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DIREITO PENAL I – PROF. DR.

CARLOS EDUARDO ADRIANO JAPIASSÚ

INTRODUÇÃO AO DIREITO PENAL E TERIA DA NORMA PENAL

1. Introdução ao Direito Penal

1.1. Conceito e denominação

Direito penal é o conjunto de normas jurídicas mediante as quais o Estado proíbe


determinadas ações ou omissões, sob ameaça da pena. Fazem parte desse ramo do
direito também as normas que estabelecem os princípios gerais e as condições ou
pressupostos de aplicação da pena e das medidas de segurança, que igualmente podem
ser impostas aos autores de fatos definidos como crime.
A sanção característica do direito penal é a pena, que é a principal consequência
jurídica do crime.
A denominação direito penal surge justamente da sanção jurídica desse ramo do
direito. Como o direito penal moderno contempla, ao lado da pena, igualmente, as
medidas de segurança (que se destinam ao tratamento dos semi-imputáveis e
inimputáveis), a denominação usual tem sido considerada inadequada por muitos
autores. A denominação direito criminal é antiga e prevaleceu até o século XIX (o
Código Imperial de 1830 chamava-se Código Criminal), como prevalece ainda nos
Estados que seguem o modelo da common law (Reino Unido e Estados Unidos, entre
outros).
O direito penal é ramo do direito público interno, pois o Estado detém o
monopólio do direito de punir (jus puniendi), mesmo quando a acusação é promovida
pelo ofendido (ação penal privada). O direito de punir estatal é o poder-dever que o
estado tem de aplicar as normas estatais e, no âmbito penal, impor pena como
consequência jurídica decorrente do fato de que o indivíduo violou regra de convívio
social, pois praticou um crime.
Frise-se que a tutela jurídica que o direito penal exerce refere-se sempre a
interesses da coletividade, mesmo quando se trata de bens individuais, tais como a vida,
o patrimônio e a honra.

1.2. Pena

O direito se caracteriza pela previsão de comportamento e de sanção. Ou seja,


o direito pretende regular a vida em sociedade. Para tanto, estabelece comportamentos
permitidos e proibidos. Ao proibir uma conduta, o Estado o faz pela ameaça de uma
sanção, o que ocorre em todos os ramos do direito.
Como ramo do ordenamento jurídico, o direto penal se distingue precisamente
pelo meio de coação e tutela com que atua, que é a pena. Assim, a diferença entre o
direito penal e os demais ramos do direito tem relação direta com a natureza da sanção
prevista. Enquanto a sanção civil tem natureza de reparação, pois o que se pretende com
ela é que se retorne ao status quo anterior ao fato que a originou, a sanção caracteriza-
se pelo castigo. Ou seja, a sanção civil, denominada penalidade, constitui, em regra,
uma reparação. Por sua vez a sanção penal caracteriza pela retribuição, pois a pena não
consiste na execução coativa do preceito jurídico violado, mas na perda de um bem
jurídico imposta ao autor do ilícito, ou seja, num mal infligido ao réu, em virtude de seu
comportamento antijurídico. Daí o seu caráter retributivo.
Assim, pode-se definir pena como sendo a perda de um direito imposta pelo
Estado em razão do cometimento de uma infração penal.

1.3. Função da pena

A justificação da pena liga-se à função do direito penal, que é instrumento da


política social do Estado. O Estado, como tutor e mantenedor da ordem jurídica, serve-
se do direito penal, ou seja, da pena e das medidas de segurança, como meios destinados
à consecução e à preservação do bem comum (controle social).
A doutrina tem procurado explicar o fundamento da pena por meio das
chamadas teorias absolutas, relativas e mistas ou unitárias. Essas teorias gravitam em
torno de duas ideias fundamentais, a retribuição e a prevenção.
Segundo as teorias absolutas, a pena é exigência de justiça. Quem pratica um
mal deve sofrer um mal. A pena se funda na justa retribuição, é um fim em si mesma
e não serve a qualquer outro propósito que não seja o de recompensar o mal com o mal.
Por sua vez, as teorias relativas, partindo de uma concepção utilitária da pena,
justificam-na por seus efeitos preventivos. Significa dizer que a finalidade da pena não
seria punir todos os crimes, mas prevenir todos os crimes. De alguma maneira, o que se
quer dizer é que a sociedade ideal é aquela em que não ocorrem crimes e não aquela em
que todos os crimes são punidos e é isso o que o Estado deve perseguir.
Distingue-se aqui a prevenção geral e a prevenção especial. Prevenção geral é
a intimidação que se supõe alcançar através da ameaça da pena e de sua efetiva
imposição, atemorizando os possíveis infratores. A prevenção especial atua sobre o
autor do crime, para que não volte a delinquir. A prevenção especial opera por meio da
emenda do condenado ou de sua intimidação, ou, ainda, da inocuização dos
incorrigíveis.
Tanto a teoria da prevenção geral como a da prevenção especial deixam sem
explicar os critérios mediante os quais deve o Estado recorrer à pena criminal. Como
ocorre com as teorias absolutas, aqui também se pressupõe a necessidade da pena. A
prevenção geral não estabelece os limites da reação punitiva e pode criar um direito
penal do terror. A prevenção especial também não pode, por si só, constituir
fundamento para a pena. Há delinquentes que não carecem de ressocialização alguma,
em relação aos quais é possível fazer um seguro prognóstico de não reincidência.
Ainda, as teorias mistas ou unitárias combinam as teorias absolutas e as
relativas. Partem do entendimento segundo o qual a pena é retribuição mas deve, por
igual, perseguir os fins de prevenção geral e especial.
As teorias mistas não foram suficientes para responder por completo ao
problema da finalidade. Por isso, foi desenvolvida a ideia de que a prevenção pode ser
positiva ou negativa. Uma conteria a ideia de que a previsão ou a aplicação das penas
teria a função de prevenir delitos (prevenção negativa), e a outra reforçaria a validade
das normas (prevenção positiva), que significa restabelecer a confiança institucional no
ordenamento, quebrada com o cometimento do crime.

1.4. As ciências penais

Várias são as disciplinas que se relacionam com o Direito Penal, com o crime e
com o criminoso. Ao conjunto dessas disciplinas tem-se chamado de ciências penais.
Aqui se optou por tratar de algumas delas: a dogmática jurídico-penal ou ciência
do direito penal, que tem por objeto o estudo da norma penal; a criminologia, que estuda
o crime em sua realidade fenomênica; e a política criminal, atividade do Estado no
controle da criminalidade.
Ciências ou disciplinas auxiliares seriam a medicina legal, a psicologia
judiciária e a criminalística.

1.4.1. Ciência do direito penal ou dogmática jurídico-penal

A ciência do direito penal, também chamada dogmática jurídico-penal, é a


disciplina estuda o crime como fato jurídico, para determinar as características do fato
punível e suas formas especiais de aparecimento. A ciência do Direito Penal não se
distingue das disciplinas jurídicas que estudam os outros ramos do direito, senão pela
natureza das normas que lhe constituem o objeto.
A dogmática jurídico-penal realiza, em síntese, o estudo normativo ou jurídico
do crime, para que se possa encontrar maneiras de interpretar as normas penais de
maneira mais adequada.

1.4.2. Política criminal

É a atividade que tem por fim a pesquisa dos meios mais adequados para o
controle da criminalidade, valendo-se dos resultados que proporciona a Criminologia,
por meio da análise e crítica do sistema punitivo vigente. Pode-se dizer que política
criminal não é ciência, mas apenas técnica, aproximando-se das disciplinas políticas,
que são disciplinas de meios e fins.

1.4.3. Criminologia

Entende-se por Criminologia a ciência que estuda o crime como fato social, o
delinquente e a delinquência, bem como, em geral, o surgimento das normas de
comportamento social e a conduta que as viola ou delas se desvia e o processo de reação
social. A Criminologia não se limita ao estudo do crime como realidade fenomênica,
cabendo-lhe, de forma mais ampla, o estudo da conduta desviante que constitui fato
social grave.

1.4.4. Ciências auxiliares

Denominam-se ciências auxiliares, certas disciplinas que servem à aplicação


prática do direito penal e à investigação criminal. Tais disciplinas são: a medicina legal,
a psicologia judiciária e a criminalística.
Medicina legal é o conjunto de conhecimentos médicos utilizados na aplicação
do direito. Não é apenas útil ao direito penal, mas também aos demais ramos do direito.
Pode ser encontrada, p. ex., na verificação da sanidade mental, para fins de declaração
de incapacidade para os atos da vida civil e nos exames de acidentes de trabalho, para
fins de indenização.
Por sua vez, psicologia judiciária ou psicologia forense é a psicologia aplicada
em relação às pessoas que participam do processo penal, sendo especialmente utilizada
na avaliação da credibilidade do testemunho.
Por fim, criminalística é o nome que se dá à técnica que resulta da aplicação de
várias ciências à investigação criminal, na descoberta de crimes e identificação de
criminosos.
2. Princípios limitadores do poder punitivo

Um ordenamento jurídico deve, necessariamente, proteger os indivíduos


utilizando-se do direito penal, mas deve também protegê-lo do próprio direito penal,
cuja aplicação punitiva e, por vezes, vingativa, pode ser tão odiosa quanto a própria
infração que gerou a sua utilização. Assim, fez-se mister que fossem estabelecidos
limites ao poder punitivo estatal.
A Constituição Federal, em seu artigo 5o, estabelece princípios que limitam o
poder punitivo estatal de maneira explícita e de maneira implícita. Tais princípios têm
por objetivo orientar o legislador ordinário para que possa ser adotado um sistema penal
que resguarde os direitos fundamentais e também dar ao sistema penal um caráter
menos cruel.
Aqui, optou-se por tratar de alguns desses princípios, considerados como mais
relevantes, embora muitos outros possam ser mencionados.

2.1. Princípio da intervenção mínima

O principio da intervenção mínima do direito penal estabelece que o direito


penal que não deve proteger qualquer bem jurídico, mas, somente aquilo que se concebe
como um bem jurídico penal, ou seja, os valores mais caros à sociedade, sem os quais
a sociedade não terá condições de permanecer como tal.
Nesse sentido, o principio da intervenção mínima diferencia um bem jurídico
penal do bem jurídico em geral. O bem jurídico em geral é todo e qualquer valor
importante para a sociedade, cuja proteção venha a ser determinada por força de lei, ou
por força de ato administrativo. Já os bens juridicos penais são os valores essenciais,
que devem constituir o núcleo central do estado democrático de direito. Desse, p. ex.,
fazem parte a vida, o patrimônio, a identidade corporal e a liberdade psíquica ou
individual.
Entende-se, portanto, que somente deve haver intervenção mínima, pois a
intervenção penal somente deve ocorrer nos casos mais graves, na qual se justifique.
O principio da intervenção mínima tem duas faces: nega a possibilidade do
direito penal proteger bens jurídicos que não são essenciais e, de outro lado, determina
que o direito penal proteja os bens jurídicos considerados essenciais.

2.2. Princípio da fragmentaridade e da subsidiariedade

Intimamente ligado ao principio intervenção mínima, o principio da


fragmentariedade estabelece que o direito penal tutela apenas algumas das condutas em
que existe violação de um bem jurídico e não de todas, fazendo da intervenção penal
fragmentar.
Por sua vez, deve haver subsidiariedade, pois exige-se que o direito penal
somente venha a ser utilizado para proteção de bens jurídicos quando os demais ramos
do direito não tenham se mostrado suficientes para protegê-los de forma eficaz.

2.3. Princípio da lesividade

O principio da lesividade, também conhecido como ofensividade, é aquele


segundo somente pode ser considerada merecedora de tutela penal, conduta que seja
apta a expor a risco ou a causar dano a bem jurídico.
Uma norma penal, portanto, deve necessariamente proteger bem jurídico de
lesão ou risco de lesão. Dessa maneira, veda-se o estabelecimento de delitos que sejam
meras infrações de obrigações ou deveres, o que significaria uma excessiva intervenção
estatal, que não pode ser aceita.

2.4. Princípio da adequação social

O principio da adequação social nem sempre teve a natureza jurídica


reconhecida como tal, qual seja reconhecida como regra geral de interpretação de tipos,
pois durante muito tempo a doutrina penal imaginou que o principio da adequação
social era uma clausula de exclusão da tipicidade.
Hoje, todavia, entende-se que o principio da adequação social fundamenta a
possibilidade de utilização de determinados valores e costumes sociais, ainda que contra
a lei, para afastar a aplicação da lei penal.
O principio da adequação social constitui regra geral de interpretação das
normas penais incriminadoras e concretiza a ideia de que o tipo penal foi criado como
forma de viabilizar a vida social e não como forma de mudar a vida social. Se, com uma
modificação social, determinado comportamento penalmente reprovado passar a ser
socialmente aceito, não se justifica a intervenção penal.

2.5. Princípio da humanidade

O princípio da humanidade relaciona-se com a necessidade de proteção à


dignidade da pessoa humana, que se projeta no direito penal com a ideia de o ser
humano o seu fim e não o meio de viabilização de algum outro ideal. Em outras
palavras, não podem as finalidades do Estado serem mais importantes que o ser
humano. Por isso, as necessidades de combate ao crime não justificam o emprego de
medidas que gerem excessivo sofrimento ao indivíduo.
Por conta deste princípio, não se admite imposição de penas infamantes ou
cruéis, tais como os castigos corporais. Sustenta-se, ainda, que tal princípio interdita a
adoção da pena de morte.

2.6. Princípio da culpabilidade

O principio da culpabilidade decorre da ideia de que cada um responde pelos


seus atos, pois a responsabilidade penal é estritamente pessoal e subjetiva. Entendendo-
se culpabilidade como juízo de reprovação que recai sobre o agente autor da conduta
reprovável, somente deve ser penalmente reprovado aquele que, por sua conduta, dado
causa a resultado criminoso.
Ressalte-se, todavia, que não se poderá punir simplesmente porque a ação deu
causa a um resultado típico. Deve haver um componente subjetivo (dolo ou culpa) que
reprove a conduta do sujeito.
O principio da culpabilidade, portanto, afasta a possibilidade penal objetiva
(sem culpa) e exige que se cause um resultado dolosa ou, ao menos, culposamente.

2.7. Princípio da insignificância ou da bagatela

A ideia da insignificância ou da bagatela complementa os princípios acima


mencionados, no sentido de que ainda que uma determinada conduta possa
corretamente ser prevista como criminosa, sem que viole nenhum dos demais, ainda
assim, pode ser inconveniente a utilização do direito penal. Significa dizer que ainda
que haja a violação de um bem jurídico penal, que justifique a intervenção penal, deve
a lesão atingir alguma magnitude. Não a lesão a um bem patrimonial, deve haver algum
relevo na lesão para dar causa a uma pena criminal. Não deve a simples subtração de
alguma cosia de valor insignificante ser suficiente para a intervenção penal.

2.8. Princípio da legalidade

De todos os princípios reconhecidos no direito brasileiro, talvez o mais


importante seja o da legalidade. Tanto assim que pode-se dizer que a legislação penal
brasileira é dominada pelo princípio, tanto assim que aparece inscrito na Constituição
Federal, em seu art. 5.º, XXIX, bem como no art. 1.º de Código Penal: “Não há crime
sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Essa regra básica
denomina-se princípio da legalidade dos delitos e das penas ou princípio da reserva
legal, e representa importante conquista.
O princípio da legalidade pode ser encontrado em todos os sistemas jurídicos
existentes no mundo - em códigos penais e em constituições - e, também, na
Declaração Universal dos Direitos do Homem, no 3ª Convenção de Genebra e em seus
Protocolos Adicionais, além de tratados para proteção de direitos humanos, como Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos, o Convênio Europeu para a Proteção dos
Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, a Convenção Americana de Direitos
Humanos e a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos. Este princípio, que
serve para evitar uma punição arbitrária, não decorrente de lei ou baseada em uma
norma imprecisa ou retroativa, é objeto de posições divergentes no direito penal
internacional.
O princípio da reserva legal foi previsto, de alguma maneira, tanto pelo direito
romano e pelo direito medieval. Na Antiguidade Clássica, inicialmente, a aplicação da
lei penal foi caracterizada pela adoção da analogia. Gradativamente, foi sendo utilizada
a submissão à lei.
Já na Idade Média, houve a prevalência do direito consuetudinário ou arbítrio
judicial. Por essa razão, mesmo nas legislações mais avançadas do período, era admitida
a analogia, como se pode perceber na Constitutio Criminalis Carolina (a Ordenança
Criminal de Carlos V, 1532), no Codex juris Bavarici criminalis (1751) e na Constitutio
Criminalis Thereziana (1768)1.
Já no direito inglês, havia um antecedente na própria Magna Charta (1215), que,
em seu artigo 39, estabeleceu: “Nullus liber homo capiatur, vel imprisonetur, aut
disseisiatur, aut utlagetur, aut exuletur, aut aliquo modo destruatur, nec super eum
ibimus, nec super mittemus, nisi per legale judicium parium suorum vel per legem
terre”2. Este princípio continha, como se pode perceber, uma evidente limitação ao
poder estatal em favor da liberdade individual. Mais que isso, já relacionava essa
limitação à existência de uma lei anterior, embora fosse, de certo, muito mais uma
garantia processual do que de direito substantivo3.

1
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral. 15 ed., Rio de Janeiro: Forense,
1995, p. 90.
2
“Nenhum homem livre será levado ou preso ou retirado ou posto fora da lei ou exilado ou de qualquer
maneira prejudicado, ou nós não iremos ou enviaremos contra ele, exceto em decorrência de um
julgamento justo por seus pares ou pela lei da terra” (HOLT, James Clarke. Magna Carta. 2 ed.,
Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 460/461).
3
Em sentido contrário: “Devemos abandonar a tarefa, mais própria de antiquário que de historiador,
como diria Marc Bloch, de respingar em textos romanos alguma afinidade - ainda que sonora - com o
A limitação da autoridade do Estado frente ao indivíduo, após, foi desenvolvida
por Locke, Montesquieu e Rousseau. Cristalizou-se, de maneira definitiva, com o
surgimento do opúsculo de Beccaria, o clássico Dos delitos e das penas. Este autor, um
adepto das ideias rousseaunianas, exprimiu que somente a lei poderia determinar a pena
para a prática de crimes, afastando, por completo, que o juiz pudesse formar o direito
penal ou que as normas incriminadoras pudessem decorrer do costume.
O princípio da reserva legal foi cristalizado a partir das declarações (Bill of
Rights) e das constituições das colônias inglesas na América do Norte, em fins do século
XVIII. Na declaração de independência chegou-se a afirmar que “o rei havia tornado
os juízes dependentes exclusivamente de sua vontade”4. A efetiva proibição de leis ex
post facto surgiu em 1776, com a Declaração de Direitos da Virgínia e com a
Constituição de Maryland, embora a o Congresso da Filadélfia já houvesse incluído o
princípio da legalidade entre os direitos fundamentais do homem. Já a Constituição
americana (1787) estabeleceu a proibição da existência de tais normas, além de vedar a
decretação de proscrição (bill of attainder), em seu art. 1º, secção 9, obrigação que foi
imposta aos estados pela secção 10 do mesmo artigo.
A partir daí tal noção se difundiu pelo mundo. Na Europa, surgiu com o Código
Penal austríaco de 1787, de José II, a chamada legislação Josefina. Após, célebre
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, na França revolucionária,
em seu artigo VIII, determinava que ninguém fosse punido senão por força de uma lei
estabelecida e promulgada anteriormente ao crime5. Logo a seguir, na Constituição
francesa de 1793, o legislador constituinte foi ainda mais enérgico e determinou que
não somente ninguém será punido salvo em virtude de uma lei anterior ao fato, como
qualificou de criminoso o efeito retroativo da lei penal em desfavor do réu6.
Em 1794, o Código Penal prussiano incorporou o princípio, bem como o Código
Penal da Baviera de 1813, este redigido por Paul Johann Anselm von Feuerbach (1775-
1833), que, além de ser considerado o fundador do moderno direito penal alemão,
cunhou a expressão latina que sintetiza a reserva legal: “nullum crimen nulla poena sige
lege”7. Afirmava também este autor que o princípio da reserva legal, além de sua base
política, atendia a um fundamento de ordem jurídico-penal. Sustentava que a ameaça
penal exercia uma coação psicológica que impediria a prática de crime. A justificativa
da punição decorria do fato de que alguém, embora conhecendo a ameaça, não deixasse
de praticar conduta proibida. Assim, a punibilidade de determinado fato estaria
diretamente condicionada à anterioridade de sua incriminação e da prévia cominação

princípio, ou de cismar sobre a passagem do artigo 39 da Magna Charta - que continha, segundo opinião
dominante, mera garantia processual restrita aos poucos ‘homens livres’ -, à procura de um antecedente”
(BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 3 ed., Rio de Janeiro: Revan, 1996, p.
65/66).
4
FRAGOSO, op. cit., p. 90.
5
“Ce principe a été exprimé par les lois révolutionnaires. Cést ainsi que la Déclaration des droits de
l’homme et du citoyen spécifie, dans le article 8: La loi ne doit établir que des peines évidemment et
strictement nécessaires: nul ne peut être puni qu’en vertu d’une loi établie et promulguée antérieurment
au délit et légalement appliquée” (BOUZAT, Pierre. Traité theorique et pratique de Droit Pénal, Paris:
Dalloz, 1951, p. 61).
6
“Plus énergique est encore la constitution du 24 juin 1793, lorsqu’elle déclare dans son art,. 14: ‘Nul ne
doit être jugé et puni qu’en vertu d’une loi promulguée antérieurment au delit; la loi qui punirait des
délits commis avant qu’elle existât serait une tyrannie; l’effet retroactif donné à cette loi, un crime”
(BOUZAT, op. cit. , p. 61).
7
Ressalte-se que: “Ao contrário do se difunde frequentemente, das obras de Feuerbach não consta a
fórmula ampla ‘nullum crimen nulla poena sine lege’; nelas se encontra, sim, uma articulação das
fórmulas ‘nulla poena sine lege’, ‘nullum crimen sine poena legali’ e ‘nulla poena (legalis) sine
crimine’” (BATISTA, op. cit., p. 66).
de pena, no texto de uma lei penal previamente publicada. Esta é a teoria da coação
psicológica, em que a lei prévia teria, pois, efeito inibidor8.
O princípio se universalizou desde então, sendo encontrado nos mais diversos
ordenamentos jurídicos ao redor no globo.
No Brasil, por exemplo, foi definido em todas as Constituições e em todos os
Códigos Penais. O Código Criminal de 1830, em seu art. 1.º, estabelecia que “não
haverá crime, ou delito (palavras sinônimas neste código), sem uma lei anterior, que o
qualifique”. E, no art. 33, que “nenhum crime será punido com penas que não estejam
estabelecidas para punir o crime no grau máximo, médio ou mínimo, salvo o caso em
que aos juízes se permitir arbítrio”.
O Código de 1890, em seu art. 1.º, assim dispunha: “Ninguém poderá ser punido
por fato que não tenha sido anteriormente qualificado crime, e nem com penas que não
estejam previamente estabelecidas. A interpretação extensiva, por analogia ou
paridade, não é admissível para qualificar crimes ou aplicar-lhes penas”. A
Constituição atual o prevê em seu art. 5.º, XXXIX, e o Código Penal de 1940, com a
Parte Geral de 1984, o incorpora no art. 1.º.
Pode-se mencionar que, ao longo do século XX, houve dois exemplos
paradigmáticos de admissão da ideia de analogia no direito penal, a saber, a lei alemã
de 1935 e a lei soviética de 1917.
Na primeira hipótese, o legislador nacional-socialista afirmou que seria possível
castigar segundo a ideia básica de uma lei penal e segundo o sentimento de um povo.
Dessa maneira, o 3º Reich alemão rejeitou essa conquista obtida a partir do Iluminismo,
como, aliás, o fez em relação ao Estado liberal como um todo. Esse dispositivo, que se
adequava às características totalitárias e repressivas do modelo hitlerista, foi
imediatamente declarado inaplicável pelos aliados já em 1945. Um ano após, foi
derrogado expressamente e substituído por uma nova versão do princípio da legalidade.
A Constituição alemã de 1949 adotou o referido princípio, utilizando o mesmo sentido
que se utilizara a Constituição de Weimar (1919). Na Alemanha, aliás, a reserva legal
foi reproduzida na Parte Geral do Código Penal de 1975.
Já na extinta União Soviética revolucionária, o princípio foi abolido em 1917,
no esteio da incessante oposição que aquele Estado fazia ao modelo liberal e às
conquistas desse modelo houveram atingido. Frise-se que essa noção foi utilizada
durante o período de maior repressão, o de Stálin. A legalidade foi, no entanto,
restabelecida em 1958 e reproduzida em todos os Estados socialistas de então9.
O princípio da reserva legal encontra, hodiernamente, quatro fundamentos para
a sua existência: o liberalismo político; a democracia e a divisão de poderes; a
prevenção geral e o princípio da culpabilidade.
O princípio é consequência direta da formação do próprio Estado
contemporâneo, dada a exigência de vinculação entre os poderes executivo e judiciário
e as leis em abstrato formuladas. Em que pesem as mudanças contemporâneas no
Estado, muito da justificativa da legalidade ainda remonta a esse fundamento. Assim,
se pode entender que o fim do princípio da legalidade é a ideia de proteção da confiança
e da previsibilidade do direito penal, assim como que se evitem decisões decorrentes da
emoção. Ademais, a vinculação do poder punitivo estatal a uma lei abstrata, pretende,
por si só, proteger a liberdade individual do arbítrio estatal, o que sintetizam as
finalidades da proibição da analogia e da indeterminação da norma penal.

8
BACIGALUPO, Enrique. Principios de derecho penal: parte general. 5 ed., Madri: Akal, 1998, p. 55.
9
Iden, ibidem.
Um outro fundamento é o da tripartição de poderes, já que nessa estrutura, que
se expressa por meio da reserva legal, o juiz não deve criar o direito penal - atributo do
parlamento -, mas, sim, aplicá-lo, e o Poder Executivo não terá ingerência quanto à
punição, o que impedirá qualquer abuso nesse sentido.
Por fim, a ideia de que o princípio da culpabilidade é vulnerado se não houver
reserva legal, pois não se deve falar em agente culpável se o indivíduo sabia ou tivera
a possibilidade de verificar que o seu comportamento era passível de reprovação penal.
Essa verificação tem, pois, que ser feita antes da prática delitiva e, assim, a reprovação
tem, necessariamente, que ser anterior.
Deve-se ainda reiterar que no direito penal, onde o fundamental em jogo é a
imunidade do cidadão frente a proibições e a castigos arbitrários, os seus conteúdos
materiais se concretizam na taxatividade dos delitos. Em outros setores do
ordenamento, os direitos fundamentais objeto de tutela são diversos, mas também eles,
quando garantidos constitucionalmente, se tornam vínculos de validade para a
legalidade ordinária, ou legalidade estrita. Em todos os casos, pode-se dizer que a mera
legalidade coincide com a legitimação formal, enquanto a estrita legalidade, ao
subordinar todos os atos, inclusive a lei, aos conteúdos dos direitos fundamentais,
coincide com a legitimidade material. Significa dizer que a legalidade é essencial para
o próprio Estado democrático de direito e, por isso, dogma que não deve ser afastado
sob qualquer hipótese10.

2.8.1. Consequências do princípio da legalidade

Tradicionalmente, são mencionadas quatro consequências do princípio da


reserva legal

a) as proibições da analogia (nullum crimen, nulla poena sine lege strticta) - exclui-se
a possibilidade de aplicação analógica das normas que definem crimes e estabelecem
sanções ou medidas de segurança, para abranger casos por elas não expressamente
contemplados.

b) do direito consuetudinário para fundamentar ou agravar a pena (nullum crimen, nulla


poena sine lege scripta) - não é possível admitir a criação de crimes e penas ou a sua
majoração pelo costume, pois só a lei pode ser fonte de normas incriminadoras;

c) da retroatividade da lei penal (nullum crimen, nulla poena sine lege praevia) – tal
proibição se refere a todas as características do fato, no conjunto de todas as normas
jurídicas que o qualificam e estabelecem consequências para o mesmo. Assim sendo,
uma alteração mais gravosa de dispositivos da lei penal não pode gerar à aplicação com
efeito retroativo. Ressalte-se, todavia, que a proibição da retroatividade somente se
refere à lei e não às alterações da jurisprudência dos tribunais.

d) da existência de incriminações vagas e indeterminadas (nullum crimen nulla poena


sine lege certa) - a só existência de lei prévia não basta, pois esta lei deve reunir certos
caracteres: deve ser concretamente definitória de uma ação, deve delimitar qual é a
conduta compreendida e qual é a não compreendida. A incriminação vaga e
indeterminada faz com que, em realidade, não haja lei definindo como delituosa certa

10
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Teoria del garantismo penal. 5 ed., Madri: Trotta, 2001, p. 857.
conduta, pois entrega, em última análise, a identificação do fato punível fica ao arbítrio
do julgador.

3. Aplicação da lei penal no tempo

A vigência da lei penal não representa exceção às normas que regulam a


vigência e obrigatoriedade das leis em geral, prevista pela lei de introdução ao Código
Civil. Esta, em seu art. 1.º, estabelece que a lei começa a vigorar em todo o país
quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada, salvo disposição em contrário.
Se nesse prazo (vacatio legis) ocorrer nova publicação do texto, destinada à correção,
o prazo começa novamente a correr a partir da nova publicação. As correções da lei já
em vigor consideram-se lei nova.
Permanece em vigor a lei até que outra posterior a modifique ou revogue, a
menos que se trate de lei temporária. Esta é a lei que em seu próprio texto estabelece
seu limite de validez. Há nesse caso uma autorrevogação. É também o que sucede com
leis destinadas à vigência durante o curso de determinados acontecimentos transitórios,
cessando com os mesmos sua razão de ser. São as leis excepcionais. A revogação da
lei anterior pode ser total (ab-rogação) ou parcial (derrogação); expressa ou tácita. É
expressa quando a revogação é declarada pela lei posterior; é tácita, quando a lei nova
é incompatível com a lei anterior ou quando regula inteiramente a matéria de que esta
tratava.
O princípio básico que domina a sucessão de leis e sua aplicação é o tempus
regit actum: os fatos são regulados pela lei do tempo em que se verificam e, em regra,
a lei não retroage.
No Direito Penal, como mencionado acima, a irretroatividade de norma
incriminadora é consequência do princípio da legalidade, que é garantia constitucional.
Por isso, a regra da irretroatividade somente se aplica à lei que agrava a situação do réu.
Se beneficiar, de alguma maneira, o acusado, a lei pode vir a retroagir, como será
discutido adiante.

3.1. Irretroatividade das leis penais e a retroatividade da lei penal mais benigna.

A irretroatividade da lei penal foi proclamada, como mencionado, pelo princípio


nullum crimen nulla poena sine lege.
A retroatividade da lei mais benigna, no entanto, foi desenvolvida mais adiante
e decorre do interesse do Estado. Se o Estado vem formular leis mais benignas, no que
se refere a crimes e gravidade de penas, significa que as novas leis correspondem novas
exigências da Justiça e da vida social. Com isso, o que era certo na lei anterior, deixou
de ser e merece emenda..
O CP, em seu art. 2.º e seu parágrafo único, considera que a lei nova mais
favorável se aplica aos casos em que deixa de considerar o fato como delituoso (abolitio
criminis), bem como aos que de qualquer outra forma favorecer o agente.
Estabelecer lei mais favorável (lex mitior), todavia, somente pode ser no caso
concreto. O juiz deve considerar qual seria o resultado, aplicando hipoteticamente uma
e outra das leis, escolhendo então a que proporciona situação mais favorável ao réu.
Uma lei posterior que, mantendo a incriminação do fato, aumente o máximo da pena
cominada, e diminua o mínimo, será mais favorável, se for o caso de aplicar a pena
mínima à hipótese em julgamento, e será mais severa no caso de se impor a pena
máxima.
Em nenhum caso será possível tomar de uma e outra lei as disposições que mais
beneficiem o réu, aplicando ambas parcialmente. A chamada conjugação de leis,
embora defendida por alguns, não tem sido admitida no Brasil.

3.2. Conflitos da lei penal no tempo

Configura-se um conflito de leis penais no tempo toda vez que, entre o


comentimento do crime e o momento em que cessem os seus efeitos penais, tiver havido
modificação da lei e, portanto, sucessão de leis penais.
As hipóteses de sucessão de leis penais são as seguintes:

a) Novatio legis incriminadora - a lei posterior incrimina fato que era antecedentemente
lícito;
b) Abolitio criminis - a lei posterior deixa de considerar ilícito penal fato incriminado
pela lei anterior;
c) Novatio legis in mellius - a lei posterior, sem suprimir a incriminação do fato,
beneficia o agente, quer cominando pena menos rigorosa, quer de qualquer outro modo
tornando menos grave a situação do réu;
d) Novatio legis in pejus - a lei posterior, mantendo a incriminação do fato, torna mais
grave a situação do réu.

Ressalte-se que aqui se discute lei penal em sentido próprio, compreendendo os


tipos de delito descritos nas normas incriminadoras, como também as normas contidas
na Parte Geral, pertencentes ao direito penal material. Excluem-se as disposições
relativas às medidas de segurança, bem como as normas de caráter processual existentes
no CP.
O conflito de leis penais que se sucedem resolve-se sempre pela aplicação de
um princípio básico, que é o da retroatividade ou ultratividade da lei mais benigna
(extra-atividade da lex mitior). A lei mais severa em nenhum caso retroage. A lex
gravior, igualmente, em caso algum tem ultratividade.

3.3. Leis excepcionais e leis temporárias

Estabelece o CP a ultra-atividade da lei excepcional ou temporária, no art. 3.º.


São leis temporárias aquelas que vigoram durante certo tempo, por elas próprias fixado.
São leis excepcionais as que visam atender a situações anormais da vida social
(epidemia, guerra, revolução etc.). A ultra-atividade de tais leis é justificada com o fato
de que seria fácil sua violação, sem consequências penais, se não fossem ultra-ativas.

3.4. Norma penal em branco

Lei ou norma penal em branco seria aquela na qual o preceito é incompleto, e


que, na expressão de Binding, são “como corpos errantes à procura de alma”. Nesse
caso, o tipo deve ser completado por outra disposição legal, já existente ou futura. Na
normal penal em branco não falta o preceito, ele é apenas formulado de maneira
genérica, sendo completado pela disposição integradora. A razão de ser de tais normas
encontra-se na necessidade que a ordem jurídica reconhece, de fornecer a tutela penal
a determinadas categorias de prescrições administrativas, a serem emanadas em relação
a contingências futuras, gerais ou particulares.
A discussão particular acerca da sucessão de leis penais em caso de norma penal
em branco surge no caso de haver modificação do complemento. Nesse particular, duas
teorias são defendidas. A primeira, mais tradicional, argumenta apenas que a
modificação do complemento não gera mudança da lei e, por isso, não se deve falar em
conflito de leis no tempo. A segunda divide em dois tipos de norma penal em branco.
No primeiro, o complemento serviria apenas para permitir que a norma venha a viger
e, nesse caso, não haveria modificação da lei. Haveria, todavia, uma outra categoria, no
qual o complemento seria a essência da proibição e, por esse motivo, em se
modificando, haveria mudança da lei.

3.5. Tempo do crime

Para que se possa determinar se houve ou não conflito de leis no tempo, afigura-
se fundamental determinar o momento em que o crime é cometido. Antes, porém, deve-
se assinalar que cometer um crime significa praticar qualquer ato de execução ou de
participação na ação delituosa. É ato de execução aquele que inicia a violação da
norma, com o ataque ao bem jurídico tutelado. Cometer um crime não significa
consumá-lo. Para determinação do tempo crime, diferentes critérios podem ser
adotados. Pode ser considerado o momento em que se desenvolve a ação (teoria da
ação), o momento em que sobrevém o resultado ou que o consuma (teoria do resultado),
ou ambos (teoria da ubiquidade). No Brasil, foi adotada a primeira dessas teorias, por
meio do art. 4.º, CP.

3.6. Crimes permanentes e continuados

Não há regras especiais para atender à hipótese de ações que configurem crimes
permanentes e continuados, havendo sucessão de leis penais. No crime permanente, a
ação se protrai, com a permanência do resultado antijurídico (ex.: sequestro, art. 148,
CP). Neste caso aplica-se a lei nova, pois sob seu império continuou sendo praticada a
ação. A solução é a mesma para o crime continuado (art. 71, CP), e para o crime
habitual. Em nenhum caso, porém, serão considerados os atos praticados na vigência
da lei anterior.

4. Aplicação da lei penal no espaço

4.1. Princípios: territorialidade, personalidade ativa e passiva, de defesa ou de


proteção, da bandeira ou da representação e da universalidade ou da justiça
universal.

Quatro princípios ou critérios foram formulados pela doutrina:

a) Princípio da territorialidade - a lei penal aplica-se no território onde se exerce a


soberania do Estado, independentemente da nacionalidade do agente ou da vítima ou
do titular do bem jurídico atingido. O princípio da territorialidade é o preponderante na
lei brasileira (art. 5.º do CP).
b) Princípio da personalidade ou da nacionalidade - a lei penal nacional pode ser
aplicada ao cidadão onde quer que se encontre, devendo ser considerada apenas a
nacionalidade do agente.
c) Princípio da defesa ou real ou de proteção - a lei penal deve ser aplicada de acordo
com a nacionalidade do bem jurídico atingido pela ação delituosa, onde quer que seja
ela praticada e seja qual for a nacionalidade do agente.
d) Princípio da justiça universal - a lei penal aplica-se a todo e qualquer fato punível,
seja qual for na nacionalidade do agente ou do bem jurídico lesado ou posto em perigo
e qualquer que tenha sido o lugar onde tenha sido o fato praticado.
e) Princípio da representação ou da bandeira – a lei penal do Estado ao qual pertença a
aeronave ou a embarcação deve ser aplicada a todo e qualquer fato praticado no seu
interior.
Consagra a lei brasileira, como regra básica, o princípio da territorialidade em
seu art. 5.º do CP. Não existe, todavia, um conceito jurídico-penal de território e tal
conceito decorre do direito público e do direito internacional. Não se trata de conceito
geográfico, mas de conceito jurídico: território é todo espaço onde se exerce a soberania
do Estado. Compreende, em primeiro lugar, o espaço territorial delimitado pelas
fronteiras do país, sem solução de continuidade, inclusive rios, lagos e mares interiores,
bem como as ilhas e outras porções de terra separadas do solo principal.
Integram, ainda, o território, o mar territorial, o espaço aéreo e a porção,
atribuída pelo direito internacional a cada Estado, de rios e lagos fronteiriços. Por uma
ficção jurídica, são também considerados territórios os navios e aeronaves comerciais
em águas nacionais ou em alto-mar, bem como os navios e aeronaves do Estado, onde
quer que se encontrem.
Os limites do mar territorial estão estabelecidos pela Lei n.º 8.617/93 em 12
milhas marítimas, medidas a partir da linha do baixa-mar do litoral continental e insular
brasileiro, adotada como referência nas cartas náuticas brasileiras (art. 1.º). A soberania
de nosso país se estende ao leito e ao subsolo do mar territorial (art. 2.º, L. 8.617/93).
Esta mesma lei, estabelece a zona contígua, delimitada em até 24 milhas marítimas
(onde podem ser adotadas medidas de prevenção de infrações à lei e de repressão
daquelas ocorridas no território ou no mar territorial), e a zona econômica exclusiva,
delimitada em até 200 milhas (para efeitos exploração de recursos naturais), ambas
contadas a partir da linha do baixa-mar.
Quanto aos rios, há os nacionais, ou seja, os que se situam inteiramente no
território nacional, e os internacionais os que atravessam mais de um Estado e podem
ser simultâneos (fronteiriços) ou sucessivos. Com relação a estes últimos, compõem o
território nacional, no trecho que atravessa o território do Estado. O território, em
relação aos rios internacionais simultâneos e lagos fronteiriços, é geralmente
estabelecido por tratados e convenções internacionais, entre as partes interessadas. Se
o rio pertence a ambos os países, o limite é fixado em regra pela equidistância das
margens ou pela linha de maior profundidade (Talweg). Nos lagos, o critério é
geralmente o de limitação pela linha que liga ao centro os pontos extremos do território.
Nas pontes internacionais, o limite do território vai até o meio ainda que não
corresponda ao Talweg do rio, salvo convenção em contrário.
O território nacional compreende também o espaço aéreo que cobre o território
do Estado e águas territoriais, sem limites.
No que concerne aos navios, a regra a observar é no sentido de que os navios
públicos, ou seja, os navios do Estado (belonaves e navios empregados em serviços
públicos, como o de polícia, alfândega etc.) constituem território do Estado a que
pertencem onde quer que estejam, mesmo em águas territoriais estrangeiras. São
também navios dessa categoria os que são postos exclusivamente a serviço de soberanos
ou chefes de Estado ou de representantes diplomáticos. Os crimes cometidos a bordo
de tais barcos são sempre punidos pelo Estado a que pertencem.
Quanto aos navios privados, estão sujeitos à soberania do Estado a que
pertencem, se estiverem em águas nacionais ou em alto-mar. Em águas territoriais ou
em porto estrangeiro, submetem-se, em princípio, à jurisdição do país estrangeiro.
As mesmas regras fixadas para os navios aplicam-se às aeronaves, que podem
ser públicas ou privadas, atendendo-se, porém, à diversa situação dos crimes praticados
a bordo de aeronaves estrangeiras privadas em solo brasileiro.
O CP acolheu tais regras no art. 5.º, §§ 1.º e 2.º.

4.2. Lugar do crime

No que se refere ao lugar do crime, as considerações que foram desenvolvidas


quanto ao tempo do crime também são aqui válidas. A ressalva é que o CP, em seu art.
6º. determinou que seja adotada a teoria da ubiquidade, que considera como lugar do
crime tanto aquele em que se pratica a ação como aquele em que se verifica o resultado
ou aquele em que o bem jurídico é atingido. Será, assim, punível pela nossa lei o crime
cometido, no todo ou em parte, no território nacional ou o que nele, embora
parcialmente, produziu seu resultado. Ademais, o crime não se fraciona por ultrapassar
as fronteiras e será punido em sua inteireza mesmo que só parcialmente executado em
território nacional.

4.3. Hipóteses de extraterritorialidade

Embora tenha fixando como regra o princípio da territorialidade, o CP também


determina a aplicação da lei penal brasileira a certos fatos praticados no estrangeiro (art.
7.º, CP).
A extraterritorialidade da lei brasileira dá-se, porém, segundo um duplo critério:
em certos casos, incondicionadamente; em outros, mediante a verificação de
determinadas condições.

4.3.1. Extraterritorialidade incondicionada

Tendo em vista a alta relevância dos interesses atingidos, é aplicável


incondicionadamente a lei brasileira aos crimes praticados no estrangeiro nos seguintes
casos (art. 7.º, I ):

a) contra a vida ou a liberdade do Presidente da República - acolhe-se aqui o princípio


da defesa. Dada a preeminência da função que exerce o Presidente da República, ele,
no estrangeiro, representa a nação. Sua vida e liberdade são objeto de especial tutela;

b) contra o patrimônio ou a fé pública da União, do Distrito Federal, de Estado, de


Território, de Município, de empresa pública, sociedade de economia mista, autarquia
ou fundação instituída pelo Poder Público - crimes contra o patrimônio da União, do
Distrito Federal, de Estado, de Território (hoje inexistente) ou Município, são os crimes
de furto, roubo ou extorsão, apropriação indébita, estelionato etc. quando o objeto
material da ação for constituído de bens públicos. A fé pública da União ou dos Estados
atinge-se por meio dos crimes de moeda falsa ou de falsidade de títulos ou outros papéis
públicos. As fundações instituídas pelo Poder Público equiparam-se às empresas
públicas. Entende-se por autarquia o serviço autônomo, criado por lei, com
personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios, para executar atividades típicas
da administração pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão
administrativa e financeira descentralizadas. Empresa pública é a entidade dotada de
personalidade jurídica de direito privado, com patrimônio próprio e capital exclusivo
da União, criada por lei para a exploração de atividade econômica que o governo seja
levado a exercer por força de contingência ou de conveniência administrativa, podendo
revestir-se de qualquer das formas admitidas em direito. Sociedade de economia mista
é a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, criada por lei para a
exploração de atividade econômica, sob a forma de sociedade anônima, cujas ações
com direito a voto pertençam em sua maioria à União ou a entidade da administração
indireta;

c) contra a administração pública, por quem está a seu serviço - são os crimes que o CP
prevê no Título XI, Capítulo I, da Parte Especial. Serão, por exemplo, os casos de
peculato, corrupção ou prevaricação, praticados por funcionários públicos, a serviço no
exterior;

d) de genocídio, quando o agente for brasileiro ou domiciliado no Brasil – este crime


significa matar, com fim de exterminar membro de grupo nacional, racial, étnico ou
religioso e foi definido pelo Lei n.º 2.889/ 1956. A extraterritorialidade se justifica pela
gravidade da infração.

Para a extraterritorialidade da lei brasileira nestes casos não se exige qualquer


condição. Tais fatos são puníveis no Brasil, qualquer que seja a nacionalidade do
agente; sejam, ou não, puníveis também no estrangeiro, e quer o agente se ache, ou não,
no território nacional. É igualmente irrelevante o fato de ter sido o agente absolvido ou
condenado no estrangeiro (art. 7.º, § 1.º, CP), ou que no estrangeiro esteja o crime
prescrito ou não seja punível.

4.3.2. Extraterritorialidade condicionada

Há outros casos previstos pelo CP para a extraterritorialidade da lei brasileira,


para os quais a aplicação da lei subordina-se a determinadas condições ou pressupostos
indispensáveis. Os casos em que se aplica a extraterritorialidade condicionada da lei
brasileira são os seguintes:

a) crimes que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir (art. 7.º, II, a,
CP) - são os crimes que têm sido objeto de convenções e tratados internacionais, que
ultrapassam as fronteiras de um só país e afetam a comunidade internacional de nações,
tais como a pirataria e o tráfico de mulheres. Aqui, aplica-se o princípio da
universalidade;

b) crimes praticados por brasileiros no estrangeiro (art. 7.º, II, b, CP) - é acolhido
limitadamente o princípio da personalidade e é consequência da norma constitucional
que impede a extradição de nacionais (art. 5.º, LI, CF), pois como o Brasil não entrega
o brasileiro que outro Estado reclama, vê-se obrigado a puni-lo no país por crime
praticado no estrangeiro. Tanto faz que seja o agente brasileiro nato ou naturalizado,
desde que a naturalização haja ocorrido antes da prática do crime;

c) crimes praticados em aeronaves ou embarcações brasileiras, mercantes ou de


propriedade privada, quando em território estrangeiro, e aí não tenham sido julgados
(art. 7.º, II, c, CP) – é caso de aplicação do princípio da bandeira e da representação e
pretende complementar o art. 5º. e, dessa maneira, suprir eventual lacuna dele
decorrente;

d) crimes praticados por estrangeiro contra brasileiro fora do Brasil (art. 7.º, § 3.º, CP)
– aplica o princípio da personalidade passiva, já que Estado tem o dever de proteger
seus cidadãos.

Nos casos de extraterritorialidade, não basta a enumeração das hipóteses. A


legislação penal brasileira também estabelece quais são seus pressupostos ou condições
que nosso código prevê para a extraterritorialidade de nossa lei, conforme art. 7.º, §§
1.º e 3º., CP. São vários e devem ocorrer simultaneamente:

a) Entrar o agente no território nacional - é irrelevante a causa da entrada do agente:


pode dar-se voluntariamente, ou não; por erro, fraude ou violência; para permanência
definitiva ou transitória. Mesmo que a entrada se dê com a concorrência de violência
ou de fraude para trazer o criminoso, estará satisfeita essa condição de aplicação da lei
penal brasileira.
b) Ser o fato punível também no país em que foi praticado – como a lei brasileira só
autoriza a extradição se o fato for crime em ambos os países, deve necessariamente ser
crime no país em que foi praticado. Além disso, a lei penal brasileira é aplicável quando
se trata de fato praticado em lugar não sujeito a soberania de Estado algum, como no
alto-mar ou certas regiões polares, pois esta condição só pode verificar-se quando se
trata de fato praticado em lugar sujeito a alguma lei penal. Se isso não ocorrer, basta a
incriminação da lei penal brasileira.
c) Estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição
– extradição é instrumento de cooperação penal internacional, pelo qual um Estado
entrega a outro pessoa acusada ou condenada, para que seja julgada ou lá venha a
cumprir pena. O princípio fundamental da extradição é o aut dedere aut iudicare e, por
isso, caso não entregue o indivíduo, o Estado terá a obrigação de julgar e daí a
extraterritorialidade.
d) Não ter sido o agente absolvido no estrangeiro, ou não ter aí cumprido pena – trata-
se de condição que demonstra a subsidiariedade da justiça brasileira, que se exerce em
substituição à justiça estrangeira. Não é possível aplicar a lei brasileira se o agente já
foi julgado e absolvido no estrangeiro (mesmo que tal absolvição seja errônea ou
injusta), pois o indivíduo não pode ter aqui tratamento mais severo do que no local em
que delinquiu.
e) Não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta
a punibilidade, segundo a lei mais favorável – justifica idêntica ao anterior.

No caso de crimes praticados por estrangeiro contra brasileiro fora do Brasil,


além de estar sujeita às condições gerais de extraterritorialidade acima mencionadas, a
aplicação da lei brasileira neste caso só poderá ser feita: 1- Se o país a que pertence o
estrangeiro não pediu sua extradição, ou se tal extradição foi negada pelo Brasil; 2- Se
houve requisição do Ministro da Justiça (pressuposto processual aqui necessário para
instauração do processo) (art. 7.º, § 3.º, CP).
5. Limites à aplicação da lei penal em relação às pessoas: imunidade diplomática
e imunidade parlamentar

A lei penal brasileira aplica-se, em princípio, a todos os crimes praticados no


território nacional, quer tenham sido praticados por brasileiros ou estrangeiros. Se é
certo que esta regra básica sofre exceções em relação a crimes praticados no estrangeiro
(art.7.º, CP), também existem exceções quanto à aplicação da lei penal a certas pessoas,
na prática de fatos delituosos no território nacional. Essas exceções, que decorrem do
direito internacional e do direito público interno, são as chamadas imunidades
diplomática e parlamentar.
Frise-se, desde já, que tais imunidades não se aplicam ao Chefe de Estado. No
Brasil, conferem-se apenas prerrogativa de função ao Presidente da República e aos
Ministros de Estado, as quais não se referem às pessoas, mas à dignidade do cargo e à
conveniência da função que exercem. Por isso, tais prerrogativas são puramente de
ordem processual e significam que o Presidente da República só poderá ser processado
depois que a Câmara dos Deputados, pela maioria absoluta de seus membros, declarar
procedente a acusação. Se se tratar de crime comum, o julgamento será feito pelo
Supremo Tribunal Federal; se se tratar de crime de responsabilidade, pelo Senado
Federal (art. 86, CF). Prerrogativas semelhantes possuem os Ministros de Estado e
juízes do Supremo Tribunal Federal (arts. 52, I e II, CF; 102, I, b e c, CF; e Lei n.º 1079,
de 10 de abril de 1970).

5.1. Imunidades diplomáticas

A concessão de privilégios a representantes diplomáticos, relativamente aos atos


ilícitos por eles praticados, é antiga praxe no direito internacional, fundando-se no
respeito e na consideração ao Estado que representam e na necessidade de cercar a
atividade de garantias para o seu perfeito desempenho. Tais privilégios baseiam-se
sempre no regime de reciprocidade e tal imunidade não se refere apenas aos fatos
relacionados com o exercício da atividade diplomática, mas a todo e qualquer crime.
A imunidade diplomática decorre da Convenção de Viena sobre relações
diplomáticas (1961), promulgada pelo Decreto n.º 56.435/1965. Os locais da missão
diplomática estrangeira são invioláveis. Os agentes do Estado acreditado não poderão
neles penetrar sem consentimento do chefe da missão (art. 22). Entende-se por “locais
de missão”, os edifícios, ou parte dos edifícios e terrenos anexos, seja quem for o seu
proprietário, utilizados para as finalidades da missão, inclusive a residência do chefe da
missão (art. 1.º, i). Chefe de missão é a pessoa encarregada pelo Estado acreditante de
agir nessa qualidade (embaixadores ou núncios; enviados, ministros ou internúncios;
encarregados de negócios).
O chefe da missão é considerado como tendo assumido suas funções no
momento em que entrega suas credenciais ou comunica a sua chegada e apresenta as
cópias figuradas de suas credenciais ao Ministério das Relações Exteriores (art. 13).
Os locais da missão, seu mobiliário e demais bens nela situados, assim como os
meios de transporte da missão, não poderão ser objeto de busca, requisição, embargo
ou medida de execução (art. 22, 3), sendo invioláveis os arquivos e documentos da
missão, em qualquer momento, onde quer que se encontrem (art. 24).
A pessoa do agente diplomático é inviolável e não pode ser objeto de nenhuma
forma de detenção ou prisão (art.29). Agentes diplomáticos são o chefe da missão e os
membros do pessoal diplomático da missão, ou seja, os membros do pessoal da missão
que tiverem a qualidade de diplomata (art. 1o., d e e).
Os agentes diplomáticos gozam de imunidade de jurisdição penal e não são
obrigados a prestar depoimento como testemunha (art. 31), embora, se o desejarem,
possam fazê-lo.
As imunidades abrangem os membros da família dos agentes diplomáticos que
com eles convivam, desde que não sejam nacionais do Estado acreditante (art. 37, 1).
Estendem-se também aos membros do pessoal administrativo e técnico da missão
(assim como aos membros de suas famílias que com eles convivam), desde que não
sejam nacionais do Estado acreditante nem nele tenham residência permanente (art.37,
2).
O direito às imunidades surge a partir do momento em que seu titular entre no
território do Estado acreditante para assumir seu posto ou, no caso de já se encontrar no
referido território, desde que sua nomeação tenha sido notificada ao Ministério das
Relações Exteriores (art. 39, 1). Quando terminarem as funções de uma pessoa que
goze de privilégios e imunidades, esses privilégios e imunidades cessarão normalmente
quando esta pessoa deixar o país ou quando transcorrido um prazo razoável que lhe
tenha sido concedido para tal fim (art. 39, 2). Em caso de falecimento de um membro
da missão, os membros de sua família continuarão no gozo das imunidades a que têm
direito, até a expiração de um prazo razoável que lhes permita deixar o Estado
acreditante (art. 39, 3).
Os membros do pessoal de serviço que não sejam nacionais do Estado
acreditante, nem nele tenham residência permanente, gozam de imunidade quanto aos
atos praticados no exercício de suas funções (art. 37, 3). Como se percebe, procura-se
preservar, a todo custo, os interesses do Estado acreditante.
Os funcionários da ONU, quando em missão no território nacional, gozam,
igualmente, de imunidades (art. 105, Carta da ONU). A imunidade cobre também o
chefe de Estado estrangeiro em visita ao país, bem como os membros de sua comitiva.
Não mais se acolhe a velha ficção da extraterritorialidade da sede diplomática,
que é, para todos os efeitos, território nacional. Os crimes que aí forem praticados, por
pessoas que não gozam de imunidade, serão julgados pelo país onde esteja a
representação diplomática.
Um ressalva deve ser feita quanto a agentes consulares, pois salvo convenção
em contrário, os agentes consulares são funcionários administrativos, conforme a
Convenção de Viena sobre Relações Consulares (1963), promulgada pelo Decreto n.º
61.078/1967. Por isso, não gozam de imunidades, mesmo quando pratiquem atos
diplomáticos, nos casos em que o Estado que envia não mantém missão diplomática,
nem está representado por um terceiro Estado (art. 17, 1).
Entende-se por funcionário consular toda pessoa, inclusive o chefe da
repartição consular, encarregado, nessa qualidade, do exercício de funções consulares
(art. 1.º, 1, d). As funções consulares estão especificadas no art. 5.º da Convenção, e
basicamente consistem em proteger, no Estado receptor, os interesses do Estado que
envia e os de seus nacionais, pessoas físicas ou jurídicas, dentro dos limites permitidos
pelo direito internacional.
Os locais consulares (edifícios ou parte dos edifícios e terrenos anexos, que,
qualquer que seja seu proprietário, sejam utilizados exclusivamente para as finalidades
da repartição consular) são invioláveis.
Quando se instaura processo penal contra um funcionário consular, este será
obrigado a comparecer perante as autoridades competentes. Todavia, as diligências
devem ser conduzidas com as deferências devidas à sua posição oficial e de maneira
que perturbem o menos possível o exercício das funções consulares (art. 41, 3). A
prisão preventiva só poderá ser decretada em caso de crime grave (art. 41, 1). Por crime
grave, devem ser considerados os que são punidos com a pena de reclusão no mínimo
superior a 2 anos. É perfeitamente possível a prisão em flagrante, a qual, todavia,
somente será mantida se se tratar de crime grave. Em caso de prisão de um membro do
pessoal consular ou de instauração de processo penal contra o mesmo, o Estado receptor
devera notificar imediatamente o chefe da repartição consular. Se este último for o
objeto de tais medidas, o Estado receptor levará o fato ao conhecimento do Estado que
envia, por via diplomática (art. 42).
Os empregados consulares e membros do pessoal de serviço não poderão negar-
se a depor como testemunha, salvo quanto a fatos relacionados com o exercício de suas
funções. Todavia, se o funcionário consular recusar-se a prestar depoimento, nenhuma
medida coercitiva ou qualquer outra sanção ser-lhe-á aplicada. A autoridade que
solicitar o depoimento deverá evitar que o funcionário consular seja perturbado no
exercício de suas funções, podendo tomar o depoimento em seu domicílio ou na
repartição consular, ou aceitar sua declaração por escrito, sempre que possível (art. 44).

5.2. Imunidades parlamentares

As imunidades visam a garantir a liberdade do parlamentar no exercício do


mandato, evitando toda coação sobre o Poder Legislativo, e são integralmente
disciplinadas pela Constituição Federal. Fundam-se no direito público interno e são de
duas espécies:

a) Imunidade material ou penal - constitui privilégio de direito penal substantivo, já não


se considera que o parlamentar cometa crime por suas opiniões, palavras e votos. O art.
53, na redação dada pela Emenda Constitucional n.° 35/2001, à CF/88, estabelece que
“os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas
opiniões, palavras e votos”. A inviolabilidade, por óbvio, não abriga manifestações do
parlamentar estranhas à sua atividade como membro do Legislativo, significando a
atividade do congressista, na Casa do Congresso a que pertence, ou em missão oficial,
por determinação dela. Persiste a inviolabilidade no caso de manifestação produzida
fora do recinto da Casa Legislativa, desde que ela guarde relação com o exercício do
mandato. A inviolabilidade subsiste em qualquer caso, mesmo quando se trate de ofensa
subversiva que constitua crime contra a segurança nacional (art. 26, Lei n.º 7.170/83).
A inviolabilidade pela manifestação do pensamento, no desempenho das funções
públicas, na tribuna de qualquer das Casas do Congresso, é elementar ao regime
representativo. Sempre se considerou essa inviolabilidade como inerente ao exercício
da mandato.
b) Imunidade formal ou processual - privilégio de natureza processual, que se relaciona
com a prisão, o processo e o julgamento do congressista, embora admita-se a prática de
crime. É de duas modalidades: (a) vedação de prisão do parlamentar, salvo em flagrante
de delito inafiançável; e (b) possibilidade de sustação, pela Casa Legislativa, do
andamento da ação penal por crimes praticados após a diplomação. A imunidade
processual relacionada à prisão do parlamentar está prevista no art. 53, § 2.º, CF. Quanto
ao andamento da ação penal intentada contra congressista, a instauração de processo
contra congressista independe de licença ou de qualquer outra condição especial.
Apenas, o andamento de processo instaurado pode ser sustado pela Casa Legislativa à
qual pertença o parlamentar. Compete ao STF o julgamento de deputados federais e
senadores, qualquer que seja a natureza do delito (arts. 53, § 1.º; e 102, I, b, CF). Caso
a ação penal cuide de delitos praticados antes e após a diplomação, a sustação somente
pode se relacionar com os crimes praticados após a diplomação, podendo o processo
prosseguir livremente quanto aos delitos a ela anteriores. A sustação pode ocorrer em
qualquer fase do andamento da ação penal, até final sentença. Embora a lei mencione
“denúncia”, a sustação também é possível no caso de ação penal iniciada por queixa.
O art. 27, § 1.º, da Constituição Federal estende as imunidades parlamentares,
penal e processual, aos Deputados Estaduais. Já os Vereadores não gozam de imunidade
processual, somente possuindo imunidade substantiva “por suas opiniões, palavras e
votos, no exercício do mandato e na circunscrição do Município. ” (art. 29, VIII, CF).

6. Sentença penal estrangeira

A execução de sentença é ato de soberania e, assim, a sentença penal estrangeira


não pode ser executada no Brasil, por força do princípio da territorialidade.
Limitadamente, porém, admite-se a homologação da sentença penal estrangeira, para
obrigar o condenado à reparação do dano, restituições e outros efeitos civis (ex.: arts.
1.184, I a III; e 1.595, Código Civil). Neste caso a homologação depende de pedido da
parte interessada, visando efeitos puramente patrimoniais (art. 9.º, parágrafo único, a,
CP).
Além dessa hipótese, é possível sujeitar o condenado à medida de segurança. A
homologação aqui tem por fim a execução de medidas preventivas, no interesse do
Estado. As medidas de segurança estão previstas no art. 96, CP. A homologação da
sentença neste caso depende da existência de tratado de extradição com o país de cuja
autoridade judiciária emanou a sentença, ou, na falta de tratado, de requisição do
Ministro da Justiça (art. 9.º, parágrafo único, b, CP).
A homologação da sentença estrangeira compete ao Superior Tribunal de Justiça
(art. 105, I, i, CF).
TEORIA DO CRME

1. Teoria do crime

A teoria do crime é a parte da Dogmática Jurídico-Penal que estuda o crime


como fato punível, do ponto de vista jurídico, para estabelecer e analisar suas
características gerais, bem como suas formas especiais de aparecimento.
Não há, no Direto Penal brasileiro, diversamente do que ocorre em outros
sistemas legislativos, distinção entre crime e delito; tais expressões são empregadas
como sinônimas. Fato punível é designação mais ampla, abrangendo crime (ou delito)
e contravenção, que constituem distintas espécies de ilícito penal.
Não há diferença substancial entre crime e contravenção. Esta constitui apenas
a infração penal de menor gravidade, caracterizando-se pela pena cominada ao fato. O
art. 1.º da antiga lei de introdução ao CP dispunha: “considera-se crime a infração penal
a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa
ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal que a lei
comina, isoladamente, pena de prisão simples, ou de multa, ou ambas, alternativa ou
cumulativamente”. Esse critério continua em vigor.
O conceito de crime foi estabelecido pela lei penal, mas apenas pela doutrina.
Considera-se que crime é a ação (ou omissão) típica, antijurídica e culpável, como será
visto adiante.

2. O ilícito penal

Crime é essencialmente conceito jurídico, enquadrando-se na teoria geral do


direito. Constitui o crime conduta contrária ao direito, situando-se na vasta categoria do
ilícito jurídico em geral.
Deve-se estabelecer, de plano, a diferença entre o ilícito penal e o ilícito civil.
A diferença entre eles está na consequência jurídica de um e de outro. O ilícito penal
tem como sanção a pena criminal; no ilícito civil vem a ser imposta uma penalidade,
que é a obrigação de compor o prejuízo, seja pela restituição, seja pela indenização.

3. Conceito de crime

Como dito, a elaboração do conceito de crime compete à doutrina. Não existe,


no CP vigente, definição de crime, como havia, por exemplo, no Código Criminal de
1830 e no CP de 1890. Definições legais foram abandonadas, para que se evitasse que
pudessem gerar dificuldades à aplicação da lei.
Em doutrina, cogita-se de conceito formal e material, bem como de conceito
analítico de crime. O primeiro corresponde a definição nominal (relação de um termo
àquilo que o designa); o segundo, a definição real, que procura estabelecer o conteúdo
do fato punível. O conceito analítico, de grande importância técnica, indica as
características ou elementos constitutivos do crime.

a) Conceito formal - crime é toda ação ou omissão proibida pela lei, sob ameaça de
pena;

b) Conceito material - crime é um desvalor da vida social, ou seja, uma ação ou omissão
que se proíbe e se procura evitar, ameaçando-a com pena, porque constitui ofensa (dano
ou perigo) a um bem, ou a um valor da vida social. Crime é, assim, numa definição
material, a ação ou omissão que, a juízo do legislador, contrasta violentamente com
valores ou interesses do corpo social, de modo a exigir seja proibida sob ameaça de
pena. Tal conceito acabou fracassando e, por isso, pode-se afirmar que não existe um
conceito naturalístico, sociológico ou criminoíógico de delito, independente da
previsão legal. Crime é necessariamente conceito normativo, ou seja, é infração a
proibição ou o mandado estipulado pelo legislador sob ameaça de pena.

c) Conceito analitico - a o crime como ação ou omissão típica, antijuridica e culpável.


Ação é atividade conscientemente dirigida a um fim. Omissão, por sua vez, é a
abstenção de atividade que o agente podia e devia realizar. A expressão típica
corresponde a um tipo de delito, ou seja, a um modelo legal de fato punível. Antijurídica
ou ilícita estabelece ser contrária ao direito, por não existir qualquer permissão legal
para a conduta (legítima defesa, estado de necessidade etc.). Por fim, deve ser culpável
e culpabilidade se refere ao juízo de reprovação que recai sobre a conduta ilícita de
imputável que tem ou pode ter consciência da ilicitude, sendo-lhe exigível
comportamento conforme ao direito.

4. Teorias da ação

4.1. Noção

De acordo com o conceito mais difundido no Brasil, ação é atividade humana


conscientemente dirigida a um fim. Distingue-se do acontecimento puramente causal
(como a chuva ou o raio) precisamente porque neste movem-se forças cegas que não
estão encaminhadas à realização de fins.
A ação integra-se por meio de um comportamento exterior, objetivamente, e,
subjetivamente, por meio do conteúdo psicológico desse comportamento, que é a
vontade dirigida a um fim. Compreende a representação ou antecipação mental do
resultado a ser alcançado, a escolha dos meios e a consideração dos efeitos
concomitantes ou necessários e o movimento corporal dirigido ao fim proposto.
Não basta, para caracterizar a ação, a simples voluntariedade, ou seja, um
componente psicológico sem conteúdo. Ninguém pratica crime enquanto se limita a
idealizar ou desejar a realização de uma conduta punível. A ação requer atividade
voluntária dirigida a um fim determinado.

4.2. Teorias da ação

O conceito de ação, todavia, não constitui conceito unívoco. Cada um dos


sistemas penais propostas definem e analisam a conduta de um modo particular, pois é
em torno da conduta humana que são estruturados os princípios e os sistemas de direito
penal.
A primeira das teorias formuladas foi a chamada Teoria Causalista. Segundo
esta, ação seria comportamento humano que causa um resultado. A teoria causal se
preocupa, única e exclusivamente, com o aspecto físico, dizendo que a ação é a causa
do resultado; sinteticamente, para a teoria causal, agir é causar o resultado, agir é,
efetivamente, com movimentos físicos, dar ensejo à causação de resultados típicos.
A relação psíquica entre conduta e o resultado que ele causou, significa dizer,
para o Causalismo, os elementos psicológicos (dolo e culpa) não integram a conduta e
devem ser analisados dentro na culpabilidade. A ação diz respeito apenas a aspectos
externos e objetivos. Logo, a preocupação maior dos causalistas era, efetivamente, o
aspecto físico da ação, o aspecto da natureza.
Significa dizer que para determinar o conceito de ação basta saber que o
comportamento foi voluntário, não importando nem o conteúdo nem o alcance da
vontade, do ponto de vista normativo, matéria a ser considerada em outro ponto do
sistema. O resultado (evento) pertence à ação, conceito que abrange o comportamento
ativo (ação em sentido estrito) e a omissão, bem como a relação de causalidade.
Os autores mais conhecidos da Teoria Causalista foram Beling, Von Lizst e
Radbruch.
Por conta de seu conceito de ação, alguns defeitos foram apontados no
Causalismo. O primeiro deles diz respeito aos comportamentos omissivos, nos quais
não existe causação de resultado, mas inexiste o impedimento de sua ocorrência. Em
segundo lugar, o caso da tentativa, me que pode não haver resultado externo e, portanto,
sem que haja ação, não se justifica a punição. Por fim, os chamados elementos
normativos do tipo, em que necessariamente tem que haver alguma forma de conceito
que não entende diretamente da norma e necessita de definição pelos intérpretes da
norma.
Tais defeitos foram apontados por uma corrente de pensamento conhecida como
neokantistas, pois revisitaram, na década de 20 de século passado, o pensamento de
Kant. Tal corrente teve como maior virtude ter apontado as falhas do sistema anterior,
sem, todavia, ter propriamente proposto uma solução.
Talvez o autor mais conhecido dessa corrente de pensamento tenha sido Mezger.
A proposta alternativa surgiu somente a partir da década de 1930, com o advento
de uma corrente de pensamento conhecida como finalismo, que teve em Welzel o seu
principal formulador. Sustentava que a característica preponderante da conduta humana
não está abrangida no conceito causal: a racionalidade. É isto que diferencia as conditas
humanas daquelas praticadas pelos outros animais. Em decorrência disso, o conceito de
ação deve, forçosamente, incorporar essa noção de racionalidade. Todo ser racional age
com uma finalidade.
Assim, incorporou-se ao conceito de ação esse elemento preponderante, ao
sustentar-se que conduta é uma ação ou omissão humana, consciente e voluntariamente
dirigida a um fim.
Por essa razão, o elemento psicológico deixou de integrar a culpabilidade e
passou a fazer parte da tipicidade, que foi composta por tipo objetivo, o que se
exterioriza da conduta, e por tipo subjetivo, a finalidade que compõe a conduta (dolo e
culpa).
O finalismo é, ainda hoje, a teoria mais comumente adotada no Brasil.
A seguir, na Alemanha, formulou-se a chamada a Teoria Social da ação, cujos
principais defensores são Wessels e Jescheck.
Esta corrente de pensamento não discorda da estrutura sugerida pelo Finalismo,
com dolo e culpa integrando a tipicidade. No entanto, considerava esta proposta
incompleta, pois ação seria comportamento humano conscientemente dirigido a um fim
e socialmente relevante. Wessels e Jescheck não negam o finalismo, mas sustentam a
necessidade de inclusão da noção de relevância social.
Essa teoria teve o mérito de demonstrar que o conceito de ação finalista é
ontológico, sobre o qual não recai nenhum valor. A teoria social sustenta que esse
conceito ontológico estava incorreto, porque negava uma realidade, qual seja, a de que
o direito é uma ciência social.
A crítica que foi formulada a essa proposta foi justamente a da falta de clareza
do conceito de relevância social, pois nunca se esclareceu satisfatoriamente o seu
significado e a sua abrangência.
Mais recentemente, surgiram novos conceitos de ação, que são comumente
reunidos sob a denominação de Teorias Funcionalistas ou Funcionalismo Penal.
Certo é que existem vários sistemas funcionalistas, cada um com suas
características próprias. Aqui, no entanto, serão mencionados apenas os dois mais
importantes: o Funcionalismo Penal Sistêmico, de Jakobs; e o Funcionalismo Penal
Racional-Teleológico, de Roxin e Schünemann.
O Funcionalismo Sistêmico decorre da adoção da chamada teoria dos sistemas.
Esse funcionalismo-sistema do Jakobs tem um conceito de ação próprio.
Vale ressaltar que a própria expressão decorre da importância que passou a ser
atribuída à função do direito penal, a partir da qual as opções de política criminal
adotadas pelo sistema penal podem ser compreendidas. Sustenta-se que a teoria do
delito só pode ser verdadeiramente compreendida a partir da função que tem a
desempenhar de um sistema.
Uma das consequências iniciais do funcionalismo foi a de valorizar a teoria da
pena, sustentando-se a necessidade de seu estudo não de maneira estanque, mas
incorporado à teoria do delito. Jakobs chega mesmo a não desenvolver uma teoria da
pena autônoma, tratando da matéria afeita à teoria da pena na teoria do delito.
Especificamente quanto aos dois modelos funcionalistas mencionados, o
Funcionalismo Penal Sistêmico, de Jakobs, defende a tese de que crime seria a violação
de expectativas sociais desempenhados pelo individuo e geraria a necessidade de
reafirmação da vigência da norma penal por meio da punição. Baseia-se em uma noção
de prevenção geral positiva, na qual incentiva comportamentos conforme a lei.
Ao defender a ideia de vigência da norma penal, Jakobs desconsidera a proteção
de bens jurídicos como função do sistema penal, que pode até ocorrer indiretamente,
mas não é fundamental.
Tal tese tem sido objeto de severas críticas. Dessas, duas são mais repetidas.
A primeira delas sustenta que tal sistema dificulta imensamente a aplicação do
princípio da insignificância ou da bagatela, justamente por não dar relevo a bens
jurídicos.
Já a segunda é talvez a mais severa, ao se sustentar que ao pretender a proteção
da vigência da norma penal, desconsidera-se o indivíduo, que passaria a ser apenas um
instrumento para a consecução da função do direito penal. Seria, portanto, uma corrente
violadora do princípio da dignidade da pessoa humana. Tal concepção levada a extremo
geraria o que o próprio Jakobs definiu como direito penal do inimigo, no qual haveria
a extrema desconsideração do indivíduo.
No que se refere à teoria da ação, a de Jakobs é a chamada teoria da
evitabilidade, na qual a conduta deverá ser penalmente relevante se não se evitou o que
era evitável e permitiu que decorresse um resultado reprovável.
Já o Funcionalismo Penal Racional-Teleológico, de Roxin e Schunemann, parte
de concepção diversa, ao defender a ideia de que o direito penal tem o objetivo de
proteger bem jurídico e que a função da pena deverá também apresentar um caráter de
prevenção especial, ou seja, de evitar que o indivíduo torne a delinquir.
Roxin adota o chamado conceito pessoal de ação, que seria uma manifestação
da personalidade do agente. Ação, dessa maneira, seria toda conduta positiva ou
negativa, ação ou omissão, que expresse a personalidade do sujeito.
A partir daí, pode-se estabelecer se o sujeito vai ou não poder voltar a delinquir.
Dessa maneira, uma pena jamais deverá ser aplicada se houver certeza de que não
ocorrerá reincidência. Não basta que os elementos do conceito analítico de crime
estejam presentes (tipicidade, ilicitude e culpabilidade), como se fora uma operação
matemática. Só haveria necessidade de aplicação de pena quando houvesse a
necessidade de prevenção especial de evitar a reincidência.
No que se refere à estrutura do crime, as diferenças mais relevantes entre os
funcionalismos e o Finalismo dizem respeito ao ilícito em geral e à tipicidade em
particular. Tais distinções serão mencionadas adiante.

4.3. Excludentes de ação

Inexiste ação se o agente atua sem consciência e vontade. Não há, pois, ação,
no caso de coação física irresistível (ex.: obrigar alguém, mediante força física
irresistível, a vibrar o golpe); no caso de ação em completa inconsciência (como no
caso de sonambulismo ou hipnose) e, ainda, nos atos reflexos que consistem numa
reação motora (muscular) ou secretória (glandular), que responde automaticamente a
uma excitação sensitiva (ex.: a tosse, o espirro, o rubor e a palidez emocionais). Não
deixam de ser ação, no entanto, os movimentos impulsivos ou instintivos, das chamadas
ações em curto-circuito, e os movimentos habituais ou mecânicos (resultantes de
prolongada repetição dos mesmos movimentos), pois são suscetíveis de dominação
finalística, integrando-se em atividade dirigida a um fim.

5. Teoria do tipo

5.1. Conceito

Tipo é o modelo legal do comportamento proibido, compreendendo o conjunto


das características objetivas e subjetivas do fato punível.
A expressão tipo não é empregada pela lei. Ela constitui tradução livre da
palavra alemã Tatbestand, correspondendo a figura puramente conceitual elaborada
pela doutrina. Tipo não é o fato delituoso em sua realidade fenomênica, mas, sim, a
descrição legal de um fato que a lei proíbe ou ordena. Adquiriu função autônoma na
estrutura do fato punível com a obra de Ernst Beling (Die Lehre vom Verbrechen, 1906),
que limitava o conceito de tipo às características objetivas do crime, por contraposição
à antijuridicidade e à culpabilidade. Nesta estariam os componentes subjetivos do
delito.

5.2. Tipicidade penal

Diz-se que há tipicidade quando o fato se ajusta ao tipo, ou seja, quando


corresponde às características objetivas e subjetivas do modelo legal, abstratamente
formulado pelo legislador.
A conduta existe como realidade, anterior ao direito. Com o tipo realiza-se uma
valoração jurídica do comportamento (atividade ou inatividade corpórea), por meio da
criação de condutas típicas (ação ou omissão).
A ilicitude penal é sempre estabelecida pelo legislador em tipos de ação ou
omissão, de sorte que estas correspondem a uma conduta a que a ordem jurídica atribui
relevância, já que o legislador a julga ofensiva a determinados valores da vida social.
Pode a conduta típica ser excepcionalmente conforme ao direito (nos casos em que há
causa de exclusão da ilicitude, como, por exemplo, a legítima defesa). A conduta típica,
no entanto, nunca é isenta de valor, mesmo quando ocorre causa de licitude. A ordem
jurídica não contém apenas normas que estabelecem proibições e comandos, mas,
também, normas que contêm permissões, podendo estas ocorrer nas hipóteses de
proibições, para retirar-lhes o caráter de ilicitude.

5.3. Função do tipo

O tipo desempenha duas funções. A primeira é uma função de garantia; a


segunda é a função de fundamentar a ilicitude (antijuridicidade) do fato.
A primeira função do tipo é de garantia. Tal garantia resulta do princípio da
reserva legal, pois ele contém a descrição da conduta incriminada, a que o fato deve
necessariamente ajustar-se.
O tipo desempenha também a função de fundamentar ou indiciar a
antijuridicidade do fato, já que o tipo é valoração jurídica da conduta, mas não implica
necessariamente em sua antijuridicidade, em relação à qual apenas serve, em regra, de
indício.

5.4. Estrutura do tipo

Tipo é a descrição do comportamento proibido e compreende as características


objetivas e subjetivas do fato punível. As características objetivas compõem o tipo
objetivo; as características subjetivas, o tipo subjetivo.

5.5. Elementos do tipo

Na descrição da conduta proibida, o legislador emprega elementos de índole


diversa.
São elementos descritivos aqueles cujo conhecimento se opera por meio de
simples verificação sensorial, o que ocorre quando a lei penal se refere a membro,
explosivo, parto, homem, mulher etc. A identificação de tais elementos dispensa
qualquer valoração.
Ao lado de tais elementos, há os chamados normativos que só podem ser
determinados mediante especial valoração jurídica ou cultural. Exemplos da primeira
hipótese encontramos nos casos em que se inserem na descrição da conduta punível
elementos de natureza jurídica, como cheque, conhecimento de depósito, warrant,
documento, etc. Exemplos da segunda existem nos casos em que o tipo se refere a
elementos cujo conhecimento exige por parte do juiz recurso a valores éticos no meio
cultural e que são, em última análise, valores culturais.
Uma terceira espécie de elementos entrelaça aspectos descritivos e normativos
que se determinam por meio de um juízo cognitivo, que deriva da experiência e dos
conhecimentos que esta proporciona.
Os elementos normativos enfraquecem a função de garantia do tipo,
introduzindo certa indeterminação no conteúdo da conduta punível. Cumpre, no
entanto, observar que a valoração realizada pelo juiz deve ser objetiva, isto é, realizada
segundo os padrões vigentes, e não conforme o entendimento peculiar do julgador.
6. O tipo nos crimes comissivos dolosos

6.1. Tipo objetivo

Nos crimes comissivos dolosos, o tipo descreve ação em que há vontade dirigida
ao fato que consuma o delito. O tipo objetivo, correspondendo ao aspecto objetivo ou
exterior da ação, tem nesta o seu núcleo fundamental.
Pode o tipo construir-se apenas com base na ação (crimes formais) ou pode
referir-se a certo resultado exterior que à ação se ligue por relação de causalidade
(crimes materiais). Nos crimes formais (também chamados de simples atividade ou de
consumação antecipada), o fato punível consuma-se apenas com a prática da ação; nos
crimes materiais, consuma-se com a superveniência do resultado, que também se chama
evento.
O comportamento proibido descreve-se com um verbo, que corresponde à ação.
A ilicitude penal, no entanto, raramente aparece com uma simples ação. Geralmente,
surgem no tipo referências ao sujeito ativo, à vítima, à modalidade da ação ou ao meio,
tempo ou lugar etc. Isso significa que a ofensa ao bem jurídico tutelado ou o desvalor
da ação se apresentam ou são condicionados pelo concurso de tais elementos, que são
constitutivos da infração. A tipicidade exige sempre a exata realização de todos os
elementos da conduta típica, sejam objetivos ou subjetivos.

6.2. Relação de causalidade: teoria da equivalência dos antecedentes, teoria da


causalidade adequada e teoria da imputação objetiva

Nos crimes materiais, isto é, naqueles em que o momento consumativo depende


da superveniência de um resultado exterior à ação, é indispensável estabelecer a relação
da causalidade entre a ação e o resultado. Tal resultado (evento), em tais casos, integra
a descrição da conduta proibida e dele depende a tipicidade.
A questão de nexo causal não tem mais hoje a amplitude e a significação que
lhe atribuíram os juristas que, no século XIX, a introduziram na doutrina, elevando-as
à condição de categoria fundamental na estrutura do delito. A questão do nexo causal
somente surge nos crimes materiais, dela não se cogitando nos crimes omissivos puros
e nos crimes de simples atividade (formais). A relevância da matéria reside no fato de
constituir, a causalidade, limitação à responsabilidade penal: não pode o crime ser
atribuído a quem não for causa dele.
Para determinar quando é possível dizer que o agente deu causa ao resultado,
com seu comportamento, surgiram diversas teorias. Aqui serão mencionadas somente
as que maior influência tem tido no Brasil.
A primeira é a teoria da equivalência dos antecedentes, idealizada em 1858 por
Julius Glaser e desenvolvida com maior profundidade por Maximilian von Buri, que
escreveu no final do século XIX. Esta teoria afirma a equivalência de todos os
antecedentes indispensáveis ao surgimento do resultado concreto, qualquer que tenha
sido a sua categoria ou o grau de contribuição para o evento, não distinguindo entre
causa, condição ou ocasião: tudo o que concorre para o resultado é causa dele. Não é
possível distinguir entre condições essenciais e não essenciais do resultado, sendo causa
do mesmo todas as forças que cooperaram para sua produção, quaisquer que sejam.
Num trabalho escrito em 1894, o sueco Thyrén apresentou uma fórmula prática
para identificar se determinado antecedente é causa, segundo a teoria da equivalência
(que considera o acontecimento concreto, nas circunstâncias em que efetivamente
ocorreu). Trata-se do processo hipotético de eliminação, segundo o qual causa é todo
antecedente que não pode ser suprimido in mente, sem afetar o resultado. Assim, por
exemplo, se o agente fere a vítima levemente, obrigando-a mudar de rumo, para
procurar uma farmácia, vindo ela a morrer de um desastre que ocorre no novo caminho,
não há dúvida de que o agente é causa da morte, pois, se hipoteticamente suprimíssemos
o ferimento, o resultado não teria ocorrido.
A enorme extensão do conceito de causa, segundo a teoria da equivalência, tem
sido a principal censura a ela endereçada, pois estabelece como causa o antecedente de
ínfima importância, em relação ao qual o resultado é totalmente imprevisível. A própria
fabricação da arma é causa do homicídio, com ela perpetrado. Os partidários da teoria,
no entanto, afirmam que ela é limitada pela culpabilidade: ninguém é punido apenas
porque causou, mas porque o fez culpavelmente. E mesmo para os casos de
responsabilidade objetiva, que permanecem em muitas legislações, é possível
estabelecer limites à teoria, por meio do rompimento do nexo causal.
Outra importante teoria formulada sobre a questão do nexo causal é a teoria da
causalidade adequada, que surgiu com a obra de Von Bar, em 1871, e cujo
desenvolvimento se deve a Von Kries: causa é o antecedente adequado para produzir o
resultado. A causa não é considerada em relação ao evento in concreto, mas,
abstratamente, em relação a acontecimento do gênero daquele a que se refere o juízo da
causalidade. O antecedente é causa quando se apresenta geralmente proporcionado ou
adequado ao resultado, o que se constata por meio de um juízo de probabilidade ou
possibilidade.
Em substância, pode-se dizer que a teoria da causalidade adequada distingue as
consequências normais das consequências anormais e extraordinárias, excluindo, em
relação a estas últimas, o nexo causal.
Contra essa teoria observou-se que ela se baseia no conceito de possibilidade,
onde existe não esta, mas a realidade de um evento. Por outro lado, introduz o critério
da previsibilidade, antecipando a questão da responsabilidade. Outrossim, nem sempre
seria razoável excluir a causalidade no caso de efeitos atípicos ou anormais, pois é
possível que o criminoso pratique o crime em circunstâncias excepcionais, do ponto de
vista dos meios e condições em que o evento sucede por conhecer os fatores causais
que podem, no caso, excepcionalmente, conduzir ao resultado.
O CP, afastando-se da orientação geral das legislações, disciplinou a matéria
expressamente, em seu art. 13, adotando a teoria da equivalência dos antecedentes:
“Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”.
A própria legislação penal impõe limites à causalidade, ao estabelecer, no § 1.º
do art. 13, CP, que: “A superveniência de causa relativamente independente exclui a
imputação, quando por si só produziu o resultado; os fatos anteriores, entretanto,
imputam-se a quem os praticou”.
Isto significa que fica excluído o nexo causal quando sobrevém concausa que se
situe fora da linha normal de desdobramento do curso causal, de tal forma que é como
se por si só tivesse causado o evento.
O referido dispositivo legal se refere apenas à concausa relativamente
independente e superveniente. Concausas absolutamente independentes e concausas
preexistentes e concomitantes não rompem o nexo causal.
Em que pese a existência das referidas teorias a respeito da causalidade,
surgiram outras, segunda as quais se pretende reduzir o alcance considerado, por vezes,
excessivo da equivalência das condições. São as chamadas teorias da imputação
objetiva, que tiveram a sua origem a partir do trabalho de Richard Honig, em 1930.
Dentre as teorias da imputação objetiva, por opção didática, far-se-á menção a
duas delas: a teoria do risco (Roxin) e a teoria dos papéis (Jakobs).
No caso particular de Roxin, após a verificação da causalidade, devem ser
examinados os critérios de imputação objetiva e aí, então, determinar se determinado
resultado pode ser atribuído a alguém. Os requisitos seriam:
a) Diminuição do risco – para que haja crime, tem que haver aumento do risco e,se
houver diminuição, não deverá haver imputação de resultado;
b) Criação de um risco juridicamente relevante - o risco a ser criado deve ter
alguma importância e o resultado a ser atingido deve depender exclusivamente
da sua vontade;
c) Aumento do risco permitido – ainda que o risco não tenha sido diminuído, deve
ser demonstrado que houve efetivo incremento do risco;
d) Esfera de proteção da norma – o incremento do risco mencionado deve se
encontrar dentro do alcance protetivo da norma.
Já Jakobs, que considera que o comportamento humano está vinculado a
determinados papéis sociais, adota uma tese em que desconsidera a causalidade. O que
faz é mencionar quatro critérios, que são:
a) Risco permitido – cada indivíduo se comporta conforme o seu papel em
sociedade e, se o fizer, mesmo que crie algum risco, não poderá ser incriminado;
b) Princípio da confiança – as pessoas, em sociedade, devem confiar que as outras
cumprirão os seus papéis sociais e quem agir considerando que os demais agirão
conforme seus papéis, não poderá haver imputação;
c) Proibição de regresso – se cada indivíduo agir conforme o seu papel, não poderá
haver imputação;
d) Competência ou capacidade da vítima – deve ser levado em conta o
consentimento do ofendido e as ações a próprio risco.

6.3. Tipo subjetivo

As ações dos tipos de crimes dolosos não podem ser compreendidas


suficientemente sem a vontade por trás deles. Nesses tipos, o aspecto subjetivo compõe-
se necessariamente, do dolo e, eventualmente, de outros elementos subjetivos especiais
da conduta, chamados elementos subjetivos do tipo (injusto).
A concepção clássica desconhecia o conceito de tipo subjetivo, surgindo o dolo
como elemento ou forma da culpabilidade.

6.4. Conceito de dolo

O CP define o que se deve entender por dolo, ao estabelecer que o crime é doloso
“quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”(art. 18, I).
Dolo é a consciência e vontade na realização da conduta típica. Compreende
um elemento cognitivo (conhecimento do fato que constitui a ação típica) e um
elemento volitivo (vontade de realizá-la).
O próprio CP estabelece duas modalidades de dolo: direto e eventual.
O dolo direto se subdivide em dolo direto de primeiro grau e dolo direto de
segundo grau.
Há dolo direto de primeiro grau quando o agente se propõe a realização da
conduta típica. O dolo aqui se confunde com a intenção. A vontade se dirige à
realização do fato que configura o delito.
A dúvida quanto a possibilidade de alcançar o resultado é irrelevante. Assim,
não deixa de haver dolo direto se o agente alveja a vítima sem saber se conseguirá
atingi-la.
Há dolo direto também em relação ao meio e ao resultado que necessariamente
estão ligados à realização da conduta típica, mesmo que não sejam desejados pelo
agente. Se este sabe que a ação necessariamente acarreta resultado concomitante, e não
obstante a pratica, quer, por certo, também, esse resultado, embora o lamente. É o caso
de quem, visando eliminar seu inimigo, coloca engenho explosivo no avião que o
transporta, sabendo que o mecanismo será acionado durante o vôo. É o dolo de
consequências necessárias.
Por sua vez, no dolo direto de segundo grau, o querer liga-se com outra
finalidade, porém abrange os efeitos colaterais necessários do fim proposto ou do meio
escolhido, efeitos estes representados no momento psicológico do dolo.
Haverá essa modalidade de dolo direto no caso, por exemplo, do agente que
coloca uma bomba em um avião a ser explodida, em pleno voo, com o propósito de se
vingar da companhia aérea que o demitira –, o fim proposto (vantagem ilícita em
prejuízo da companhia de seguros) e os meios escolhidos (explosão do avião), são
abrangidos imediatamente, pela vontade consciente do agente. Já os efeitos colaterais
necessários (mortes e lesões de membros da tripulação e de passageiros) em face da
natureza do fim proposto ou dos meios empregados são abrangidos mediatamente, pela
vontade consciente do agente, mas sua produção necessária os situa, também, como
objetos de dolo direto.11
Já dolo eventual surge quando o agente assume o risco de produzir o resultado
(CP, 18, I, in fine).
Assumir o risco significa prever o resultado como provável ou possível e aceitar
ou consentir sua superveniência. O dolo eventual aproxima-se da culpa consciente e
dela se distingue porque nesta o agente, embora prevendo o resultado como possível ou
provável, não o aceita nem consente. Não basta, portanto, a dúvida, ou seja, a incerteza
a respeito de certo evento, sem implicação de natureza volitiva. O dolo eventual põe-
se na perspectiva da vontade, e não da representação, pois esta última pode conduzir
também a culpa consciente.
Deve-se a Frank a formulação de um princípio chamado de teoria positiva do
consentimento, que é útil, como critério prático, para identificar o dolo eventual.
Segundo tal princípio, há dolo eventual quando o agente diz a si mesmo: “seja assim ou
de outra maneira, suceda isto ou aquilo, em qualquer caso, agirei”. Revela-se, assim, a
indiferença do agente em relação ao resultado.
Nossa lei equipara o dolo direto ao dolo eventual. Na aplicação da pena, todavia,
a lei manda que o juiz atenda à culpabilidade do agente (art. 59, CP), ou seja, à maior
ou menor reprovabilidade da conduta delituosa. O elemento essencial do juízo de
reprovação é o conteúdo psicológico da ação ou da omissão. O dolo direto revela maior
determinação e perversidade e é, pois, modalidade mais grave da conduta típica que o
dolo eventual.

7. O tipo nos crimes culposos

7.1. Crimes culposos

Durante muito tempo se imaginou que a previsibilidade do evento constituía a


essência do crime culposo e que esse delito tinha no resultado lesivo o seu aspecto
fundamental, sendo fato punível que se consubstanciava num desvalor do resultado.
Essa concepção deixava em plano secundário a tipicidade e, sobretudo, a

11
SANTOS, Juarez Cirino. Direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 138.
antijuridicidade do crime culposo, além de supor que a essência da culpa (negligência)
estivesse num elemento psicológico.
A concepção clássica da doutrina do Direito Penal reduzia o crime culposo a
uma forma da culpabilidade, representada pela negligência, imprudência ou imperícia
da causação do resultado, que constituiria, como nos correspondentes crimes dolosos,
a conduta típica. O dolo e a culpa stricto sensu são, no entanto, inteiramente diversos.
Dolo é fenômeno psicológico, ao passo que a culpa stricto sensu só tem existência no
plano normativo.
Entre a ação ou omissão provocadora do resultado e a culpabilidade faltava um
momento essencial, que era o da omissão de cuidado externo, sem a qual não era
possível fundamentar a antijuridicidade do crime culposo. Quando se verificou que a
ação, nos crimes culposos, só era antijurídica na medida em que violava o cuidado
exigido no âmbito da vida de relação, demonstrou-se que o elemento decisivo da
ilicitude do fato culposo reside no desvalor da ação e não do resultado. Isso permitiu a
elaboração da estrutura do crime culposo.
O Código Penal vigente limita-se a dizer que o crime é culposo quando o agente
deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia (artigo 18, inciso II,
CP). A lei não define o que se deve entender por crime culposo. Há crime culposo
quando o agente, violando o cuidado, a atenção ou a diligência a que estava adstrito,
causa o resultado que podia prever, ou que previu, supondo, no entanto, levianamente,
que não ocorreria.

7.2. Elementos do crime culposo

A partir do conceito acima enunciado, podem ser estabelecidos os seguintes


elementos que precisam estar presentes na conduta praticado para possa haver um crime
culposo. São eles:

a) Conduta lícita;
b) Previsibilidade;
c) Inobservância das normas de atenção, cuidado ou diligência;
d) Resultado.

Na hipótese de dolo, é típica qualquer ação idônea (ou seja, com potencialidade
causal) por meio da qual o agente causa o resultado, realizando a conduta proibida.
Nesse caso, o agente quer o resultado ou assume o risco de produzi-lo.
No caso de culpa, no entanto, a vontade é dirigida a outros fins. Não obstante,
o agente causa o resultado porque atuou sem observar as normas de atenção, cuidado
ou diligência impostas pela vida de relação, tendo-se em vista as circunstâncias do fato
concreto. Tais normas são fixadas de modo objetivo e geral, ou seja, segundo os
padrões médios gerais vigentes no meio social, constituindo o cuidado objetivo
exigível.
A ação que desatenda ao cuidado e à atenção adequados, nas circunstâncias em
que o fato ocorreu, provocando o resultado, é típica, embora trata-se de conduta, em
tese, lícita, que somente adquire status de ilícita por conta do resultado que deu causa.
Ademais, é exigível o cuidado objetivo quando o resultado era previsível para
uma pessoa razoável e prudente, nas condições em que o agente atuou (previsibilidade
objetiva). Daí não surge a culpa nos crimes culposos, pois esta está em função da
reprovabilidade pessoal do comportamento
Para estabelecer a antijuridicidade, é necessária a previsibilidade objetiva do
resultado, ou seja, a possibilidade de previsão para uma pessoa razoável e prudente
(homo medius). Todavia, para estabelecer a culpa, ou seja, reprovabilidade pessoal, é
necessária a previsibilidade para o agente, nas circunstâncias concretas em que atuou e
tendo-se em vista suas condições pessoais (previsibilidade subjetiva). A previsibilidade
objetiva, todavia, é o limite mínimo da ilicitude nos crimes culposos.
A identificação da conduta típica e da ilicitude, requer a análise do cuidado
objetivo exigível nas circunstâncias em que o fato ocorreu, porque a tipicidade resultará
da comparação entre a conduta do agente e a que cumpria observar para atender a tal
cuidado.
A lei vigente refere-se a “imprudência, negligência ou imperícia” (CP, artigo
18, II), que constituem fórmulas gerais de inobservância do cuidado exigível e são
conhecidas como modalidades da culpa. Imprudência é a falta de prudência, de cautela,
de precaução, ou seja, a conduta arriscada; negligência é forma omissiva: desatenção,
desleixo, descuido; imperícia é a falta de aptidão técnica, de habilidade ou destreza, no
exercício de qualquer atividade.
Saber qual era o cuidado exigível, dependerá de meticulosa consideração das
circunstâncias. Ele se mede pelas consequências geralmente previsíveis da ação,
excluindo-se, por isso mesmo, do âmbito dos crimes culposos, os resultados anormais.
O resultado, por sua vez, corresponde à lesão do bem jurídico e tem de estar em
relação de causalidade com ação ou omissão contrária ao dever de cuidado. Se assim
não for, o fato não pode ser imputado ao agente.
A efetiva previsão do resultado (sem aceitar o risco de produzi-lo) dará lugar à
culpa consciente (ou culpa com previsão). Se o agente não previu o resultado que podia
(e devia) prever, a culpa será inconsciente. Essa distinção, em princípio, é irrelevante,
embora alguns autores afirmem que a culpa consciente é mais grave que a inconsciente.
Na culpa inconsciente não há qualquer relação psicológica entre o agente e o resultado
tendo sido este um dos obstáculos intransponíveis da velha teoria psicológica da
culpabilidade. Culpa consciente e culpa inconsciente são as chamadas espécies da
culpa.

7.3. Concorrência de culpa da vítima

Diversamente do que ocorre no campo do direito privado, é irrelevante a


concorrência de culpa da vítima, pois ela não elimina (embora atenue) a culpa do
agente, que deve responder pelo fato. A culpa da vítima deve, no entanto, ser
considerada na medida da pena. Somente a culpa exclusiva da vítima isenta o agente
de responsabilidade penal.

8. O tipo nos crimes omissivos

8.1. Crimes omissivos

São comissivos os crimes que se praticam por meio de ação. Em tais crimes, a
conduta delituosa viola norma que proíbe determinada atividade. Crimes omissivos são
aqueles em que se viola norma que impõe comportamento ativo, com abstenção da
atividade devida. Consistem em não fazer o que a lei manda.
Ressalte-se que a norma penal ora se apresenta sob forma de proibição, ora como
ordem ou comando de agir. No primeiro caso, a norma impõe abstenção de atividade
e se transgride por meio de ação (crimes comissivos). No segundo, a norma impõe
comportamento ativo e se transgride por meio da abstenção da atividade devida (crimes
omissivos).
Os crimes comissivos também podem ser praticados por omissão (crimes
comissivos por omissão). Em tais casos, o agente viola norma implícita existente junto
à norma proibitiva, que lhe impõe (tendo-se em conta a situação em que se acha) o
dever jurídico de ativar-se, impedindo o resultado.
Assim, a omissão dá lugar a duas espécies de crimes omissivos: 1 — Crime
omissivos próprios (ou puros), nos quais a omissão consiste na transgressão pura e
simples de um comando, que estabelece um dever de agir (ex.: omissão de socorro,
artigo 135, CP); 2 — Crimes comissivos por omissão, nos quais a omissão consiste na
transgressão de um dever jurídico de impedir o resultado que configura o fato punível
(ex.: tendo trancado, por inadvertência, seu inimigo, em determinado recinto, o agente
deixa intencionalmente de libertá-lo, abrindo a porta. Pratica, por omissão, o crime de
sequestro, artigo 148, CP)

8.2. Omissão

Omissão é abstenção de atividade que o agente podia e devia realizar. Omissão,


em consequência, não é mero não fazer, mas, sim, não fazer algo que, nas
circunstâncias, era ao agente imposto pelo direito e que lhe era possível submeter ao
seu poder final de realização. É equívoco supor que naturalisticamente poderíamos
reconhecer omissão pela simples observação do comportamento humano. Esta somente
pode revelar uma atividade ou inatividade corpórea. A omissão, porém, envolve
sempre a necessidade de um termo de relação, que depende de um juízo objetivo.
Somente conhecendo a existência de um dever jurídico de ativar-se, pode-se saber se
há omissão na atividade diversa ou na inatividade da mulher. O dever de agir é essencial
à omissão.

8.3. Crimes omissivos próprios

A conduta típica nesses crimes integra-se com a simples desobediência ao


comando de agir, contido na norma. São crimes em que não se exige qualquer outro
resultado, consumando-se com a abstenção daquela atividade que a própria norma penal
impõe, independentemente de qualquer dano ou perigo. Por isso, alguns autores dizem
que esses são crimes de simples desobediência. São exemplos, o crime de omissão de
socorro (artigo 135, CP) e o crime de omissão de notificação de moléstia perigosa
(artigo 269, CP), nos quais qualquer outro resultado é tipicamente irrelevante, de nada
valendo a demonstração de que a ação omitida não teria impedido o resultado que o
legislador procurou afastar.
Por vezes aparecem também crimes omissivos próprios junto a modalidades
comissivas do mesmo fato delituoso, em tipos mistos alternativos. Assim, por exemplo,
o crime de prevaricação (artigo 319, CP) pode ser praticado com a ação de “retardar”
ou com a omissão de “deixar de praticar” ato de ofício.
A tipicidade em tais crimes requer a ocorrência dos fatos de que deflui o dever
jurídico de agir. No crime previsto no artigo 135, CP, por exemplo, deve o agente
deparar com qualquer pessoa em iminente perigo; ou pessoa inválida ou ferida, ao
desamparo; ou criança abandonada ou extraviada. De tal situação surge o dever jurídico
de prestar assistência.
A tipicidade integra-se com a abstenção da atividade devida, o que se demonstra
com o fato de ter o agente permanecido inativo ou realizado ação diversa da que era
exigida e requer também o poder de fato de atuar, evitando a lesão do bem jurídico.
Este último requisito compreende: (a) conhecimento da situação típica da qual deflui o
dever; (b) possibilidade física real de realizar a ação ordenada.
A lei brasileira prevê apenas crimes omissivos próprios dolosos.
A tentativa nos crimes omissivos próprios é inadmissível. Em tais crimes não
se exige a superveniência de resultado e seu momento consumativo é o da simples
abstenção da atividade devida. Em consequência, não é possível fracionar o processo
executivo. Ou o agente atua, e não há crime, ou se omite, e o crime está consumado.

8.4. Crimes comissivos por omissão

Os crimes comissivos por omissão ou omissivos impróprios não são crimes


omissivos em que a punição surge, não porque o agente tenha causado o resultado (não
há causalidade alguma na omissão), mas porque não o evitou. O que gera o ilícito é a
violação do dever jurídico de impedir o resultado. Nestes crimes, portanto, não há
violação de uma proibição, mas de um comando que se situa paralelamente à norma
proibitiva. Junto à norma proibitiva, implícita na lei penal relativa aos crimes
comissivos, surge, também implícita, a norma que impõe ao agente (considerando as
circunstâncias em que se acha) o dever jurídico de ativar-se, impedindo o resultado.
Esta é a norma que impõe o dever de ativar-se, constituindo o agente em garantidor da
não superveniência do resultado. A transgressão dessa norma implícita é que constitui
o crime comissivo por omissão.
O dever de agir aqui, em sua natureza, não difere do que ocorre nos crimes
omissivos próprios, nem do dever de abstenção que surge nos crimes comissivos. Esse
é o dever jurídico que surge com a norma.
A lei vigente especifica as fontes do dever jurídico de impedir o resultado, no
artigo 13, § 2.°, CP. Diz a lei que “a omissão é penalmente relevante quando o omitente
devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: (a) tenha
por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; (b) de outra forma, assumiu a
responsabilidade de impedir o resultado; (c) com o seu comportamento anterior, criou
o risco da ocorrência do resultado”. A lei estabelece, portanto, os pressupostos de fato
de que deflui o dever jurídico.

8.5. A posição de garantidor

O dever de agir impedindo o resultado, nos crimes comissivos por omissão,


surge da posição de garantidor (ou garante). Esta é situação de fato que se relaciona
com o agente, sendo, pois, característica da autoria. Autor de crime comissivo por
omissão só pode ser quem esteja em estreita relação com o bem jurídico tutelado, de
modo a considerar-se garante da não superveniência do resultado. Trata-se, pois, de
crime próprio. Denomina-se crime próprio (ou especial) aquele que só pode ser
praticado por determinadas pessoas que reúnam certas condições (de fato ou de direito)
exigidas para autoria. Ex.: o crime de peculato, artigo 312, CP, que só pode ser
cometido por funcionário público. Os crimes próprios opõem-se aos comuns (que pode
ser praticados por qualquer pessoa, como, por exemplo, o homicídio).
O CP, no artigo 13, § 2°, determina que o dever de impedir o resultado, nos
crimes comissivos por omissão, só pode ser um dever jurídico. Não bastaria, assim,
mero dever moral. Não pratica homicídio, mas sim omissão de socorro, quem
contempla, inerte, o cego estranho precipitar-se de um abismo, podendo impedi-lo.
Esse dever jurídico surge de três tipos de situações, nas quais o agente assume a posição
de garante da não superveniência do resultado:
a) A primeira é aquela em que a posição de garantidor é estabelecida diretamente
pela lei, que, embora atendendo a outros fins, impõe a obrigação de cuidado, proteção
ou vigilância. É o caso das disposições relativas ao direito de família, como, por
exemplo, o dever de guarda e manutenção dos filhos;
b) A segunda situação é a de quem, de outra forma, assumiu a responsabilidade
de impedir o resultado. Costumava-se falar, na antiga doutrina, a propósito em contrato
ou negócio jurídico, como fonte do dever de atuar. Assim, por exemplo, o pedestre que
resolve auxiliar um cego a atravessar a via pública, não pode abandoná-lo em meio ao
tráfico perigoso de veículos, e comete crime se sobrevém lesão corporal ou morte em
virtude de atropelamento;
c) A terceira hipótese em que surge a posição de garante é consequência da
anterior atividade causadora do perigo. Quem cria o perigo de dano tem a obrigação
ou o dever jurídico de afastá-lo. Assim sendo, quem, mesmo sem culpa, põe fogo a um
depósito de feno e abstém-se de salvar pessoa que se achava no interior do mesmo,
praticará o crime de homicídio (doloso ou culposo, conforme o caso).

8.6. Estrutura do crime comissivo por omissão

São elementos do crime comissivo por omissão:

(a) A abstenção da atividade que a norma impõe;


(b) A superveniência do resultado típico em virtude da omissão;
(c) A ocorrência da situação de fato de que deflui o dever de agir.

9. Ilicitude

9.1. Conceito

O sistema punitivo do Estado destina-se à tutela jurídica de bens e valores da


vida social. Essa tutela jurídica se realiza por meio da proibição de determinadas
condutas e da imposição de outras, que a lei descreve nos diversos tipos de delito. A
realização da conduta típica revela, em regra, a ilicitude, pois o tipo é, substancialmente,
tipo de ilícito, ou seja, modelo da conduta que o legislador proíbe e procura evitar,
tornando-a ilícita. Como o ordenamento jurídico não contém apenas proibições, mas,
por igual, normas que permitem ou autorizam certas condutas, em regra proibidas sob
ameaça de pena, não basta a realização da conduta típica para determinar a sua
antijuridicidade: é necessário examinar se a ação ou omissão não estão cobertas por
uma norma permissiva, que exclui a antijuridicidade. Assim, a ação de matar alguém
só será antijurídica se não houver causa de justificação, como, por exemplo, a legítima
defesa.
Distingue-se a antijuridicidade do injusto. Antijuridicidade é a relação
contraditória entre o fato típico e a norma. Injusto é a conduta ilícita em si mesma
considerada. A antijuridicidade é uma qualidade do injusto. A antijuridicidade é
unitária, para todo o ordenamento jurídico, e não pode ser maior ou menor. O injusto
pode ser penal, civil ou trabalhista e é suscetível de ser mais ou menos grave.
Antijurídica é a conduta típica contrária ao direito. Antijuridicidade é juízo de
desvalor (ou juízo negativo de valor) que recai sobre a conduta típica, tendo em vista
as exigências do ordenamento jurídico.
A antijuridicidade é uma para todo o direito. Não existe antijuridicidade
especificamente penal ou civil. Isto significa que aquela conduta que é antijurídica em
determinado ramo do ordenamento jurídico também o será nos demais. O que difere
nos diversos setores é a consequência jurídica (pena ou penalidade).

9.2. Causas da exclusão de antijuridicidade (justificação)

Excluem a antijuridicidade da ação certas situações nas quais a lei permite a


realização da conduta típica que é, pois, lícita.
As causas de justificação estão previstas na lei penal (CP, art. 23), inclusive na
Parte Especial (CP, art. 128). Podem também fundar-se no direito consuetudinário e
resultam da totalidade do ordenamento jurídico. Isso significa que se a ação é permitida
por outro ramo do direito, como, por exemplo, pelo direito civil, não pode ser
antijurídica perante o direito penal. Causas de justificação podem ser encontradas
também na lei processual penal: por exemplo, qualquer pessoa pode e as autoridades
policiais devem deter quem quer que seja encontrado em situação de flagrante delito
(art. 301, CPP), sem que tal conduta configure qualquer ilícito penal; estaremos diante
de hipótese de exercício regular de direito ou de estrito cumprimento do dever legal,
conforme o caso (CP, art. 23, III).
As causas de exclusão da ilicitude poderiam ser classificadas em três grandes
grupos:

a) causas que defluem de situação de necessidade (legítima defesa e estado de


necessidade);
b) causas que defluem da atuação do direito (exercício regular de direito, estrito
cumprimento de dever legal);
c) causa que deflui de situação de ausência de interesse (consentimento do
ofendido).

Os dois primeiros grupos estão previstos na lei penal e, por isso, são
denominados causas legais de justificação. Já o terceiro é conhecido como causa
supralegal de justificação.

9.3. Estado de necessidade

Não atua ilicitamente quem age em estado de necessidade, ou seja, “quem


pratica o fato que a lei define como crime para salvar de perigo atual, que não provocou
por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo
sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se” (art. 24, CP).
O que justifica a ação é a necessidade que impõe o sacrifício de um bem em
situação de conflito ou colisão, diante da qual o ordenamento jurídico permite o
sacrifício do bem de menor valor. A colisão de deveres constitui uma espécie de estado
de necessidade, pois todo dever está vinculado a um determinado bem jurídico.
A legislação vigente, adotando fórmula unitária para o estado de necessidade e
aludindo apenas ao sacrifício de um bem que “nas circunstâncias, não era razoável
exigir-se”, compreende impropriamente também o caso de bens de igual valor (é o caso
do náufrago que, para reter a única tábua de salvamento, sacrifica o outro). Em tais
casos subsiste a ilicitude e o que realmente ocorre é o estado de necessidade como
excludente de culpa (inexigibilidade de outra conduta).
Requer, para sua configuração, o estado de necessidade, a existência de perigo
atual, não provocado pelo agente. Perigo atual significa probabilidade de dano presente
e imediato, não bastando, pois, o perigo meramente possível e, pois, incerto. Se já se
consumou o dano, por igual, inexiste estado de necessidade, ressalvada a hipótese em
que a ação pode ser praticada para fazer cessar o evento que constitui a lesão jurídica
ou para evitar que esta se amplie.
Não pode invocar o estado de necessidade quem por sua vontade provocou o
perigo. Essa fórmula refere-se exclusivamente ao dolo. Pode haver estado de
necessidade se o agente causou culposamente a situação em que surge o perigo. Assim,
por exemplo, se o agente provoca um incêndio por inobservância do cuidado devido,
pode alegar o estado de necessidade, se para salvar-se causa dano inevitável a outrem.
O perigo pode atingir bem de qualquer natureza, do agente ou de terceiro, mas
tal bem deve ter valor preponderante em relação ao bem sacrificado. A aferição do
valor dos bens em presença deve ser feita segundo critérios objetivos e gerais, sendo
indiferente a particular valoração dos respectivos titulares. Saber se era, ou não,
razoável exigir-se o sacrifício do bem ameaçado é questão que se refere à
proporcionalidade entre tal bem e a gravidade da lesão causada. Se o juiz entender que
era razoável exigir o sacrifício do bem em perigo e que, em consequência, inexiste
estado de necessidade, poderá, no entanto, reduzir a pena, de um a dois terços (CP, art.
24, § 2.º).
Característica essencial do estado de necessidade é a de que o sacrifício do bem
de pessoa inocente seja inevitável para salvar o bem em perigo. A ação lesiva deve ser
o único meio de afastar o perigo, que de outro modo não podia ser evitado. Se se trata
de bem pertencente a terceiro, é indiferente se este tinha, ou não, consciência do perigo.
A pessoa atingida pela ação praticada em estado de necessidade não pode reagir
em legítima defesa, mas pode, igualmente, agir em estado de necessidade.
Do ponto de vista subjetivo, é indispensável que o agente atue para salvar o bem
ameaçado, ou seja, deve ter consciência da situação de perigo e agir para evitar a lesão.
A inexistência desse momento subjetivo faz desaparecer o estado de necessidade, sendo
a ação antijurídica.
Não pode alegar estado de necessidade quem tem o dever legal de enfrentar o
perigo (CP, art. 24, § 1.º). É o caso, por exemplo, do salva-vidas que não pode sacrificar
a vida de outrem para salvar a própria, tendo, como tem, o dever de arrostar o perigo.
Se o agente excede os limites da necessidade, responde pelo excesso, a título de
dolo ou culpa, conforme o caso (art. 23, § único, CP).

9.4. Legítima defesa

Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios


necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. (art.
25, CP).
O primeiro requisito da legítima defesa (que é uma espécie do estado de
necessidade) é a existência de agressão ilícita atual ou iminente.
Agressão é todo comportamento que tende a lesionar ou pôr em perigo um bem
jurídico. Pode consistir em omissão, naqueles casos em que o agente tem o dever
jurídico de atuar, impedindo o resultado. Somente o ser humano é capaz de agressão,
não havendo legítima defesa, mas estado de necessidade, contra o ataque de animais.
Há agressão, no entanto, quando o agente se serve de um animal para atingir a vítima,
podendo inclusive ocorrer agressão por omissão se, por exemplo, o agente deixa de
controlar um animal bravio.
A agressão é injusta quando é praticada ilicitamente, ou seja, antijuridicamente.
É injusta a agressão que o direito não autoriza nem permite e que o agredido não está
obrigado a suportar. É injusta a agressão praticada por inimputáveis ou por quem age
sem culpabilidade, sendo, pois, cabível, em tais casos, a legítima defesa.
A injustiça da agressão não se exclui pela provocação. É possível, no entanto,
que por meio da provocação procure o agente criar mero pretexto para a prática do
crime, caso em que inexiste legítima defesa. Também não há legítima defesa se a
provocação constitui verdadeira agressão.
A agressão deve ser real, e não suposta, pois em tal caso haveria erro de
proibição que, afastando a reprovabilidade do comportamento, deixaria subsistir a
antijuridicidade.
A agressão deve se atual ou iminente. É atual a que está se desenvolvendo; é
iminente a que está em via de efetivação imediata. Não é atual a agressão que já
terminou, com a consumação do ataque ao bem jurídico, salvo se este se protrai (como
nos crimes permanentes). Não é iminente a agressão quando há apenas ameaça de
acontecimento futuro.
Por meio da legítima defesa qualquer bem jurídico pode ser protegido. A
agressão pode, assim, dirigir-se contra bem jurídico de qualquer natureza, sendo
irrelevante que pertença ao agente ou a terceiro, podendo tratar-se inclusive da
coletividade ou do Estado.
A reação defensiva própria da legítima defesa deve ser praticada com vontade
de defesa. Isso significa que o agente deve ter consciência da agressão e deve atuar
para defender-se, sendo irrelevante que, eventualmente, concorram outros fins e
motivos.
A ação de defesa deve ser necessária, ou seja, deve exercer-se com o emprego
moderado dos meios necessários para repelir a agressão. Cogita-se, portanto, da defesa
ativa ou ofensiva, e não da mera defesa passiva, que não configura a objetividade de
qualquer delito.
Empregar moderadamente os meios necessários significa usar os meios
disponíveis, na medida em que são necessários para repelir a agressão. Deverão aqui
considerar-se as circunstâncias em que a agressão se fez, tendo-se em vista a sua
gravidade e os meios de que o agente podia dispor. Embora em princípio não se cogite,
na legítima defesa, da proporcionalidade entre o bem agredido e o sacrifício, não pode
ser legítima a morte do agressor para salvar, por exemplo, bem material de ínfima
importância.
Segundo a lei brasileira, se o agente excede os limites da legítima defesa,
responderá pelo excesso, quer seja ele doloso ou culposo (art. 23, § único, CP).
Os limites a que se refere a lei são os limites da necessidade. O excesso,
precisamente por ser excesso, pressupõe a existência anterior da situação de legítima
defesa. Trata-se de uma legítima defesa em que a pessoa injustamente agredida se
defende demais. O excesso deve ocorrer, portanto, diante de agressão injusta atual ou
iminente, pois são esses os pressupostos fundamentais da legítima defesa.
São as seguintes as modalidades de legítima defesa normalmente mencionadas:
a) Legítima defesa real ou própria – é a tradicional defesa legítima contra agressão
injusta, atual ou iminente, na qual devem estar presentes todos os requisitos de
sua configuração;
b) Legítima defesa putativa – hipótese de erro, na qual o agente pode se imaginar
erroneamente em situação de agressão injusta. Caso o indivíduo esteja em
situação em que atue sincera e intimamente convencido da necessidade de
repelir agressão, haverá a causa de justificação.
c) Legítima defesa sucessiva – hipótese de excesso, que permite a defesa legítima
do agressor inicial em relação justamente ao excesso.
d) Legítima defesa recíproca – a chamada legítima defesa da legítima defesa. É
inadmissível, pois que pratica a agressão injusta não poderá se defender
legitimamente da reação lícita ao seu ato.

9.4.1. A questão do excesso por parte do funcionário público



O excesso por parte do servidor público poderá acarretar a tipicidade de uma
das ações contidas na Lei de Abuso de Autoridade (Lei no 13.869/2019) ou mesmo no
Código Penal, na parte que trata dos crimes praticados por funcionários públicos (arts.
312 e segs.).
Exige-se, por óbvio, que o agente atue ciente de estar estritamente cumprindo
sua missão legal.

9.4.2. Violência policial e estrito cumprimento do dever legal

A questão do estrito cumprimento do dever legal é mais saliente, no Brasil,


quando conjugada com a questão da violência policial, até porque não existe entre nós,
em regra, um suposto dever legal de matar traficantes, bandidos etc.
É por isso que a doutrina prefere enfrentar a questão do confronto policial com
resultado de morte de suspeitos, bem assim os chamados autos de resistência, não
dentro da teoria do estrito cumprimento do dever legal, mas, sim, sob os parâmetros da
legítima defesa.
Conforme Assis Toledo, esta norma permissiva não autoriza que os agentes do
Estado possam, amiúde, matar ou ferir pessoas apenas porque são marginais ou estão
sendo legitimamente perseguidos. A própria resistência do eventual infrator não
autoriza essa excepcional violência oficial (monopólio do uso da força). Se a resistência
– ilegítima – constituir-se de violência ou grave ameaça ao exercício legal da atividade
das autoridades públicas, configura-se uma situação de legítima defesa, permitindo a
reação dessas autoridades, desde que empreguem moderadamente os meios necessários
para impedir ou repelir a agressão. Mas, a atividade tem de ser legal e a resistência com
violência tem de ser injusta, além da necessidade da presença dos demais requisitos da
legítima defesa. Será uma excludente dentro da outra.
Nesse contexto, a Lei no 13.964/2019, alterou o art. 25, do CP, para incluir o
parágrafo único, que estabelece que, observados os requisitos previstos no caput deste
artigo, considera-se também em legítima defesa o agente de segurança pública que
repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de
crimes.

9.5. Exercício regular de direito

Não é antijurídica a ação praticada no exercício regular de direito (CP, art. 23,
III), pois é inconcebível que o ordenamento jurídico, por um lado, confira um direito,
e, pelo outro, torne ilícita a ação que corresponde ao exercício de tal direito. A ilicitude,
no caso, somente pode surgir se o agente excede os limites fixados pela lei para o
exercício do direito, ou seja, por meio do abuso. É indispensável que o agente tenha
consciência de que atua no exercício de um direito. O excesso, doloso ou culposo, é
punível.
Os casos de intervenção cirúrgica são, em geral, resolvidos como exercício
regular de direito. Todavia, mais correto será reconhecer a inexistência de ilicitude nas
intervenções cirúrgicas praticadas segundo as leges artis, por sua evidente adequação
social, qualquer que seja o resultado. Serão, evidentemente, ilícitas e criminosas as
intervenções cirúrgicas em que houver culpa stricto sensu (negligência ou imperícia).
Constituem, igualmente, exercício de direito as hipóteses de dano à integridade
corporal resultante de esportes violentos. Esses esportes são regulamentados pelo
Estado, e se realizam para atender a fins socialmente úteis e valiosos (pro virtute). A
ilicitude surge, aqui também, com o abuso, representado pela transgressão das regras
do jogo.

9.6. Estrito cumprimento de dever legal

É também caso de exclusão da antijuridicidade por atuação do direito o do


estrito cumprimento de dever legal (CP, art. 23, III). Já aqui não se trata de faculdade
(direito subjetivo), mas de obrigação imposta pela lei como um dever, de que o agente
deve ter consciência.
Deve tratar-se de dever legal e não apenas moral ou social. Cumprem dever
legal, por exemplo, o oficial de justiça que ingressa em imóvel para executar despejo
forçado ou o carrasco que executa o sentenciado à pena de morte. A ilicitude, aqui
também, surge com o excesso e o abuso, devendo o agente limitar-se ao estrito
cumprimento do dever.

9.7. Consentimento do ofendido

Não alude a lei ao consentimento do ofendido como causa de exclusão da


ilicitude. Todavia, há casos em que a renúncia do titular do bem jurídico afasta a
ilicitude, pois a proteção jurídica está em função da ausência de consentimento.
Neste caso, encontram-se as hipóteses em que a tutela jurídica se exerce em
relação a bem jurídico disponível, ou seja, a bem jurídico exclusivamente de interesse
privado (que a lei protege somente se é atingido contra a vontade do interessado). O
consentimento jamais terá efeito quando se tratar de bem jurídico indisponível, ou seja,
aquele bem em cuja conservação haja interesse coletivo. A honra, a liberdade, a
inviolabilidade dos segredos, o patrimônio são bens disponíveis. A vida e a
administração pública, por exemplo, são bens irrenunciáveis ou indisponíveis.
O consentimento deve ser dado pelo titular único do bem jurídico, mas não
vigoram a tal respeito as limitações do direito civil. Será válida a manifestação de
vontade de quem é capaz de discernimento, não obtida por meio da coação ou da fraude.
O consentimento deve ser contemporâneo à ação, sendo irrelevante o consentimento
posterior, embora possa ter efeitos práticos nos crimes cuja persecução se procede
mediante queixa ou representação do ofendido (CP, art. 100, § 2.º). Antes de praticada
a ação, pode o consentimento ser revogado.
É indispensável que o agente tenha consciência do consentimento e atue em
função dele.

9.8. Ofendículos

Ofendículos (offendiculas) são conhecidos como defesas predispostas, que


significam dispositivos ou instrumentos objetivando impedir ou dificultar a ofensa ao
bem jurídico protegido.
Há quem diferencie ofendículos da defesa mecânica predisposta. Os primeiros
seriam percebidos com facilidade pelo indivíduo, como o caso de fragmentos de vidro
sobre o muro, pontas de lanças, grades, fossos, etc. Já a outra consistiria forma de defesa
oculta, ignorada pelo suposto agressor, como armas automáticas predispostas e cercas
eletrificadas.
Quanto à natureza jurídica, há duas possíveis definições: exercício regular de
direito (Aníbal Bruno) e legítima defesa preordenada (Hungria, Magalhães Noronha,
Assis Toledo). Cezar Bittencourt, por sua vez, sustenta que depende da espécie de
ofendículo. Se for instalado com a intenção de se autoproteger constitui exercício
regular de direito. Ao contrário, caso reaja ao ataque esperado, haverá legítima defesa
preordenada.

10. Culpabilidade

10.1. Conceito e estrutura

A primeira formulação técnica da culpabilidade é a que a identificava num


aspecto subjetivo da conduta delituosa, compondo a força moral ou o elemento
subjetivo do crime. Entendia-se que a culpa é o nexo psicológico que liga o agente ao
evento, apresentando-se o dolo e a culpa stricto sensu como espécies da culpabilidade
(teoria psicológica da culpabilidade). O conceito de culpa seria, pois, puramente
naturalístico, desprovido de valor, esgotando-se no dolo e na culpa stricto sensu.
As insuficiências desta teoria eram notórias. Não há qualquer vínculo
psicológico entre o agente e o resultado nos casos de culpa inconsciente (como, por
exemplo, nos crimes de esquecimento). Por outro lado, se a culpa se esgota no nexo
psicológico, tem-se de concluir que o inimputável também age culpavelmente, pois o
menor e o doente mental também são capazes de agir com vontade. O mesmo se diga
da ação praticada sob certas formas de coação irresistível.
A teoria normativa da culpabilidade, que surgiu com a obra de Frank, em 1907,
pretendeu substituir conceitos naturalísticos e descritivos por conceitos normativos e
valorados. A culpabilidade é concebida como reprovabilidade da conduta típica ilícita.
O dolo e a culpa stricto sensu passam a constituir apenas um dos elementos do conceito
de culpabilidade, que se torna complexo. Essa reprovabilidade da conduta típica e
ilícita, segundo tal teoria, formulava-se somente se o agente era imputável (concebida
a imputabilidade como capacidade de culpa); se houvesse atuado dolosa ou
culposamente e se lhe fosse exigível comportamento conforme ao direito. O dolo exigia
a consciência da antijuridicidade, constituindo, assim, elemento psicológico-normativo
da culpa. A culpabilidade já não tinha por fulcro apenas a vontade, em seu sentido
puramente naturalístico, mas sim a vontade reprovável, ou seja, a vontade que não
deveria ser.
A evolução se processa no sentido de excluir da ideia de culpa elementos
psicológicos, reduzindo-a a conceito normativo. Isso se faz com a transferência para o
tipo e a antijuridicidade de certos elementos subjetivos. O dolo, a partir daí, integra a
conduta típica ilícita, ou seja, integra o objeto valorado e não pertence à culpabilidade.
A culpa passa a consistir na reprovabilidade da conduta ilícita (típica e
antijurídica) de quem tem capacidade genérica de entender e querer (imputabilidade) e
podia, nas circunstâncias em que o fato ocorreu, conhecer a sua ilicitude, sendo-lhe
exigível comportamento que se ajuste ao direito.
São elementos da culpabilidade:
a) imputabilidade;
b) possibilidade de conhecimento do ilícito (potencial consciência da
antijuridicidade);
c) exigibilidade de comportamento conforme ao direito.
Se é verdade que tipicidade e ilicitude constituem o chamado injusto penal e
significam o juízo de reprovação que recai sobre a conduta, a culpabilidade, no entanto,
constitui reprovabilidade pessoal.

10.2. Imputabilidade. Embriaguez. Actio libera in causa

Imputabilidade é a capacidade de culpa, constituindo, a rigor, pressuposto e não


elemento da culpabilidade.
A lei não apresenta definição de imputabilidade, que se extrai das normas
contidas nos arts. 26 e seguintes do CP. A imputabilidade é a condição pessoal de
maturidade e sanidade mental que confere ao agente a capacidade de entender o caráter
ilícito do fato ou de se determinar segundo esse entendimento. Em suma, é a capacidade
genérica de entender e querer, ou seja, de entendimento da antijuridicidade de seu
comportamento e de autogoverno, que tem o maior de 18 anos. Responsabilidade penal
é o dever jurídico de responder pela ação delituosa que recai sobre o agente imputável.

10.3. Maturidade e sanidade

Há dois requisitos necessários para que se estabeleça a imputabilidade de um


indivíduo: maturidade e sanidade.
O primeiro diz respeito à maturidade, pois a lei estabelece que os menores de
18 anos são inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação
especial (art. 228, CF; art. 27, CP; e art. 104, L. 8.069/90). É bem de ver que a
maturidade constitui presunção absoluta, já que não cabe prova em contrário. Significa
dizer que aquele que completou dezoito é imputável e o que tem menos de dezoito não
será, sem que haja margem para discussão a esse respeito.
Assim, o menor de 18 anos fica sujeito às medidas de assistência, proteção e
vigilância, previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n°. 8.069/90).
O vigente Estatuto da Criança e do Adolescente considera criança o menor de
até 12 anos, e adolescente o menor de 12 a 18 anos, prevendo medidas diversas para
cada um dos casos.
Na hipótese de uma criança cometer um ato infracional (qualquer ato que
corresponda a uma conduta descrita como crime ou contravenção penal), estará sujeita
às seguintes medidas de proteção (que podem ser impostas isolada ou
cumulativamente): encaminhamento aos pais ou responsável, mediante, termo de
responsabilidade; orientação, apoio e acompanhamento temporários; matrícula e
frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; inclusão em
programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente;
requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou
ambulatorial; inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e
tratamento a alcoólatras e toxicômanos; abrigo em entidade; ou colocação em família
substituta.
Se um adolescente for apreendido em flagrante de ato infracional, será lavrado
auto de apreensão pela autoridade policial (preferencialmente pela repartição policial
especializada, onde houver), que deverá ser encaminhado imediatamente ao Ministério
Público em exercício no Juízo da Infância e Juventude, juntamente com o próprio
menor. Se os pais ou responsáveis comparecerem em qualquer momento, o adolescente
será prontamente liberado, salvo se “pela gravidade do ato infracional e sua repercussão
social, deva o adolescente permanecer sob internação para garantia de sua segurança
pessoal ou manutenção da ordem pública”. O procedimento judicial perante o Juízo da
Infância e Juventude inicia-se mediante representação do Ministério Público.
A internação somente será determinada se for inviável ou malograr a aplicação
das demais medidas (art. 122, § 2.º, L. 8.069/90). A internação somente será mantida
enquanto absolutamente necessária, devendo ser avaliada periodicamente a
possibilidade de progressão para medida mais branda. Por outro lado, a regressão a
internação somente pode ser determinada após a oitiva do adolescente.
Se o menor estiver internado e completar 18 anos, sem que tenha sido declarada
a cessação da medida, prosseguirá a internação até os 21 anos. O CP vigente eliminou
as medidas de segurança detentivas para imputáveis, de modo que não há medida legal
alguma que possa ser aplicada ao menor que completa 21 anos, mesmo que se declare
não haver cessado sua periculosidade. Ele simplesmente deve ser libertado. O Estatuto
da Criança e do Adolescente orienta-se nesse sentido, dispondo que, aos vinte e um
anos, a liberação é compulsória.
Já quanto à sanidade, é inimputável quem, em virtude de doença mental ou de
desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão,
inteiramente incapaz de entender o caráter criminoso do fato ou de determinar-se de
acordo com esse entendimento (art. 26, CP).
A exclusão da imputabilidade se regula pelo critério biopsicológico normativo.
Este exige, de um lado, certos estados mentais anormais (doença mental,
desenvolvimento mental incompleto ou retardado), e, de outro, que deles resulte
completa incapacidade de entendimento da ilicitude ou de autodeterminação.
A expressão doença mental compreende todas as alterações mórbidas da saúde
mental, qualquer que seja sua origem. Nela se incluem, portanto, não só as psicoses
como também as neuroses, embora estas dificilmente conduzam à completa
incapacidade de entendimento ou de autogoverno.
Desenvolvimento mental incompleto ou retardado é expressão que compreende
principalmente os oligofrênicos (idiotas, imbecis e débeis mentais), que apresentam
anomalias do desenvolvimento mental. Nessa categoria entram, também, os surdos-
mudos não educados e os silvícolas (de quem só impropriamente se pode dizer que
tenham desenvolvimento mental incompleto).
A doença mental e o desenvolvimento mental incompleto ou retardado devem
ser constatados por meio de perícia.
O juízo sobre a imputabilidade, no entanto, é feito com critérios normativos e
compete ao juiz. Não se trata apenas de saber se o acusado tinha, ou não, uma genérica
capacidade de entender e querer, mas sim se era capaz de um obrar reprovável, ou seja,
se era capaz de entender a ilicitude e de se determinar segundo esse entendimento. O
juízo de imputabilidade considera o conjunto da personalidade do acusado, tendo-se em
vista as exigências do ordenamento jurídico, sendo um juízo sobre a capacidade de
culpa, que tem por base a capacidade de genérica atuação conforme o direito. Quem
pode atuar conforme o direito é capaz de atuar culpavelmente.
É isento de pena quem pratica fato que a lei define como crime, sendo
inimputável. Em tal circunstância não há crime.
O inimputável por lhe faltar sanidade está sujeito à medida de segurança de
internação ou de tratamento ambulatorial. Tal medida perdura enquanto não se
verificar, mediante perícia, a cessação da periculosidade.
10.4. Imputabilidade diminuída ou semi-imputabilidade

Se a anomalia mental não exclui, mas apenas reduz a capacidade de entender o


ilícito ou de se determinar segundo tal entendimento, a imputabilidade é diminuída. O
que se reduz, em tais casos, é a capacidade de culpa.
Aqui estão todos aqueles que se situam entre a sanidade e a plena insanidade
mental, entre os quais estados atenuados, incipientes e residuais de psicoses, certos
graus de oligofrenia e, em grande parte, as chamadas personalidades psicopáticas, e os
transtornos mentais transitórios quando afetam, sem excluir, a capacidade de entender
e querer.
A imputabilidade diminuída está prevista no art. 26, parágrafo único, CP. Ela
permite (não obriga) que a pena a ser imposta seja reduzida de um a dois terços. A pena
privativa da liberdade pode, no entanto, ser substituída por internação ou tratamento
ambulatorial, pelo prazo mínimo de um a três anos, se o condenado necessita de especial
tratamento curativo. Se o juiz decidir substituir a pena pelo tratamento, a internação
será obrigatória se o fato praticado constituir crime punido com pena de reclusão.
Compete ao juiz decidir se o condenado será submetido a pena ou medida de segurança
(art. 98, CP).
O critério adotado pela nossa lei chama-se vicariante. Segundo esse critério, no
caso de crimes praticados por semi-imputáveis, o juiz imporá ou pena ou a medida de
segurança, que pode substituí-la.

10.5. Emoção e paixão

Declara-se expressamente na lei que a emoção e a paixão não excluem a


responsabilidade penal (art. 28, I, CP), o que significa que não excluem a
imputabilidade.
A emoção e a paixão integram a psicologia do homem normal, e não eliminam
a sua capacidade de entender a ilicitude do fato ou de comportar-se de acordo com tal
entendimento, a menos que se trate de estados patológicos.
Emoção é um estado afetivo que produz momentânea perturbação da
personalidade. Afeta o equilíbrio psíquico, ou seja, o processo ideativo, acarretando
alterações somáticas, com fenômenos neuro-vegetativos (respiratórios, vasomotores,
secretores e etc.) e motores (expressões mímicas). Paixão é a emoção-sentimento, ou
seja, um processo afetivo duradouro.
Constitui circunstância atenuante a prática do crime “sob o domínio de violenta
emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima” (art. 65, III, in fine, CP).
Relevância especial adquire essa circunstância nos crimes de homicídio e lesões
corporais, tornando-os privilegiados (arts. 121, § 1.°, e 129, § 4.°, CP). Todavia, em
tais casos, não é propriamente a emoção que justifica o abrandamento penal, mas o
motivo em que ela se origina.

10.6. Embriaguez

Igualmente exclui a imputabilidade a embriaguez completa e fortuita, pelo


álcool ou substância de efeitos análogos. É a única hipótese em que se atribui relevância
à embriaguez. Exige-se, no entanto, que ela conduza o agente a estado em que seja
inteiramente incapaz de entender o caráter criminoso do fato e de determinar-se de
acordo com esse entendimento (art.28, § 2.°, CP).
Vale dizer que embriaguez seria a intoxicação aguda causada pelo álcool ou
substância de efeito análogo.
Fala-se em três estágios da embriaguez: excitação, depressão e sono. O primeiro
constitui a chamada embriaguez incompleta e os demais a embriaguez incompleta.
Haveria ainda as espécies de embriaguez: voluntária, culposa, preordenada e
fortuita.
A voluntária seria hipótese em que o agente ingere bebida alcoólica com a
intenção de embriagar-se.
Já a culposa seria aquela que decorre imprudentemente excessiva de bebida
alcoólica, sem que haja intenção de embriagar-se.
Por sua vez, a embriaguez fortuita ou acidental é a proveniente de caso fortuito
ou de força maior. Caso fortuito é hipótese em que o agente desconhece que esteja
ingerindo a substância que poderá levá-lo à embriaguez. Força maior ocorre toda vez
que o indivíduo não tiver como impedir a ingestão de álcool ou outra substância de
efeito análogo. Em que qualquer dos casos, se a embriaguez acidental for completa, não
há pena.
Por fim, a embriaguez preordenada é aquela em que o agente deliberadamente
se embriaga para perder limites e praticar a conduta incriminada. A embriaguez
preordenada constitui atenuante prevista no art. 62, II, l do CP.
O alcoolismo crônico constitui caso de doença mental, que exclui ou atenua a
imputabilidade. O álcool gera dependência física, com graves consequências sobre o
processo volitivo, e consequentemente, sobre a capacidade de autogoverno. Nestes
casos, no entanto, será extremamente mais difícil a tarefa de saber se o agente tinha
capacidade de entender a ilicitude do fato ou de se determinar segundo tal
entendimento.
A punibilidade das ações ou omissões praticadas em estado de embriaguez, que
conduza à incapacidade de entendimento ou de autogoverno, tem sido justificada com
a chamada teoria da actio libera in causa, que transfere a condição pessoal de
imputabilidade para momento anterior. A imputabilidade deve existir no momento da
ação ou da omissão, mas não deixa de ser imputável quem se pôs em situação de
inconsciência ou de incapacidade de autocontrole, dolosa ou culposamente (em relação
ao fato que constitui o delito), e nessa situação comete crime.
Não se aplica a teoria da actio libera in causa a todos os casos em que o agente
se deixou arrastar ao estado de inconsciência. Se o fato delituoso praticado em estado
de embriaguez, que conduz à incapacidade de entendimento e de autogoverno, não era
sequer previsível, para o agente, no momento em que estava sóbrio, não há culpa, e só
se pode admitir que estamos diante de hipótese anômala de responsabilidade objetiva.

10.7. Exigibilidade de conduta diversa

Não há reprovabilidade se na situação em que se achava o agente não lhe era


exigível comportamento diverso. Subsiste a ilicitude, mas exclui-se a culpabilidade
naqueles casos em que o agente cede à presença de circunstâncias ou motivos
excepcionais, que tornam inexigível comportamento diverso.
A inexigibilidade refere-se a específica situação do agente, considerando-se as
características de sua personalidade, pois a culpa é sempre reprovação pessoal.
Os casos de inexigibilidade de outra conduta previstos na Parte Geral são
basicamente os seguintes:

1 - coação moral irresistível (art. 22, CP);


2 - obediência hierárquica (ar. 22, CP, in fine);
3 - estado de necessidade exculpante (art. 24, CP).

10.8. Coação moral irresistível

Na coação física irresistível, como vimos, inexiste, ação, pois não há atuação da
vontade. Na coação moral irresistível existe ação, pois o coacto também atua
voluntariamente (coactus tamen voluit). Neste caso, portanto, subsiste o dolo.
A culpabilidade, no entanto, se exclui, pois não é exigível conduta diversa de
quem atua rigorosamente em situação de necessidade (art. 22, CP).
A coação moral irresistível resulta da ameaça ou da intimidação, expressa ou
tácita, ou seja, da revelação do propósito de causar um mal futuro, cuja superveniência
dependerá da vontade do agente. Pode também a coação moral resultar da violência já
empregada, em conjunto com a ameaça de que prossiga. A gravidade da ameaça
relaciona-se com o mal, que deve ser relevante e considerável, tendo-se em vista as
condições peculiares à pessoa ameaçada.
Se a coação era resistível, haverá apenas circunstância atenuante (art. 65, III, c,
CP).

10.9. Obediência hierárquica

O CP dispõe que se o fato é cometido em estrita obediência à ordem, não


manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da ordem (art. 22,
CP).
Para que a obediência hierárquica isente de pena são necessários os seguintes
requisitos:
1 - Relação de subordinação fundada no direito público. Não se cogita aqui das
relações entre empregado e empregador, ou de meras relações de parentesco. Deve
tratar-se de funcionário (servidor público civil ou militar) subordinado a superior
hierárquico.
2 - Não deve a ordem ser manifestamente ilegal. Em princípio, a ordem ilegal
não obriga. Diz-se manifestamente ilegal a ordem: (a) quando é dada por autoridade
incompetente; (b) quando sua execução não se enquadre nas atribuições legais de quem
a recebe; (c) quando não se reveste de forma legal; (d) quando evidentemente constitui
crime. Como ensina Aníbal Bruno, a expressão manifestamente ilegal deve ser
entendida segundo as circunstâncias concretas do fato e as condições de inteligência e
cultura do subordinado.
3 - Deve a execução limitar-se à estrita observância da ordem, ou seja, não pode
o subordinado exceder-se na execução da ordem, sob pena de responder pelo excesso.
Se a ordem é manifestamente ilegal e o agente conhece a ilegalidade, responde
pelo crime, em concurso com o superior.
Se a ordem não for manifestamente ilegal, exclui-se a culpa do executor por
inexigibilidade de outra conduta. A inexigibilidade, no caso, funda-se no dever de
obediência que deflui do sistema de subordinação e disciplina a que o agente está
submetido. Tal dever exclui a reprovabilidade do comportamento mesmo nos casos em
que o executor reconhecia a ilegalidade da ordem. Em princípio, a ordem não
manifestamente ilegal obriga o subordinado.
10.10. Estado de necessidade exculpante

O estado de necessidade é excludente da ilicitude quando, em situação de


conflito ou colisão, ocorre o sacrifício do bem de menor valor. A inexigibilidade de
outra conduta, no entanto, desculpa a ação quando se trata do sacrifício de bem de igual
ou de maior valor, que ocorra em circunstâncias nas quais ao agente não era
razoavelmente exigível comportamento diverso, excluindo, pois, a culpabilidade.
O estado de necessidade previsto no art. 24 do CP, portanto, pode excluir
antijuridicidade ou culpabilidade, conforme o caso.

11. Teoria do erro

11.1. Erro e responsabilidade penal

Entende-se por erro a falsa representação da realidade. O agente supõe realidade


diversa da que efetivamente existe. Ao erro equipara-se a ignorância (ausência de
representação).
No direito brasileiro, declara-se irrelevante o desconhecimento da lei
(ignorância ou errada compreensão), conforme o art. 21, CP. Significa, pois, a
reafirmação de um velho princípio do direito romano, segundo o qual não pode ser
alegada a ignorância ou errada compreensão da lei, para desculpar a sua inobservância
(error juris nocet).
Diferentemente, tem relevância a falta de potencial conhecimento da ilicitude.
A consciência da ilicitude é a consciência que o agente deve ter de que atua
contrariamente ao direito. Essa consciência, ao menos potencial, é elementar ao juízo
de reprovação, ou seja, à culpabilidade. Não pode agir culpavelmente quem supõe, por
erro, que atua conforme ao direito. A reprovabilidade não depende apenas de ter o
agente capacidade genérica de entendimento do caráter ilícito do fato e de determinar-
se conforme esse entendimento. É indispensável que, no caso concreto de que se trata,
tenha ele reconhecido, ou, pelo menos, tenha podido reconhecer, a ilicitude de seu
comportamento.
Normalmente, quem realiza uma ação punível tem consciência de que age
ilicitamente, pois as ações delituosas correspondem, em regra, a fatos intensamente
reprovados pela consciência da comunidade, ou da generalidade das pessoas. Quem
pratica homicídio, furto, estupro ou falsidade documental, sabe que pratica fato
juridicamente proibido e, por isso, age culpavelmente. Para que se afirme a existência
da culpabilidade, no entanto, basta o conhecimento potencial da ilicitude, ou seja, basta
que seja possível ao agente, nas circunstâncias em que atuou, conhecer que obrava
ilicitamente.
Assim, desde já, pode-se concluir que a ignorância, por si só, não é capaz de
afastar a responsabilidade penal, mas apenas a falta de potencial conhecimento da
ilicitude.

11.2. Erro de tipo e erro de proibição

O Código Penal estabelece duas modalidades em que o erro pode excluir a


prática de crime: o erro de tipo e o erro de proibição.
Entende-se por erro de tipo aquele que versa sobre elementos da conduta típica,
sejam de natureza puramente factual ou jurídica. Se o agente erra, por exemplo, sobre
a condição de coisa alheia, no furto, supondo-a própria, erra sobre elemento factual do
tipo de furto (art. 155, CP). Se, no crime de contrabando (art. 334, CP), o agente erra
sobre a proibição que existe, de importar determinada mercadoria, o erro ainda é de
tipo, mas versa sobre elemento de natureza jurídica.
O erro de tipo tem por efeito excluir o dolo. O art. 20, CP, dispõe: “O erro sobre
elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por
crime culposo, se previsto em lei”. O erro de tipo exclui sempre o dolo. Pode, no
entanto, o erro derivar de culpa, ou seja, da omissão da cautela ou diligência exigível
nas circunstâncias, e, nesse caso, subsiste a punibilidade a título de culpa, se o fato é
previsto como crime culposo. Em tal situação diz-se o erro inescusável.
Por sua vez, denomina-se erro de proibição aquele que versa sobre a ilicitude
(art. 20, § 1.º, e art. 21, CP). O erro sobre a ilicitude, quando relevante, exclui a
culpabilidade. Seu estudo se faz, portanto, na teoria da culpa, e não na teoria do tipo, a
que pertence somente o erro de tipo.
Há erro de proibição quando o agente supõe, por erro, ser lícito o seu
comportamento. Nesses casos, o dolo subsiste, pois o erro, em tal caso, não recai sobre
elementos do tipo, seja qual for a sua natureza.
Frise-se que o erro sobre a ilicitude do fato não se confunde com o
desconhecimento da lei. Trata-se aqui da face oposta à consciência da ilicitude do
próprio comportamento. Exige-se que o agente tenha consciência do injusto que
realiza. Quando se diz consciência da ilicitude, o que se quer exprimir é a consciência
da oposição ao dever ético-jurídico, e o conhecimento deste não está adstrito ao prévio
conhecimento de que um artigo da lei penal especialmente o reclama e sanciona.
O CP (art. 21) fez clara opção no sentido de considerar a consciência da ilicitude
elemento da culpabilidade, atribuindo relevância ao erro que sobre a mesma recai: “o
erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-
la de um sexto a um terço”.
As situações em que ocorrerá o erro sobre a ilicitude são excepcionais. Em regra
terá o agente, praticando um fato delituoso, consciência atual de que age contrariamente
ao direito. Mas casos haverá em que falta essa consciência, nos quais se deve declarar
a ausência de culpabilidade e, pois, de crime.
Deve, porém, o erro ser inevitável, escusável, invencível, desculpável, que não
pode ser atribuído a negligência ou desatenção, ou seja, o erro pelo qual o agente não
possa ser reprovado. Diz a lei que é evitável o erro “se o agente atua ou se omite sem a
consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou
atingir essa consciência”, art. 21, parágrafo único. O erro inevitável exclui a
culpabilidade.

11.3. Descriminantes putativas

Aqui, o agente supõe agir licitamente porque imagina, por erro, existir situação
de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Ex.: o agente, supondo-se na
iminência de ser agredido por seu inimigo (que antes tirava do bolso a carteira de notas),
alveja-o, matando-o (legítima defesa putativa). Neste caso também subsiste o dolo.
Existe discussão doutrinária acerca de as descriminantes putativas serem
consideradas como erro de tipo ou erro de proibição. Tem-se firmado entendimento no
sentido de que, nessa hipótese, o erro é de proibição, e não de tipo. A intenção dos que
elaboraram o CP vigente parece ter sido a de considerar as descriminantes putativas
como espécie de erro do tipo, pois elas estão previstas no parágrafo 1.° do artigo 20: “É
isento de pena quem, por erro plenamente justificável pelas circunstâncias, supõe
situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima”.
O agente erra sobre a ilicitude de seu comportamento, sabendo perfeitamente
que realiza a conduta típica, tanto do ponto de vista objetivo como subjetivo. O agente
aqui sabe o que faz, mas supõe erroneamente que estaria permitido. Exclui-se não a
tipicidade, mas sim a reprovabilidade da ação.
A consequência do erro de proibição neste caso, se era escusável, a exclusão da
culpabilidade. O erro é escusável quando não deriva de culpa.
Se o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo, seguem-se as
mesmas consequências jurídicas previstas para o erro de tipo. Se o erro era inescusável,
o agente responde pelo fato a título de culpa (art. 20, § 1.°, CP), respondendo pelo crime
o terceiro que determina o erro, se for o caso (art. 20, § 2.°, CP).

11.4. Erro in persona. Aberratio ictus. Erro determinado por terceiros

Dispõe o art. 20, § 3.º, CP: “O erro quanto à pessoa contra a qual o crime é
praticado não isenta de pena. Não se consideram, neste caso, as condições ou qualidades
da vítima, senão as da pessoa contra quem o agente queria praticar o crime”. Significa
dizer que haverá o chamado erro sobre a pessoa (erro in persona) sempre que houver
falsa representação da realidade e o agente praticar crime contra uma vítima
determinada, imaginando, todavia, que fosse outra.
Assim, se Tício alveja Caio supondo, erroneamente, que se trata de seu inimigo
Mévio, responderá por homicídio, sendo irrelevante o erro, que é acidental. Se Mévio
fosse ascendente ou irmão de Tício, aplicável seria a agravante prevista no art. 61, II,
e, CP.
Com os mesmos critérios do erro acidental resolve-se a hipótese de erro na
execução (aberratio ictus). Em tal caso, o agente, por acidente ou erro no uso dos meios
de execução, ao invés de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa diversa.
Segundo dispõe o art. 73, CP, responderá o agente como se tivesse atingido a pessoa
visada, aplicando-se a mesma regra prevista no art. 20, § 3.º, segunda parte. Se, no
entanto, atingir também a pessoa visada, haverá concurso formal de crimes (art. 70,
CP).
Por outro lado, pode o agente ter sido induzido em erro por outrem que
responderá pelo crime (art. 20, § 2.º, CP). Ex.: Tício, querendo matar seu inimigo Caio,
entrega a Mévio arma de fogo, informando erroneamente que está descarregada, e
levando-o a atirar sobre a vítima, “para assustá-la”. Caio, atingido, vem a morrer.
Responde Tício por homicídio doloso. Mévio, que agiu de boa-fé, supondo por erro que
a arma estava descarregada, responde por homicídio culposo, pois deveria ter-se
certificado de que não havia perigo na suposta brincadeira. O seu erro foi inescusável.

12. Etapas de realização do delito

12.1. Crime consumado e tentativa

Considera-se consumado o crime “quando nele se reúnem todos os elementos


de sua definição legal” (art. 14, I, CP).
Não se deve confundir consumação com exaurimento. Diz-se o crime exaurido
(ou esgotado), quando dele não advém mais qualquer consequência. Assim, por
exemplo, o crime de extorsão (art. 158, CP) consuma-se com o constrangimento da
vítima, independentemente de conseguir, ou não, o agente, a indevida vantagem
econômica que pretendia. Se vem a obtê-la, o crime estará exaurido. O exaurimento é
irrelevante para a configuração do crime, mas deve ser considerado na aplicação da
pena (art. 59, CP).
Por sua vez, define-se a tentativa no art. 14, II, CP, segundo o qual “diz-se o
crime tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma, por circunstâncias alheias
à vontade do agente”.
Tentativa é realização incompleta da conduta típica, que não se integra, em seu
aspecto objetivo, por circunstâncias alheias à vontade do agente.
Os praxistas, a quem se deve a elaboração da teoria da tentativa, conceberam a
realização do crime como um caminho percorrido pelo agente, o iter criminis. Ele se
inicia no foro interno com a cogitação (cogitatio), ou seja, o processo de ideação e
resolução de praticar a ação delituosa, seguindo-se a preparação (conatus remotus), com
a qual o agente obtém meios ou instrumentos e predispõe modos e ocasião para executar
o crime. A terceira fase é a execução (conatus proximus), com a qual o agente começa
a realizar atividade que configura o crime, podendo, inclusive, concluir a ação
necessária e suficiente para provocar o resultado. A última etapa seria a consumação
(meta optata) e com ela se alcançaria o resultado, ou seja, o evento que corresponde à
conduta típica.
Essa antiga concepção é valiosa para explicar descritivamente a ideia de
tentativa. Esta se verifica quando inicia o agente a execução, pretendendo alcançar o
evento, o qual não sobrevém por causas alheias à sua vontade. A simples cogitação
sempre foi declarada impunível (cogitationis poenam nemo patitur). Os atos
meramente preparatórios, por igual, são juridicamente irrelevantes. Somente pode
haver punição se houver início do ataque ao bem jurídico protegido, o que ocorre a
partir da execução.
A distinção entre atos preparatórios e atos de execução constitui difícil
problema, tendo sido formuladas a propósito diversas teorias. Prevalece um critério
objetivo de distinção, sendo irrelevante, em princípio, o plano delituoso do agente.
Materialmente constitui ato de execução aquele que inicia o ataque ao bem jurídico
tutelado; formalmente, tal ato distingue-se pelo início de realização da ação típica
prevista pela lei. Ato preparatório é o que possibilita, mas não constitui, ainda, a
execução. A dúvida sobre se o ato é preparatório ou de execução resolve-se sempre a
favor do réu.
Não se pretende que em todos os casos a conduta delituosa compreenda as
diversas etapas do iter criminis. Pode o crime resultar de subitânea deliberação e
consumar-se com a própria ação ou omissão, como é o caso dos crimes formais.
A tentativa, como realização incompleta do fato punível, apresenta os seguintes
elementos:

(a) início de execução da ação que constitui o crime;


(b) não superveniência do resultado por circunstâncias alheias à vontade do agente;
(c) dolo e outros eventuais elementos subjetivos correspondentes ao tipo subjetivo.

Pune-se a tentativa pelo perigo que acarreta ao bem jurídico tutelado. O CP


adotou uma concepção objetiva para fundamentar a punição da tentativa. Não se pune
a tentativa porque é expressão da vontade reprovável, mas sim porque constitui início
de execução de conduta que se considera atentatória ao bem jurídico tutelado. Por conta
disso, o art. 14, parágrafo único, do CP, estabelece que: “Salvo disposição em contrário,
pune-se a tentativa com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de 1
(um) a 2/3 (dois terços).
Algumas infrações penais não admitem tentativa.
Dada a estrutura do crime culposo, não é possível a tentativa nessa espécie de
infração penal. Não pode o agente tentar alcançar o resultado se não tem vontade a ele
dirigida. Ademais, a produção do resultado é requisito essencial à configuração do
crime culposo.
Os crimes unissubsistentes (que se praticam com um só ato) também não
admitem tentativa, pois neles não se pode fracionar o processo executivo. Ex.: injúria
verbal.
Nos crimes omissivos próprios, como já vimos, a tentativa é inadmissível, mas
nos crimes comissivos por omissão, a tentativa não oferece qualquer dificuldade.
Não se pune a tentativa de contravenção (art. 4.°, LCP).
Nos crimes habituais também não se pode fracionar o processo executivo. Diz-
se habitual o crime cuja conduta típica requer a repetição de certa atividade (em si
mesma juridicamente irrelevante), de modo a revelar a conduta habitual. É o caso do
crime de rufianismo (art. 230, CP). No instante em que a reiteração de atos configura o
crime habitual, verifica-se o momento consumativo, não se podendo falar em início de
execução.

12.2. Desistência voluntária e arrependimento eficaz

Segundo dispõe o art. 15, CP, “o agente que, voluntariamente, desiste de


prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza, só responde pelos atos
já praticados”.
Nos casos de arrependimento ou de desistência, não há tentativa, porque o
resultado deixa de ocorrer em virtude da vontade do agente. Responderá o agente pelos
atos já praticados, se os mesmos configuram qualquer delito consumado. A tentativa
estende a tipicidade a atos que constituem realização incompleta do tipo objetivo. No
arrependimento e na desistência não há, conceitualmente, tentativa, e, em consequência,
inexiste crime por ausência de tipicidade.
A distinção entre desistência e arrependimento depende do momento em que
ocorrer a interrupção do processo executivo. Se o agente ainda não havia feito tudo que
era objetivamente necessário para a consumação (tentativa inacabada) há desistência: o
agente não prossegue na execução. Ex.: o agente alveja a vítima e não a atinge. Podendo
prosseguir com outros disparos, desiste. Se o agente já havia concluído os atos de
execução necessários (ex.: lançar a vítima ao mar), há arrependimento. Este só é
possível no crime falho.
A desistência deve ser voluntária. Não há necessidade de que a desistência seja
espontânea. Isso significa que basta ter o agente atuado sem coação de qualquer espécie,
sendo indiferentes os motivos que o tenham inspirado (sincero arrependimento,
covardia ou temor de punição mais grave etc.).
Se o agente, todavia, desiste porque foi ou vai ser descoberto, a desistência não
é voluntária. A desistência momentânea é irrelevante. Assim, se o agente deixa de
prosseguir aguardando ocasião mais oportuna ou o emprego de meio mais eficaz.
Cumpre que a desistência seja definitiva. Na desistência voluntária, o agente mudou
de propósito.
Quanto ao arrependimento eficaz, basta que o agente ativamente impeça, por si
ou por terceiros, que o resultado se produza. Não se indaga da qualidade moral dos
motivos. De nenhum efeito será o arrependimento se o resultado sobrevém.
Os efeitos da desistência e do arrependimento são os mesmos: o agente responde
apenas pelos atos já praticados. Assim, se da execução de homicídio resultaram lesões
corporais, por elas responderá o agente que desiste ou se arrepende.
12.3. Arrependimento Posterior.

O artigo 16, CP, dispõe: “Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça
à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da
queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços”. É uma
espécie peculiar de arrependimento, que ocorre após o momento consumativo do crime,
determinada por medida de política criminal.
Sempre se considerou importante a reparação do dano por parte do delinquente,
procurando estimulá-la, na suspensão condicional da pena (art. 78, § 2.°, CP), no
livramento condicional (art. 83, IV, CP) e na suspensão condicional do processo. O
crime torna certa a obrigação de indenizar integralmente o dano causado (art. 91, I, CP).
Concede a lei redução da pena (de um a dois terços), se ocorrem as seguinte
condições:
a) crime cometido sem violência ou grave ameaça à pessoa;
b) reparação do dano ou restituição da coisa;
c) ressarcimento realizado em qualquer momento, porém antes do recebimento da
denúncia ou da queixa.
O favor legal se aplica a qualquer espécie de crime. A única condição é que o
crime não tenha sido praticado com violência à pessoa ou grave ameaça. A violência à
pessoa está implícita em crimes contra a pessoa, como o homicídio, lesões corporais e
a rixa. Em outros casos, encontramos na lei referência expressa à violência ou grave
ameaça, como meio de realização da conduta típica (exs: constrangimento ilegal, art.
146; roubo, art. 157; extorsão, art. 158; esbulho possessório, art. 161, II etc.).
O dano, cuja reparação o agente deve realizar, será em regra patrimonial. Mas
pode também ser não-patrimonial. O dano patrimonial consiste numa diminuição direta
ou indireta do patrimônio da pessoa atingida pelo crime. Dano não-patrimonial é o
“prejuízo causado diretamente à pessoa, sem atingir, imediatamente ou mediatamente
o patrimônio desta, ou a pessoa mesmo, em sua capacidade produtiva”. O dano não
patrimonial só pode ser reparado por uma indenização em dinheiro, que
verdadeiramente não extingue o chamado dano moral, que, por sua própria natureza, é
insuscetível de uma precisa apreciação em valores materiais. No ressarcimento do dano
não-patrimonial realiza-se uma satisfação ao lesado, dando-lhe uma compensação em
dinheiro que é um sub-rogado do dano sofrido.
A reparação do dano deve ocorrer, para que se conceda o favor legal, antes do
recebimento da denúncia ou da queixa. Isso significa que a simples apresentação da
denúncia ou da queixa não é bastante para impedir a concessão do benefício. O termo
limite para realizar a reparação do dano e obter a redução da pena é o início da ação
penal que se dá com a decisão do juiz recebendo a denúncia ou a queixa.
O ressarcimento não precisa ser espontâneo, basta que seja voluntário.

12.4. Crime impossível e tentativa inidônea

Diz-se o crime impossível quando não se pode consumar por absoluta


inidoneidade do meio ou por absoluta impropriedade do objeto (art. 17, CP).
Meio inidôneo é aquele a que falta potencialidade causal. Meio absolutamente
inidôneo é aquele que, por sua essência ou natureza, não é capaz de produzir o resultado.
Assim, se o agente ministra substância inócua a seu inimigo, ao invés de veneno.
Convém, no entanto, notar que a inidoneidade do meio deve ser sempre aferida ex post,
em face do caso concreto. O meio normalmente inidôneo pode ser, excepcionalmente,
idôneo. Ex.: pode-se matar de susto pessoa cardíaca. A inidoneidade será apenas
relativa se o meio normalmente eficaz deixou de operar pelas circunstâncias em que foi
empregado. Ex.: veneno em dose não letal.
Há impropriedade absoluta do objeto quando este não existe ou, nas
circunstâncias em que se encontra, torna impossível a consumação. É o caso de quem
alveja seu inimigo sem saber que já estava morto ou o de ingestão de substância abortiva
inexistindo gravidez. A impropriedade é apenas relativa se existindo e podendo ser
atingido, ocasionalmente o objeto não se encontra onde poderia ser atacado (disparos
feitos sobre o leito, tendo-se ausentado a vítima momentos antes).
Há crime putativo quando o agente supõe, por erro, estar praticando fato
punível, sendo, no entanto, sua conduta penalmente irrelevante. Trata-se de uma
espécie de erro de proibição ao revés.
Há crime putativo no caso em que o agente é levado à prática do delito por obra
de agente provocador, com predisposição da autoridade policial, para surpreender o
autor do crime em flagrante. É o que o mestre denomina crime de ensaio. A
impunidade em tal caso resulta do fato de que somente na aparência é que ocorre um
crime exteriormente perfeito: na realidade, o seu autor é apenas o protagonista
inconsciente de uma comédia. Não há lesão nem efetiva exposição a perigo de qualquer
interesse público ou privado.
A jurisprudência é pacífica no sentido de que não há crime putativo no caso de mera
predisposição da autoridade, previamente informada da ação delituosa (flagrante
esperado). Só haveria crime putativo, no caso de flagrante preparado, quando há ação
de agente provocador, tornando impossível a efetiva realização do crime (Súmula n°.
145 do Supremo Tribunal Federal).

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