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Estudo ISSN 2525-8222 AMOSTRAGEM E SATURACAO EM PESQUISA QUALITATIVA: CONSENSOS E CONTROVERSIAS SAMPLING AND SATURATION IN QUALITATIVE RESEARCH: (CONSENSUSES AND CONTROVERSIES ‘Maria Cecilia de Souza Minayo! Resumo: Este ensaio sobre amostragem em pesquisa qualitative ¢ sobre o conceito de saturacao discure as seguintes questBes: em que medida as interlocuedes individuais que se obtém no campo podem ser entendidas como revelagdes do grupo ¢ permitir inferéncias sobre ele? Quais seriam as precondigdes para uma amostra suficiente e fidedigna? Num projeto, deve-se colocar previamente o mimero de pessoas ‘a serem entrevistadas e um tempo determinado para a observagio de campo? Quantas entrevistas e quanto tempo de observacio sto necessérios para um bom trabalho de campo? Quando se deve parar de buscar ais dados? As respostas sao balizadas na literatura ¢ na experiéncia pessoal da autora, mostrando que a ‘quantificagao a prior! foge A lbgica que preside os estudos qualitativos. Palavras-chave: Pesquisa qualitativa; Estudos qualitativos; Amostragem; Saturacdo, Abstract: This essay on sampling in qualitative research and on the concept of saturation discusses the following questions: To what extent individual interlocutions obtained in the field can be understood as revelations of the group and allow inferences about it? What would be the preconditions for a sufficient and reliable sample? In a project, should the number of people to be interviewed and the time for field ‘observation be established previously? How maay interviews and how much observation time are needed for a good fieldwork? When should the search for more data be discontinued? The responses are based on. the specific literarure and on the personal experience of the author, showing that, in principle, ‘quantification escapes the logic of qualitative studies. ‘Keywords: Qualitative research; Qualitative studies: Sampling: Saturation. 1 Introdugio Este artigo constitui-se num ensaio reflexive sobre amostragem e sobre 0 conceito de saturagio no Ambito da pesquisa qualitativa. Para isso, valho-me da literatura nacional e intemacional sobre o tema, assim como de minha experiéncia pessoal ao lidar com pesquisas empiricas e com avaliagdo de trabalhos que utilizam abordagens compreensivas. No texto, refiro-me apenas ao caso das pesquisas empiricas que incluem alguma forma de interlocugao com atores sociais (por exemplo, por meio de entrevistas abertas, semiestruturadas, projetivas ou informais: grupos focais; paingis € outros) ¢ observagdo de campo. Trato dos seguintes pontos: uso e controvérsias a Doutora em saiide piiblica pela Escola Nacional de Saiide Piiblica (Fiocruz). Pesquisadora titular da Fundacdo Oswaldo Cruz (Fioceruz), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Email: maminayo@terra.com.br Revista Pesquisa Qualitativa. Sao Paulo (SP), v. 5, n. 7, p. 01-12, abril. 2017 1 Estudo ISSN 2525. respeito dos conceitos de amostragem e saturacio; exemplos de utilizagdo desses termos; ¢ algumas consideragdes a partir da experiéneia e da literatura. Questdes sobre amostragem so das mais recorrentes em pesquisa qualitativa. Tanto quem trabalha com 0 tema como os que o estranham querem saber até que ponto uma quantidade pequena de entrevistas, realizada com um grupo restrito ¢ delimitado, assim como a propria forma intersubjetiva de atuagio do pesquisador em campo, podem ser considerados cientificos. O parimetro para esses questionamentos so as regras da ciéncia hegeménica cujos céloulos estatisticos e os procedimentos a eles inerentes sio considerados os meios cortetos e fidedignos de verificagio e de busca da verdade (MARTIN-SALGADO, 2012). O tema da amostragem é realmente muito importante porque a ele esti vinculada a credibilidade metodolégica de uma investigagio (BERTAUX, 1981; CRESSWELL, 1998; MORSE, 2000, 2008; MINAYO, 2012, 2015). Para iniciar esta conversa ressalto trés pressupostos. O primeiro é que pesquisas qualitativas € quantitativas se complementam, mas sio de natureza diversa, Uma trata da magnitude dos fendmenos, a outra, da sua intensidade. Uma busea aquilo que se repete e pode ser tratado em sua homogeneidade, a outra, as singularidades e os significados. Sobre esse primeiro aspecto, é importante ouvir observagdes como as de Kant (1980) em sua Matematica Transcendental, quando diz. que todo fendmeno possui ‘magnitude, ou seja, aspectos que se repetem ¢ podem ser contados (quantidade); ¢ intensidade, aspectos que 0 tornam especifico (qualidade). Quantidade e qualidade se sintetizam no objeto. O segundo pressuposto € que a pesquisa qualitativa, usando-se a linguagem de Kant, busca a “intensidade do fendmeno”, ou seja, trabalha muito menos preocupada com os aspectos que se repetem e muito mais atenta com sua dimensio sociocultural que se expressa por meio de crengas, valores, opinides, representagdes, formas de relagao, simbologias, usos, costumes, comportamentos e priticas. O terceiro aspecto & que, ao reconhecer sua distingo em relagio aos métodos quantitativos, a abordagem qualitativa nao est isenta de parimetros ¢ normas que possam dar-he status de cientificidade (ONWUEGBUZIE; LEECH, 2007). 2 Uso e controvérsias do conceito de amostragem e da nogio de saturagao Revista Pesquisa Qualitativa. Sao Paulo (SP), V. 5,. 7, p. 01-12, abril. 2017 2 Estudo ISSN 2525. Apresento, a seguir, algumas perguntas que subjazem as mais comuns indagagdes dos pesquisadores, particularmente aos principiantes e aos que vém de outras tradigdes metodologicas, a respeito de amostragem em pesquisa qualitativa. «Em que medida as interlocugdes individuais que se obt&m no campo podem ser entendidas como revelagdes do grupo, permitindo, portanto inferéncias sobre ele? © Quais seriam as precondigdes para se garantir uma amostra suficiente e fidedigna? * No projeto de investigacio, deve-se colocar previamente um niimero de pessoas a serem entrevistadas e um tempo para a observago de campo? © Quantas entrevistas e quanto tempo de observagio so necessirios para um bom trabalho de campo? © Quando se deve parar de buscar mais dados? Sobre o primeiro ponto que trata da representatividade da enunciagao individual para o coletivo, hi varias respostas possiveis, mas me apoio na contribuigio de trés autores. Em primeiro lugar, trago a palavra de Gadamer (2008) quando ressalta, em sua hermenéutica filos6fica, uma dialética entre o grupo e o individuo. Segundo o autor, cada individualidade & manifestagio do viver total embora no seja a totalidade do viver. Nesse sentido, a fala de cada um deve ser valorizada, mas nao de forma absoluta, uma vez que © sujeito nio se esgota na conjuntura em que vive € nem sua ago e pensamento sio meros frutos de sua vontade, personalidade ¢ desejo. Sua narrativa precisa ser balizada pelo pensamento do outros, pois é também reveladora do grupo em que esta inserido e de seu tempo histérico onde sua singularidade esta entranhada de cultura. Um segundo autor de importincia nesse caso é Bourdieu (1983) quando desenvolve a nogio de habitus como um dispositivo que auxilia a pensar as caracteristicas de uma experigncia biogréfica a partir de uma identidade social que orienta 0 individuo, ora consciente ora inconscientemente. O individuo se apresenta ‘como uma sintese complexa de seu contexto sécio-histérico, dotado, portanto de uma interioridade e de uma configuragao social exterior a ele. © terceiro autor de importincia & Norbert Elias que também trabalha com a nogdo de habitus numa abordagem configuracional (ELIAS, 1994), em que a sociedade e os grupos sio vistos como espacos de interagdes e de redes intercomunicantes. As relagdes entre os individuos ocorrem sempre de maneira interdependente, ou seja, conformando Revista Pesquisa Qualitativa. Sao Paulo (SP), V. 5,. 7, p. 01-12, abril. 2017 3 Estudo ISSN 2525. identidades pessoais e sociais. Desta forma uma entrevista com alguém de um grupo é, 0 mesmo tempo, um depoimento pessoal e coletivo. No mesmo sentido e de forma operacional, Romney, Batchelder e Weller (1986) falam de um modelo de consenso cultural para estudos etnogrificos, 0 que permite um nimero finite de entrevistas e observagdes. Desta forma, a resposta para a indagacdo inicial & positiva: as informagies prestadas por pessoas implicadas num tema de pesquisa podem representar 0 conjunto quando determinadas precondigdes forem observadas, Respondendo 4 segunda indagagio, ressalto que a amostra de uma pesquisa qualitativa deve estar vinculads & dimensio do objeto (ou da pergunta) que, por sua vez, se articula com a escolha do grupo ou dos grupos a serem entrevistados e acompanhados por observagio participante. Espero contribuir com o leitor, comentando que a amostra no é um elemento solto no conjunto da proposta qualitativa, e assinalo aqui um pequeno decélogo de recomendagdes que, na minha experiéneia, deveriam cercar esse momento de construgio do objeto: (1) dar atengdo a elaboragiio de instrumentos que permitam compreender as homogeneidades e as diferenciagSes intemnas do grupo ou dos grupos a serem pesquisados; (2) assegurar que a escolha do local ¢ do grupo (ou dos grupos) para observagio e troca de informagdes contemple 0 conjunto das caracteristicas, experiéncias e expressdes que o pesquisador pretende objetivar com seu estudo; (3) privilegiar, na amostra, os sujeitos sociais que detém os atributos que o investigador pretende conhecer; (4) definir claramente 0 grupo social mais relevante, no caso de se trabalhar com varios subconjuntos: ¢ sobre ele que 0 pesquisador deve concentrar grande parte de seus esforcos; (5) dar atencdo, também, a todos os outros grupos que interagem com o principal, buscando compreender o papel de cada um em suas interagdes, interconexdes e influéncias mituas; (6) trabalhar numa perspectiva de inclusio progressiva das descobertas do campo, confrontando-as com as teorias que demaream o objeto: (7) nunca desprezar informagdes impares, que se destacam e nio sio repetidas, cujo potencial explicativo importante para a descoberta da légica interna do grupo estudado; (8) considerar um mimero suficiente de interlocutores que propicie reincidéncia e complementaridade das informagdes; (9) certificar-se de que o quadro empirico da pesquisa esteja mapeado e compreendido; (10) sempre que possivel, prever uma triangulago de téenicas e até de métodos. Isto é, em lugar de se restringir a apenas uma fonte de dados, multiplicar as tentativas de aproximagao. Revista Pesquisa Qualitativa. Sao Paulo (SP), V. 5,. 7, p. 01-12, abril. 2017 4 Estudo ISSN 2525. A atenco aos pontos citados nesse pequeno decilogo so muito mais relevantes que as outras indagacdes que esto na lista de perguntas assinaladas acima, embora elas constituam preocupagdes muito comuns dos que trabalham com pesquisa qualitativa. Desse ponto de vista, elas so importantes e dizem respeito a uma nogio bastante usada © controversa na pesquisa qualitativa, a de saruragao. Saturago & wm termo criado por Glaser ¢ Strauss (1967) para se referirem a um momento no trabalho de campo em que a coleta de novos dados nao traria mais esclarecimentos para 0 objeto estudado. Desde que usado pela primeira vez, 0 termo trouxe uma sensagio de praticidade e, a0 mesmo tempo desencadeou incontiveis questionamentos (FONTANELLA; RICAS; TURATO, 2008). Varios estudiosos tém se pronunciado a respeito sem, contudo, chegarem a uma conclusio decisiva, diferentemente dos que fazem investigagGes quantitativas em que refinados célculos estatisticos estabelecem o tamanho ideal da amostra ¢ as possibilidades de expansio dos resultados, Onwuegbuzie e Nancy L. Leech (2007) consideram que fazer uma amostra de E refutam os argumentos dos que nfo consideram o tema relevante. Tratam-no como um. tamanho adequado deve merecer uma atencio especial do pesquisador qualitative, construto multidimensional ¢ afirmam que o tamanho da amostra e seu desenho representam um processo ativo de reflexo, No entanto, segundo esses autores, existe uma crenga de que cuidar da amostra ndo seja um ponto importante na pesquisa qualitativa, ¢ citam mais de 1500 textos em que essa concepgdo aparece. E claro, referem, que nas pesquisas qualitativas, as amostras no devem ser pensadas por quantidade e nem precisam ser sistematicas. Mas a sua construgao precisa envolver uma serie de decisdes no sobre quantos individuos sero ouvidos, mas sobre a abrangéncia dos atores sociais, da selegio dos participantes ¢ das condigdes dessa selegao. Esses elementos precisam ficar claros na metodologia de investigagao, pois eles interferem na qualidade da investigacio. Charmaz (2006) acena que a extensio do objeto ea complexidade do estudo é que devem orientar 0 tamanho da amostra, concordando com o que assinalo em O desafio do Conhecimento (MINAYO, 2015), sobre 0 mesmo assunto. Morse (2000) refere, como pardimetros, 0 escopo da investigacao, a natureza do estudo e seu desenho metodologico. Ritchie, Lewis e Elam, (2003) ressaltam que o tamanho da amostra ¢ 0 ponto de saturagdo so resultantes da heterogeneidade da populagdo que sera pesquisada e aconselha dar-se maior destaque ao grupo principal, no caso de existirem varias Revista Pesquisa Qualitativa. Sao Paulo (SP), V. 5,. 7, p. 01-12, abril. 2017 5 Estudo ISSN 2525. amostras num mesmo estudo, Assinalam também o fato de que frequentemente, 0 ponto de pausa acaba ocorrendo, nao por razdes metodologicas, mas nos limites dos recursos disponiveis. A consideracao sobre esse ultimo item se deve ao fato de que ¢ muito dificil estabelecer epistemologicamente um momento de corte, uma vez que quanto mais experiente é 0 pesquisador, a tendéncia & que ele sempre ter novas perguntas para aprofundar seu trabalho de campo (DEY, 1999; GUEST; BUNCE; JOHNSON, 2006; BERTAUX, 1981; MORSE, 2000; MASON, 2010; MINAYO, 2012, 2015, 2017). Varios dos pesquisadores aqui citados, muitos dos quais questionam os parimetros epistemologicos para aplicagio do coneeito de saturacao, artiseam-se a propor algum critério quantitative para a abordagem dos entrevistados em campo. (GUEST; BUNCE; JOHNSON, 2006; MORSE, 2000, 2008; HARVEY, 2000) mencionaram que os trabalhos de etnografia, etnocigncia e avaliagio qualitativa devem contemplar entre 30 a 50 entrevistas. Creswell (1998) fala da mesma quantidade para os estudos de teoria fundamentada. Cresswell (1998) e Morse (1994) propdem que as pesquisas de cunho fenomenologico se atenham a no maximo 25 ¢ a no minimo a cinco entrevistas. Para a pesquisa de historias de vida, 15 seria um nimero minimo aceitivel para Bertaux (1981). Em resumo, uma quantidade consensual seria de, pelo menos, 20 a 30 entrevistas para qualquer tipo investigagio qualitativa, segundo Morse (1994) Creswell (1998). Atran, Medin e Ross (2005) falam de no minimo 10 informantes. Ora, embora alguns estudiosos queiram se resguardar de um possivel questionamento sobre a capacidade de uma pesquisa qualitativa representar a Logica intema de determinado grupo, a primeira vista, determinar um mimero de entrevistados abstratamente é bastante problemitico, dado o eardter de abrangéncia das intereonexdes necessirias para a compreensio do objeto, Essa polémica se agrava quando os pesquisadores nao explicam porque, com determinado mimero de interlocutores ouvidos e observados em campo, eles consideram 0 assunto saturado, e nem o que essa saturagaio significa. Por esses e outros motivos, Dey (1999) trata o termo saturacéio como improprio, pois na verdade nio ha um ponto de corte nem a priori ¢ nem para finalizagdo do trabalho. Um pesquisador experiente sempre pode puxar mais um fio para aprofundar sua reflexio sobre determinado objeto. Fusch ¢ Ness (2015) ressaltam que “o caminho mais fécil para diferenciar volume e riqueza de dados é pensar em volume como quantidade e riqueza como qualidade. Volume ¢ uma quantidade de dados; riqueza significa camadas intrincadas, detalhadas, nuangadas e mais, Podemos ter um grande volume sem ter grande riqueza; a0 contrario, podemos ter uma grande Revista Pesquisa Qualitativa. Sao Paulo (SP), V. 5,. 7, p. 01-12, abril. 2017 6 Estudo ISSN 2525. riqueza retirada de poucos dados. O segredo é ter ambos” (FUSCH; NESS, 2015, p. 1411) buscando ao mesmo tempo quantidade e qualidade na coleta de dados. No Brasil, determinar 0 mimero de interlocutores tem sido uma exigéncia regular dos comités de ética em pesquisa na area da satide, obedecendo a Resolucio n° 196/96, do Conselho Nacional de Satide ¢ do Ministério da Saiide, depois substituida pela Resolugio no. 466, de 12 de dezembro de 2012. Para ter seu projeto aprovado, os pesquisadores (mesmo os que so absolutamente contra a quantificacdo a priori) so incitados a calcular um montante provavel e plausivel de participantes dos estudos, levando em conta 0 escopo de suas investigagdes. Depois de muitos questionamentos da comunidade cientifica insurgente contra tal obrigagdo que consagra a légica biomédica nos dois dispositivos citados acima, foi aprovada pelo Conselho Nacional de Saiide e pelo Ministério da Satide, a “Resolugio n° 510 de 7 de abril de 2016 do Ministério da Satide que trata das especificidades éticas das pesquisas nas ciéncias lmumanas e sociais e de outras que utilizam metodologias proprias dessas dreas”. Essa resolugao foi fruto de ‘um ingente trabalho coletivo de pesquisadores sociais ¢ humanos apoiados por suas respectivas associagdes ¢ sociedades cientificas. Ela leva em consideracio as questées tratadas neste artigo e libera a consciéncia dos pesquisadores, antes constrangidos a agir contra suas convicgdes epistemologicas. No entanto, ainda nao se pode comemorar a mudanga, pois a Resolugdo esta encontrando enormes bacreiras politicas e institucionais para ser efetivada, 3 Desenho de amostra ¢ efeito de saturagao na pritica Coloco em poucas palavras, trés exemplos, para tomar mais concreta a discussio do tema em pauta, © primeiro seria o de uma hipotética pesquisa de “Avaliagao qualitativa da atengao a criangas abrangidas pela Estratégia Satide da Familia numa comunidade”. Considero que, para esse estudo, a amostra tem que abranger todos os atores que compéem a proposta ¢ precisa dar atengao ao grupo nuclear e a varios subgrupos. O foco principal, onde devem se concentrar as entrevistas e as observagies, so as familias com criangas na faixa etaria prevista pelo objeto de investigagao. Secundariamente, mas de forma efetiva, devem ser recobertas todas as categorias (gestores, profissionais, agentes de satide e funcionérios administrativos) responsiveis pela aplicagdo da proposta. Também seria muito elucidativo levantar informacdes e orientagdes locais sobre 0 programa em atividade, e contrastar a atuagdo e as Revista Pesquisa Qualitativa. Sao Paulo (SP), V. 5,. 7, p. 01-12, abril. 2017 7 Estudo ISSN 2525-8222 terapéuticas oficiais com as informais, ouvindo farmacéuticos, curandeiros e rezadeiras porventura existentes no territério e que atendam a populagdo. O processo de trabalho de campo nao deve ter uma receita prescritiva. Embora, 0 maximo de abrangéncia das agdes precise ser antecipadamente previsto, muitos atores sociais importantes costumam ser descobertos no decorrer da pesquisa e se deve promover sua inclusio progressiva na amostragem. Certamente o numero de pessoas é menos importante do que o empenho de enxergar todas as possibilidades de se aproximar do objeto empiricamente, prestando-se atengio a todas as suas dimensdes e interconexdes. ‘Um segundo exemplo, considera uma pergunta “Sobre a qualidade do vinculo entre profissionais de enfermagem e mies de bebés até dois anos”. Nesse caso, as ramifieagdes dos atores envolvidos so menores do que no exemplo anterior. No entanto, o sentido do termo vineulo supde intersubjetividade e interagao, Por isso, mies ou outros cuidadores © cuidadoras formais e informais e enfermeiras(os) devem ser investigados. foco deve ser nas relagdes, e nflo apenas na perspectiva de um dos lados, como frequentemente se encontram em artigos que tratam do assunto, quase sempre privilegiando 0 ponto de vista do pessoal de enfermagem. Permito-me uma referéncia pessoal. Para escrever o livro De Ferro e Flexiveis (MINAYO, 2004), entrevistei formalmente 110 pessoas e, informalmente, muito mais. Nao porque assim predeterminei, mas porque eu tinha uma pergunta que assim 0 requeria: “Que mudangas houve na cultura dos trabalhadores da mineragio com a privatizagao da Companhia Vale do Rio Doce?” Dar-lhe resposta significou contemplar os trabalhadores antigos, os que fizerem a transigdo e os novatos; ouvir as mais diferentes categorias que trabalham desde a dinamitagao das rochas até o transporte, a pelotizacdo, a supervisio ¢ a manutengdo das maquinas; escutar os diferentes niveis de programadores, gerentes e chefias; ¢ privilegiar homens ¢ mulheres. Secundariamente, foi preciso ouvir os funciondrios do setor de recursos humanos da empresa, familias dos trabalhadores e moradores da cidade. Todos os achados empiricos iam sendo confrontados com uma vasta literatura que, a partir de uma revisio inicial, fui descobrindo e dela me apossando durante e depois do estudo empirico. As questies surgidas no campo me ajudaram a entender as referencias teoricas e vice-versa, Caso me perguntem se esgotei todas as possibilidades e se houve uma saturagdo na compreensio do objeto, direi que nao, Mas, tenho certeza de que me aproximei bastante do objeto € consegui mostrar como o tema ¢ complexo, Nao encontrei uma visio tiniea sobre 0 objeto de investigacao a que me propus e foi preciso contemplar a diversidade no s6 no Revista Pesquisa Qualitativa. Sao Paulo (SP), V. 5,. 7, p. 01-12, abril. 2017 8 Estudo ISSN 2525. ‘campo como na anilise, levando em conta o tempo de trabalho do entrevistado, o lugar que a pessoa ocupa ou ocupou na empresa, a importincia que dé a sua atividade, as expectativas que tem sobre o futuro e sobre sua visio de mundo. Portanto, ao terminar a pesquisa, considero que coloquei um ponto final provisério no assunto, pois deixei em aberto muitas questdes que 0 campo ¢ a literatura me propiciaram. Quem faz. pesquisa qualitativa trabalha com a ideia de que ciéneia se faz por aproximagdes (BACHELARD, 1990) e de que as investigagGes seguem e se aprofundam no futuro com ele ou com ‘outros pesquisadores. 4 Algumas consideracies finais Concordo com Onwuegbuzie ¢ Leech (2007) que a questio da amostragem e da saturagao em pesquisa qualitativa é um assunto muito sério e merece reflexao e atengao. E também reforco o pensamento de Fusch e Ness (2015) segundo os quais, falhas no processo de saturagdo tém um impacto negativo na validade dos resultados, embora isso no tenha a ver necessariamente com o tamanho da amostra e dependa do desenho e do escopo do estudo, Minha experiéneia tem mostrado que, frequentemente, os pesquisadores qualitativos dio margem a criticas sobre a fragilidade metodologica de seus trabalhos, por varios motivos. Muitos deles, para se “assegurarem” da objetividade de seus dados, recorrem & quantificagio a priori das informagdes que querem obter. Alguns, quando apresentam os resultados, o fazem por meio de percentagens, acreditando que assim os tomam fidedignos. Usam a légica quantitativa no processo e pouco trazem dos significados, da perspectiva dos sujeitos, das relagdes que estio presentes e das interconexdes entre os atores € os fatos. Perdem o sangue ¢ a alma das expresses culturais, Outros tratam o tema da saturagio como mero sinénimo do momento em que os discursos previsiveis por meio de roteiros de entrevistas semiestruturadas ficam repetidos, demonstrando pouca ou nenhuma abertura para a complexidade do campo para os imponderiveis da vida social (MALINOWISKI, 1980). Considero que o investigador qualitative deve estar atento a construgo de instrumentos e “dicas” que considerem a abrangéncia da situagdo que vai estudar. No entanto, muito mais do que a uma mera aplicagdo desses instrumentos, tenha certeza de que sua presenga, sua interlocugio, seus estranhamentos e suas indagagdes passam a ser vivéncias em intersubjetividade quando esti no campo, gerando um conhecimento Revista Pesquisa Qualitativa. Sao Paulo (SP), V. 5,. 7, p. 01-12, abril. 2017 9 Estudo ISSN 2525. empirico que vai muito além daquilo que ele pergunta. Nesse sentido, pode-se dizer que ‘uma amostra qualitativa ideal é a que reflete, em quantidade e intensidade, as multiplas dimensdes de determinado fendmeno e busca a qualidade das ages e das interagdes em todo o decorrer do proceso, Em geral, os pesquisadores qualitativos mais experientes nao trabalham com o conceito de saturacéo em mente, mas com o propésito de dar corpo a sua pesquisa e tomé-la defensével como refere Mason (2010). Por isso, preocupam-se menos com a generalizagio e as generalidades e mais com 0 aprofundamento, a abrangéncia e a diversidade no proceso de compreensio, seja de um grupo social, de uma organizacio, de uma instituigdo, de uma politica ou de uma representagao, colocando esses diferentes aspectos & luz das teorias que fundamentam suas indagagdes. Sen critério prineipal nio & numérico, embora quase sempre precise justificar a delimitago da multiplicidade das pessoas que vai entrevistar e a dimensao e escolha do espago. Por fim, importante ressaltar que, mesmo quando provisoriamente o investigador prevé um montante de entrevistas e grupos focais ou de outras técnicas de abordagem, essa ideia de provisoriedade deve acompanhi-lo durante todo 0 proceso. Pois, nio ha medida estabelecida a priori para 0 entendimento das homogeneidades, da diversidade ¢ da intensidade das informagées necessérias a um adequado trabalho de pesquisa. Igualmente, nfo existe um ponto de saturagio a priori definido, e nunca a quantidade de abordagens em campo pode ser uma representagao burocritica ¢ formal estabelecida em mimeros. O que precisa prevalecer € a certeza do pesquisador de que, mesmo provisoriamente, encontrou a légica interna do seu objeto de estudo — que também é sujeito — em todas as suas conexdes e interconexdes. Referéncias ATRAN, S.; MEDIN, D.L.; ROSS, N. O. The cultural mind: Environmental decision making ‘and cultural modeling within and across populations. Psychological Review, Los Angeles, v. 112, n. 4, p. 744-776, 2005. BACHELARD, G. Essai sur Ia connaissance approchée. 3. ed. Paris: Librairie Philosophique, 1990, BERTAUK, D. From the life-history approach to the transformation of sociological practice. In: BERTAUX, D. (E¢.). Biography and society: The life history approach in the social sciences. London: Sage, 1981. p. 29-45. BOURDIEU, P. Questoes de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. 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