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Silmara Izidoro
Copyrught © 2020 Silmara Izidoro
Todos os direitos reservados.
Criado no Brasil.
Esta é uma obra de ficção.
Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos
da imaginação da autora.
Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é
mera coincidência.
São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte
dessa obra, através de quaisquer meios — tangível ou intangível ꟷ sem
consentimento por escrito da autora.
Será que o jovem CEO vai conseguir convencer Fernanda que um amor
de verdade, pode nascer de uma grande mentira?
A você que acredita em finais felizes, e a você que sonha com o seu
felizes para sempre.
PRÓLOGO
GAEL
Dias atuais...
— Eu sempre vou apoiar você, mas pensa bem Nanda, essa ideia tem
tudo para dar errado.
— É só um flagrante, Tay. — Me defendo, insegura.
— Só? — Ela começa a rir, descontroladamente. Reviro os olhos e
espero, pois, sei que minha tia e melhor amiga está nervosa e quando
começar a rir desse jeito ela meio que demora para parar.
Tayane e eu estamos no meu apartamento, mais especificamente, na
minha cozinha. Hoje, na teoria, é o dia que vai definir o futuro do meu
relacionamento com Danilo, o cara que eu chamo de namorado há um bom
tempo. Aliás, era para ser um dia para lá de especial já que estamos
completando cinco anos de namoro, mas pelo visto as coisas não vão ser tão
lindas assim. Ainda mais se tudo que descobri sobre ele for verdade.
— Tay — chamo o nome dela, que continua rindo. — Será que você
consegue, por favor, parar de rir e falar comigo? — imploro, realmente aflita.
— Vou tentar, mas é difícil. — Tayane leva a mão ao peito e respira
com dificuldade, sem deixar de sorrir. — Se seu pai souber o que você está
querendo fazer, ele vai ficar doido.
— É por isso que ninguém sabe — resmungo ranzinza. — Nem sei
porque você insiste em trazer meu pai para essa conversa.
— Apenas para lembrar, seu pai é amigo do seu namorado, aquele
babaca traidor que você está querendo flagrar em um quarto de hotel com a
amante vadia. — O sorriso largo se foi e dá lugar a uma carranca. — Então é
melhor se preparar, porque ele ainda não sabe, mas vai acabar sabendo e
quando ele souber, vai querer matar o embuste, ou você tem alguma dúvida?
Abro a garrafa térmica e encho a xícara pela segunda vez.
— Sou bem grandinha e posso resolver meus problemas. Não preciso
que ninguém me defenda — rebato prontamente, rápido demais.
— Ninguém disse que não era, florzinha — Tay estende o braço por
cima da mesa e cobre minha mão com a sua. — O que eu quero dizer é que se
eu, que nunca gostei do Danilo e nunca escondi isso de ninguém, demorei
para acreditar nessa merda e fiquei puta da vida quando vi aqueles vídeos,
imagina quando o Marcos descobrir que o genro que ele tanto admira não
passa de um embuste?
Puxo minha mão, apoio os cotovelos sobre a mesa e a cabeça entre
elas. Inspiro devagar algumas vezes e relaxo o corpo, ou melhor, tento
relaxar, mas é impossível. Esfrego o rosto, me proibindo de chorar.
Danilo não merece que eu desperdice mais nenhuma lágrima com ele
e se pudesse voltar no tempo, recuperaria todas as que gastei desde que recebi
os primeiros vídeos do meu namorado com a amante, a três meses atrás.
— Eu preciso fazer isso, Tay — murmuro, mais para mim do que para
ela.
— Em outra situação, eu mesma te incentivaria a entrar naquele quarto
e acabar com a raça daquele rançoso, porque é bem a cara do Danilo negar
que é ele e o seu pau de dez centímetros, naqueles pornôs de quinta categoria
com a loira siliconada. — Minha tia beberica o café e me encara por cima da
xícara com as sobrancelhas arqueadas. — E um flagrante, além de ser uma
prova incontestável de que ele é um mentiroso traidor, também comprova que
o infeliz está abaixo da média nacional.
— Não é tão pequeno assim — minto, porque realmente é, mas o
tamanho do seu pênis nunca impediu o Danilo de me fazer gozar.
Tay solta uma gargalhada.
— É tão pequeno que eu quase não vi. — Ela ri ainda mais.
— Não tem só dez centímetros.
— Tudo bem, onze.
— Ele compensa em outras coisas.
— Dois dedos já compensariam, florzinha. Três seriam praticamente
um arrombamento... — não quero rir da sua piada maldosa, mas é impossível.
Agora o som da nossa gargalhada ecoa pelo apartamento, mas assim
como a Tay, estou nervosa, ansiosa, agitada e muito, muito triste.
Tayane é irmã do meu pai, e apenas oito anos mais velha do que eu. A
famosa “raspa de tacho” da família Lombardi. Nós praticamente fomos
criadas por minha avó enquanto nossos pais trabalhavam, e ainda que a
diferença de idade tenha nos distanciado quando minha tia entrou na fase da
adolescência, distribuindo cabelos brancos para todo mundo, ela sempre foi
minha melhor amiga. Sem contar que eu posso confiar nela de olhos fechados
para tudo e qualquer coisa.
Tay nunca me deixou na mão. Nunca.
Nem mesmo quando anunciei que tinha passado no vestibular e ia
fazer faculdade de história, e não de jornalismo como todos queriam. Tenho
certeza que foi a única vez que vi a decepção nos olhos do senhor Marcos
Lombardi, um dos homens mais respeitados do telejornalismo nacional, pois
o sonho dele era que a sua única filha seguisse seus passos, tanto na edição
do jornal quanto na frente das câmeras. Infelizmente, o talento da
comunicação estacionou no meu pai e se recusou a seguir viagem até mim.
Meu celular toca em cima da mesa anunciando uma nova mensagem
de Otávio. Desbloqueio a tela sob o olhar arisco de Tayane e leio:
Confio em você.
Está nervosa?
Os dois.
Medo do que?
Assim que aperto a tecla de envio me arrependo. Não faz parte dos
meus planos presenciar a ruína da minha noiva e não tenho a menor intenção
de ser visto nem mesmo no mesmo bairro no momento do flagrante. No
entanto, Claudio pode fazer esse papel para mim.
Promete?
Santo Deus! Penteio o cabelo com os dedos e dou um soco na mesa,
furioso. No entanto, nem mesmo a culpa me impede de digitar e mentir.
Prometo.
Por favor, me liga quando ler essa mensagem. Preciso ouvir sua voz
e ter certeza que você está bem.
Marcos faz uma breve pausa, une as mãos sobre a mesa e inspira
profundamente, antes de falar:
Pelo canto do olho vejo meu avô abraçar minha avó e beijar sua
cabeça coberta por fios brancos. Uma saudade esmagadora dos meus pais me
sufoca ao mesmo tempo que meu peito dói quando penso que Penélope
destruiu o único sonho que eu ainda nutria depois da morte deles de formar
minha própria família, ter uma esposa para amar, adorar e cuidar, a mãe dos
meus filhos. Uma mulher, uma amante e uma amiga que estaria ao meu lado
todos os dias, até o último. Na saúde e na doença.
A voz de Marcos afasta os pensamentos indesejados.
Obrigada por tudo que fez por mim na academia, mas não quero
sair com você. Nem hoje, nem amanhã, nem nunca. Por favor, pare de
insistir.
Não tenho pressa. Posso esperar o tempo que for preciso, mas você
vai voltar para mim. Quer jantar comigo? Saudade.
Minha vontade é de xingar o cara por quem fui apaixonada por muito
tempo, mas acabo rindo porque Arthur nunca vai mudar, e enquanto não
conseguir o que quer não vai parar de tentar até entender que destruiu tudo
que existia entre nós quando me traiu.
Tranco a porta e sigo para o elevador, ansiosa e com medo do que
pode acontecer caso alguém me reconheça. No entanto, quando as portas da
caixa metálica se abrem, paraliso ao ver o casal abraçado.
O homem franze a testa e estreita os olhos quando me vê.
— Fernanda? — ele fala como se estivesse surpreso por me encontrar,
mas alguma coisa em seu olhar me diz o contrário.
— Gael. — Submeto minha voz a sair firme e abro um sorriso cínico.
Encaro a mulher linda que, diferente de mim, sorri com sinceridade.
— Leona, muito prazer — ela diz com satisfação, e pela sua aparência
ruborizada não duvido que realmente esteja satisfeita.
Assim como o cabelo do Gael e o meu, o dela também está molhado,
mas é o brilho em seu olhar que anuncia aos quatro ventos tudo que preciso
saber sobre o que eles fizeram durante o banho, mesmo que eu não tenha
nenhum interesse de saber qualquer coisa.
Entro no elevador e giro o corpo, ficando de costas para eles. Fecho os
olhos me recriminando duramente por permitir que esse encontro inesperado
me consterne de forma tão brutal. Odeio me sentir assim.
— O que está fazendo aqui, Nanda? — A voz grossa e rouca
interrompe minha autocensura.
Dou uma espiada por sobre o ombro e respondo friamente:
— Eu moro aqui.
Leona dá uma risada estridente e acaricia o rosto de Gael com as
costas da mão. O gesto é de uma simplicidade absurda e mostra o quanto são
íntimos. Não que isso seja errado ou me incomode, mas me sinto uma
completa idiota por ter acreditado em tudo ele me contou.
Em nossa conversa na academia, ontem de manhã, Gael me disse que
tinha acabado de sair de um relacionamento de muitos anos e não estava
envolvido com ninguém, tampouco à procura de uma namorada para
substituir sua ex. O que está claro como água da fonte que é uma grande
mentira.
— Vocês se conhecem e não sabem que moram no mesmo prédio? —
Leona pergunta com exagerada animação.
Agora sou eu quem franze a testa e encaro Gael, que está nitidamente
sem graça por conta do comentário zombeteiro da sua acompanhante,
namorada ou sei lá o que, mas não me importo.
— Você mora aqui? — inquiro sem acreditar que isso seja possível.
— Mudei essa semana. Eu te falei que vendi minha casa e comprei um
apartamento menor, lembra? — explica como se eu fosse uma criança.
Ficamos nos encarando por alguns segundos até que a campainha do
elevador toca indicando que chegamos ao piso térreo. Gael estende o braço
para segurar a porta aberta, sua namorada passa por mim e sai primeiro. Ele
acena com a cabeça indicando para que eu saia em seguida, mas dou um
passo para trás e falo:
— Esqueci minha carteira. Tenho que voltar em casa para buscar.
— Qual o número do seu apartamento? — Gael pergunta ignorando
Leona que está com os braços cruzados e bate o pé no chão, impaciente.
— Por que quer saber?
— Porque você é minha amiga, lembra?
Ele ergue uma sobrancelha. Estreito os olhos, irritada.
— 501 — respondo e aperto o número cinco no painel para que ele
entenda que estou com pressa.
— Não vai perguntar qual é o meu?
Tenho a ligeira impressão que Gael está brincando comigo, no
entanto, não estou no clima para brincadeiras.
— Não.
Gael substitui sua mão pelo ombro quando se encosta na porta e enfia
as mãos no bolso, segurando o elevador parado.
— Por quê?
— Porque não pretendo fazer uma visita.
— Está com medo?
— O que? — balbucio e ando para trás até minhas costas encontrarem
a parede metalizada. Preciso de um apoio para não correr o risco de me
estatelar no chão.
Seu sorriso gentil é substituído por um sacana.
— Está com medo de aparecer no meu apartamento, Nanda?
Hesito, mas me recupero a tempo.
— Não, claro que não.
— Tem certeza? — Há um desafio explícito em seu olhar e já não sei
se Gael está brincando, provocando, desafiando ou apenas me testando.
— Absoluta.
Então tudo faz sentido.
Claro que o Gael não está interessado em mim como minha tia
afirmou que ele estava e, no fundo, eu também pensei que estivesse. Mas
basta olhar para a linda mulher que passou a noite com ele e prestar atenção
às suas perguntas para entender o que está acontecendo.
De fato, Gael me contou que morava com a noiva desde o início do
namoro e após a separação, decidiu vender a casa e se mudar para um
apartamento. Coincidências a parte, Gael só está preocupado com o futuro da
nossa amizade agora que descobriu que somos vizinhos.
Por isso, antes que ele abra a boca, lhe ofereço um sorriso e falo sem
titubear:
— Vamos combinar o seguinte: quando você quiser aparecer no meu
apartamento ou eu quiser aparecer no seu, a gente manda uma mensagem
antes para avisar. Assim evitamos situações constrangedoras.
Meu sorriso diminui quando Gael faz que não com a cabeça.
— Nada disso, amigos não precisam avisar nada.
— Sou sua amiga, não uma empata foda.
— O que você quer dizer? — Gael indaga me deixando nervosa.
Ele continua segurando a porta do elevador e por cima do seu ombro
vejo o Zé, zelador do prédio, vindo em nossa direção. Certamente para dar
uma bela bronca no novo morador.
— Quero dizer exatamente isso. Já pensou se eu tivesse aparecido na
sua porta ontem à noite sem avisar?
— Qual o problema?
— Como assim, qual o problema? A sua namorada estava lá e com
certeza não ia gostar, Gael!
— Ela não é minha namorada.
— Que diferença faz? — esbravejo entre os dentes.
— Faz toda diferença, Nanda, porque não tenho namorada.
— Eu nem sei porque a gente está discutindo sobre isso — digo num
misto de raiva e impaciência. — Não vai ser nada legal se eu aparecer na sua
casa quando você estiver com uma mulher, ou você aparecer na minha
quando eu estiver com um cara.
Meu olhar reveza entre o homem lindo à minha frente e o zelador, que
parou no hall para falar com Leona. Estou tão distraída que não percebo
quando Gael libera a porta, mas em vez de sair e se juntar a sua sei lá o que,
ele entra no elevador e me cerca com seus braços.
Engulo em seco, sem reação. O corpo alto e forte parece muito maior
assim tão perto e seu cheiro me deixa mais embriagada que tequila.
— Você está saindo com alguém? — Sua voz é áspera, baixa,
ameaçadora. Seus olhos azuis fuzilam os meus, intimidantes. E se o aroma
entorpecente que emana dele não fosse o bastante para me deixar zonza, seu
hálito que é uma mistura de menta e café, tão impróprio quanto seu perfume,
se certifica de terminar o serviço.
— O que? — murmuro, patética, mal conseguindo respirar.
— Não gosto da ideia de chegar na sua casa e encontrar você com um
cara. — Ele enfatiza a última palavra parecendo zangado.
A campainha do elevador toca de novo, as portas se abrem e eu
finalmente desperto para a vida.
Quem o Gael pensa que é para me falar uma coisa dessas sendo que
tem uma mulher linda lá no térreo esperando por ele?
Não sei explicar o que estou sentindo e talvez seja melhor para a
minha sanidade nem pensar muito sobre isso, no entanto, não são os meus
sentimentos divergentes que me apavoram, mas a intensidade com que Gael
olha para mim nesse exato momento.
Como se ele estivesse com... ciúme, talvez?
Mas não pode ser, óbvio que não.
E tanto quanto não quero saber ou tentar entender porque estou me
sentindo quente, ou melhor, fervendo, por causa da nossa proximidade,
também não estou preparada para descobrir o que a reação dele significa de
fato.
Então, o mais depressa que consigo, dobro os joelhos e escapo do seu
domínio passando por baixo do seu braço. Gael ainda tenta me impedir de
sair do elevador, mas não consegue. Quando as portas começam a se fechar,
olho diretamente para ele e falo sarcasticamente:
— Qual o problema de encontrar um cara no meu apartamento, Gael.
Você é meu amigo, lembra?
Tenho absoluta certeza que se o olhar dele fosse fogo, eu seria um
amontoado de cinzas. Meu coração pulsa forte na garganta quando entro no
meu apartamento e me jogo no sofá.
Fecho os olhos, apoio a cabeça no encosto do estofado e puxo várias
longas respirações, mas em vez de me acalmar tudo que consigo é ficar ainda
mais agitada, ansiosa e muito, muito excitada.
Santo Deus, que merda foi essa que acabou de acontecer?
CAPÍTULO 18
GAEL
— Qual o problema de encontrar um cara no meu apartamento, Gael.
Você é meu amigo, lembra? — Fernanda fala com um sorriso safado, tão
cínica e malditamente linda.
As portas do elevador se fecham em câmera lenta, mas não movo um
músculo. Estou completamente desorientado e isso me deixa ainda mais
aturdido. Encosto na parede, passo as mãos pelo cabelo, esfrego os olhos,
soco o metal com o punho fechado uma, duas, três vezes. Merda!
Mil vezes merda!
Essa mulher está me transformando em um homem que não sou e nem
quero ser. Perco o controle quando ela está perto e ela nunca esteve tão perto
como agora. Deus! O cheiro dela, seu olhar de gatinha assustada quando a
encurralei como um felino selvagem e faminto, seu jeito atrevido, o desejo de
beijar sua boca e levá-la duro é tão surreal que beira a insanidade, e me
fermenta por inteiro de uma forma irracional.
O toque irritante do elevador soa, ajeito meu pau duro e endireito os
ombros. Não é possível sentir tanto tesão por uma mulher que sequer beijei,
depois de transar com outra por horas a fio.
Isso não deveria acontecer já que o intuito de passar a noite com
Leona foi justamente suportar a presença da Fernanda sem ferrar tudo.
Mas que inferno.
Preciso recuperar o controle e o bom senso. Inspiro, expiro e saio para
o hall onde encontro Leona conversando com o Zé, que faz uma careta ao me
ver.
— Bom dia, Gael.
— Bom dia.
Faço um maneio com a cabeça e indico a saída para a diretora de
marketing, que também não está com a cara muito boa.
— Não é permitido ficar segurando o elevador. — A voz do zelador
atrás de mim é repreensiva. Eu giro e o encaro. — O síndico é um aposentado
que fica o dia inteiro olhando as câmeras. — Ele aponta para a caixinha preta
instalada no teto. — Você deve receber uma advertência ainda hoje e se
acontecer de novo vai ser multado.
As palavras estão na ponta da língua assim como os xingamentos, mas
não falo nada e saio andando com Leona em meu encalço. O apartamento é
meu, pago as contas em dia e quero que o síndico se dane.
Contudo, além de ter consciência de que estou errado, estou atordoado
demais para começar uma discussão desnecessária com o portador da notícia.
Então prefiro guardar minha energia para o momento certo e gastá-la com a
pessoa que merece ouvir tudo que eu tenho a dizer sobre essa porcaria.
— O que foi aquilo, Gael? — Leona pergunta logo que chegamos ao
meu carro, estacionado em frente ao prédio, me resgatando dos infinitos
devaneios enervantes.
— Do que está falando? — indago dissimuladamente, pois sei que ela
se refere à minha interação com a moradora do apartamento 501.
Leona põe as mãos na cintura e sorri com arrogância.
— Eu sei que é só sexo, mas...
Ela se cala no segundo que avanço um passo fechando a distância
entre nós, coloco o indicador em riste sobre seus lábios e aproximo os meus
do seu ouvido.
— Não existe, “mas”, querida. Ontem à noite deixei bem claro o que
eu queria de você e o que você teria de mim — sibilo entre os dentes
cerrados, sem tocá-la. — Passamos a noite juntos, trepamos, foi bom, fim.
Sem perguntas, sem insinuações. Não quero ouvir nenhum comentário sobre
o que aconteceu e vou ficar muito desapontado se não cumprir com a sua
parte no nosso acordo. Confiei em você porque acredito que seja uma mulher
adulta, bem-resolvida e inteligente para saber que uma noite de sexo não vai
mudar absolutamente nada entre nós, nem dentro da empresa nem fora dela.
Não me decepcione, Leona.
Eu me afasto um pouco mais calmo, embora ainda ferva por dentro.
Ela está de olhos fechados, respirando com dificuldade e posso apostar
que está excitada. A mulher é um furacão na cama e adora ser submetida,
porém não estamos mais no mesmo jogo e não vou permitir que se ache no
direito de me questionar sobre o que faço ou deixo de fazer, muito menos se
tratando da Fernanda.
Espero pacientemente Leona se recuperar e me encarar.
— Estamos entendidos? — pergunto sem qualquer emoção.
A diretora de marketing assente de queixo erguido, abro a porta do
carro para que ela entre e ocupo meu lugar no banco do motorista.
— Dentro do porta-luvas tem uma pasta com as fotos das modelos que
foram selecionadas na primeira fase. Por que não olha e me diz qual delas
tem a cara do nosso produto? — falo enquanto dirijo até o Studio Best Click,
que fica na Avenida Paulista.
— Você já tem alguma preferência? — Leona faz o que mandei e
começa a analisar as quinze fotografias. Sua postura é séria e profissional.
Ótimo, penso. Ela entendeu o recado.
— Tenho, mas quero a sua opinião.
A maior parte do percurso é feita em silêncio. Leona faz uma pergunta
ou outra sobre as candidatas e eu respondo sem muito interesse, já que a
minha mente não desliga do meu último encontro com a Fernanda, dentro
daquele maldito elevador.
Depois do boquete de Leona na sala de reuniões, ela se ofereceu para
ir à minha casa. Por um instante pensei em recusar a oferta, mas novamente
as palavras do Claudio vieram à tona e acabei concordando.
Porém, em vez de ir para o lugar que dividia com Penélope, decidi
levar Leona para o apartamento, mas jamais imaginei que fosse encontrar a
Fernanda àquela hora da manhã, em pleno sábado.
Se o Cícero estivesse trabalhando, com certeza ele teria me avisado
sobre a saída da Fernanda — como fez durante toda a semana — e eu, com
certeza não entraria no elevador até me certificar de que não havia nenhuma
chance de cruzar com ela no meio do caminho.
Mas o turno dele encerra às sete da manhã e o Zé nem sonha que o
porteiro da noite está recebendo um bom dinheiro para me passar
informações sobre a moradora do 501.
Confesso que levei Leona para lá, torcendo para ser visto por outros
moradores e até mesmo pela Tayane. No fundo eu queria que, de alguma
forma, Fernanda soubesse que há outras mulheres na minha cama enquanto
ela é apenas uma amiga.
O problema é que quando as portas do elevador se abriram e nossos
olhares se encontraram, eu só conseguia pensar em uma maneira de explicar
para ela que a mulher ao meu lado não significava nada para mim, além de
uma foda casual. Já que era impossível tentar esconder ou desmentir que
Leona e eu tínhamos passado a noite juntos.
E então toda a confusão na minha cabeça, que parecia ter sido
esclarecida quando deixei Leona me chupar, voltou ainda mais impetuosa.
Sei que preciso recuperar meu autocontrole e parar de agir como um
maníaco surtado quando estou com a Fernanda. Juro que estou tentando, mas
parece que está ficando cada vez mais difícil refrear a intensidade de toda
essa merda que ela provoca em mim com um simples olhar caramelizado ou
um dos seus lindos sorrisos.
Prova disso foi o tamanho do estrago que a sua pergunta provocativa
causou no meu cérebro, no meu corpo e no meu coração, e só de imaginar
Fernanda nos braços de outro homem, estremeço dos pés à cabeça, aperto o
volante com força desmedida e trinco os dentes.
Não tenho a menor ideia do que faria se um dia eu aparecesse no
apartamento dela e um idiota abrisse a porta para mim usando apenas uma
cueca samba canção. Na verdade, o pensamento me enoja e enfurece na
mesma proporção.
Entro no estacionamento do Studio, faço uma manobra rápida na vaga
e desligo o carro.
— Eu gosto dessas duas — Leona me entrega as fotografias das suas
escolhidas. — Temos o mesmo gosto?
Uma das modelos é loira e a outra é negra. São realmente lindas e
fotogênicas, mas nenhuma delas combina com a nova linha, ao menos sob o
meu ponto de vista. Devolvo para ela e abro a porta.
— Não.
— Qual delas você gosta?
Encaro o envelope em sua mão e subo meu olhar até o dela.
— Lembra da reunião que tivemos com os diretores de todos os
setores para definir o produto que seria o carro chefe e o nome da nova linha,
a um ano atrás?
— Lembro, foi a primeira que seu avô não participou.
Assinto, ela só esqueceu de dizer que também foi a primeira reunião
que presidi sozinho na Gallengher Cosméticos e apresentei todas as ideias
para esse lançamento que, aliás, foram aprovadas com unanimidade porque
eram muito boas.
— Lembra o que falei sobre a principal característica que os produtos
dessa linha deveriam ter?
Um vinco de pele se forma no centro da testa da Leona, entre os olhos,
seus lábios esticam para o lado indicando que ela está em dúvida.
— A Fíor [1]não tem esse nome por acaso — falo com convicção, pois
essa é a minha criação. — Não estamos falando de sofisticação, de
maquiagem de cores berrantes ou adstringentes que deixam a pele brilhante
se você usar um lenço umedecido especial. É uma linha de cosméticos para a
dona de casa, a mãe de gêmeos, a professora da rede pública, a manicure, a
motorista de Uber. Mulheres reais que cuidam da casa, dos filhos, do marido.
Mulheres que não se vestem com roupas de grife no dia a dia e trabalham
duro para colocar comida na mesa. A Fíor é para as mulheres que querem
cuidar da pele para se sentirem bonitas sem pagar uma fortuna por 30mg de
demaquilante que vai durar duas semanas.
Aponto para o envelope e falo antes de sair do carro:
— Todas as modelos são lindas, mas a Fíor não precisa de uma
modelo, ela precisa de uma mulher real e entre as quinze candidatas só uma
parece real para mim.
Somos recebidos na porta pelo dono da agência que contratei para me
ajudar a encontrar um rosto que representasse a Fíor, e apesar de tudo que
falei para a Leona sobre a minha escolha da candidata, confesso que até
conhecer a Fernanda, pessoalmente, eu ainda não tinha feito uma escolha.
Mais uma vez ela me ajudou a entender algo na minha própria criação
que eu não havia entendido. Não por desgostar ou por desconhecer, mas por
não enxergar o que esteve o tempo todo bem debaixo do meu nariz.
Quando expliquei para o meu avô que o público alvo da nova linha de
produtos da Gallengher Cosméticos são as mulheres que vivem e sobrevivem
com um salário mínimo, os olhos dele se encheram de lágrimas, pois minha
avó, um dia, foi uma dessas mulheres e mesmo com todo o luxo e conforto
que ela tem atualmente, dona Flora continua sendo uma mulher real, assim
como a Fernanda.
— Como vai, Gael? — Evaldo Risko me cumprimenta com um firme
aperto de mão.
— Estou bem e você? — Retribuo o gesto e passo por ele.
— Leona, não sabia que viria — ele diz surpreso, já que na primeira
seletiva, Penélope foi minha acompanhante.
— Eu também não, o Gael me convidou no início da semana.
— É um prazer ver você de novo. As meninas já estão prontas.
— Ótimo, podemos começar — falo sem demonstrar o quanto ainda
estou perturbado por conta dos acontecimentos recentes.
— Por aqui. — Evaldo faz uma mesura para Leona seguir na frente e
eu entro logo atrás dela.
Atravessamos um corredor até chegarmos à uma sala ampla e arejada
onde três funcionários estão finalizando os preparativos. Eu me sento em uma
cadeira posicionada no centro com a diretora de marketing à minha direita e o
fotógrafo à minha esquerda.
Depois de uma hora, a única modelo de cabelos e olhos castanhos foi a
escolhida. E o que para todos ao meu redor foi totalmente incompreensível,
para mim foi perfeito.
— Você pode cuidar da papelada? — pergunto para Leona.
— Claro — ela responde e fala baixo para que apenas eu a escute. —
Se mais tarde você quiser aliviar a tensão é só me ligar.
Concordo com um leve movimento de cabeça, me despeço de Evaldo,
parabenizo a modelo eleita e sigo para a casa dos meus avós.
Estou ansioso para contar sobre a escolha e o que me fez tomar aquela
decisão, no entanto, quando minha avó abre a porta com os olhos cheios de
lágrimas é como se todas as cores do mundo fossem apagadas.
E tudo que fica é o breu.
CAPÍTULO 19
FERNANDA
São quase onze da manhã e eu ainda estou um pouco zureta por causa
do meu encontro, para lá de esquisito com o Gael, mas a fome fala mais alto
e me obrigo a sair de casa para almoçar em algum lugar tranquilo.
Não quero ficar sozinha e ficar matutando essa coisa na minha cabeça
nem me acomodar no sofá de frente para a televisão. Preciso de uma trégua
disso tudo, então saio do apartamento e faço o que deveria ter feito horas
antes.
Cumprimento o zelador com um sorriso e deixo a chave na portaria.
Decido caminhar em vez de usar o carro para espairecer e me distrair um
pouco pelas ruas do bairro, mas o medo de ser reconhecida me força a andar
de cabeça baixa na maior parte do tempo.
Estou prestes a atravessar a avenida quando vejo uma loja de
acessórios e me recordo da sugestão da Tayane para me disfarçar. Do lado de
fora, dou uma olhada na vitrine e me encanto por um gorro preto com uma
trança artificial na parte de trás.
É exatamente o que estou precisando. Penso ao entrar e dar de cara
com uma vendedora muito simpática que me mostra outros gorros de cores
diferentes, mas todos semelhantes ao que gostei. Acabo comprando três e já
saio da loja com o preto na cabeça. Ele combina com a minha roupa além de
ser elegante e nada chamativo.
Mais confiante, sigo em direção ao restaurante italiano que adoro e
costumo ir de vez em quando com a Tay. No meio do caminho meu telefone
toca e sorrio ao ver o nome do meu pai na tela.
— Oi, pai.
— Oi, filha. Onde você está?
Olho para os lados à procura de alguma placa que indique o nome da
rua, mas não encontro.
— Perto do Baggio’s — resumo. — Por quê?
— Sua mãe acabou de me ligar. Ela foi até a sua casa, mas o porteiro
disse que você tinha saído.
Paro de andar na mesma hora.
— Por que ela não me avisou?
— Acho que foi uma decisão de última hora, filha.
— Estou voltando e...
— Não, sua mãe já foi embora. Ela tentou ligar para você, mas não
conseguiu, por isso pediu para eu tentar.
Fico triste com a notícia. Não vejo meus pais desde o dia da confusão
e sinto falta deles.
— Estou com saudade, pai — murmuro retomando minha caminhada.
— Nós também, princesa. Como você está?
— Na mesma. Alguma notícia do Danilo?
Meu pai fica em silêncio por alguns segundos e quase me arrependo
de ter perguntado.
— Ainda não. O quadro dele é estável, mas os médicos dizem que é
impossível dar uma previsão para ele acordar.
Chego ao restaurante cedo, e está vazio como eu previa. Um dos
garçons me acompanha até uma mesa no canto perto da janela e sinalizo que
farei o pedido assim que encerrar a ligação.
— Como estão as coisas na emissora? — Coloco minha bolsa na
cadeira ao meu lado enquanto espero a resposta.
— Você sabe como funciona. Na minha frente ninguém tem coragem
de abrir a boca para falar nada, mas sei que falam pelas minhas costas.
— Será que vai demorar para acabar? — Minha voz é baixa e
desanimada.
Meu pai é um homem maravilhoso e me conhece mais do que eu
mesma. Não tenho segredos com ele nem com a minha mãe, apesar de omitir
muitas coisas que me aborrecem justamente para não os aborrecer, pois sei
que eles sofrem todas as minhas dores.
— Já era para ter acabado, Nanda. Existem pesquisas confiáveis que
afirmam que as pessoas se cansam de ouvir ou ler sobre o mesmo assunto por
mais de cinco dias, o que obriga a mídia a encontrar novos assuntos para
manter a audiência. Mas acho que enquanto o Danilo não sair do hospital, o
máximo que vai acontecer é a pressão em cima de você diminuir.
As batidas do meu coração aceleram.
— E se ele não acordar? — Minha voz é praticamente um sopro.
— Não pensa nisso, filha.
Lágrimas enchem meus olhos e embaçam minha visão. Estou me
esforçando para não pensar que o Danilo pode nunca mais não sair daquele
hospital com vida, mas é impossível ignorar essa possibilidade, ainda que
seja remota e os médicos afirmem que o pior já passou.
— Como, pai? O que vai acontecer comigo se ele morrer?
— Nanda, quantas vezes vou ter que repetir que você não teve culpa
pelo que aconteceu com o Danilo? — Ele fala mais altivo o que de certa
forma, me intimida e conforta ao mesmo tempo.
O senhor Marcos Lombardi sempre usa esse tom para impor sua
autoridade, ou melhor, para me lembrar que ele é meu pai e não admite que
eu o confronte ou duvide da sua palavra.
Claro que jamais discutiria ou desrespeitaria o homem que mais amo e
admiro nesse mundo, e mesmo ciente de que ele está absolutamente certo,
uma pequena parte minha ainda me culpa por ter sido tão boba e permitido
que Otavio me manipulasse daquela forma.
— Eu sei, é só que...
— Pode parar, filha. Esquece o Danilo. Não quero saber se é justo ou
injusto. Ele está numa situação difícil, mas a sua não é das melhores e é com
você que eu me preocupo. Todos nós estamos torcendo para o Danilo se
recuperar e sair dessa, mas essa decisão não é nossa, Nanda. Me promete que
você vai ao menos tentar retomar a sua vida.
Enxugo os olhos com o guardanapo me sentindo horrível por não ter
contado aos meus pais que a diretora do museu me obrigou a sair de férias.
Entretanto, não me arrependo. É bem capaz de a minha mãe baixar na porta
da Veronica e falar poucas e boas para a minha chefe, o que não me ajudaria
em nada. Pelo contrário, ela não pensaria duas vezes em me demitir e ainda
usaria a boca suja da dona Lilian Lombardi como pretexto.
— Prometo, pai.
— Preciso finalizar o último bloco do jornal. Eu falo com você
amanhã. Liga para a sua mãe se não quiser que ela vá até a sua casa para te
dar umas palmadas — ele diz com carinho e sei que está sorrindo.
— Tá bom.
— Te amo, princesa.
— Também te amo pai.
Encerro a ligação e no segundo seguinte o garçom está anotando meu
pedido. Enquanto espero a comida, observo os clientes ao redor sentados às
mesas do restaurante que, por sinal, está bem mais cheio do que estava meia
hora atrás.
Tem de tudo, casais, homens de negócios e famílias com filhos
pequenos. Todos quietos, ocupados demais com seus telefones para interagir
com as pessoas que estão a um toque de distância.
Esse é o efeito colateral da tecnologia avançada que ninguém se atreve
a falar. Ao passo que as informações chegam do outro lado do mundo em
questão de segundos, o ser humano demora cada vez mais para se conectar
um com o outro, pessoalmente, quero dizer.
As pessoas deixaram de conversar. O diálogo está tão extinto quanto o
mico leão dourado e a intolerância tomou o lugar da gentileza e da empatia.
Hoje em dia, casais se separam pelo whatsapp e outros fazem sexo através de
sites de encontro. Até os assaltantes estão preferindo os golpes digitais às
saidinhas de banco.
Acho que nunca vou entender como isso pode ser uma coisa boa se
não houver um equilíbrio. Talvez seja a minha paixão pelo contato físico e o
meu fascínio de olhar nos olhos de quem está falando comigo. Ou talvez
Tayane tenha razão e a minha alma seja pré-histórica, por isso não consegue
se conectar a esse mundo constantemente conectado por dispositivos
eletrônicos de última geração.
Saboreio devagar a lasanha de berinjela e a taça de vinho tinto.
Nem a ligação do meu pai conseguiu me animar a dar uma volta no
shopping. Passo no mercado para comprar dois potes de sorvete e faço meu
caminho de volta para casa me sentindo um tanto melancólica.
O porteiro me entrega a chave e me olha de um jeito estranho, mas
não fala nada. É impossível não lembrar de Gael quando piso dentro do
elevador e me obrigo a espantar as imagens fantasiosas que a minha mente
cria dele com a linda mulher, na cama, embaixo do chuveiro, em cima da
mesa...
Santo Deus, tenho que parar ou vou ser obrigada a usar o vibrador.
Nem me recordo quando foi a última vez que fiz sexo com o Danilo e
meu corpo começa a sentir falta de uma boa pegada masculina. Mas enquanto
espero pelo meu clichê, vou aproveitar a companhia dos quatro litros de
gordura hidrogenada em forma de sorvete.
A campainha do elevador dispara e o número cinco ilumina o visor.
Estou balançando a chave, perdida entre os incontáveis pensamentos
discrepantes quando levanto a cabeça e quase tenho uma parada
cardiorrespiratória.
Gael está sentado no chão com as costas encostadas na porta do meu
apartamento. Os joelhos dobrados, a cabeça enterrada sobre eles e os dedos
das mãos entrelaçados na nuca.
Seus olhos brilhosos por conta das lágrimas que descem pelo seu rosto
encontram os meus, e tenho certeza absoluta que se eu não enfartar agora não
enfarto nunca mais.
Gael se levanta e noto que ele ainda veste a mesma roupa. Calça jeans
escura, camisa de botão azul marinho de manga comprida e sapatos pretos.
Não sei o que houve e talvez nem venha a saber, mas seja lá o que foi mexeu
com ele de uma forma assustadora.
Esse homem lindo, alto, forte, que me pediu para ser sua amiga está
devastado, sofrendo muito mais do que ele gostaria de admitir. Ficamos ali,
um de frente para o outro por longos segundos, em silêncio, apenas nos
encarando.
E por algum motivo que desconheço, largo as sacolas com os sorvetes
no chão, ao lado dos meus pés, e abro os braços. Se a minha iniciativa já não
fosse total e completamente paradoxal, quando Gael aceita meu convite e me
abraça como se estivesse deixando a sua vida sob os meus cuidados,
compreendo o sentido de uma frase que li em algum livro de Poesias quando
ainda era menina.
Inocentemente confuso, você procurou em mim o amor que tanto
desejava, sem saber que era o amor que eu tanto procurava...
Autor desconhecido.
CAPÍTULO 20
GAEL
Fernanda não diz nada, nem eu.
Ela me olha como se fosse capaz de enxergar minha alma, sentir
minha agonia e sofrer minha dor, enquanto tudo que faço é compartilhar com
ela todos os meus sentidos e sentimentos, do mais simples poético ao mais
complexo perturbador.
Então, como se tudo já não estivesse vergonhosamente bagunçado
dentro de mim, quando Fernanda larga as sacolas que carrega no chão, e abre
os braços, minhas pernas se movem sem consentimento me arremessando
para ela. E eu vou sem pensar duas vezes.
Não consigo explicar como cheguei até aqui, mas agora sei, sem
sombra de dúvida, que é o único lugar onde eu queria estar.
E no abraço apertado que une meu corpo ao dela, reencontro o homem
que havia se perdido em algum ponto cego da sua trajetória. Fernanda me
acolhe, se acolhe em mim e dá um novo significado para esse gesto de
carinho e... recíproco.
Com ela até um simples abraço se torna tão especial que não quero
mais soltá-la. Nunca. Mas Fernanda tem outros planos e se afasta, pega as
sacolas do chão e abre a porta do seu apartamento.
— Vem. — Sua voz é doce, suave.
Não recuso o convite e entro. Ela fecha a porta e me oferece um
sorriso tímido.
— Vou guardar o sorvete. Você já almoçou?
Meu peito dói, minha garganta está seca e as palavras se recusam a
sair. Faço que não com a cabeça sem tirar meus olhos dela.
— Senta aqui, a Tay sempre deixa alguma coisa na geladeira.
Fernanda vai para a cozinha e eu vou atrás.
— Não estou com fome. — Consigo dizer.
— Você gosta de estrogonofe de frango? — ela pergunta ignorando
meu comentário.
Apoio os cotovelos sobre a mesa e cubro o rosto com as mãos. Escuto
barulho de panelas, pratos, talheres e das portas do armário abrindo e
fechando. Sinto o latejar nas têmporas, implacável.
— Meu avô está morrendo — falo baixo, mas o silêncio que recai
sobre nós como concreto confirma que Fernanda ouviu. — Ele está com
câncer. — Em vez de encará-la, fito meus dedos que brincam uns com os
outros. — Seis meses. — Meu coração sangra. — O médico disse que se ele
tiver sorte pode viver por mais seis meses.
De repente a barulheira recomeça. Olho para cima e a vejo andando de
um lado para outro.
— Quantos anos seu avô tem? — ela pergunta, do nada.
— Setenta e dois.
— Você já disse?
Não compreendo sua pergunta.
— Disse o que?
Fernanda continua na sua missão de me alimentar e nem se preocupa
em olhar para mim quando fala:
— Que você ama o seu avô. Você já disse?
Meu corpo retesa.
— Meu avô sabe que ele e minha avó são tudo para mim.
Ela gira o corpo e encosta a bunda na pia. Seu olhar caramelado no
meu, intenso, especulador.
— Não me leve a mal, Gael. Não estou perguntando isso por causa do
seu avô.
— Está perguntando por que, então?
— Por sua causa.
Devo estar fazendo uma careta de desentendimento, pois Fernanda
desencosta da pia e se aproxima de mim. Ela para ao meu lado e coloca sua
mão macia e quente, sobre as minhas, trêmulas e geladas, olhando no fundo
dos meus olhos o tempo todo.
— Se o seu avô tem seis meses de vida, aproveita cada minuto para
dizer o quanto você é grato por tudo que ele fez e ainda faz por você, e não
deixa de dizer o quanto você ama, desesperadamente, ele e a sua avó. —
Fernanda aperta minhas mãos com mais força. — No seu lugar, eu não ia
querer guardar tudo isso para mim, porque acredito que o meu avô teria sido
muito mais feliz se ouvisse da minha boca a importância que ele teve na
minha vida. Ainda não conheci ninguém que tenha reclamado de ouvir que é
amado e admirado por uma pessoa que ama e admira.
O rascunho de um sorriso estica levemente os lábios dela para o lado
quando ela conclui:
— E eu duvido muito que com o homem que fez meu amigo chorar
vai ser diferente.
Fernanda se abaixa e deposita um beijo casto na minha bochecha antes
de voltar para o fogão.
Estou embasbacado, boquiaberto com a sua sensibilidade.
— Você é muito apegado aos seus avós, não é? — ela indaga e de
alguma forma, sei que está tentando desviar minha atenção da pior notícia
que recebi em toda vida.
— Meus pais morreram quando eu tinha quatorze anos. Foram eles
quem me criaram.
— Sinto muito, eu não sabia.
Forço um sorriso para que ela não se sinta mal.
— Tudo bem, sinto falta deles, mas não posso reclamar. Tanto o meu
avô quanto a minha avó fizeram um bom trabalho comigo. Nunca me
deixaram faltar nada e sempre me amaram incondicionalmente.
— Você não tem irmãos? — Fernanda começa a arrumar a mesa com
naturalidade e é como se ela me conhecesse há muito tempo.
— Não, e você?
— Sou filha única, apesar de ter a Tay como uma irmã mais velha.
— E os seus pais? Você se dá bem com eles? — pergunto mesmo
sabendo a resposta. Estou curioso para saber mais sobre essa garota.
O rosto da Fernanda se ilumina.
— Meu pais são maravilhosos. Eu não sei o que seria de mim se não
fossem eles.
O cheiro do estrogonofe é delicioso e apesar de não estar com fome,
me sirvo quando Fernanda coloca as travessas na minha frente para não fazer
desfeita depois de todo trabalho que ela teve de preparar a comida.
— Por que decidiu morar sozinha? — Dou a primeira garfada e
mastigo devagar. Fernanda senta na cadeira ao meu lado e noto que a deixei
desconfortável.
— Eu passei por alguns problemas e achei que ia ser bom para mim
ter meu próprio canto.
— Então não foi porque estava revoltada com o mundo? — brinco a
fim de descontrair um pouco.
— Não. — Ela dá de ombros, ajeita os óculos e me encara. — Você
acredita em destino?
Paro de mastigar. Meus olhos cravados nos dela. Sua pergunta me
pega desprevenido.
— Não sei se a palavra certa é destino, mas acredito que nada
acontece por acaso e ninguém cruza o nosso caminho sem um porquê. —
Nossos olhares estão presos um ao outro, atentos e ansiosos. — E você,
acredita?
— Mais do que em qualquer outra coisa — Fernanda murmura
sustentando meu olhar.
— Mais do que no amor? — As palavras apenas... saem. Livres,
soltas, independentes.
— É difícil acreditar no que você nunca sentiu — ela responde
tristemente.
— Você nunca amou ninguém? Quer dizer — Arranho a garganta. —
Um namorado ou alguma coisa assim?
Fernanda tenta disfarçar sua mágoa, mas não faz ideia do quanto é
transparente e nem que passasse horas treinando em frente ao espelho
conseguiria esconder qualquer coisa.
— Acho que sim.
Não entendo sua resposta.
— Por que disse que nunca amou?
— Não disse que nunca amei, Gael. Eu disse que nunca senti o amor,
é diferente.
Limpo a boca com o guardanapo e tomo um gole de água.
— Se você já amou alguém, significa que já sentiu o amor, Fernanda.
Ela faz que não e olha para o teto, quebrando nosso contato visual.
— O único amor que eu senti foi o meu, mas ainda não sei como é a
sensação de provar o amor de outra pessoa. — Franzo a testa, vacilante.
Fernanda arrasta a cadeira para trás e se levanta. Quando ela volta a me
encarar, o que vejo em seus olhos é o retrato perfeito da decepção. — Talvez
eu acredite no amor quando encontrar alguém que me ame de verdade. Até lá,
prefiro acreditar que o destino está me preparando para quando esse dia
chegar.
Emudeço, novamente nocauteado pela sua sinceridade exacerbada e
desconcertante.
— E você Gael, acredita no amor? — Fernanda fala abrindo a
geladeira.
Tomo mais um gole de água para ajudar a empurrar a comida que
ficou entalada junto com o seu questionamento.
— Acredito — respondo honestamente.
— Você amava a sua noiva? — Ela tira uma garrafa de vinho e eu
agradeço internamente.
Essa conversa desviou do percurso seguro e começou a seguir por um
caminho extremamente perigoso que não estou preparado para percorrer. Pelo
menos por enquanto.
É muito cedo para abrir mão dela e tarde demais para voltar atrás. A
verdade é que desejo Fernanda como nunca desejei nenhuma mulher, nem
mesmo Penélope quando nos conhecemos.
— Amava — admito a contragosto.
— Ela amava você? — Fernanda me entrega a garrafa de vinho e o
saca-rolha e põe duas taças de cristal em cima da mesa.
— Eu achava que sim. Hoje já não tenho tanta certeza — respondo
sem olhar em seus olhos com a desculpa de que estou trabalhando na tarefa
de abrir a garrafa
— O que a sua noiva fez para você duvidar que ela te amava?
— Minha ex-noiva me traiu — friso meu atual estado civil segundos
antes do “ploc” ecoar na cozinha.
Fernanda ruboriza, nitidamente embaraçada. Por essa ela não esperava
e para falar a verdade, nem eu.
Não estava nos meus planos contar sobre o motivo que culminou o
término do meu noivado, no entanto, essa informação não fará qualquer
diferença enquanto Fernanda não souber com quem ela me traiu.
Sua boca entreabre sem emitir som algum, o que me faz querer sorrir,
mas me contenho para não a deixar ainda mais constrangida. Encho nossas
taças, entrego uma para Fernanda e ergo a outra.
— Um brinde a vida e ao amor — falo olhando no fundo dos seus
olhos cor de caramelo.
— Aos recomeços — ela diz baixinho.
É aqui, no apartamento da Fernanda, perto dela, ouvindo sua voz e
começando a descobrir o que o que essa garota esconde por baixo das suas
camadas superficiais, que me sinto vivo, completo.
O que me atordoa é uma vibração nova e diferente de tudo que já
senti. E justamente por não conseguir identificar, não sei se é fruto da atração
física arrebatadora que me impulsiona cada vez mais para ela, ou apenas uma
fascinação por sua personalidade única e... especial.
Tudo que diz respeito a Fernanda Lombardi me afeta, me abala e me
comove de forma descomunal. Razões mais do que justas para que eu me
afaste para o mais longe dela possível.
Ainda assim, quando Fernanda me pergunta o que eu acho de
assistirmos a um filme, respondo rapidamente, receoso de que ela mude de
ideia e me expulse da sua casa ou pior, da sua vida.
— Acho perfeito.
CAPÍTULO 21
FERNANDA
— O melhor amigo da noiva? — Gael faz uma careta de nojo para o
título do filme que escolhi, de propósito, para assistirmos.
— Você não conhece esse filme? — Coloco a mão no peito e arregalo
os olhos, dramaticamente, imitando a donzela virginal que teve sua moral
pura ofendida por um lorde cafajeste só para irritá-la.
Gael está sentado no sofá de três lugares como se fosse o rei do
pedaço e eu estou de pé ao lado da TV, de frente para ele.
A camisa azul da cor dos seus olhos está com uma parte da barra para
fora da calça, os primeiros botões estão abertos me dando uma bela visão do
seu peitoral sem pelos, as mangas estão dobradas deixando à mostra seus
antebraços fortes e o Rolex dourado em seu pulso esquerdo.
Os cotovelos apoiados no encosto de forma relaxada enquanto os pés
estão em cima da mesinha de centro e as pernas cruzadas na altura dos
tornozelos.
— Nunca ouvi falar, mas pela sua cara deve ser um daqueles
romances água com açúcar que as mulheres adoram. — Ele continua com as
sobrancelhas unidas e os lábios repuxados para o lado, demonstrando sua
insatisfação com a minha escolha.
— Não se atreva a chamar o melhor clichê dos últimos tempos de
romance água com açúcar. Isso é imperdoável até para você,
comprovadamente um desconhecedor de obras clássicas cinematográficas. —
Repreendo com seriedade, mas tenho certeza que ele nota meu deboche.
Se minha tia estivesse vendo a mesma coisa que eu, ela concordaria
comigo que se Gael fosse um artefato raro ele seria um trépano da época
romana. Uma ferramenta terrivelmente sombria e perigosa, mas de uma
beleza sóbria e inexplicavelmente instigante.
Jogo o controle remoto no colo dele e vou até a cozinha pegar a pipoca
que está no micro-ondas.
— Estou te proibindo de tomar mais vinho, Nanda. — Ouço Gael me
chamar pelo apelido e meu coração perde umas dez batidas. — Você só pode
estar bêbada para dizer que esse filme é uma obra clássica cinematográfica.
— Não seja rancoroso só porque está morrendo de inveja do Patrick
Dempsey — falo e solto uma risada alta.
É bom saber que ele tem senso de humor.
Abro o pacote e jogo a pipoca dentro de uma tigela. Estou tão distraída
que não percebo Gael atrás de mim.
— Eu sou muito mais bonito que esse cara — sussurra no meu ouvido,
me assustando.
Meu corpo inteiro se arrepia. Inclino a cabeça para o lado e esfrego a
orelha no ombro, me afastando rapidamente para que ele não veja a evidência
da minha excitação através da blusa preta que marca meus mamilos carentes
de uma boa chupada.
Deus, preciso — URGENTEMENTE — ensinar boas maneiras para o
meu corpo aprender a se comportar quando estiver perto desse homem.
— De ilusão também se vive, querido — Minha voz não é tão firme
quanto eu gostaria.
Abro o armário, ainda de costas para ele e pego a segunda garrafa de
vinho. Dessa vez, escolho o tinto.
— Você acha aquele cara mais do bonito que eu? — Gael me cerca
com seus braços. O calor do seu corpo atrás de mim me incendeia. Sua boca
está colada no meu ouvido, seu peito nas minhas costas e por muito, muito
pouco não empino a bunda para alcançar sua virilha, que está longe demais
para o meu gosto.
Por sorte, antes que eu faça uma besteira e coloque nós dois em uma
situação extremamente constrangedora e desagradável, Gael se afasta. Puxo o
ar com dificuldade, quase deixo cair a droga da garrafa, fecho a porta do
armário com força desnecessária e ainda por cima, preciso me apoiar na
beirada da pia para girar o corpo e encarar seus olhos azuis como se meu
corpo não estivesse à beira de um colapso.
— Amigo, nenhum homem é mais bonito que o meu Patrick —
respondo com ironia e falsa sinceridade. Apesar de amar o ator norte-
americano, nenhuma beleza masculina supera a do Gael.
— Meu Patrick? — Ele cruza os braços à frente do peito e ergue uma
sobrancelha, meio que desdenhando da minha posse.
— Sim, meu. — Entrego a tigela de pipoca para ele. — Patrick
Dempsey é o meu sonho de clichê, querido. Aceite isso se quiser continuar
sendo meu amigo.
Pego a garrafa de vinho e fujo para a sala. Ele murmura alguma coisa
que não entendo e me segue. Encho as taças que estão sobre o aparador de
canto e sento no sofá, ao lado dele.
— Dá psra me explicar o que é um clichê? — Gael fala baixo assim
que aperto o play e as primeiras imagens surgem na tela.
Ele já colocou os pés em cima da mesinha de novo e agora tem a
tigela em seu colo. Viro a cabeça e o encaro com os olhos estreitos.
— Está falando sério que você não sabe o que é um clichê?
— Já ouvi falar, mas não sei o que significa, exatamente.
— Você gosta de ler?
— Leio assuntos pertinentes ao meu trabalho, mas nunca fui muito fã
de livros de ficção.
— Não sei mais se quero ser sua amiga. — Faço um biquinho e meu
corpo volta a incendiar quando os olhos de Gael fitam a minha boca.
É tão rápido que até fico em dúvida se ele, de fato, queria me beijar ou
se foi apenas fruto da minha imaginação que, aliás, hoje está mais indecorosa
que o normal.
— Supera, Nanda. Estou no sofá da sua sala, assistindo um clichê
ridículo, comendo pipoca e tomando vinho. Já somos amigos. — Ele desvia o
olhar para a televisão e enfia um punhado de pipoca na boca.
— Estou começando a me arrepender de ter concordado com isso.
Gael passa o braço por cima do meu ombro e me puxa para perto dele.
Eu me aconchego e apoio a cabeça em seu ombro e, mais uma vez, meu
coração perde algumas batidas quando ele beija meus cabelos e fala:
— Você ainda me deve uma explicação.
— Sobre o clichê?
— Uhum...
— Quando o filme terminar, eu explico.
Sinto o peito dele tremer embaixo de mim e sei que está sorrindo.
— Se eu estiver dormindo não precisa me acordar.
Também sorrio, mas não falo nada, pois não sou capaz de falar
qualquer coisa. Apenas fecho os olhos e aproveito a calmaria, a paz, a
sensação de pertencimento e a segurança que esse contato físico
despretensioso me dá.
E, por um momento, desejo ficar aqui por vários momentos, mas estou
ciente de que isso não vai acontecer por diversos motivos.
Tudo bem que o Gael apareceu na minha porta depois do nosso
encontro desastroso no elevador, mas isso não significa que ele esteja
interessado em mim, até porque ele passou a noite com outra mulher e deixou
claro que não existe nenhuma chance de rolar nada entre nós.
Gael é lindo, gostoso, cheiroso, tem uma condição financeira legal e
pelo pouco que conheço dele, já deu para perceber que é um cara que leva a
sério seus relacionamentos. Resumindo, ele pode ter mulheres lindas, como
Leona, num estalar de dedos.
E para o meu próprio bem é melhor eu me controlar ou vou acabar
entrando em outra roubada, mas dessa vez a culpa vai ser toda minha, pois
ele deixou claro que somos apenas amigos.
Gael estava muito chateado porque descobriu que seu avô está com os
dias contados e ainda não me falou porque veio até a casa da garota que ele
conheceu na aula de natação há menos de uma semana, e descobriu que era
sua vizinha a doze horas atrás, quando o mais coerente seria ir até a casa de
um amigo ou de alguém com quem ele tivesse mais intimidade. Um primo ou
colega de trabalho, tanto faz.
Decido não pensar sobre o assunto e assisto ao filme pela vigésima
vez. Nunca vou enjoar dessa história, afinal, um clichê é sempre um clichê.
Mas um clichê com o Patrick Dempsey, é “O clichê”. Na verdade, é mais do
que isso. É o melhor passatempo enquanto eu espero pelo meu.
E eu sei que um dia, o meu clichê vai chegar.
ARTHUR
Estou saindo do escritório quando meu telefone toca. Atendo sem ver
quem é.
— Alô.
— Sou eu.
Ele não precisa se identificar, pois reconheço sua voz. Sigo andando
até meu carro que está parado em frente ao edifício comercial na Avenida
Paulista.
— Conseguiu alguma coisa?
— Não. A imagem está muito desfocada e só o programa de
reconhecimento facial que foi usado para granular a cara da garota pode
reverter o processo.
Essa merda está começando a me irritar.
— Então voltamos à estaca zero.
— Desculpa, brother, mas dessa vez vou ficar te devendo.
— Beleza. Vou pensar em alguma coisa.
— Por que não fala com a pessoa que filmou?
— Porque não quero meu nome envolvido nisso. Esqueceu que sou o
assessor do pai da Nanda?
— Eu sei, mas é o único jeito de descobrir quem é a garota no vídeo.
— Tem que ter outro jeito — falo mais alto, alterado.
— Se tivesse, eu te falaria. Confia em mim, Arthur, não tem.
— Preciso pensar, o Danilo ainda está na mesma e os médicos não
sabem quando ele vai sair do coma. Se as coisas não melhorarem na próxima
semana, vou tentar entrar em contato com a equipe de reportagem que filmou
o flagrante.
Desligo o alarme, abro a porta e entro no carro. Jogo minha bolsa no
banco do passageiro e me ajeito no do motorista.
— Quem diria que você ia se arrepender, hein?
— Não me arrependi de nada — respondo com impaciência.
— Até quando vai continuar se enganando, brother? Está na cara que
você ainda gosta da Nanda. Por que não assume logo e conta para ela antes
que outro apareça e faça o que você não fez?
Fecho as mãos em punho e rosno:
— Eu não te pago para encher meu saco, Isaac. Tenho um
compromisso, preciso ir.
Encerro a ligação pouco me importando se fui grosseiro. Estou
cansado demais para ficar ouvindo sermão do meu irmão mais novo que mal
saiu das fraldas.
Jogo a cabeça para trás e inspiro profundamente, meu cérebro
fervendo por causa da Fernanda e eu aqui nesse impasse desgraçado.
Conheço minha ex-namorada desde pequeno, nossas mães eram
amigas de infância e mantiveram a amizade mesmo depois que se casaram.
Nossos pais se tornaram bons amigos e crescemos juntos.
Sempre fui apaixonado pela Fernanda, mas ainda na adolescência as
diferenças entre nós começaram a nos afastar e elas eram gritantes, tanto na
personalidade quanto na aparência. Enquanto eu era considerado o garoto
mais bonito e popular da escola, Fernanda era feinha e vivia se escondendo
para não chamar a atenção. Mas isso nunca acontecia, pois na época Marcos
Lombardi já celebrava a fama de âncora do telejornal com maior audiência do
país. Todo mundo queria ser amigo dela e ela odiava aquilo.
Porém, enquanto eu comia todas as amigas da Fernanda, ela crescia e
se tornava uma garota linda e ainda mais fechada, além de se afastar cada vez
mais de mim por causa da minha fama de pegador. Eu sabia que a magoava
cada vez que fodia uma das meninas da sala dela e no fundo, gostava de saber
que ela se ressentia.
Até que no aniversário de dezessete anos da Fernanda, acabei me
rendendo ao que sentia e acabamos ficando juntos pela primeira vez. Depois
de um ano saindo com ela sem que ninguém soubesse, assumi o namoro
publicamente, o que foi um choque tanto para a minha família quanto para os
meus amigos e, principalmente, para as garotas que se revezavam na minha
cama.
Apesar de amar minha namorada, entrar na faculdade de jornalismo
levou embora toda a minha determinação de ser fiel e voltei a ser o mesmo
Arthur Delgado que era no colégio. Fernanda sempre foi uma garota na dela,
avessa às redes sociais e muito insegura para permitir que as pessoas se
aproximassem dela, o que facilitava a minha vida dupla.
Por quase um ano tive tudo que sempre quis: sexo casual com garotas
aleatórias na rua e uma namorada que eu amava me esperando em casa. Mas
como diz o ditado: Tudo que é bom dura pouco.
Fiz a grande besteira de me envolver com uma professora casada e
depois de um tempo, a mulher confidenciou que tinha se apaixonado por
mim. Isso não teria sido um problema se o marido dela não tivesse
descoberto e armado o maior barraco de todos os tempos.
O Brasil inteiro ficou sabendo e foi assim que a Fernanda me excluiu
totalmente da vida dela sem vacilar. Ninguém conhece aquela garota como eu
e apesar da sua fachada de boazinha e tolerante, Fernanda tem uma
personalidade forte, é determinada e uma das mulheres mais orgulhosas que
já conheci.
Ela pode aturar muita pancada, mas jamais vai perdoar uma traição.
Principalmente uma como a minha, que a decepcionou muito mais do que ela
admite. Fernanda confiava cegamente em mim e eu pisei na bola, feio.
Por isso estou fazendo de tudo para conseguir descobrir quem é a
mulher que aparece no vídeo transando com o babaca do Danilo. Tenho
certeza que se o nome da vadia vazar para a imprensa, o foco em cima da
Fernanda vai diminuir e quando ela souber que fui eu que a ajudei, acho que
posso ter uma chance de me redimir e provar que mudei.
O grande problema é que hoje sou um profissional respeitado, e tenho
clientes importantes que não iriam gostar de saber que o nome do seu
assessor está envolvido com uma equipe de reportagem independente, que se
sustenta ferrando a vida de outras pessoas e vazando vídeos íntimos na
internet.
Sobretudo Marcos Lombardi, pai da Fernanda e meu assessorado mais
renomado. Foi ele quem abriu as portas para mim nesse meio e desde que o
vídeo do flagrante vazou, ele me proibiu de fazer qualquer coisa além de
oferecer à sua filha o suporte que ela precisa para enfrentar essa barra.
No entanto, descobrir quem é a amante do Danilo pode ser minha
única chance de reconquistar a mulher que eu amo, e nem mesmo uma ordem
direta do pai dela vai me convencer a desistir.
Ligo o carro e dirijo pelas ruas de São Paulo. Normalmente, em um
sábado à noite, eu estaria a caminho de alguma boate a fim de encontrar uma
mulher para trepar a noite inteira, mas hoje isso não vai acontecer.
Não sei por quanto tempo vou aguentar manter uma vida regrada e
certinha, mas para ter Fernanda de volta vale a pena fazer o esforço.
Seleciono o contato que preciso para dar credibilidade à minha encenação e
faço a chamada. Ela atende no segundo toque.
— Arthur, querido! — Sua voz animada me faz sorrir.
— Boa noite, Lilian. Estou saindo do escritório e pensei e dar uma
passada por aí.
— Que notícia boa, o Marcos já deve estar chegando e vai adorar ter a
sua companhia no jantar.
Meu sorriso aumenta, pois adoro os pais da Fernanda e sei que quanto
mais próximo deles eu estiver, mais rápido vou me aproximar dela.
— Maravilha, estou chegando.
— Até daqui a pouco, querido.
Encerro a ligação e aumento o volume do rádio, me sentindo mais
animado. Depois de cinco anos de espera, chegou a hora de pegar de volta o
que sempre me pertenceu. Fernanda ainda me ama, eu sei. Agora é só uma
questão de tempo até ela aceitar que sou o homem da sua vida.
E voltar para mim.
CAPÍTULO 22
GAEL
O filme acaba e Fernanda não se mexe.
Ela está encolhida no sofá, seu corpo aconchegado ao meu e sua
cabeça descansa no meu peito. Beijo seus cabelos pela quarta ou quinta vez,
em dúvida se devo ou não a acordar.
Retiro o celular do bolso para saber se minha avó me enviou alguma
mensagem e confirmo que passa das dez. Desligo a televisão e apoio a cabeça
no encosto do sofá de couro confortável. Encaro o teto por alguns segundos
antes de fechar os olhos.
Minha consciência exige que eu vá embora. Meu corpo e meu coração
imploram para que eu fique exatamente onde estou.
E a baderna dentro de mim segue mais firme e forte do que nunca.
Quando cheguei na casa dos meus avós para almoçar, foi um baque
encontrar o oncologista que está acompanhando a tratamento do meu avô
consolando minha avó, que chorava copiosamente sem qualquer cerimônia.
Mas nem a dor explícita da dona Flora superou o choque de saber que seis
meses é o limite máximo de tempo que meu avô vai suportar a doença.
Se ele tiver sorte, salientou o médico.
Óbvio que minha avó e eu sabíamos que uma hora isso ia acontecer,
mas nenhum de nós esperava que fosse tão rápido. Abalado e completamente
transtornado com a notícia, nem consegui almoçar e saí de lá sem saber ao
certo para onde ir ou com quem falar.
Estacionei em frente à casa do Claudio, porém nem cheguei a sair do
carro. Não sei descrever o porquê, apenas senti que não era com o meu amigo
que eu queria estar naquele momento para me abrir sem reservas e expor tudo
que insistia em destruir minha alma, pouco a pouco.
Quando dei por mim já estava sentado na porta da Fernanda, chorando
feito um menininho solitário, perdido e assustado, mas muito esperançoso de
que a garota de olhar caramelado pudesse curar aquela ferida aberta,
pungente, que sangrava dentro de mim.
E apesar de não ter curado totalmente, Fernanda fez o que mais
ninguém conseguiria fazer. Ela afrouxou o nó que estrangulava meu peito,
abrandou a dor desumana que trucidava meu coração, abriu meus olhos para
a realidade que eu não enxergava, e ainda por cima me presenteou com a
companhia de uma garota que eu não sabia que existia.
Agora travo uma batalha comigo mesmo e estou dividido entre ficar
aqui, no único lugar onde quero estar, ou ir embora. Sei que devo voltar para
o meu apartamento e manter Fernanda a uma distância segura, para que eu
possa ajudá-la a sair da enrascada que eu a coloquei. Talvez até seja a atitude
mais ética e por isso está me sufocando, porque não sou forte o bastante para
deixar essa garota.
Estou tentando me convencer que em alguns dias, esse feitiço vai
enfraquecer. Em algumas semanas, essa necessidade quase inverossímil que
sinto de estar com ela vai ser reduzida a uma carência tolerável. Em poucos
meses, a companhia da Fernanda vai ser totalmente insignificante.
E enfim, poderei desfrutar da sua amizade honestamente sem precisar
me sentir um monte de merda por estar fingindo o tempo todo que não quero
tomá-la em meus braços, arrancar suas roupas, beijá-la até perder o fôlego e
saborear seu corpo como se ele fosse minha última refeição, e eu, um
prisioneiro condenado à pena de morte a caminho da execução.
Minha decisão está tomada.
Inalo o cheiro da Fernanda e me rendo ao sono...
◆◆◆
Chegando.
Descendo.
Tayane Lombardi
RELATO – PARTE 1
GAEL
Os primeiros sinais de que as coisas pareciam fora de ordem
naquele dia chegaram bem cedo, mas eu não estava atento a eles. Talvez
não fizesse nenhuma diferença no fim das contas, ou talvez fizesse. No
entanto, essa é uma, das muitas dúvidas, que está destinada a me
acompanhar até o dia da minha morte, enquanto eu viver.
Meu avô já tinha acordado quando entrei no quarto carregando
dois copos de café, uma porção de mini pão de queijo, uma garrafa de
água com gás e guardanapos de papel. Ele sorria para a minha vó, que
estava sentada na beirada da cama ao lado dele.
Ver os dois me fez sorrir e por alguns segundos, até esqueci que
aquele corpo acamado hospedava o seu carrasco, seu anjo da morte. Que
aquela cena poderia não se repetir. Que das vinte e quatro horas, três já
tinham sido furtadas, e restavam apenas vinte e uma, para aproveitar a
companhia do senhor Dwayne.
Claro que havia esperança e fé de que o médico estava enganado
e que meu avô resistiria ao parasita mortal que se alimentava da sua
saúde. E enquanto houvesse qualquer zero por cento de chance de salvar
meu avô, nós iríamos lutar sem nunca desistir.
— Bom dia — cumprimentei mais animado do que me sentia,
coloquei a comida e a bebida em cima da mesa e dei um beijo na cabeça
do meu avô. — O senhor tem que parar com essa história de ficar
doente, ou as enfermeiras vão acabar brigando por sua causa. Elas ficam
enlouquecidas quando um coroa sexy precisa de ajuda para tomar banho.
Minha avó bufou, mas não escondeu o divertimento.
— Desde quando as mulheres disputam para cuidar de velho,
Gael? — Mesmo debilitado, ele entrou na brincadeira.
— Velho? — Olhei para os lados como se estivesse procurando
alguém. — Não estou vendo nenhum velho. E pelo que ouvi por aí, as
enfermeiras que trabalham no turno da noite estão até planejando trancar
a vovó no quartinho da limpeza no horário do seu banho. Elas são as
mais ciumentas.
Ele sorriu tanto que ficou sem ar.
— Não brinca com essas coisas, Gael, senão seu avô vai acabar
acreditando — minha avó repreendeu.
— Deixa o menino falar, Flora. Você nunca ouviu dizer que as
palavras têm poder? Vai que dá certo?
Dei uma olhada no relógio e vi que passava das sete. Tinha
dormido no hospital e ainda precisava passar em casa para tomar um
banho e trocar de roupa antes de ir para o trabalho.
A porta do quarto se abriu.
— Bom dia! — Girei o corpo e fiquei surpreso ao ver Leona.
— Bom dia, querida — minha avó cumprimentou a diretora de
marketing e contornou a cama para abraçá-la. — Não precisava ter
vindo tão cedo.
— Eu pedi para ela vir, Flora — meu avô falou num tom mais
sério.
Encarei o homem, meio sentado meio deitado, em cima da cama,
e quase não o reconheci. Se não fosse pela aparência fragilizada, poderia
jurar que estava frente a frente com o jovem de vinte anos, ambicioso e
determinado, que alugou uma garagem para vender perfumes
importados.
— Por que o senhor pediu para a Leona vir aqui? — perguntei
desconfiado.
— Porque você vai precisar de ajuda para organizar a cerimônia
da sua nomeação. — Fiquei em pé e me afastei. Não queria falar sobre
aquele assunto com ele. — Estou morrendo, filho.
Fechei os olhos, engolindo em seco. Eu sabia que tinha de
adiantar as datas, mas precisava conversar com a Fernanda primeiro.
— Vô... — Tentei argumentar.
— Flora, por que você não leva a Leona para tomar um café,
enquanto explico para o meu neto o que acontece no quarto estágio do
câncer?
Minha avó, Leona e eu arregalamos os olhos.
— Eu sei o que acontece, vô! — Minha voz falhou. — Não
precisa me explicar nada.
— Então você sabe que não pode mais adiar a cerimônia, filho. —
Sua voz também falhou, porém, ao invés de chorar, ele sorriu e piscou
para a minha avó. — Não sei se vou ter a chance de ver minha linda
esposa se tornar uma empresária de sucesso. — Voltou a olhar para
mim. — Não sei se vou ter a chance de ir ao seu casamento ou conhecer
meus bisnetos. Mas não posso perder a última chance que vou ter de ver
meu herdeiro, filho do meu único filho, de assumir o meu lugar na
empresa que eu trabalhei duro para construir.
Lágrimas embaçaram a minha visão e naquele momento me dei
conta de que todo sacrifício que eu tivesse de fazer por aquele homem,
ainda seria pouco por tudo que ele fez e representava para mim. Até
mesmo perder a mulher por quem eu havia me apaixonado.
Guardei as mãos nos bolsos da calça e assenti, ciente que as
minhas próximas palavras significavam uma decisão, uma escolha que
poderia mudar para sempre a minha vida.
— Por onde o senhor quer começar?
RELATO – PARTE 2
FERNANDA
— Você me enganou — Tayane acusou. Seu dedo em riste
apontado na minha cara me deixou confusa.
— Eu nunca te enganei — repliquei, ofendida, e ainda sem saber
do que ela estava me acusando.
Tay despejou café em sua xícara e esticou o braço para pegar o
açucareiro, na outra ponta da mesa.
— Tem certeza?
— Claro que tenho. — Recostei na cadeira e cruzei os braços.
— Então me explica como esse sorriso foi parar na sua cara se o
Gael não dormiu aqui?
Franzi a testa, mais confusa ainda.
— A única pessoa que me deve uma explicação é você, porque
não sei do que está falando. — Inclinei o corpo para o lado e toquei sua
testa com as costas da mão, apenas para me certificar de que ela não
estava delirando por conta de uma febre.
— Para com isso, florzinha. — Tay empurrou minha mão. — Não
estou doente.
— Então o seu caso é bem pior do que pensei — falei fingindo
indiferença. — Se estivesse passando mal, teria uma desculpa para
justificar as besteiras que você fala. Agora vai ter que assumir que é
louca mesmo. — Minha tia deu risada enquanto salpicava a farinha de
aveia sobre o mamão amassado.
— Você me enganou, florzinha, porque esse sorrisinho que não
sai do seu rosto bonito é reservado, exclusivamente, para os dias que a
sua periquita cortesã senta no trono do rei Gael. — Tayane me encarou
com os olhos estreitos e o cenho enrugado. — A não ser que você tenha
saído escondida durante a noite para se encontrar com ele.
— Vamos por partes. — Fiz uma pausa tentando não rir da minha
tia. — Não tenho nenhum sorrisinho exclusivo para os dias que faço
sexo. — Pontuei sem sequer saber porque estava fazendo aquilo. — E
não saí escondida para encontrar ninguém, o que nos leva ao início da
conversa e corrobora a minha afirmação: eu nunca enganei você.
— Tudo bem, acredito na minha sobrinha preferida.
— Não quero partir seu coração, mas sou sua única sobrinha.
— Mais um motivo para você continuar se esforçando, ou vai ser
rebaixada para o posto de “filha do meu irmão”. — Ela balançou os
dedos no ar, indicando aspas. — E apenas para nível de esclarecimento,
aquele sorrisinho não é exclusivo para os dias que você faz sexo,
florzinha, é para os dias que faz sexo com o Gael.
Revirei os olhos, tomando o resto de café.
— São sete horas da manhã e meu cérebro mandou avisar que
está com preguiça de processar tanta informação inútil.
— Você não pode me culpar por ser uma tia exigente, mas pode
me contar porque estava sorrindo daquele jeito quando entrou na
cozinha.
— Eu não estava sorrindo — menti, pois estava.
— Agora você está me enganando. Vamos lá, Nanda, faça uma
boa ação para o seu cérebro preguiçoso e conte para a sua tia preferida o
motivo do seu sorriso.
Empurrei minha cadeira para trás e me levantei. Lavei a xícara e a
coloquei no escorredor antes de girar o corpo para encostar a bunda na
pia. De nada adiantou o meu esforço para conter o bendito sorriso, pois a
declaração do Gael, dizendo que tinha se apaixonado por mim, ficou
gravada na minha cabeça e eu não conseguia pensar em outra coisa
desde que saí do hospital, ontem à noite.
— Ele disse que está apaixonado — confessei.
Tayane cuspiu a gororoba no prato e ficou de pé num pulo.
— Nanda... — Minha tia me abraçou com força. — Pelo amor de
Deus, esse homem ainda vai me matar do coração. — Ela se afastou e
me encarou. — Você disse que também está apaixonada por ele?
Abaixei a cabeça e neguei.
— Por que, florzinha?
— Não sei, fiquei tão nervosa que não consegui dizer nada.
— Tem certeza que foi isso?
Voltei a olhar para ela, novamente confusa.
— Tenho. Por que mais seria?
— Gostar do Gael é diferente de estar apaixonada por ele.
— Sempre pensei que o que sentia pelo Arthur fosse amor, mas
quando conheci o Gael descobri que não era. — Tayane sorriu
lindamente.
— Mesmo que o Gael não falasse nada, o jeito que aquele homem
olha para você é a maior prova que ele está apaixonado.
— Como ele me olha? — perguntei, plenamente consciente do
sorriso que esticou meus lábios.
— Do mesmo jeito que você olha para ele, florzinha. — Ela me
abraçou de novo. Fechei os olhos com o queixo apoiado em seu ombro.
— Eu me apaixonei pelo Gael, Tay.
— Eu sei, e tenho certeza que ele ia gostar de saber disso também.
Nós nos afastamos.
— Vou tomar um banho e me trocar. Quer ir comigo até o
hospital? — indaguei, ansiosa para contar ao Gael o que sentia por ele.
— Querer eu quero, mas não posso. O Marcos me convocou para
uma reunião às dez horas. Seus pais vão dar uma festa para comemorar
os trinta anos de casamento e querem que eu ajude a organizar.
— Ele me contou quando veio aqui na semana passada.
— Eu te ligo quando a reunião acabar. Se ainda estiver no
hospital, passo lá para visitar o senhor Dwayne e aproveito para ver a
dona Flora.
— Combinado.
Duas horas mais tarde, encontrei os avós do Gael no quarto 501
que, por coincidência, era o número do meu apartamento. Eles me
disseram que o neto tinha ido para a empresa e não sabiam se ele
voltaria para o hospital, pois estava muito ocupado organizando um
evento.
O senhor Dwayne e dona Flora não me deram muitos detalhes
sobre o tal evento e como não queria ser enxerida, não perguntei, o que
foi um erro. Talvez o mais grave que já cometi em toda a minha vida.
Pois acabei descobrindo da pior forma possível.
RELATO - PARTE 3
GAEL
Eu tinha milhões de tarefas para cumprir naquela segunda-feira,
mas somente dois objetivos: organizar a cerimônia da minha nomeação,
que aconteceria à noite, e contar toda a verdade para a Fernanda, antes
de a cerimônia começar.
Primeiro, porque não aguentava mais me culpar por ter
demorando tanto para abrir o jogo. Segundo, porque não tinha mais
qualquer dúvida do que sentia por ela. Terceiro e mais importante,
porque queria que a Fernanda fosse comigo à cerimônia como minha
acompanhante para que eu pudesse apresentá-la, oficialmente, como
minha namorada.
Fui direto para a empresa quando deixei o hospital. Precisava
autorizar o envio dos convites e não podia perder tempo. Meu avô não
fez muitas exigências, na verdade, apenas uma. Ele fazia questão de ser
o homem em cima do pequeno palco, atrás do microfone, anunciando
meu nome aos quatro cantos do mundo como seu sucessor.
Todo o resto foi decidido por mim e por Leona, que, aliás,
mostrou o quanto era proativa. Minha avó deu ótimas sugestões para
aproveitarmos ao máximo a infraestrutura do auditório do edifício São
Francisco, e ficou incumbida de coordenar o deslocamento do senhor
Dwayne até o local.
Apesar de ser um evento pequeno, comparado ao que
planejávamos fazer antes da internação do meu avô, exigia máxima
atenção e cuidado.
Nada podia dar errado, afinal, três dos principais influenciadores
digitais do estado de São Paulo tinham confirmado presença. Sem contar
as matérias pagas nos jornais e revistas de moda, que dariam o pontapé
inicial no cronograma de divulgação do lançamento da linha Fíor.
— A gerente da lavanderia ligou e disse que seu terno será
entregue na portaria do prédio às seis em ponto. — Ruth falou assim que
me encontrou no corredor, a caminho da minha sala. — Os
departamentos já foram informados que o expediente vai encerrar mais
cedo e a presença de todos os funcionários na cerimônia é obrigatória. A
floricultura confirmou a entrega dos arranjos uma hora antes do início,
às sete. O responsável pelo buffet acabou de chegar. Eu o acompanhei
até a cozinha e entreguei para ele a lista dos nomes dos garçons que
foram contratados para trabalhar, junto com os crachás digitais que dão
acesso a entrada de funcionários. — Ela pausou para tomar fôlego. —
Normas de segurança do prédio.
— Qual elevador vai ficar disponível para os convidados? —
perguntei enquanto pendurava o paletó no encosto da minha cadeira.
— O terceiro. A partir das sete e meia, ele vai ser programado
para subir direto para o auditório, sem escalas. Os outros dois ficarão
desligados até amanhã de manhã.
Assenti e falei:
— A Leona contratou duas mulheres para recepcionar os
convidados. Uma vai ficar na entrada principal do prédio e a outra na
antessala do auditório. A equipe de som deixou tudo pronto. O
Humberto, da informática, testou os microfones e disse que estão ok. As
três primeiras fileiras de cadeiras foram reservadas para os diretores e o
pessoal da imprensa. — Sentei-me e retirei o telefone do bolso. — Mais
alguma coisa?
Ruth folheou sua agenda.
— Acho que não está faltando nada.
— Ótimo. Pode ir para casa se arrumar.
— Você não vai embora? São quase cinco horas.
Encarei a tela do aparelho, nervoso pra cacete.
— Vou. Só preciso resolver um problema antes de sair.
— Hoje é um dia muito importante para a sua família, Gael. Seu
avô deve estar orgulhoso de você.
— Sim, ele está — murmurei.
Antes de começar o tratamento apropriado de um homem com
câncer no estágio quatro, o médico deu um prazo de vinte e quatro horas
para o senhor Dwayne desfrutar aquele dia como bem quisesse, livre de
quaisquer restrições.
Quando acordei naquela manhã, pensei que meu avô fosse querer
fazer alguma loucura, tipo, saltar de asa delta, andar de tirolesa ou
pilotar um carro de fórmula-1 no autódromo de Interlagos, mas em vez
disso, ele me pediu uma cerimônia para anunciar o nome do homem que
iria assumir seu lugar à frente da empresa que ele fundou a trinta anos
atrás.
Então passei as últimas dez horas trabalhando como um burro de
carga, correndo de um lado para o outro, subindo e descendo escadas,
carregando mesas, falando com dez pessoas ao mesmo tempo e
garantindo que meu avô tivesse seu pedido atendido. O último, talvez.
Agora precisava encontrar a Fernanda, contar a verdade e torcer
para que ela acreditasse em mim e me perdoasse.
Ruth se despediu e quando a porta se fechou atrás da minha
secretária, fiz a ligação mais importante da minha vida.
Fernanda atendeu no terceiro ou quarto toque.
— Está em casa? — perguntei sentindo a frequência cardíaca
acelerar.
— Hum, não. Estou chegando na casa dos meus pais. Por quê? —
Afrouxei o nó da gravata.
Ar... estava sem ar.
— Porque preciso falar com você, Fernanda. E é urgente.
— Pode falar. — Sua voz era baixa, cheia de preocupação.
— Não dá para falar por telefone. Tem que ser pessoalmente.
— O que aconteceu, Gael?
Fiz merda e estou tentando consertar.
— Quanto tempo vai demorar para voltar? — indaguei, sem
responder sua pergunta.
— Hum... uma hora, mais ou menos.
O relógio do meu notebook marcava cinco e quinze da tarde. Se
ela chegasse até as seis, eu teria uma hora e meia para dizer tudo o que
precisava. Não era muito, mas não desperdiçaria nem um segundo.
— Vai direto para o meu apartamento. Vou ficar esperando você.
— Gael.
— Não menti quando disse que me apaixonei por você. — A
cortei. — Acredita em mim e volta logo, por favor.
Ouvi sua respiração pesada, tão ofegante quanto a minha.
— Eu acredito, Gael e... vou voltar.
— Promete? — Se ela ainda não tinha notado meu nervosismo,
notou naquele momento.
— Prometo.
Suspirei aliviado e encerrei a ligação.
Dei uma passada rápida no hospital para ver meus avós antes de ir
para casa. Peguei meu terno novo na portaria e fui para o meu
apartamento. Tomei um banho demorado, fiz a barba, vesti uma boxer
preta, abri uma garrafa de uísque irlandês e me sentei na poltrona para
esperar a Fernanda.
Cada vez que o barulho do elevador repercutia do lado de fora,
meu corpo estremecia em expectativa do lado de dentro, no entanto, o
tempo foi passando e a Fernanda não apareceu. Eu não suportava mais
esperar.
Comecei a ligar para ela, mas as chamadas caíam direto na caixa
postal e a Fernanda também não respondeu nenhuma das minhas
mensagens. Às sete e meia, me troquei e fui até o seu apartamento.
Ninguém atendeu.
O porteiro confirmou que nem a Fernanda nem a Tayane estavam
em casa. Meu telefone tocou, atendi sem ver quem era, desesperado para
que fosse ela, mas era a minha avó avisando que já estavam a caminho
do auditório.
Sete e cinquenta.
Meu tempo acabou e, mais uma vez, fui obrigado a adiar a nossa
conversa. Tentei ligar de novo e, de novo, caiu na caixa postal. Escrevi
um bilhete e pedi para o porteiro entregar para a Fernanda.
FERNANDA
Baseada nas minhas próprias experiências, eu tinha um motivo
justo para acreditar mais no destino do que no amor, afinal, era disso que
se tratava, certo?
Arthur foi meu primeiro em tudo, até na sua traição que resultou
no meu coração destruído. Com Danilo, apesar de ter sido diferente por
não o amar como pensei que amasse, confiei nele da mesma forma que
confiei em Arthur, então a dor da traição foi igual, ainda que meu
coração tenha sido poupado de uma nova destruição.
Por essa razão, quando Gael me telefonou naquela tarde, dizendo
que precisava falar comigo e pediu que eu fosse até o apartamento dele
quando chegasse, não imaginei que em um intervalo de poucas horas,
tudo que acreditei nos últimos anos iria se transformar em um monte de
nada.
Mas foi exatamente o que aconteceu.
O início da transformação começou assim que toquei a campainha
da casa dos meus pais, e quem abriu a porta foi o Arthur. Ele estava
elegante em seu terno cinza com uma camisa branca e gravata vermelha.
O cabelo penteado, o rosto sem pelos e o sorriso galanteador, faziam
parte dos apetrechos que ele usava para manter sua imagem sofisticada
de assessor de imprensa conceituado.
No entanto, fazia muito tempo que nada em Arthur Delgado me
impressionava. O problema é que ele não estava muito convencido
daquilo.
— Oi, Nanda. — Meu ex-namorado me cumprimentou. — Entra.
Não tive a intensão de ser sarcástica, mas a maneira que ele falou,
como se fosse o dono da casa, fez com que eu me lembrasse das
besteiras que a Tay disse a seu respeito e, mesmo sem querer, acabei
dando risada.
— Algum problema? — Danilo não estava mais sorrindo.
— Não, nenhum.
Passei por ele e fui direto para a cozinha.
— O que eu fiz de tão engraçado?
— Nada, deixa para lá. — Abri a geladeira e peguei a garrafa
d’água.
— Se não fosse nada, você não estaria rindo desse jeito.
Coloquei a garrafa em cima da pia e olhei para ele.
— Que jeito? — perguntei, incapaz de segurar o riso.
— Debochado. — Ele cruzou os braços, nitidamente irritado.
— Não estou debochando — rebati. — Onde minha mãe está?
Arthur encostou o ombro no batente da porta e cruzou os braços.
— Na sala de estar, comprando roupas, eu acho. — Tomei um
pouco de água e assenti. — Foi por isso que você veio?
Devolvi a garrafa na geladeira.
— Exatamente.
— Ainda não gosta de sair para fazer compras?
Eu estava acostumada a esse tipo de pergunta do Arthur, sempre
carregada de ironia, porém não havia nada de irônico em seu tom de
voz.
— Eu nunca disse que não gostava.
— Então, por que está aqui? — Arqueou as sobrancelhas.
Claro, Arthur estava insinuando que eu tinha ido até a casa da
minha mãe por causa dele. Apesar de ser bizarro, acreditar que as
pessoas viviam em função dele e o mundo girava ao seu redor, era uma
das características mais marcantes da personalidade do meu ex-
namorado.
Dei uma risadinha afetada, me aproximei e parei à sua frente.
— Marcos Lombardi, meu pai, comprou essa casa para a esposa
dele que, por acaso, é a minha mãe. Não sei se você sabe, mas sou filha
única. — Arthur ficou sério, o que me fez sorrir ainda mais. — Tenho
certeza que meu pai trata muito bem os funcionários dele, já que está
aqui, mas sugiro que faça uma nota mental sobre isso, ou melhor, sobre
quem é quem nessa história e poupar o seu ego de se sentir
ridicularizado.
Nunca usei minha posição para tirar vantagem de alguma coisa ou
desmerecer ninguém, mas estava cansada de ser tratada daquela maneira
por ele. Então, dane-se!
— O Marcos e a Lilian são meus amigos — Arthur contestou.
— Bom, até onde eu sei, os amigos agendam visitas, não os
filhos.
— Você entendeu errado. — Passou os dedos pelo cabelo,
frustrado. — Eu não quis dizer isso.
— Não quis dizer que eu vim aqui por sua causa? — perguntei
com sarcasmo.
Ele endireitou os ombros ganhando alguns centímetros de
vantagem sobre mim. Arthur era um pouco mais alto, não tanto quanto
Gael, mas podia ser intimidador se quisesse e, de fato, ele queria.
— Se você agisse como a filha que todo mundo pensa que você é,
e visitasse seus pais com mais frequência, eu não presumiria que tivesse
vindo até aqui por minha causa.
Senti meu rosto esquentar e não era de vergonha. Era de raiva.
No entanto, eu não tinha tempo nem disposição para debater sobre
a minha família com Arthur, até porque meu ex-namorado era
especialista em reverter as situações a favor dele, e no final ainda saía de
vítima.
— E se você agisse como o funcionário que todos pensam que
você é, se preocuparia mais com o seu trabalho do que comigo —
sibilei, meus dentes entrecerrados e olhos afunilados. — Aliás, espero
que esteja recebendo um bônus pelo serviço extra de mordomo, ou será
que abrir a porta da casa dos meus pais já está incluso no de puxa-saco?
Desviei do seu corpo, imóvel como uma estátua, e segui na
direção da sala de estar, a fim de encontrar minha mãe e a Valquíria, sua
amiga e sócia da Bella Donna, uma das boutiques mais conhecidas de
São Paulo.
Valquíria era sacoleira e a dona Lilian foi uma das suas primeiras
clientes. As duas mantiveram a amizade ao longo dos anos, e a Valquíria
fazia questão de mostrar as peças exclusivas para a amiga, antes que elas
fossem expostas nas vitrines da boutique.
Eu ainda estava no hospital quando minha mãe me ligou avisando
que a Val estaria na sua casa naquela tarde e me convidou para ir até lá.
A princípio, pensei em ignorar o convite, mas percebi como a
dona Flora ficou sem graça de combinar com o médico — na minha
frente —, como seria feito o deslocamento do senhor Dwayne até o local
onde aconteceria o tal evento misterioso.
Então usei o convite da minha mãe como desculpa para ir embora
e deixá-la à vontade, ainda que estivesse muito magoada. Não por não
ter sido convidada, mas porque estavam escondendo alguma coisa de
mim.
— Nanda, que bom que chegou, filha! — Minha mãe me abraçou
e beijou minha testa assim que me viu. — Estava falando de você para a
Ângela. — Apontou para a mulher sentada no sofá, que inspecionou
meu corpo descaradamente, dos pés à cabeça.
— Cadê a Val? — perguntei, um tanto incomodada.
— Ah, ela teve um imprevisto de última hora e não pôde vir —
respondeu minha mãe. — A Ângela é vendedora e trouxe bastante coisa.
Além da forma inconveniente com que me encarava, também não
gostei de como Ângela se forçava a sorrir sempre que eu elogiava
alguma peça. Ela era muito bonita e devia ter a minha idade, um pouco
mais nova, talvez. O fato foi que meu santo não bateu com o dela e tudo
piorou quando o Arthur apareceu, do nada, e descobri que eles se eram
amigos.
Nunca acreditei em intuição, sexto sentido ou premonições, mas
podia jurar que tinha algo no ar, uma tensão mascarada. Não sabia
explicar, porém, podia sentir em minhas entranhas que não era bom.
Minha mãe não parava de tagarelar e fiz de tudo para ignorar
aquela sensação ruim, no entanto, em determinado momento, entendi
que precisava sair dali.
Eram quase sete da noite quando me levantei, pronta para ir
embora.
Estava ansiosa, tanto para me livrar dos olhares perseguidores de
Ângela quanto para encontrar o Gael e descobrir o que ele tinha de tão
importante para me falar.
— Mãe, vou deixar as peças que escolhi e passo amanhã para
pegar, está bem?
— Você já vai embora? — Ângela não disfarçou o desagrado ao
me ver em pé com a bolsa pendurada no ombro.
— Tenho um compromisso.
Ela deu mais um dos seus sorrisos forçados e retirou o celular do
bolso da calça preta.
— Me desculpa, não quero que se atrase por minha causa, mas a
Valquíria pediu para você dar uma olhada no novo catálogo e se ela
souber que fiquei batendo papo e esqueci de te mostrar, vai brigar
comigo. Por favor, prometo que é rapidinho.
Suspirei, renunciando a fuga estratégica, e peguei o aparelho
estendido na minha direção.
— A Val não me falou nada desse catálogo — comentou minha
mãe, se postando ao meu lado para ver as fotos tiradas na loja.
— É um catálogo só para noivas — Ângela explicou, empolgada.
— Mas o mais interessante é que a Bella Donna não vai contratar
modelos profissionais. As próprias noivas vão posar para as fotos de
divulgação.
Os vestidos eram lindos, sem contar que as mulheres pareciam
perfeitas. Todas deslumbrantes.
— Adorei a ideia — afirmei com sinceridade, e entreguei o
aparelho para Ângela. — Vai ser um sucesso.
— Espera, você não viu tudo. — Ela mexeu no teclado
rapidamente, antes de me devolver o telefone. Seus olhos ansiosos
cravados nos meus. — Essas fotos foram tiradas hoje. Não são lindas?
Desviei o olhar para a tela e fiquei sem ar.
— Ual! Que homem é esse? — minha mãe exclamou.
— Eles estão noivos, vão se casar ano que vem.
Minhas pernas bambearam e fui obrigada a me sentar para não
cair.
Apesar de usar óculos, não tinha um problema grave de visão.
Estava ali, diante dos meus olhos, mas meu cérebro se recusava a aceitar
as informações capturadas pela minha visão.
— Nanda? — Nem mesmo a voz preocupada da minha mãe fez
com que eu levantasse a cabeça. — Você ficou pálida, filha. Está
passando mal? O que está sentindo?
Era como se meu corpo tivesse sido anestesiado e somente meus
olhos não estivessem sob o efeito da anestesia.
Eu reconheceria a mulher que estava transando com o Danilo em
qualquer lugar, e era ela que estava naquelas fotos com o Gael, sorrindo
para ele, beijando a boca dele, sendo abraçada por ele. Era ela!
— Quer que eu pegue um copo d’água? — Ângela questionou e
só então notei que estava sentada ao meu lado.
— Você — pigarreei —, conhece esse casal?
Não desviei meus olhos do aparelho nem por um milésimo de
segundo, enquanto o resto do meu corpo assimilava o que estava
acontecendo, porque estava acontecendo, e tentava descobrir o que eu
tinha feito de errado para estar acontecendo.
— Conheço. — De repente Ângela não parecia tão empolgada,
mas eu não podia, não conseguia, e não queria olhar para outro lugar que
não fosse a tela, exibindo as fotos daquelas pessoas, especialmente para
mim. — A Penélope é cliente da loja e o Gael é o noivo dela.
Gael. Gael Gallengher.
Pouco a pouco, meu cérebro foi retomando o controle das minhas
ações e pensamentos, trazendo a realidade com fúria. Eu ainda estava
em choque, hipnotizada por aquelas imagens, mas consegui perguntar:
— Tem certeza que essas fotos foram tiradas hoje?
— A maioria. — Ângela hesitou. — A Penélope foi escolher o
vestido que ela ia usar no evento da empresa da família. Pelo que
entendi, o avô do Gael está muito doente e vai nomear o neto como o
novo CEO.
A verdade me agrediu violentamente e tudo fez sentido.
— Tenho que ir. — Apoiei as mãos no estofado para me levantar.
— Não pode sair nesse estado, Nanda! — advertiu minha mãe,
agachada à minha frente.
— Está tudo bem. Eu estou bem — balbuciei, firmando minhas
pernas.
— Você não está nada bem. Espera um pouco e se acalma.
Quando estiver melhor, eu te levo para casa.
Fiz que não com a cabeça e segui até a porta, desorientada.
Precisava de ar, de espaço. Absorver o golpe, decidir o que fazer.
Alguma coisa tinha de ser feita.
Então veio o estalo. Girei o corpo e meu olhar capturou o de
Ângela, temeroso, compadecido.
— O evento. Onde vai ser o evento? — Fiquei orgulhosa por falar
com firmeza e ocultar o estado de calamidade que entorpecia minha
alma.
Ela abaixou a cabeça e seus ombros arriaram, ao mesmo tempo
que mudou o peso do corpo de uma perna para outra. A imagem
derrotada daquela desconhecida despertou a cadela adormecida dentro
de mim.
Avancei sobre ela, agarrei seus braços com o pouco de força que
me restava e chacoalhei seu corpo, para frente e para trás, assustando
minha mãe, que começou a implorar para que eu soltasse a infeliz.
— Não era isso que você queria? — gritei, encolerizada. — Não
foi por isso que me mostrou as fotos? — esbravejei entre os dentes
cerrados. — Quem mandou você aqui, sua desgraçada?
— Me solta! Você está me machucando! — Ângela choramingou.
Seu rosto estava vermelho e seus olhos marejados.
Eu a soltei, mas não me afastei.
— Onde? — rosnei na cara dela.
Ângela recuou, eu avancei.
— Onde? — gritei, histérica.
— No edifício São Francisco, onde fica o escritório do Gael.
Tirei os óculos embaçados, ajeitei a alça da bolsa em meu ombro
e falei olhando no fundo dos seus olhos, ameaçadoramente.
— Eu ainda não acabei com você.
Depositei um beijo rápido na bochecha da minha mãe, que estava
aos prantos, e refiz meu caminho até a porta, mas daquela vez, não olhei
para trás. Não vi Arthur em lugar nenhum, o que serviu apenas para
aumentar minhas suspeitas.
Um passo de cada vez.
Pesquei o telefone na bolsa e só não atirei o aparelho contra a
parede quando vi as dezenas de chamas perdidas do Gael, porque
precisava descobrir o endereço do escritório dele.
Entrei no carro, me acomodei no banco do motorista e respirei
fundo.
Digitei o nome do homem que havia me enganado, por mais de
um mês, no campo de busca do Google e fiquei surpresa pela escassez
de informações sobre ele e da empresa do senhor Dwayne, mas não
reclamei, pois, a única que me interessava estava disponível.
Encarei meu reflexo no retrovisor.
Nenhuma lágrima, o que era ótimo para o que eu precisava fazer,
entretanto, no fundo eu sabia que aquele era um mal sinal, pois quanto
mais tempo eu demorasse para desabar, mais eu demoraria para me
reerguer.
Gael conseguiu em algumas semanas, com extrema facilidade, o
que nem o Arthur e nem o Danilo conseguiram em anos.
Porém, antes de me entregar a escuridão, liguei o carro e segui
para o local indicado no GPS, contrariando as ordens do meu cérebro.
A ex-noiva do Gael era a amante do Danilo. Eu vi e tinha certeza
que encontrar os dois no evento, juntos, podia significar a minha ruína.
Mas meu tolo e perdidamente apaixonado coração, ainda se
agarrava com unhas e dentes a um fiapo de esperança, se recusando a
acreditar que o Gael havia mentido e me enganado daquela forma.
Minutos mais tarde, compreendi que as pessoas preferiam a
mentira, porque a verdade era muito cruel para suportar.
E, finalmente, desabei.
RELATO – PARTE 5
GAEL
— Se não sair da minha frente, vou chamar os seguranças —
rosnei como um maldito psicopata.
Penélope deu um passo para trás, acuada. O medo em seus olhos e
a tensão em seus ombros atestaram a veracidade da minha ameaça.
— Não vim aqui para brigar e você não vai querer estragar essa
noite. Nós dois sabemos o quanto esse evento é importante para o seu
avô.
Segurei seu braço, apertando-o com força.
— Nunca mais abra a sua boca suja para falar da minha família.
— Você está me machucando — Penélope choramingou.
— E vou machucar muito mais se não der o fora, agora!
— Gael? — Leona surgiu no meu campo de visão. Seu olhar indo
do meu para a minha mão esmagando o braço da traidora interesseira. —
São oito e quinze, o Claudio está pronto para começar. — Ela olhou ao
redor e voltou a me encarar. — Vocês estão chamando a atenção dos
convidados.
— Acompanhe essa mulher até a saída e se certifique de que ela
nunca mais coloque os pés nesse prédio. — Soltei Penélope
bruscamente.
Ela deslizou a mão sobre a pele avermelhada e empinou o queixo.
— Vou assistir sua nomeação e nem tente me impedir. O que
você acha que essas pessoas vão dizer quando eu mostrar como meu
noivo é um homem violento? Um escândalo como esse vai acabar com a
sua carreira antes mesmo de ela começar. — A safada fez uma careta de
dor. — Se me dão licença, vou encontrar um lugar para me sentar.
Antes que eu pudesse impedir Penélope de se afastar, Leona se
posicionou à minha frente.
— Você precisa se controlar, Gael!
— Como eu posso me controlar com essa desgraçada aqui,
merda?
— Para todos os efeitos, ela ainda é sua noiva.
— Ela não é minha noiva.
— Os diretores não sabem disso — Leona apontou o queixo para
um ponto atrás de mim.
Olhei por sobre o ombro e todo o meu ódio aflorou quando vi
Penélope se acomodando entre o diretor do departamento jurídico e o do
departamento financeiro. Passei as mãos pelo cabelo, esfreguei o rosto e
soltei uma longa respiração.
— Essa desgraçada está aprontando alguma coisa. Como ela ficou
sabendo que antecipamos a data da nomeação? — Minha voz era fria,
exasperada.
— Tenta ficar calmo e deixa para se preocupar com a Penélope
quando a cerimônia acabar, ok? — Leona disse com tranquilidade. —
Vá para o seu lugar. Vou avisar o Claudio que ele já pode começar.
Todas as luzes do auditório se apagaram. Apenas os holofotes que
iluminavam o pequeno palco permaneceram ligados. Meus avós estavam
sentados do lado direito, perto do corredor que dava acesso aos
banheiros e a saída de emergência.
Foram enviados duzentos convites online, acompanhados por uma
breve explicação sobre o estado de saúde do senhor Dwayne e um
pedido de desculpas pelo envio de última hora.
Através da escuridão que recaiu sobre o auditório, constatei que
poucas cadeiras continuavam desocupadas, o que significava que a
maioria dos convidados estava presente.
Minha cabeça doía, meus músculos estavam rígidos e meu
coração batia acelerado. Meu corpo estava naquele lugar, mas todos os
meus pensamentos se mantinham fieis a Fernanda.
Ocupei a cadeira ao lado do meu avô no instante em que o
Claudio subiu no palco e deu início a cerimônia com o discurso de
abertura. Ele falou sobre os primeiros anos da Gallengher Cosméticos, e
a coragem do seu fundador de ingressar em um mercado extremamente
concorrido.
O advogado citou a filosofia da empresa e apresentou alguns
números para comprovar o quanto ela cresceu na última década, graças
aos diversos investimentos no setor de produção e de criação das novas
linhas de produtos. Claudio foi aplaudido depois de agradecer ao senhor
Dwayne em nome de todos os funcionários por sua história de vida, e o
convocou para tomar o seu lugar.
Mesmo com a perda de peso e a aparência enferma, meu avô
estava elegantemente vestido em seu terno preto de três peças, camisa
branca e gravata prateada. Os poucos fios grisalhos foram penteados
para trás. Os olhos azuis brilhavam de encantamento e ele sorria com
orgulho, nitidamente emocionado.
Ajudei meu avô a ficar em pé e o acompanhei até a escada lateral
do palco, onde Claudio já o aguardava para conduzi-lo até o púlpito.
Retomei meu lugar ao lado da minha avó e, com as mãos unidas as dela,
ouvi cada uma das palavras do homem por quem eu tinha verdadeira
adoração e admiração. Foi um discurso sucinto, mas
extraordinariamente enternecedor. Todas as pessoas que o conheciam,
sabiam que aqueles dizeres representavam com exatidão o homem que
as proferia.
E para fechar com chave de ouro, ele disse:
FERNANDA
Estacionei o carro em frente ao edifício comercial luxuoso e me
perguntei se confrontar Gael era, de fato, o que eu queria fazer. Como
todas as outras perguntas que me perseguiram durante o percurso até ali,
não tive uma resposta e o medo de descobrir que tudo que havíamos
vivido nas últimas semanas, ofuscava a necessidade de saber a verdade.
Uma batalha desleal, já que eu seria incapaz de seguir em frente
se fosse embora com um mundo de dúvidas desmoronando sobre a
minha cabeça e esmagando meu coração.
Desci do carro sem me importar com a roupa simples que estava
usando, calça jeans, blusa branca de manga comprida lisa e nos pés,
sapatos pretos de salto alto. A imagem da noiva do Gael voltou a me
perturbar, a loira exuberante e seu vestido vermelho chique, marcando
as curvas do seu corpo magro e esguio.
Uma afronta a qualquer mulher, principalmente, uma como eu.
Passava um pouco das oito da noite quando cheguei à recepção e
fui informada que somente convidados podiam seguir para o auditório,
onde acontecia uma cerimônia privada, organizada às pressas por uma
das empresas que possuíam salas comerciais no edifício luxuoso.
Dei um passo para o lado e vi um homem engravatado, que estava
logo atrás de mim, mostrar para a recepcionista o convite digital em seu
celular e ter sua entrada liberada logo em seguida.
Talvez fosse um alerta do destino para que eu desse meia-volta e
saísse dali o mais depressa possível.
No entanto, um garoto que não devia ter mais de vinte anos,
chegou correndo e perguntou, ofegante, onde ficava a entrada dos
funcionários, pois ele tinha sido contratado para trabalhar no evento da
Gallengher Cosméticos e estava atrasado. A recepcionista indicou que a
entrada dos funcionários ficava na lateral do edifício.
Mais convidados chegaram exigindo a atenção da mulher
elegante, o que facilitou a minha escapada e, consequentemente, a
primeira infração da noite. Invasão. Em outra ocasião, eu poderia até
achar graça, no entanto, quando me vi do lado de dentro e livre para
subir pelo elevador de serviço até o auditório, senti a ponta da lâmina
atingir meu coração.
O garoto que tinha chegado atrasado segurou as portas metálicas.
— Vai entrar ou não? — perguntou, impaciente.
Não respondi, apenas entrei e encostei as costas na parede forrada
por uma lona cinza. Ficamos em silêncio. Levantei a cabeça e inspirei
profundamente, foquei meu olhar no teto, deliberando minha decisão.
As portas se abriram e dessa vez o garoto não fez questão de ser
gentil. Ele saiu tão apressado quanto o coelho da Alice no país das
maravilhas. Saí logo depois.
Encontrar a entrada do auditório foi muito mais fácil, pois do lado
oposto, a quantidade de pessoas vestidas apropriadamente para um
evento empresarial era grande.
Difícil mesmo foi ver o Gael no auge da sua beleza e elegância,
entre Penélope e Leona. De longe, não podia afirmar se conversavam,
discutiam ou combinavam um ménage após o evento.
Senti a Lâmina apertar. Meus olhos arderam.
Precisava de ar.
Voltei para o corredor. Inspirei, expirei, várias e várias vezes.
Tomando meu tempo. Tomando coragem. As pessoas começaram a
ocupar os lugares vazios do auditório e as conversas se transformaram
em cochichos. Estava pronta para exigir a verdade quando as luzes se
apagaram e um homem subiu ao palco. Claudio.
Encostei na porta, atenta a cada palavra que ele dizia sobre o
senhor Dwayne com tanto carinho. A lâmina afiada começou a perfurar
com mais força, advertindo que não demoraria muito para eu desabar.
Os aplausos acalorados me distraíram da dor implacável que a
realidade de onde eu estava e o que estava prestes a fazer me infringia.
Deus, ele mentiu o tempo todo!
Novas lágrimas escorreram pelo meu rosto quando o avô do Gael
subiu ao palco. Àquela altura, meu coração já tinha sido fatiado em
pequenas tiras, e o tão esperado anúncio do novo CEO ergueu a pá de
cal pela última vez, enterrando a sete palmos do chão aquele pequeno
fiapo de esperança de que havia alguma verdade perdida entre tantas
mentiras.
Por quê?
Eu podia perguntar, mas acreditaria se ele me dissesse?
Provavelmente, não.
Gael se levantou e, embora a escuridão me impedisse de enxergar
os detalhes, vi Penélope ao seu lado pouco antes de ele se posicionar
atrás do púlpito e seu corpo ser iluminado pelos refletores do palco. Tão
lindo.
Os olhos de Gael percorreram o auditório e encontraram os meus.
Vislumbrei a tristeza dentro deles, mas compreendi que não passava de
um recurso da minha mente para amenizar a dor execrável dentro de
mim.
Naquele momento, descobri que nem o Arthur, nem o Danilo,
sequer chegaram perto de ferir meu coração.
Agora, eu só precisava descobrir como juntar os pedaços que
sobraram dele, longe do homem que o quebrou pela primeira vez.
RELATO – ÚLTIMA PARTE
GAEL
— Desde já, quero agradecer a presença de todos. Faço minhas as
palavras do meu avô, o homem que admiro e amo incondicionalmente.
Minha fonte de inspiração. Atuando como CEO, pretendo seguir seus
passos à frente da Gallengher Cosméticos com o intuito de levar à
empresa ao patamar que ela merece dentro do mercado nacional. E para
falar sobre os projetos futuros, gostaria de chamar a diretora de
marketing, Leona Cavalcanti.
Não esperei Leona se aproximar do palco e desci apressadamente.
Nada daquilo estava programado, mas não podia esperar para falar com
a Fernanda.
— Gael, você enlouqueceu? — A diretora de marketing
perguntou, me fuzilando com os olhos.
Apoiei minhas mãos em seus ombros, forçando-a a me encarar.
— Anuncia o cronograma do lançamento, conta um pouco sobre a
modelo que vai representar a marca e convida todo mundo para
participar do coquetel. Se alguém perguntar, fala que estou dando uma
entrevista, resolvendo um problema de última hora, não sei. Qualquer
coisa. Eu só preciso de um tempo. — Ela bufou, batendo o pé no chão.
— Por favor, Leona.
— Vai me contar o que está acontecendo?
— Vou, mas não agora. — Beijei sua bochecha. — Obrigado.
Atravessei o corredor, indo até onde meus avós estavam sentados
e me abaixei à frente deles. Meu olhar revezando entre os dois.
— A Fernanda está aqui — revelei sem rodeios. Minha avó
cobriu a boca com a mão. — Preciso falar com ela e explicar tudo. A
Leona vai cuidar das coisas até eu voltar.
— Vai, meu filho. Não se preocupa, nós vamos ficar bem. —
Meu avô sorriu e, apesar da escuridão, ficou evidente seu abatimento.
— Obrigado, vô.
— Conta a verdade para ela, Gael — minha avó pediu com
tristeza.
— Vou contar, eu prometo. — Depositei um beijo em sua testa e
um na testa do meu avô.
A passos largos, segui na direção da entrada do auditório,
nervoso, ansioso e apreensivo para encontrar Fernanda. Se ela tivesse
indo embora, eu iria até o seu apartamento. Não iria mais adiar aquela
conversa.
Um ponto vermelho surgiu na minha frente, do nada. Parei de
supetão ou atropelaria a desgraçada, não que isso fosse um sacrifício, de
qualquer forma. No entanto, todos estavam de olho em cada passo meu,
e começar uma nova discussão com Penélope estava fora dos meus
planos.
— Nós precisamos conversar, Gael! — ela disse tão alto, que nem
a voz da Leona, ecoando pelo auditório através das caixas de som,
impediu que os convidados em nosso entorno escutassem.
Penélope queria chamar atenção e não se importaria de fazer um
escândalo se fosse preciso, no entanto, antes que eu agarrasse seu
pescoço e a enforcasse, alguém me impediu segurando meu ombro com
força. Virei para ver quem era.
Claudio meneou levemente a cabeça e falou baixo para que
ninguém, além de mim, ouvisse:
— Cobertura. Deixa que eu cuido dessa aqui.
Arqueei as sobrancelhas, absorvendo suas palavras.
Eu sabia do que o Claudio estava falando e, principalmente, de
quem ele estava falando, apenas não entendia porque estava me
ajudando, porém não tinha tempo para perguntar.
Assenti e passei por Penélope, que encarava o advogado com os
olhos arregalados. Claudio era o que os mais antigos costumavam
chamar de “tubarão”. Se Penélope tentasse estragar a cerimônia
novamente, teria de lidar com ele e minha ex-noiva podia ser muitas
coisas, mas burra, com certeza, ela não era.
Não esperei o elevador. Subi correndo os quatro lances de escada
até a cobertura do prédio, onde o Claudio me disse que a Fernanda
estava. De frente para a grande porta de ferro, respirei profundamente,
uma e outra vez, para recuperar o fôlego e desacelerar a frequência
cardíaca.
Fechei os olhos, buscando meu autocontrole, perdido em algum
momento daquele fim de semana do caralho, que começou com a
internação do meu avô e estava prestes a acabar naquele telhado.
Encostei a testa na porta. Minhas mãos suadas, frias, trêmulas.
Meu coração pulsando na veia da garganta. Meu estômago enjoado. No
entanto, nenhum dos sintomas físicos se comparava ao medo que
subvertia meu peito. Era sufocante. Me dava náusea todas as vezes que
eu antecipava a dor da perda, da saudade e da ausência.
Merda!
Tomei coragem e empurrei a porta pesada. O vento gelado
acertou meu rosto como um tapa.
Fernanda estava perto da mureta, de frente para a cidade de São
Paulo e de costas para mim. Os braços cruzados à frente do peito, os
ombros tombados, a cintura fina marcada pelo cós da calça jeans, colada
à sua bunda empinada como garras de stretch, que destacava suas coxas
grossas, mais alongadas por conta do par de sapato preto.
O cabelo castanho, que meus dedos adoravam puxar enquanto eu
comia sua boceta por trás, caía livremente por suas costas. Os fios
balançavam de um lado para o outro, lenta e suavemente, como se
estivessem dançando ao ritmo do vento.
Os pelos da minha nuca arrepiaram, avancei dois passos e me
aproximei dela, determinado a acabar com aquela angústia nauseante.
Mas travei no lugar quando Fernanda girou o corpo e nossos olhares se
encontraram pela primeira naquele dia, tão perto.
— Você é noivo, Gael? — A pergunta não me abalou, mas ouvir
meu nome saindo da sua boca foi como receber uma descarga elétrica
sobre o meu corpo.
Nem o vermelho dos seus olhos, ou as lágrimas descendo pelo seu
rosto, tampouco sua expressão melancólica e derrotada, me coibiram a
desviar o olhar, ainda que não poder tomá-la em meus braços e nunca
mais a soltar, estivesse me matando por dentro.
— Não — respondi placidamente e guardei as mãos nos bolsos
para não fazer uma besteira e tocá-la sem a sua permissão.
— Você era noivo? — perguntou com a voz mais firme e secou o
rosto com a manga da blusa.
— Era.
— Daquela loira que estava de vestido vermelho? — Seus olhos
se tornaram duas fendas ferozes.
— Sim. — Eu responderia todas as suas perguntas, e não me
importaria se ao final, Fernanda me consumisse por inteiro e deixasse
apenas a minha carcaça.
— Você sabia que ela era a amante do Danilo?
Soltei uma longa respiração, mas não desviei o olhar nem vacilei
na resposta.
— Sabia.
Fernanda deu um sorriso sarcástico e empurrou os óculos sobre o
nariz, antes de perguntar:
— Algum dia você pretendia me contar que sabia que a Penélope
era amante do meu namorado?
Dei um passo à frente, pois além de querer toda sua atenção para
mim quando eu respondesse aquela pergunta, também precisava sentir o
calor do seu corpo, nem que fosse somente o vapor. Eu me contentaria
com o que ela quisesse me dar. Qualquer coisa.
— Eu contei — afirmei, resoluto.
Primeiro Fernanda franziu a testa, confusa. Depois corou, furiosa.
— O que foi, Gael, perdeu a graça apenas mentir para mim? Me
fazer de idiota? — esbravejou na minha cara. — Agora você quer me
transformar na louca da história? Você nunca me contou que a Penélope
era a amante do Danilo! NUNCA!
O único culpado por tudo que estava acontecendo, era eu. Por
minha culpa nós chegamos até o alto daquele prédio e apenas eu poderia
nos tirar de lá. Mas para sairmos do jeito que eu queria, Fernanda
precisava da verdade, ou melhor, de toda a verdade. Então, eu daria a
ela.
— Você não teria descoberto se eu não tivesse contado. —
Fernanda demorou alguns segundos para compreender. — Era eu desde
o começo. Sempre fui eu.
— Otavio — balbuciou, estupefata.
— No meu aniversário de dezoito anos, meu avô me perguntou se
eu queria assumir o lugar do meu pai na empresa. Eu respondi que
nunca quis outra coisa, porque era verdade. Entrei na faculdade de
Administração e não tinha a menor pretensão de me tornar o CEO da
Gallengher Cosméticos antes dos trinta. Mas tudo mudou no final do
ano passado, quando meu avô descobriu que estava com câncer.
Comecei a narrar uma das partes da minha vida que Fernanda não
conhecia e se tudo desse certo, ela não sairia daquela cobertura antes de
conhecer todas.
— Quando meu avô fez os primeiros exames, os médicos foram
otimistas, mas quanto mais o tempo passava, mais as estimativas
diminuíam. Diminuíram tanto, que no começo do ano ele convocou uma
reunião com os diretores, contou o que estava acontecendo e informou
que me nomearia como novo CEO, no lançamento Fíor. — Dei de
ombros. — Eu trabalho na empresa desde os vinte anos, mas depois
daquela reunião, minha rotina mudou completamente, e todos os
funcionários passaram a me ver como o chefe. Tudo aumentou; a
responsabilidade, a cobrança, a pressão. Tudo. Eu era o primeiro a
chegar e o último a sair. Nos fins de semana, quando não estava
trabalhando, estava com meus avós. Na minha cabeça, a única coisa que
continuava estável na minha vida era o meu relacionamento. Mas um
belo dia, a Penélope estava tomando banho e o telefone dela tocou em
cima da cama. Ela era minha noiva, a gente estava junto havia sete anos
e ia se casar em poucos meses. Qual o problema de eu ver quem estava
ligando para ela às cinco horas da manhã?
Fernanda era quase uma estátua, imóvel. Ela ouvia a tudo em
silêncio e parecia interessada, o que me motivou a continuar:
— Era a mensagem de um homem, dizendo o quanto ele tinha
gostado do último encontro deles e perguntando quando seria o próximo.
— Dei uma risada sem humor. — Se eu queria matar a Penélope?
Queria. Se eu queria enforcar a desgraçada em praça pública? Queria.
Mas eu não podia — vociferei. — Não podia, porque qualquer
escândalo envolvendo o nome da minha família ia destruir em cinco
minutos, tudo que meu avô passou a vida inteira construindo. Não podia,
porque se a imprensa descobrisse que a noiva do futuro CEO da empresa
que almejava o TOP 10 nacional, estava trepando com o diretor de
novelas mais amado do Brasil, o nome da minha família ia se
transformar em motivo de piada. Não podia, porque o homem mais
importante da minha vida estava morrendo e ele não merecia ter sua
reputação arruinada por causa de uma mulher interesseira que eu levei
para dentro da casa dele.
Fernanda não disse nada. Nem um comentário. Sabia que ela
estava digerindo todas as informações e não ficaria mais fácil.
— Eu não podia fazer nada, mas a minha necessidade de vingança
era muito grande. E quando descobri que a namorada do amante da
Penélope era filha de um dos homens mais famosos do país, não pensei
duas vezes em entrar em contato com ela. Eu só não esperava trocar
mensagens com ela por três meses, gostar de falar com ela e me apegar a
ela. Eu manipulei você para armar o flagrante, Fernanda. Contratei a
equipe de reportagem e autorizei a publicação do vídeo na internet —
disse tudo de uma vez, sem nunca desviar meus olhos dos dela. — Era
para ter acabado ali. Você nunca mais ia falar ou ouvir falar do Otavio.
Eu já tinha conseguido o que eu queria e quebrado qualquer vínculo que
a Penélope pudesse ter com a minha família. Mas nem sempre as coisas
acontecem como a gente planeja, e o acidente do Danilo me levou de
volta para você.
Fernanda ofegou, como se somente agora se desse conta do que
realmente havia acontecido.
— Não consegui suportar o que a imprensa estava fazendo com
você, por minha causa.
— Na academia, você...
— Não! — falei prontamente. — Vou entender se não acreditar,
mas faço natação naquele horário desde que me mudei para o bairro. —
Avancei um passo, restringindo um pouco mais a nossa distância. — Eu
menti sobre o Otávio, menti sobre a Penélope e menti sobre a empresa.
Mas nunca menti sobre você. — Prendi uma mecha do seu cabelo atrás
da orelha. — Nunca menti sobre o que sinto por você. — Deslizei a mão
por seu pescoço, ombro, braço, alcancei sua mão e entrelacei nossos
dedos. — Não menti que, em algum momento dessa história, eu me
apaixonei por você, Fernanda.
Ela fechou os olhos permitindo que novas lágrimas escorressem
por seu rosto. Descansei minha testa na dela.
— Desde que eu te beijei pela primeira vez, nunca mais quis
beijar outra pessoa. Por favor, acredita em mim...
Ficamos assim por longos minutos. A esperança crescendo dentro
do meu peito, se expandindo e ganhando força. Acariciei seu rosto com
a mão livre, sequei suas lágrimas com a ponta dos dedos.
— Me perdoa — sussurrei, roço meus lábios nos dela. — Por
favor, Fernanda, me dá uma chance...
Ela respirava com dificuldade, seu peito subia e descia, tão rápido
quanto o meu, mas num piscar de olhos, o encanto se desfez.
Subitamente ela se afastou, limpou o nariz com a manga da
camisa de forma áspera, balançou cabeça de um lado para o outro,
negando e negando, antes de olhar no fundo dos meus olhos e dizer:
— Não posso, Gael. Não depois de você ter mentido para mim...
— Me dá uma chance, por favor — implorei quando ela se
afastou. — É tudo que eu peço. Uma chance de provar que me apaixonei
de verdade, Fernanda.
Meus olhos arderam e a dor voltou a comprimir meu peito com
força.
— Eu não acredito em você — ela disse de queixo erguido, sua
voz inabalável, e seu olhar ousado.
— Não faz isso, Nanda! — supliquei, ciente de que estava quase
chorando. — Me perdoa. Eu sou completamente apaixonado por você.
Me dá uma chance, por favor...
Fernanda já caminhava na direção da porta, mas respondeu por
sobre o ombro antes de passar por ela e me deixar sozinho na cobertura:
— Nossa história acaba aqui, Gael. Segue com a sua vida, que eu
vou seguir com a minha.
O baque da porta pesada ofuscou o barulho dos meus joelhos se
chocando contra o chão, mas não foi alto o bastante para ofuscar o meu
grito de dor.
A maldita dor da perda.
É difícil condenar um homem por esconder a verdade, quando você
sabe que mentiria se estivesse no lugar dele.
Dwayne Gallengher
CAPÍTULO 42
FERNANDA
— O que você está fazendo, florzinha?
— O que você está vendo eu fazer — rebato, mal-humorada.
Tayane senta na beirada da cama e cruza as pernas.
— Vai fugir para onde? — pergunta com deboche.
— Não estou fugindo. — Dobro a última calça e a coloco dentro
da mala de viagem, aberta sobre o colchão.
— Você não é mais funcionária do museu e mesmo se fosse, já
tirou férias. Não tem nenhuma viagem de trabalho agendada, até porque
o antiquário ainda não foi reinaugurado — ela fala com tanto cinismo,
que se eu pudesse, colaria sua boca com supercola. — Seus pais não te
convidaram para o cruzeiro de lua-de-mel que eles vão fazer para
comemorar os trinta anos de casamento. Sim, florzinha, você está
fugindo. E não, isso não é nada legal.
— Às vezes, uma pessoa querer se afastar um pouco, não
significa que ela esteja fugindo de alguma coisa.
— No seu caso, de alguém.
— Não estou fugindo de ninguém.
— Sério?
— Sério, Tay. E se você fosse minha amiga, estaria me apoiando
e não me infernizando.
— Não seja injusta. Eu sempre apoiei você.
Eu a encaro com as sobrancelhas arqueadas.
— Desde quando incentivar a sobrinha a dar uma chance ao
homem que mentiu para ela, é apoiar?
— Incentivo você a dar uma chance para o Gael, porque não
aguento mais te ver chorando pelos cantos.
— Não choro pelos cantos — retruco, meu humor pior do que
estava.
— Quem está mentindo agora?
— Não estou mentindo. — Aponto o indicador para ela. — E
você deveria me apoiar em vez de ficar defendendo o Gael.
— Florzinha, eu entendo que você está sem sexo há um mês,
perdeu peso, não dorme direito, chora na maior parte do tempo e está
ansiosa por causa da reinauguração do antiquário. Mas não coloque
palavras na minha boca. Eu nunca defendi o Gael pelo que ele fez.
— Você disse que não podia julgar o Gael, Tayane! — falo mais
alto do que pretendia.
— E não posso, porque não me acho no direito de julgar. O que
não quer dizer que eu concorde com o que ele fez.
— Você diz isso porque não foi para você que ele mentiu.
— Nanda, vou explicar pela última vez, então presta muita
atenção porque não vou repetir. — Tayane arranca as meias que estou
tentando dobrar e segura minhas mãos. Seus olhos nos meus. — O Gael
errou? Errou, e está pagando caro pelo erro dele. Eu não concordo com o
que ele fez, principalmente porque o erro dele está fazendo você sofrer,
e quando você sofre, eu também sofro.
Ela limpa uma lágrima fujona que escapa do meu olho com o
polegar, e volta a falar:
— Seu pai, sua mãe e você, são a única família que eu tenho, e as
três pessoas que eu amo acima de qualquer coisa nesse mundo. É por
isso que não posso julgar o Gael, porque se um dia eu tiver que mentir
para proteger vocês, eu vou mentir. — Tayane me abraça. — Eu mataria
e morreria por vocês, florzinha.
Ela se afasta e deposita um beijo na minha testa.
— Eu posso estar enganada e me arrepender do que vou dizer,
mas tenho certeza que você também faria qualquer coisa para proteger
seus pais, até mentir para uma pessoa que você ama.
Não abro a boca, como sempre, pois sempre concordo com ela,
ainda que em silêncio, pois o nó apertado na garganta não permite que
as palavras deixem a minha boca.
— Que horas você vai sair? — Minha tia pergunta indo em
direção a porta do meu quarto.
— Meio-dia — respondo, me recriminando por estar mentindo,
embora não seja uma mentira, já que eu não tenho hora certa para sair,
então posso sair a qualquer hora.
— Precisa de ajuda?
— Não, eu me viro.
— Tenho uma reunião no escritório do seu pai, vou tentar passar
aqui antes do almoço para me despedir de você.
Ela está quase saindo quando pergunto com sarcasmo:
— Não vai falar que eu tenho que dar uma chance para o Gael?
— Faço uma careta e espero que Tayane faça o mesmo, mas para a
minha surpresa, ela nega com a cabeça e dá uma risadinha triste.
— Não, você me convenceu.
— Convenci do que? — indago sem entender o que ela quer
dizer.
— Que você não precisa do Gael para ser feliz.
Meu coração dá um solavanco.
— Como eu te convenci? — Minha voz é praticamente um
murmuro.
— Com o seu orgulho.
Levo a mão ao peito.
— Tay... — Ela ergue o braço, me interrompendo.
— Logo, logo, o Gael também vai perceber que você não quer
nada com ele e tudo vai voltar ao normal.
— Como assim? — pergunto, não gostando nenhum pouco da sua
insinuação.
O sorriso dela se alarga.
— Normal, florzinha. O Gael vai encontrar uma mulher que
queira se casar, ter filhos, e toda aquela porcaria conservadora que ele
sonha. E você vai encontrar um homem lindo, trabalhador, gostoso,
cheiroso, pauzudo como ele, mas que não seja um mentiroso, safado e
traidor como ele. E todos viverão felizes para sempre. — Ela manda um
beijo para mim. — Me espera! Não vai embora sem falar comigo, hein?
Depois que a Tayane sai, eu me jogo na cama e cubro os olhos
com o braço, pensando em tudo que ela falou. Aliás, pensar é tudo que
tenho feito no último mês, desde que descobri toda a verdade que Gael
escondeu de mim.
Minha tia não entende, ou talvez entenda e finge que não entende.
Mas eu preciso dar um tempo de tudo, sozinha.
Para um alcóolatra em tratamento, nada de bebidas à vista ou ao
alcance das mãos. Para um dependente químico, nada que o induza a
sair em busca da última dose. Para um hipocondríaco, até passiflora
pode se tornar uma brecha para o descontrole.
No meu caso, minha fraqueza tem 1,90m de altura, cabelos
pretos, olhos azul-escuros, ombros largos — resultado de anos
praticando natação —, peito forte, barriga definida, sorriso gentil e um
pau que me preenche de um jeito que até meu coração se sente possuído.
Há um mês, Gael está tentando me convencer a lhe dar uma
chance, e a cada tentativa, eu me vejo mais tentada a ceder. Ele passa
aqui para me dar bom dia, todos os dias, antes de ir trabalhar. Me manda
mensagens na hora do almoço, quando chega da empresa, e sempre volta
para me desejar boa noite. Sem contar as flores e os e-mails.
Um mais lindo que o outro.
Estou me sentindo uma ilha, cercada de Gael por todos os lados.
O problema é que existe um abismo entre nós, que ele abriu
quando escolheu mentir para mim. Agora, não consigo atravessar para o
lado dele e não tenho coragem de permitir que ele atravesse para o meu.
Tayane tem razão, os últimos trinta dias foram os piores da minha
vida e sinto que estou no meu limite, muito perto de perder a cabeça,
mesmo evitando o Gael de todas as maneiras que posso.
Sinto falta dele, de falar com ele, estar com ele, ouvir a voz dele,
olhar para ele, dormir com ele, transar com ele. É como se estivesse
faltando um pedaço do meu coração — fundamental — para que eu me
sinta completa outra vez. E a simples ideia de imaginar o Gael com outra
mulher, me deixa doente.
No entanto, sempre que admito para mim mesma que eu também
me apaixonei por ele e quero lhe dar uma nova chance, meu orgulho
chega com a chave do passado e libera a porteira das recordações, me
lembrando porque eu não posso e não devo permitir que o Gael volte
para a minha vida.
Estou cansada, enfraquecida e mais triste do que jamais estive, e
esse é outro ponto favorável ao orgulho, pois evidencia o poder que
aquele homem exerce sobre mim. Ele é o único capaz de me levar aos
extremos, tanto da felicidade quanto da tristeza, e a pergunta que fica é:
Até que ponto vale a pena ser imensamente feliz, se a tristeza vai
ter a mesma proporção, quando ele mentir outra vez?
Não. Eu preciso de uma pausa para pensar, colocar minha cabeça
em ordem, realinhar meus sentimentos. Sozinha. Longe de tudo. De
todos.
Longe dele.
Pois é, minha tia tem razão, eu estou mesmo fugindo do Gael.
GAEL
— Viajou? — pergunto olhando por cima do ombro da Tayane.
— Ficou surdo, por acaso? — Ela revira os olhos, igual a Fernanda.
Acho que é mal de família.
— Para onde ela foi? — Dou mais uma checada dentro do
apartamento, apenas para me certificar de que não é mais uma das artimanhas
da Fernanda para não falar comigo.
— Quer entrar? — Tayane desloca o corpo para o lado e eu entro sem
titubear. — Não sei, Gael. A Nanda não disse para onde ia, só que precisava
se afastar de tudo.
— De tudo, ela quis dizer de mim, certo?
— Eu não queria magoar seus sentimentos, mas já que chegou a essa
conclusão sozinho, sim. Se afastar de você.
Nós nos sentamos no sofá, um ao lado do outro, cabisbaixos. Estar no
apartamento 501 sem a proprietária dele por perto é uma merda.
— Não sei mais o que fazer — admito, derrotado.
— Você fez tudo que podia, Gael. A Nanda é que é muito orgulhosa.
— Ela nunca mais vai confiar em mim.
— Já está pensando em desistir? — Tayane pergunta, surpresa.
— Não. De jeito nenhum — respondo com sinceridade. — Eu amo a
Fernanda e não vou desistir se ela não disser na minha cara que não sente
nada por mim.
— Isso é bom.
— É?
— Claro. — Revira os olhos novamente. — Minha sobrinha é especial
e merece um homem especial como ela. Não um Zé Mané que abre a bico na
primeira dificuldade.
— Eu vim para essa guerra preparado. Sabia que ia ser difícil.
— Posso fazer uma pergunta?
— Claro.
— Não precisa responder se não quiser.
Assinto e a encaro.
Tayane é uma mulher extrovertida e fala tudo que vem à cabeça, sem
pensar. Essa é a primeira vez que ela parece um tanto... encabulada.
— Se você voltasse no tempo até o dia que descobriu que a vaca da
sua ex-noiva estava te traindo, e pudesse fazer tudo de novo. O que você faria
diferente?
Por acaso, ou não, eu tinha pensado nisso quando meu avô foi
selecionado para fazer parte de um grupo de pacientes com câncer no estágio
quatro, e passou a receber uma dose diária de uma droga importada da
França, ainda em fase experimental, que tem como finalidade impedir o
avanço da doença e não a sua cura.
Receber essa notícia, dois dias depois da cerimônia de nomeação, foi o
impulso que eu precisava para lutar com todas as minhas armas para
reconquistar a confiança da Fernanda, porque naquele momento entendi o
propósito de tudo que havia acontecido na minha vida.
— Nada — falo honestamente.
— Por quê? — ela indaga com o esboço de um sorriso em seus lábios.
— Porque eu não teria conhecido a Fernanda como conheci, não teria
me apaixonado por ela como me apaixonei e não teria que lutar por ela, como
estou tendo que lutar, se mudasse alguma coisa. — Tayane sorri amplamente.
— Quando decidi que ia usar a filha do Marcos Lombardi para me vingar da
Penélope, jamais imaginei que aquela garota ia se tornar tão importante para
mim. Mas hoje, depois de um mês longe dela, eu entendo que o amor que eu
sinto pelos meus avós foi o que me levou para a vida Fernanda. — Dou de
ombros. — Ou o que trouxe a Fernanda para a minha, tanto faz.
— A Nanda também é apaixonada por você, Gael.
— Eu sei que é.
— Ela te falou? — Tayane arregala os olhos e abre a boca, me
fazendo rir.
— Não.
— Como você sabe?
— Porque algumas coisas não precisam ser ditas para serem sentidas.
Ficamos em silêncio por alguns minutos até a tia da Fernanda falar:
— Seu amigo idiota conseguiu descobrir mais alguma coisa?
— O Claudio? — Não me esforço para esconder minha diversão.
— Duvido que você tenha dois amigos com aquele nível de idiotice.
— Até tenho, mas nenhum é tão idiota como ele.
— Fico feliz por você.
Rio ainda mais.
A princípio, pensei que minha ex-noiva estivesse agindo sozinha em
sua missão de ferrar as coisas entre Fernanda e eu, mas quando Tayane me
contou como ela tinha descoberto sobre a Penélope, minha investigação
particular tomou um rumo completamente diferente.
Eu estava arrasado, desesperado, triste e mais parecia um herdeiro
zumbi do que um homem. Não que eu ainda não pareça, mas já faço a barba,
mando meus ternos para a lavanderia e me porto como um CEO deve ser
portar, ao menos dentro da empresa.
Claudio e Leona se prontificaram a me ajudar quando souberam da
minha desconfiança, e Tayane exigiu ser incluída na averiguação sigilosa que
estávamos fazendo na vida dos três pilantras.
Enquanto o advogado cuidava da Penélope, Tayane investigava a
Ângela, e a Leona ficou encarregada de se aproximar do ex-namorado da
Fernanda. Graças as informações que eles conseguiram, as peças começaram
a se encaixar, no entanto, ainda faltavam algumas para que o quebra-cabeça
estivesse completo.
— O que ele conseguiu? — Tayane volta a perguntar.
— Foi a Penélope que ligou para a Fernanda se passando por
enfermeira e disse que o Danilo tinha saído do coma. Ela estava no Hospital
15 de Maio esperando a Fernanda e ia contar que era minha noiva naquele
dia. Mas o plano deu errado porque a Nanda mudou de ideia.
— Por favor, não me diz que a Penélope caiu no golpe do Claudio de
novo e percebeu que ele estava gravando a conversa?
Apoio os cotovelos nas coxas e assinto.
— Pela terceira vez, ela caiu.
— Será que essa burra nunca vai aprender?
— Espero que não.
— O que está faltando para você dar o golpe final, Gael?
Passo a mão pelo cabelo, nervoso.
— Ter uma conversa de homem para homem com Marcos Lombardi,
e esperar a Fernanda voltar.
Tayane gargalha, mas eu não acho a menor graça.
— Preciso dizer que não vai ser fácil dobrar meu irmão?
— Eu faço qualquer sacrifício para ter a Fernanda de volta.
Tay fica me encarando, em dúvida.
De repente ela se levanta e estende a mão para mim. Eu a seguro e me
levanto também. Tayane me arrasta pelo corredor, para na frente do quarto da
Fernanda e fala:
— Se quiser, pode ficar aqui. Mas se contar para ela que eu deixei
você dormir no quarto dela, eu corto suas bolas. — Tayane beija meu rosto.
— Boa noite, Gael.
Com o coração acelerado e a palma da mão suada, giro a maçaneta e
entro no lugar que desperta a maior parte das minhas melhores lembranças,
todas ao lado da mulher que levou uma parte de mim quando foi embora
daquela cobertura.
Fernanda não está, mas tudo me remete a ela, principalmente seu
cheiro impregnado nos lençóis. Pela primeira vez, depois de um mês
patinando no inferno, consigo dormir por algumas horas e acordo revigorado.
Pronto para fazer uma visita ao meu futuro sogro.
E que Deus me ajude...
CAPÍTULO 43
GAEL
— Amanhã começamos a contagem regressiva para o lançamento
da nova linha de produtos em nossas redes sociais e nos dez outdoors
espalhados pela cidade. — Leona passa os últimos tópicos da reunião
para todos os diretores, a última do dia. — O slogan “Fíor, para
mulheres reais”, teve um índice excelente de aceitação dos nossos
clientes e vamos explorar esse número para captação de novos, mas o
principal objetivo é a fidelização de todos eles. — Ela oferece um
sorriso orgulhoso e retira a capa que cobre o quadro lilás preso ao tripé.
— Apresento a vocês, Beleza ao seu alcance, o cartão de fidelidade da
Gallenger Cosméticos. Com ele, nossos clientes vão acumular pontos a
cada compra e poderão trocar os pontos acumulados por produtos de
acordo com a pontuação.
A novidade agrada a todos, sobretudo os diretores mais antigos,
que estavam reticentes com a gestão do novo CEO. Felizmente, essa é
apenas uma das ideias que pretendo pôr em prática no próximo ano.
Leona segue falando, explicando e respondendo a perguntas
pertinentes ao cronograma de divulgação do lançamento por mais
quarenta minutos. Agradeço os elogios, enalteço o trabalho em equipe,
sincronizado com eficiência entre os departamentos envolvidos, e
encerro a reunião.
Eu me despeço de todos e volto para a minha sala. Ainda tenho
alguns relatórios para analisar antes de encerrar o expediente, quer dizer,
o meu expediente, pois passa das seis da tarde e a maioria dos
funcionários já foi embora.
— Está muito ocupado? — Claudio pergunta, entrando sem bater
na porta.
Algumas manias nunca mudam.
— Terminando o último relatório financeiro, por quê?
— Pode me acompanhar até a Informática?
Recosto na cadeira, desconfiado.
— Algum problema?
— Você é o cara dos problemas, meu amigo. Eu trago as
soluções. — Ele sorri com presunção.
Levanto-me rapidamente e o sigo para fora.
— Conseguiu alguma coisa?
— Na verdade, a Leona já tinha conseguido, nós é que não
sabíamos o que fazer com a informação.
Esfrego o rosto quando entramos no elevador.
— Quem está trabalhando? — inquiro e recebo um olhar
enviesado do advogado.
— Ninguém, só o Humberto. Ele é o único que sabe, por isso
ainda está aqui — responde e sei que está zangado, porém não posso
evitar.
Solto um suspiro, exausto pra cacete.
— Desculpa, mas não gosto de trazer meus assuntos pessoais para
a empresa.
— Não deveria se preocupar quando seus assuntos pessoais
interferem diretamente nos assuntos da empresa. E você tem autonomia
para usar os serviços dos seus funcionários sem ser obrigado a dar
satisfação para ninguém. Sabe disso, não sabe?
As portas se abrem e caminhamos até o cubículo do Humberto, o
técnico de informática que está nos ajudando a descobrir como o Arthur
conseguiu as fotos do Instagram desativado da Penélope.
— Meus assuntos pessoais não interferem nos assuntos da
empresa — rebato, ignorando a segunda observação.
— Sua secretária, Leona e eu descordamos.
— O que a Ruth tem a ver com isso?
Claudio solta uma longa respiração, para de andar no meio do
corredor e cruza os braços, me obrigando a parar ao lado dele.
— Aquela mulher merece um bônus de Natal, meu amigo.
Duvido que qualquer outra secretária faria o que ela fez por você, nas
duas primeiras semanas depois que a Fernanda te deu um pé na bunda.
— Não me lembro de ter ficado tão mal assim — me defendo,
mas é em vão, pois todos viram o meu estado deplorável.
— Claro que não, você estava muito bêbado para se lembrar. Mas
eu não estava e acredite, minha mente já fez de tudo para esquecer
aquelas imagens bizarras. — Claudio não alivia. — Agradeça a Leona
também, se ela não fosse boa no que faz e não tivesse usado a doença do
seu avô como desculpa para a sua “tristeza”, você teria sido jantado pela
imprensa — enfatiza a palavra com sarcasmo.
— Eu estava muito triste.
— Todos nós sabemos, aliás, nós vimos.
— Mas agora já estou bem.
Claudio apoia a mão no meu ombro e lança outro sorriso irônico.
— Não, meu amigo. Você continua na merda. Só aprendeu a
disfarçar melhor.
— Obrigado por — forço uma tosse —, por tudo.
— Você já me agradeceu, Gael.
— Não, é sério. Se não fosse você aquela noite no auditório, a
Fernanda teria ido embora sem falar comigo.
— Ela só precisava de um pretexto para ficar, porque é muito
teimosa para admitir que queria esclarecer as coisas com você. Agora
chega desse assunto e vamos ao que interessa.
Volto a caminhar à frente dele; irritado por saber que é tudo
verdade, aliviado por saber que o pior já passou, e agradecido por ter
amigos leais em um ambiente extremamente competitivo. Qualquer um
deles poderia ter se aproveitado dos meus incontáveis momentos de
fraqueza para jogar a diretoria contra mim, mas em vez disso eles
ficaram do meu lado, me apoiaram e ainda se dispuseram a me ajudar a
reconquistar a Fernanda.
Talvez o bônus de Natal não seja uma má ideia.
Claudio abre a porta do cubículo e entra, sem bater, claro.
Humberto está sentado à frente de dois computadores com Leona ao seu
lado.
— Boa noite, Humberto, obrigado por ficar até mais tarde —
cumprimento o jovem de apenas vinte e três anos.
— Boa noite, Gael. — Ele aponta para a tela. — Ah, eu
costumava fazer isso antes de vir trabalhar aqui.
— Você investigava a vida das pessoas? — indago, curioso e um
tanto espantado.
O garoto solta uma risada.
— Stalkear [4] é mais apropriado.
— Explica para o Gael o que você descobriu — Claudio pede.
— Claro. — Humberto gira a cadeira e fica de frente para mim.
— Como você sabe, a Leona esbarrou no Arthur, de propósito, no
restaurante que ele costuma almoçar e derramou bebida na roupa dele.
Ela fingiu que estava interessada, ele acreditou e como não é burro,
convidou a gostosa para sair. — Leona dá um peteleco na cabeça do
garoto, que esfrega a palma da mão no local com exagero e faz uma
careta de dor
Claudio e eu damos risada da interação dos dois. Após o
momento descontraído, Humberto retoma a explicação:
— No primeiro encontro que a Leona teve com o Arthur, ele não
entrou em detalhes sobre a família, mas mencionou que tinha um irmão
mais novo. No segundo encontro, ele se sentiu mais à vontade e contou
que o irmão trabalhava em casa, por conta própria — ele fala com a
alegria genuína de quem ama o que faz.
Por um momento, lembranças da Fernanda sentada no chão do
antiquário, rodeada por um monte de bugigangas antigas vêm à minha
mente e a dor da saudade ameaça me tomar novamente. Chega a ser
assustador como uma simples palavra, um gesto casual ou um fato
aleatório me faz lembrar dela, como se o mundo confabulasse para que
eu não a esquecesse nem por um minuto.
A voz do Humberto dispersa os pensamentos e eu o agradeço
mentalmente pelo favor.
— Arthur Delgado é um assessor de imprensa conhecido e tem
vários clientes famosos. Ele é cuidadoso com a reputação, raramente é
visto com mulheres em eventos e evita falar sobre a vida pessoal.
— Devo me preocupar com a forma que você descobriu tudo
isso?
— Não, eu sei apagar meus rastros.
Claudio e Leona dão risada. Eu mal posso me mover, de tão
tenso.
— Tudo bem, continue. — O apresso.
— Para um hacker, invadir uma conta do Instagram não é difícil,
mas para uma pessoa comum, além da dificuldade para acessar os dados
de alguém, ainda temos que supor os riscos que ela está correndo se for
descoberta. A Ângela disse que o Arthur enviou as fotos para o celular
dela. Partindo desse ponto, quem deveria ter invadindo a conta da
Penélope, era o próprio Arthur, mas não encontrei nada no histórico de
busca dele. — Humberto gira a cadeira novamente e aponta para a tela
da direita. — Esses são os registros do notebook do Arthur. — Ele
aponta para a tela da esquerda. — E essas são as mensagens que ele
trocou com o irmão, entre o sábado e a segunda-feira, dia da cerimônia
da sua nomeação.
— Duzentas e oito? — pergunto, alarmado.
— Sim, um número excepcional até para dois funcionários de
uma empresa em três dias úteis. — Humberto olha para mim por sobre o
ombro. — Isaac Delgado é o nosso hacker, e tenho certeza que foi ele
que descobriu sobre o evento.
— Mas como o irmão do Arthur ia descobrir? Decidimos tudo em
cima da hora e poucas pessoas foram convidadas.
Humberto digita alguma coisa e de repente a resposta para a
minha pergunta estampa a tela.
— O convite — balbucio, embasbacado.
— O Isaac hackeou[5] o servidor da empresa e teve acesso ao
convite digital que enviamos para os convidados junto com o QR-
CODE.
— Isso explica a entrada da Penélope — concluo.
— O único problema é que você não pode usar essas informações
para fazer uma acusação, Gael — Claudio avisa. — O que o Humberto
fez é tão ilegal quanto o que o Isaac fez.
Meus lábios esticam em um sorriso satisfeito.
— Eu não posso, mas conheço uma pessoa que pode.
— Quem?
— O homem com quem eu vou me encontrar daqui a pouco.
Os três se entreolham, mas não dizem nada.
— Você vai contar para a Fernanda? — Leona indaga.
— Vou.
— Quando?
— Quando ela voltar de viagem.
— A Fernanda viajou? — É Claudio quem pergunta.
Enfio as mãos nos bolsos e faço que sim com a cabeça.
— Para onde ela foi?
— Não sei. Ela não disse para onde ia.
Humberto me encara com a testa franzida.
— Se você quiser, posso tentar descobrir se ela usou algum site de
viagem.
Claudio abre um sorriso ao estilo Einstein, como quem diz:
Viu? Aqui está a solução para todos os seus problemas.
— Não, obrigado. A Fernanda precisa de um tempo e por mais
que eu me preocupe com a sua segurança, não vou... stalkear a vida
dela.
— Você não vai estalkear a vida de ninguém. O Humberto vai
stalkear a Fernanda. — Claudio fala com o seu sarcasmo habitual.
— Ninguém vai stalkear a Fernanda, nem a vida dela — retruco
mal-humorado. — Na hora certa, ela vai voltar para mim.
◆◆◆
Cada pergunta que meu pai faz, Gael responde como um homem
que está desabafando com um velho amigo, enquanto tomam cerveja
sentados à mesa de um bar.
Ele não enrola, não gagueja e não se contradiz em momento
algum.
Dona Flora está ao meu lado, segurando minha mão. O senhor
Dwayne está sentado em uma cadeira confortável, posicionada perto da
imensa tela de plasma.
Todos os convidados para a reinauguração do antiquário estão
como eu, estupefatos com o que está acontecendo bem diante dos nossos
olhos. A cada resposta do Gael, uma lacuna da nossa história é
preenchida de forma honesta e crua.
Ele não faz rodeios, não se exime da culpa e afirma diversas vezes
que jamais mentiu ou emitiu sobre o que sente por mim.
Quando Gael relata como Arthur, Isaac, Penélope e Ângela,
armaram para que eu descobrisse a verdade no dia da cerimônia da sua
nomeação, o silêncio é substituído por exclamações sussurradas que
evidenciam indignação e certa revolta.
Fico chocada quando Gael revela que minha tia, minha mãe e até
meu pai, colaboraram para que todos os pontos fossem esclarecidos, mas
me choca ainda mais ao revelar que a ideia da entrevista transmitida ao
vivo, para todo o país, surgiu depois de uma conversa com seus avós.
Ao mencionar nossa conversa na cobertura do edifício São
Francisco, ele resume sem dar muitos detalhes, mas não deixa de
enfatizar o quanto se culpa por ter me magoado e me decepcionado
tanto.
— Gael, vou fazer a pergunta que venho me fazendo desde que
concordei com essa loucura — meu pai fala com o esboço de um sorriso
em seus lábios. — Tudo isso começou, porque você queria proteger seus
avós. Hoje, quase seis meses depois, você está aqui, expondo sua vida
para um país inteiro e fazendo exatamente o que você fez de tudo para
evitar, inclusive usar a Fernanda. Por quê?
Gael passa a mão pelo cabelo e responde olhando diretamente
para o homem que fez a pergunta:
— Há seis meses, acreditei que podia manipular os
acontecimentos a minha volta e controlar tudo que eu sentia, mas
aprendi a duras penas que nada nem ninguém tem o poder de comandar
o destino. Hoje, depois de tudo que aconteceu na minha vida nos
últimos, cento e oitenta dias, posso afirmar que aprendi com os meus
erros, cresci como homem e profissional, amadureci e estou preparado
para arcar com as consequências de cada um deles. Eu tentei proteger
meus avós de um escândalo, mas descobri que eles precisam do meu
amor, do meu apoio, da minha amizade e do meu respeito, não da minha
proteção. Nada para os meus avós é mais importante do que a minha
felicidade e estou aqui, tentando pela última vez, uma chance de ser feliz
com a Fernanda.
Meu pai encara Gael com orgulho e diz:
— Antes de fazer a última pergunta para encerrar o programa,
quero deixar registrado que o Arthur Delgado não é mais meu assessor
de imprensa e foi dispensado de todas as funções que exercia dentro
desta emissora. — Ele recosta na cadeira, cruza os braços à frente do
peito e arqueia as sobrancelhas. — Quais são as suas intenções com a
minha filha?
Ouço os risos abafados, mas Gael não sorri. Nem eu.
Meus olhos ardem e as primeiras lágrimas deslizam pelo meu
rosto quando ele desvia seu olhar para a câmera pela primeira vez, desde
o início da entrevista, e responde:
— Quero conhecer a mulher que está escondida por baixo das
camadas superficiais que ela usa para se proteger. Quero namorar a
Fernanda, passear de mãos dadas no shopping e descobrir tudo sobre ela.
Quero começar do começo, sem pular nenhuma fase. No pouco tempo
que passamos juntos, eu me apaixonei por ela, mas quero transformar
essa paixão em amor, porque eu sei que a Fernanda nasceu para ser
minha, e só preciso de uma chance para provar que eu nasci para ser
dela.
A tela escurece de repente e por um longo tempo não consigo me
mexer, pois estou mortificada, paralisada, e em dúvida se tudo foi real
ou não passou de uma ilusão.
Não preciso olhar para saber que Gael está atrás de mim. Parece
impossível, já que ele estava conversando com meu pai agora pouco,
mas posso sentir sua presença mais forte do que nunca.
Meu coração acelera, as mãos tremulam, mais lágrimas banham
meu rosto. Abaixo a cabeça, alheia a tudo e todos ao nosso redor,
determinada a absorver, única e exclusivamente, o calor do seu corpo
tão perto do meu. Fecho os olhos, absorta no emaranhado de emoções e
sensações que me enchem e transbordam. Até que ele segura meu
queixo e me obriga a encará-lo. Ofego, medrosa e apavorada.
Gael me olha e me olha, vasculhando meu rosto à procura de
algo. Não sei se encontra o que procura, ou se apenas desiste de
procurar, porém as palavras que deixam a sua boca em seguida, me
abatem e volto a cair, de novo.
Mas agora eu caio... por ele.
GAEL
Respondo a última pergunta, me perguntando se fui convincente o
bastante para a Fernanda acreditar em mim. As telas se apagam e me curvo
para frente, esgotado física e psicologicamente.
Uma mão aperta meu ombro e a voz do Marcos quebra o silêncio
dentro do Motor Homes.
— Essa decisão é da Nanda, mas quero que saiba que estou torcendo
para que a minha filha tenha visto o mesmo homem que eu vi.
— Obrigado... — Forço uma tosse.
— Parabéns, Gael, você se saiu muito bem — elogia o diretor. —
Tivemos o maior índice de audiência do programa nos últimos anos e o
segundo maior da emissora. Perdemos apenas para o jogo da seleção
brasileira, na final da Copa América.
— Imagino que seja uma notícia boa.
Os quatro homens dão risada.
— Quando o programa em questão é um telejornal, pode apostar que a
notícia é maravilhosa. — Ele olha para o Marcos. — Não atingimos esse
número nem no dia do debate entre os candidatos à presidência, nas últimas
eleições. Podemos incluir a ideia de trazer alguns convidados para serem
entrevistados em uma nova edição. Talvez uma vez por semana, o que você
acha?
— Acho ótimo, contanto que a minha filha não esteja incluída na
pauta. — Todos riem novamente, quer dizer, exceto eu.
— Como estão as coisas lá fora? — Marcos pergunta.
Fico em pé, me aproximando do balcão para ver melhor as telas e
entender o motivo da sua indagação. Estava tão concentrado nas perguntas do
pai da Fernanda que nem reparei na multidão aglomerada em frente ao
antiquário.
— Quando essas pessoas chegaram? — Meus olhos vão de uma tela
para a outra. — Os convidados da reinauguração estão conseguindo entrar?
— É impossível conter a preocupação.
Além de expor a Fernanda em rede nacional sem sua permissão e com
a ajuda do seu próprio pai, ainda estrago uma das noites mais importantes da
vida dela. Merda!
— Fica tranquilo, Gael. Nós sabíamos que isso podia acontecer —
Marcos está encostado na mesa com as mãos nos bolsos, tranquilo demais
para o meu gosto.
— Você falou que a entrevista iria chamar a atenção dos moradores da
região para o coquetel de reinauguração do antiquário, e os mais curiosos
poderiam aparecer no local. — Aponto o indicador para a tela. — A rua está
interditada, Marcos! Como os convidados vão conseguir atravessar esse mar
de gente?
Ele e o diretor se entreolham, certamente se divertindo às minhas
custas, mas não estou nem aí. A Fernanda e a minha avó trabalharam duro
nas últimas semanas, para que a reinauguração fosse um sucesso e não vou
me perdoar se o resultado não for o que elas esperam por causa da entrevista.
Por minha culpa, outra vez. Cacete!
Marcos se desencosta da mesa e se posiciona ao meu lado. Sua mão
esquerda no meu ombro e o braço direito erguido no ar, na direção das telas.
— Aqui. — Indica a primeira tela, a que mostra a multidão na porta do
antiquário. — Essa imagem é da câmera instalada no poste de iluminação,
fora da propriedade. — Aqui — fala indicando a última tela, na outra ponta
do balcão. — Essa imagem é a única que interessa para você.
Meus olhos recaem sobre a movimentação dentro da enorme casa
onde acontece o coquetel, e vejo Fernanda parada no centro do salão,
sozinha, de frente para o telão. As pessoas circulam em volta dela segurando
taças e copos de cristal, conversam entre si e apreciam as bugigangas
exibidas nas prateleiras.
Reconheço minha avó, rodeada por um grupo de mulheres da idade
dela, perto da Fernanda. Meu avô fala com dois casais que estão em pé à sua
frente. Ele também está perto da Fernanda, e posso jurar que tanto ele quanto
a minha avó veem a mesma coisa que todos nós estamos vendo.
Ela ainda está sob o efeito da entrevista. Anestesiada.
— Nossa equipe de segurança fez um cordão de cinco metros de
isolamento no portão da casa — avisa o diretor. — Decoramos o interior do
Motor Homes com a mesma decoração dos programas da editora, para
ninguém desconfiar que a entrevista seria gravada na rua detrás do antiquário.
— Escuto tudo que ele fala, mas meus olhos não desgrudam da tela, tão
paralisados quando a garota no meio do salão. — É de praxe a emissora
tomar medidas preventivas de segurança sempre que gravamos fora do
estúdio, independente da premissa de relevância da reportagem. Não se
preocupe, Gael, todos que receberam convite e compareceram, entraram sem
nenhum problema. Mas sugiro que contrate uma equipe de segurança
particular. Depois de hoje, o nome Caminhos do Passado vai estar em todos
os lugares.
— A Fernanda deve estar me odiando — murmuro para mim mesmo.
— Cinquenta metros separam você da resposta que vai definir o rumo
da sua vida, Gael. Por que não vai até lá e pergunta para ela?
Quando imaginei essa noite na minha cabeça, assim que acabasse a
entrevista, meu telefone ia tocar e o nome da Fernanda ia aparecer no display.
Ela gritaria, SIM, antes mesmo de eu dizer, alô.
Se eu não estivesse vendo o que estou — o jeito que ela está —, com
certeza acreditaria que a Fernanda continuava decidida a não me dar outra
chance. Mas estou vendo, com meus próprios olhos e em tempo real.
Quantos minutos se passaram desde que a entrevista acabou. Dez?
Quinze? Trinta? Não faço ideia, no entanto, ela está lá. Ainda.
Completamente estática, como se estivesse engessada dos pés à cabeça
e não pudesse mover um músculo sequer.
De repente meu coração acelera e meu corpo eletriza, revigorado,
energizado. Penteio o cabelo com os dedos, ajeito o blazer por cima da
camisa branca e falo, já saindo do Motor Homes:
— Obrigado por tudo que fizeram essa noite, mas se não for pedir
muito, torçam por mim.
— Eu vou com você — Marcos avisa. — A Lilian está me esperando.
O segurança que vigia a porta dos fundos da casa, cumprimenta o pai
da Fernanda e libera nossa passagem. Atravessamos o jardim, que está
iluminado e seguimos para a entrada principal.
Eu me sinto estranho, pois as pessoas param de fazer o que estão
fazendo quando me veem ao lado do Marcos. Como já está acostumado, ele
sorri e acena como se fosse um amigo íntimo, mas para mim é muito mais
complicado que isso.
Não gosto de ser o centro das atenções, e mesmo com toda a
repercussão da entrevista e a provável exposição na mídia depois do
lançamento da linha Fíor, no próximo mês, não tenho a menor intenção de
me tornar.
Quando piso dentro do antiquário, imediatamente meu corpo reage ao
lugar e a tudo que ele representa para mim. A visão da Fernanda, de costas,
mais linda do que nunca em um vestido azul-marinho brilhante, sem alças,
me desnorteia. O tecido é diferente, parece mole, leve, e se ajusta com
perfeição as curvas do seu corpo.
Nos pés, sandálias de tiras e saltos altíssimos, da mesma cor do
vestido que por coincidência, ou não, é da cor do meu blazer e da minha
calça. O cabelo desce por suas costas, solto, ondulado, natural.
Fernanda me atrai como um magneto e agora entendo como ela se
sente. Cercada por tantas pessoas e, ainda assim, sozinha.
Tudo que vejo é a garota no centro do salão, onde fizemos amor e
descobri que estava completamente apaixonado por ela. Me aproximo,
desesperado para afastar os fios castanhos para o lado, abraçar sua cintura e
beijar seu pescoço.
Os ombros da Fernanda enrijecem. Será que ela sentiu?
Será que ela me sentiu?
Três passos e estou à frente dela, mas ela abaixa a cabeça para não me
encarar. O medo renasce das cinzas, embrulha o estômago e sufoca.
Espero, ignorando os cochichos, os murmúrios, a porra do mundo.
Meu foco é ela, dela e para ela. Seguro seu queixo e levanto sua cabeça.
Quero olhar em seus olhos. Preciso que Fernanda olhe nos meus.
E responda.
Seu rosto é uma bagunça de lágrimas, tons de vermelho por conta do
choro e maquiagem borrada. Linda! Procuro a raiva em seu olhar, a decepção
ou a mágoa, mas tudo que vejo é uma bagunça ainda maior.
Chegou a hora, não posso mais esperar. Necessito da sua resposta para
voltar a viver decentemente, por bem ou por mal. Nossos olhos não se
afastam.
Deus, como eu quero beijar essa garota.
Puxo todo ar que consigo, encho meu peito de coragem e falo:
— Você viu a entrevista e sabe porque estou aqui — Fernanda ofega.
— É a última vez que eu vou perguntar e prometo que se a resposta for não,
vou sair da sua vida, para sempre — ela ofega mais alto.
Novas lágrimas escorrem por seu rosto, meu coração se encolhe.
— Eu quero uma chance de provar que não menti quando disse que
estava apaixonado por você. Uma chance de começar de novo. Uma chance
de ser o verdadeiro Gael e te fazer feliz. Você vai me dar essa chance,
Fernanda?
Ela não responde.
Meu braço cai ao lado do corpo, tão desolado como me sinto, quando
a realidade vem com tudo para cima de mim e me golpeia, brutal e
violentamente. Enfio as mãos nos bolsos, desvio dela, pronto para fazer meu
caminho e sair dali o mais depressa possível, mas minhas pernas bambas se
recusam a acelerar para longe dela.
Um passo, conto mentalmente, dois, três...
— Sim — o sussurro trêmulo é como uma brisa suave às minhas
costas. Paro de andar. Não ouso me mover.
Fecho os olhos, relutante a acreditar que não estou louco, tampouco
surdo ou ouvindo coisas.
— Sim, Gael. Minha resposta é sim. — Giro o corpo. Meu coração
dispara quando a vejo sorrindo e chorando e fungando.
Exatamente como Fernanda fez no dia que perguntei se queria ser
sócia da minha avó no antiquário, ela se joga em meus braços com força, sem
se preocupar com a plateia que nos assiste, sem se importar com as palmas,
os assobios e os gritos de comemoração. Enquanto eu faço o que desejo fazer
desde o nosso encontro na cobertura do prédio, a quase dois meses atrás.
E devoro a boca da historiadora de olhos caramelos que usei para me
vingar, mas invadiu a minha vida sem pedir licença e virou tudo de pernas
para o ar.
A garota linda, inteligente e orgulhosa, por quem eu me apaixonei.
Perdidamente.
Completamente.
Irrevogavelmente.
DOIS ANOS DEPOIS...
GAEL
Fíor, para mulheres reais.
O Slogan da nova linha de produtos de beleza da Gallenger
Cosméticos está em todos os sites, revistas, jornais e blogs. Sem contar
os outdoors espalhados por toda a cidade.
Fecho o notebook, o coloco em cima da mesa de cabeceira e volto
a me deitar na cama quando Fernanda desliga o chuveiro.
Ela já não gostava de redes sociais quando nos conhecemos, mas
depois de tudo que aconteceu, desde o acidente do Danilo, a palavra
ódio ainda é singela para descrever seu sentimento atual.
Mais do que nunca, meu trabalho está cem por cento vinculado a
essa ferramenta poderosa de divulgação, e essa única palavra —
aparentemente inofensiva —, usada facilmente para descrever a
interação online compartilhada por bilhões de pessoas, é a responsável
por manter Fernanda isolada do mundo digital.
Poderosa.
Infelizmente, a internet não tem o poder apenas de ajudar
qualquer usuário, seja ele autônomo, empresário ou investidor, a
divulgar seu trabalho para captar novos clientes e aumentar sua renda.
Nem de possibilitar a comunicação entre amigos e familiares que moram
em outras cidades, outros estados e até outros países, tampouco de
fornecer informações preciosas ou de facilitar o aprendizado à distância
com seu arsenal de tutoriais, cursos profissionalizantes e graduações.
Sim, a internet pode ajudar de muitas formas.
Mas ela também tem o poder de destruir a vida e a carreira desse
usuário com a mesma eficiência, em questão de minutos. A diferença é
que somente quem já foi perseguido, acusado e julgado, de forma
perversa, invasiva e injusta, consegue enxergar a internet como, de fato,
ela é — uma ferramenta colaboradora —, e se dispõe a usá-la com
responsabilidade, sabedoria e, sobretudo, respeito ao próximo.
Para evitar conflitos e discussões desnecessárias, Fernanda e eu
fizemos um acordo. Nenhum de nós traz trabalho para casa, simples.
Quando estamos juntos, à noite ou de manhã cedo, e durante os
fins de semana, ligações telefônicas, e-mails e mensagens de whatssap,
só recebem nosso retorno se forem de extrema importância e máxima
urgência, caso contrário, nada feito.
Estarei mentindo se disser que é fácil, pois não é, mas a Fernanda
não sofreu sozinha quando foi massacrada pela imprensa. Todas as
pessoas que a amam também sofreram, inclusive eu. E hoje, dois anos
depois da entrevista que mudou a nossa vida, sei melhor do que ninguém
o quanto a privacidade é importante para ela.
Por isso, utilizo todos os benefícios da internet para alavancar as
vendas da Gallenger Cosméticos; divulgar nossos produtos; fazer
pesquisas de preferência e controle de qualidade; e manter um canal
aberto de comunicação com os clientes, vinte e quatro horas por dia, sete
dias por semana; além de otimizar tempo e reduzir gastos com anúncios
em rádio e na televisão.
Mas quando estou com a Fernanda, valorizo cada minuto que
passamos juntos e confesso que, apesar de amar meu trabalho, reluto
para sair de casa pela manhã, e conto os minutos para voltar para ela, no
fim da tarde.
— Não vai se arrumar? — Fernanda pergunta com a testa
franzida.
— Ansiosa para me ver de calça jeans?
Ela acabou de sair do banho, uma toalha branca felpuda é tudo
que cobre seu corpo e o cabelo úmido está preso em um coque no alto da
cabeça.
— Você fica lindo vestindo qualquer coisa, mas eu sempre vou
preferir ver esse corpinho sarado, sem roupa.
— Se tirar minha cueca, seu desejo pode ser realizado. — Jogo o
lençol no chão e cruzo os braços atrás da cabeça, lhe dando ampla visão
do volume escondido por baixo do tecido.
— Vamos chegar atrasados — ela murmura com um olhar guloso
passeando pelo meu corpo esparramado na cama.
— Só se você não me obedecer. — Acaricio meu pau por cima da
cueca. — Tira essa toalha e vem aqui. — Minha voz é rouca, porém
autoritária, do jeito que eu sei que ela gosta.
Fernanda acata a ordem sem contestar. A toalha cai aos seus pés e
a visão do seu corpo nu me faz salivar. Os seis fartos, a cintura fina, as
coxas grossas, a bunda empinada e a boceta mais deliciosa que já comi.
A única que quero comer enquanto eu respirar.
Ela sobe na cama, se acomoda no meio das minhas pernas, de
joelhos, sem desviar os olhos da minha mão, que continua indo e vindo
bem devagar. Fernanda desliza a língua entre os lábios e se remexe.
— Tesão? — pergunto.
— Morrendo.
Abaixo o cós da cueca e libero meu pau que escapa do seu exílio,
grosso e pesado. Fernanda ofega, suas mãos apoiadas nas coxas.
— Seca ou molhadinha?
— Encharcada — murmura, ofegante.
— Quente?
— Fervendo.
Sento-me apenas para agarrar sua cintura e colocar Fernanda
montada em mim, com meu pau encaixado entre os lábios carnudos e
escorregadios. Ela geme alto.
— Santinha ou safada? — Aperto sua bunda com uma mão
enquanto a outra acaricia seu mamilo.
— Gael... — Ela se inclina para frente e segura na cabeceira.
Dou um tapa no seu traseiro.
— Eu fiz uma pergunta — rosno e abocanho um seio.
— Safada.
— O que a minha menina safada gosta de fazer?
— Sexo... — Fernanda responde.
Olho para cima e a encaro com as sobrancelhas arqueadas. Ela
prende o lábio inferior entre os dentes sem esconder sua intenção
sacana. Outro tapa em seu traseiro.
— Errado. Minha menina safada gosta de dar a bocetinha —
mordisco o mamilo —, pra mim. Só pra mim.
Com um movimento rápido, viro Fernanda, inverto nossas
posições e solto seu cabelo. Ela solta um gritinho, abre as pernas e
abraça meu pescoço. Nossos olhares se encontram.
A cabeça do meu pau na entrada da sua boceta melada cobiça o
acolhimento que somente ela é capaz de oferecer.
— O que a minha menina safada quer? — sussurro na sua boca,
empurrando um pouco mais.
Fernanda envolve minha cintura com as pernas.
— Quero que me foda. Me foda com força.
Ela sabe como me enlouquecer.
— Tudo que você quiser!
Beijo sua boca com fome, desejo e paixão, ao mesmo tempo que
meto forte, com fúria e desespero.
Por alguns minutos, minha boca devora a dela no ritmo das
estocadas, mas quando sua boceta apertada espreme meu pau, puxo seu
cabelo para trás, enfio a cabeça no vão do seu pescoço, apoio os joelhos
no colchão e fodo Fernanda como um troglodita irracional, movido pela
necessidade alucinante de gozar e pelo prazer indescritível que sinto
sempre que estou dentro dela.
Fernanda goza chamando meu nome. Eu gozo chamando o seu.
Somos suor, taquicardia, satisfação e pertencimento.
Um homem e uma mulher, que acompanharam de perto todas as
fases que precedem o reconhecimento do amor. A afinidade que
originou o interesse genuíno. A atração física que exigiu extravasar
depois do primeiro beijo, riscou o fósforo, acendeu o pavio e deixou
queimar até a paixão explodir.
E ela explodiu como uma bomba atômica, impiedosa e cruel.
Agora, a transformação é vista a olhos nus, em cada toque, gesto e
palavra de carinho. Na saudade que sentimos quando estamos longe e na
felicidade quando estamos perto. No tesão implacável que nos consome,
no desejo insaciável que nos submete e no prazer extraordinário que
nunca para de crescer.
— Você vai sair correndo se eu disser que te amo? — sussurro em
seu ouvido. Fernanda dá uma risadinha e eu a encaro.
Ela acaricia meu rosto.
— Se você prometer que não vai sair correndo se eu disser que te
amo, vou ficar exatamente onde estou.
Descanso minha testa na sua e fecho os olhos.
— Eu te amo, Fernanda.
— Eu também te amo, Gael.
Minha boca toma a sua em um beijo duro, antes de os nossos
corpos cederem a luxúria, novamente.
Chegamos atrasados à festa, claro.
Hoje é aniversário da Tayane e para todos os efeitos, esse é o
único motivo da comemoração, no entanto, não é.
Nunca escondi da Fernanda o quanto quero me casar e ter filhos
com ela, aliás, nunca escondi de ninguém.
Depois da entrevista, eu a levei para jantar e a pedi em namoro,
oficialmente. Continuamos morando no mesmo lugar, cada um no seu
apartamento, ainda que dormíssemos juntos, acordássemos juntos, e
fizéssemos tudo junto, todos os dias.
O expediente de trabalho era a única coisa que nos separava, fora
isso, onde eu estivesse, Fernanda estava comigo, e vice-versa. Sempre.
No evento de lançamento da linha Fíor, Fernanda foi como minha
convidada, e claro que eu não desperdicei a oportunidade de apresentá-la
como minha namorada, embora todos já soubessem.
Naquela noite, antes de rasgar seu vestido e comer sua boceta em
cima da mesa da cozinha, eu disse que a amava pela primeira vez, e para
o meu espanto e minha felicidade, ela disse que me amava também.
Os negócios na empresa iam bem, meu avô estava se
recuperando, e minha avó e a Fernanda tocavam o antiquário sem
grandes problemas, mas eu queria mais. Eu queria tudo.
Há um ano, contei para a Fernanda que pretendia comprar uma
casa e convidei minha namorada para morar comigo. Ela aceitou sem
titubear e duas semanas depois, nos mudamos para o nosso lugar.
A maioria dos homens casados, reclama da esposa, da rotina do
casamento e vive suspirando com a ideia de que a vida de solteiro é
muito melhor. O que posso dizer?
Os dois exemplos de casamento que tive, colaboraram para que eu
desejasse vivenciar a mesma experiência e encontrar o mesmo tipo de
amor que meus pais compartilharam e meus avós compartilham até hoje.
Se eu não tivesse descoberto a traição da Penélope, certamente
teria me tornado um desses homens frustrados, infelizes e amargos, mas
o destino interviu a tempo e me presenteou com a Fernanda.
Tudo bem que eu errei feio e quase a perdi para sempre, no
entanto, acredito que os nossos caminhos já estavam destinados a se
cruzarem e, de um jeito ou de outro, ela seria minha.
Não preciso de outras mulheres e não quero outras mulheres.
Fernanda tem tudo que eu sempre desejei. Ela me completa, me faz feliz
e é apenas com ela que desejo passar o resto da minha vida.
Essa mulher nasceu para ser minha.
Desde que meu avô foi selecionado para fazer parte de um grupo
de pacientes com câncer no estágio quatro, e passou a receber a
medicação francesa para impedir o avanço da doença, ele teve uma
melhora significativa.
Mas os resultados dos últimos exames não foram muito bons e o
médico que acompanha o tratamento experimental, acredita que em
breve a doença vai voltar a atacar.
Foi então que tomei minha decisão.
EPÍLOGO
O GRANDE DIA
Hoje vou dar outro passo importante na minha vida.
Não somente porque amo a Fernanda como jamais amei, ou vou
amar outra pessoa, mas também pelo meu avô, pois sei o quanto ele
sonha em ver seu único herdeiro se casando.
Somos recebidos na porta por uma Tayane radiante, ela é a única
que sabe que a Fernanda será pedida em casamento esta noite, e pela sua
cara, se eu não agir logo, ela vai acabar dando com a língua nos dentes e
contar para todo mundo antes de mim.
— Florzinha! — Tayane abraça Fernanda e cochicha alguma
coisa no ouvido dela, que não consigo ouvir. — Como vocês estão?
Faço uma careta de desagrado e falo:
— Pode perguntar para mim. Vai ser um prazer dizer que estou
bem e que é muita gentileza sua se preocupar com o meu bem-estar,
obrigado.
Fernanda fica séria e Tayane parece nervosa.
— Vocês sabem que é brincadeira, certo? — Dou um beijo suave
na boca da Fernanda e puxo sua tia para um abraço. — Feliz aniversário.
Marcos e Lilian se aproximam para nos cumprimentar. Meu sogro
espera a esposa arrastar a filha e a cunhada para desfilar entre os
convidados, e me puxa pelo braço até o bar que foi montado no jardim.
— Soube o que aconteceu com o Arthur? — ele pergunta baixo
para que apenas eu escute.
— Não. O que aquele imbecil aprontou agora?
O ex-assessor do Marcos saiu de São Paulo às pressas, no mesmo
dia em que foi dispensado pelo pai da Fernanda. Alguns meses depois,
Arthur reapareceu como assessor de um deputado estadual do Rio de
Janeiro e foi acusado de envolvimento em um esquema de fraude
tributária.
— Ele e o Isaac foram presos quando tentavam fugir do país em
um voo clandestino para o Paraguai, com quinhentos mil reais e mais de
vinte quilos de cocaína.
— Finalmente a polícia conseguiu. Como você ficou sabendo?
— A mãe dele e a Tay são amigas. Ela veio se desculpar por não
poder comparecer na festa e acabou desabafando. A mulher está
arrasada.
— Não deve ser fácil saber que os dois filhos não valem nada.
Marcos abre um sorriso de orelha a orelha e fica me encarando
com cara de bobo.
— Por isso eu só quero saber dos meus netos.
— Calma, sogro. Um passo de cada vez, primeiro eu preciso
convencer sua filha a se casar comigo.
— Um homem pode sonhar, não pode?
Arqueio a sobrancelha, estranhando seu comportamento.
Ele nunca falou sobre netos e agora parece ansioso para ser avô.
O garçom coloca duas cervejas em cima do balcão. Marcos e eu
brindamos e ele muda de assunto.
— O Danilo está produzindo filmes pornôs.
Engasgo com a porcaria da cerveja.
— É alguma piada? — inquiro e limpo a boca.
— Não, mas isso não é o pior.
— Tem coisa pior?
— Muito pior.
Meu sogro toma um gole da bebida e me encara com seriedade.
— Olha, Gael, não tem uma maneira fácil de contar, então eu vou
falar de uma vez e você decide se quer que a Nanda saiba, ou não. —
Ele puxa uma respiração. — A Penélope assinou um contrato com a
produtora do Danilo e vai estrelar os dois primeiros filmes.
Não sei se rio ou se choro, mas no fundo a novidade não faz
qualquer diferença. Minha ex-noiva escolheu seguir o caminho mais
fácil depois que a imprensa descobriu que ela era a amante do diretor de
novelas, e passou a ser vista com diversos homens, alguns famosos,
outros não, mas todos conhecidos por suas contas bancárias milionárias.
— Pelo menos agora ela vai poder dizer que não depende de
ninguém para se sustentar. — Dou de ombros.
— Você vai contar para a Nanda?
— Não tenho motivo para esconder isso dela.
— Será que ela não vai ficar chateada?
— Acho que não. A Fernanda sabe que a Penélope não significa
nada para mim.
— Talvez fosse melhor esperar uns dois ou três meses para
contar.
— Por quê?
Marcos fica pensativo.
— Por nada. Só precaução.
Engatamos uma conversa sobre negócios e pouco tempo depois,
Tayane anuncia que o jantar será servido. Essa é a minha deixa, pois
agora os convidados estão tomando seus acentos e o espaço entre o
jardim e a piscina será liberado para mim.
Mesmo depois de dois anos e estando praticamente casado com a
Fernanda, pedir sua mão em casamento na frente de tantas pessoas me
deixa nervoso. Espero que ela aceite.
Aguardo até que todos estejam acomodados, apalpo o bolso da
calça para me certificar de que o anel ainda está lá e maneio a cabeça
para a aniversariante, indicando que estou pronto.
Fernanda acena para mim, me chamando para sentar ao seu lado.
Aceno de volta indicando a long neck na minha mão, dando a entender
que vou terminar a bebida primeiro.
— Boa noite, meus queridos! — Tayane fala com empolgação e
se não a conhecesse, diria que ela está ligeiramente alcoolizada. —
Obrigada por terem vindo. Estou adorando os presentes. — Todos riem.
— Hoje é um dia triplamente especial e vai entrar para a história das
nossas famílias.
Triplamente? Comprovado, Tay bebeu além da conta.
— Bom, o namorado da minha sobrinha preferida, resolveu me
dar um presente de aniversário especial. Vou pedir para o Gael vir até
aqui, porque o presente é tão maravilhoso, que eu quero que ele mesmo
conte para todos vocês o que é.
Alguns passos depois, abraço Tayane e sussurro em seu ouvido,
antes de assumir o seu lugar, no centro do jardim.
— Obrigado, Tay, por tudo.
— Obrigada por ser o homem que a Nanda merece — ela sussurra
de volta e se afasta com os olhos marejados.
Pigarreio, passo a mão pelo cabelo e fecho os olhos. Quando os
abro novamente, capturo o olhar da Fernanda, exatamente como faço
sempre que estou dentro dela, reivindicando seu corpo, sua alma e seu
coração. Inspiro profundamente e falo:
— Todo homem tem uma história de amor para contar, algumas
tristes, outras nem tanto. Eu tenho a minha e quando o primeiro
parágrafo foi escrito, nunca imaginei que haveriam tantas reviravoltas,
personagens secundários fundamentais para o desfecho, e um quarteto
de vilões de altíssima qualidade. — O silêncio é surreal. Fernanda pisca
os cílios várias vezes, emocionada. — Na minha história, o mocinho
conheceu a mocinha por acaso, por causa do destino. O plano era
perfeito, até não ser mais. Foi o que eu pensei, quando o destino decidiu
ser meu coautor e alterou o rumo que eu tinha planejado para ela. Se a
minha história não tivesse sofrido nenhuma alteração, ela seria chamada
de conto. Começaria com um desejo de vingança do mocinho, que faria
uma armação para conseguir o que queria e fim. Até pouco tempo atrás,
eu não conhecia os gêneros literários. Agora conheço, e posso afirmar
que a minha história é muito mais que um simples romance. Ela
começou com um desejo de vingança do mocinho e ele manipulou uma
garota para conseguir o que queria, daí em diante, teve drama, suspense
e uma boa dose de erotismo. Mas essa não é a melhor parte.
Fernanda está chorando.
Lentamente, vou caminhando até ela, sem parar de falar e sem
desviar meus olhos dos seus.
— A melhor parte, é que o mocinho se apaixonou pela garota
errada, e quando ele descobriu que ela era a certa, a mocinha também
descobriu que ele tinha mentido, e foi embora. O mocinho se arrependeu
e pediu perdão, mas a mocinha estava irredutível. Ele não sabia mais o
que fazer, até que ele teve uma ideia maluca para provar que o seu amor
por ela era verdadeiro. — Estou a poucos passos de onde Fernanda está
sentada. — O mocinho sabia que aquela era a última chance e contou
com a ajuda das pessoas que torciam pelos protagonistas, para que tudo
saísse perfeito. No fim, depois de muita angústia e sofrimento, a
mocinha perdoou o mocinho.
Paro à frente dela, enfio a mão no bolso e retiro o anel. Fernanda
cobre a boca com as mãos e chora ainda mais.
Eu me ajoelho aos seus pés e ergo o pequeno círculo dourado.
— Agora, eles vão escrever o capítulo final dessa história, juntos.
— Seguro sua mão direita e a beijo. — Você sempre me disse que
sonhava com o seu clichê, mas descobri que quem ganhou o clichê, fui
eu. Você é o meu clichê, Fernanda, e eu quero passar o resto da vida
lendo, relendo e reescrevendo cada página da minha história, ao seu
lado. Você aceita ser o meu eterno clichê?
Pela terceira vez, ela não responde, apenas se joga em meus
braços, me deixando sem ar. Fernanda chora copiosamente, além do
normal. Ela segura meu rosto e murmura:
— Eu aceito ser o seu clichê, mas com uma condição.
Gargalho alto, porque essa mulher sabe como me enlouquecer, em
todos os sentidos, e adora uma barganha.
— Tudo que você quiser, amor.
Fernanda beija meus lábios e leva a minha mão, que segura o anel
de ouro, à sua barriga.
— Você vai ter que escrever um epílogo para contar o que
aconteceu com os herdeiros do clichê do CEO.
Desço meu olhar até o ponto do seu corpo onde nossas mãos
descansam, entrelaçadas. Engulo em seco. Meus olhos ardem.
— Você... — gaguejo, incapaz de concluir a pergunta.
— Eu estou grávida, Gael. Nós vamos ter um bebê.
— Um bebê — repito as duas palavras num sussurro inaudível.
Ela está sorrindo, tão linda.
Tão minha.
— Eu te amo, Gael.
— Eu te amo, Fernanda.
Nós nos beijamos, nos abraçamos, rimos, choramos, vibramos e
comemoramos o nosso felizes para sempre.
Porque no meu clichê, o para sempre nunca vai chegar acabar.
FIM
[1] Fíor significa Real em irlandês.
[2] Modelo de Aeronave fabricada pela empresa norte-americana Boeing
[3] Cantina Comer Bem
[4] Sinônimo de bisbilhotar alguém através das redes sociais
[5] Reconfigurou ou reprogramou um sistema sem autorização do proprietário,
administrador ou designer
[6] Raça de cães oriunda dos Estados Unidos