estética ao sentido grego do esp: ‘ao mundo e da contemplagao (the6ria), teorética mas néo intelectu: acolhe com olhos maravilhados o sentido festivo e a magnificéncia d Outras vezes integra a estético-tica numa forma de religiosidade aus feita de divida e gratidao, a0 mesmo tempo prdxima e respeitosa, Pros culto dos elementos, na celebracéo das qualidades e propriedades Nao esquecas, na gratidio para com o homem, a gratidao pela sagrad: No esquecas que 0 vinho ¢ a farinha sio o sangue e a carne das plar 16. “O ser & pois, um seqredo da intuigo, da sensagio, do amor. $6 na sensacio, 86 56 xt” esta pessoa, esta coisa ~, ou sea, o singular, possui valor absoluto, é que oft nisto $6 isto que consist a Infnita profundidade, divindade e verdade do amor.” Philosophie der Zukunft §34, GW9, 317 17. Das Wise des Christen, GW, 233. RISAGEM somo fim Studar, a B associa ferengae eu pélo pe macu- fade inte- eseja um Pmeio, é intuicio: B cu rela Beso dela; Bicio no Econdicao Bria, satis- leer o da Gamante, Bicdo esé- de uma pnulacdo Erbach, a Bvidade mato face Eta, que Pmundo. Btentica, Sente no Raturais: Neturezal que s30 Sor. é que nite & sc der E ANTROPOLOGIA E FILOSOFIA DA NATUREZA sactificadas ao bem-estar da tua existéncial (..] Sagrado seja entdo para nés 0 pio, sagrado 0 vinho, mas também sagrada a dgua!™® Ao impor uma medida humana, seja ela do individuo, ou de grupos, seja ainda a medida do género humano em geral, o utilitarismo é uma expresso de egoismo e de antropocentrismo. Nao se confundiré todavia antropocentrismo ‘com a situagio concreta ocupada por cada sujeito, que define uma situacso determinada na apreensdo do mundo. O sujeito humano é, para Feuerbach, um eu corporizado, radicado no mundo segundo as coordenadas concretas de um “aqui e agora”. A posi¢ao corporal e espécio-temporalmente enrai- zada de um sujeito incarnado imprime necessariamente & captacao do mundo a diferenciagao de angulos, de perspectivas. O perspectivismo, segundo 0 qual a totalidade real é tomada em parcelas ou fracgdes de mundo deve por isso ser alargaclo com 0 ponto de vista de outros, numa concepio dialégica da verdade que nao identifique, sem mais, o ponto de vista pessoal com 0 ponto de vista total. A tarefa da filosofia consiste justamente em ultrapassar 0 cardcter limitado dos pontos de vista e aceder a uma universalidade inter- subjectiva e comunicativa. Ja “ser centro”, "tomar-se como centro”, implica a atitude primaria e limi- fada segundo a qual as coisas que giram em torno da minha situagao restrita, pessoal e local, so exclusivamente como eu as apreendo. Supde a projeccdo de uma medida, exclusiva para mim ou para um nés, tomada como um absohuto. antropocentrismo comeca por revestir-se da figura de um antropo- morfismo inocente; caracteristico do estédio de ignorancia dos individuos e dos povos, como no caso da crianca ou da mentalidade animista, investe os objectos naturais de propriedades, comportamentos ou sentimentos humanos®. E no curso da evolugéo, pessoal ou histérica, que 0 antropo- centrismo viré a tornar-se num grave vicio de pensamento que, ao invés de humanizar 0 mundo, Ihe retira deliberadamente a sua especificidade para 0 julgar segundo critérios mentais e categoriais que Ihe conferem consisténcia € objectividade. Em ambos os casos, hé uma projeagio sobre o objecto; no primeiro caso, por identificagao e assimilacio; no segundo, por destituigao ¢ privacio. Feuerbach esté ciente de que existe uma auto-referencialidade que intervém espontaneamente na viséo do mundo, Impée-se por isso a todo o conhecimento um exercicio de autocritica, que sem poder anular a introdugio 18, Das Wiese des Chrstntums, GIS, 454 19. Grundsitze der Philosophie der Zukunft § 44, GW9, 326. 2 FILOSOFIA DA PAIS dessa medida, nao identifique modos de conhecer ¢ dizer com 0 Ser mesmo. E necessério apreender a natureza apenas através dela mesma guindora como “coisa em si” ¢ “coisa para nds, com a consciéncia Gualquer medida humana, a ser-he aplicada, possui um alcance intel analégico: Mesmo que a natureza no vei, ndo é porém cege, mesmo que nfo viva (vy subjective, sensitiva da vida humana em geral), nfo é porém meta, € me rndo se forme segundo intengSes, as suas formagies nio so ersusis; Po homem define a natureza como morta e cega, as suas formacdes como © le converte oseu proprio ser (sto 6 subjection) em medida da natureza, de lunicamente seguro a oposiga a si mesmo, efere-a como um ser deficient: cla nfo tem o que ele ter. Existéncia humana e natureza vivida Apresentando-se o mundo natural como provido de autonomia, humano se encontra marcado pela dependéncia da natureza, origer de todas as instancias de vida, Inorganica e orgénica, vegetal e anima enquanto espécie viva, também o homem comegot por surgir da é do ponto de vista da génese temporal um ser da natureza~ 0 hom mundo (Welfmensch), modelado pelo seu pensamento e pela sua acs tamiém sempre um homem da natureza (Naturmensch). Porém Fes nao se detém demoradamente na questao da origem, bastando-lh alguns principios de carécter muito geral, que cabe 3s ciéncias explicar e confirmar nos aspectos particulares: a precedéncia da tivamente a todas as espécies, incluindo a humana, no seio da qua surgimento tardio, diferido no tempo, obrigando a pensar um esi havencio éa Terra, plantas e animais, ohomem ainda nao exista® Pos é numa remota origem natural da espécie viva que se encontra a su: natural. Ele é sobretudo um ser na natureza, no sentido de uma total num processo de existéncia. ‘No seu habitar conereto o ser humano desconhece os complex em matéria de ontologia e gnosiologia, mas nao a natureza sens ircunda e em que se processa a integralidade da sua existéncia. O 120. Das Wes der Religion § 48, GW 10, 60 2 Kite Sprtuatsnus ned Maeralismus lesonders in Becchong au die Willen (185 22. Ck. Vorlesunger iter das Wesen der Religion, GW 6,109. 1 ANTROPOLOGIA E FILOSOFIA DA NATUREZA s sofo pode expressar numa pura ordem de pensamento, instituindo a ideia de um fundamento, distante na ordem ontolégica, um primeiro no tempo ou no valor, vive-o ele em cada momento da existéncia como realidade vizinha. Vive-a como terra natal (Heimat), sublinhando o sentido de uma pertenca @ sua terra, como solo ou domicilio origindrio. Nao esta apenas no espago e no tempo, coordenadas da existéncia em geral; é proveniente de um lugar, deste lugar identificado, ao qual, depois de sair, regressaré com a sensacao familiar de uma pertenca, e cuja meméria pode chegar a transportar consigo na repre- sentagao de uma vida futura apés a morte”. A terra natal é um enquadramento caracteristico, uma natureza-paisagem determinada pelas peculiaridades do solo e do clima, os recortes das montanhas e o curso dos rios, habitado por uma fauna e uma flora especificas”, Vive-a como realidade sensivel, que experiencia na profusio das sensacies, que nfo sto nem afecgées, nem obscuras impressées, nem um material senso- ial destinado primeiramente a0 conhecimento. A sensag3o é provida de consisténcia, é uma unio essencial, alianga e cépula ontologica, é 0 ser que se une ao ser. Mais forte que a intuigao, que percebe A distancia, o sentir em contacto liga num tinico acto o senciente e o sensivel: ‘86 aos seres que eu vejo esinto, ou Aqueles outros que embora eu nao veja nem sinta sio todavia vistveis e sensiveis em si, ou a quaisquer outros seres sensiveis, devo a minha existéncia, o facto de sem senticios me afundar no nada.” Se a sensibilidade ~ entendida jé por Feuerbach como globalidade inter- sensorial de audigao e visio, gosto, olfacto e tacto ~ se caracteriza pelo mavi- mento de abertura ao mundo (o sair para fora de si, o ter o fundamento fora de si), 0 reverso é igualmente verdadeiro. O mundo entra também em 1nés, e no s6 pelos canais sensoriais, mas pela totalidade do corpo, um “eu Poroso” que se deixa impregnar de mundo™. O corpo sensivel encontra seres singulares, mas também os elementos fundamentais que o circundam e tudo englobam —o area luz — e outros, como a agua e terra, sensiveis omipresentes mas também bistopos, constituintes fisicos e biol6gicos, nutrientes quimicos e 23, Das Wesen des Chrstestons, GW, 307-310 28, Die Unserlcheitsfrage com Stanpunt der Anthropologie (1847), GW 10,259; Vorlesngen ier ds Wes ter Religion, GW 6, 47-88 25. Vorlesungen iter das Wesen der Religion, GH, 10 26, "Ser no corpo significa ser no mundo tantos es pores, tantas as vulnerabilidades: 0 corpo nadaé serio oeu poroso.” Einige Bemerkuagen ber den “Anfang der Philosophie” (1841), GW9, 151

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