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Parao Lucas Copyright © 1996 by Sidney Chatnoub Det hnacoideCanepeions Pata) vanessene colbnias estrangeiras subia a 92 por cento sobre o total de mortos. to africano, exterminadora do elemento eu: negreira e xen6foba, atacava a existéncia da ‘imigratéria nos vem depurar as vei ‘mestigagem primitiva, e nos dava, aos olhos do mundo ci ares de urn matadouro da raga branca.” Essa é uma linguagem vigorosa e direta —e a mensagem ¢ inegut- voca. Espero que este capitulo tenha esclarecido algo a respeito de como semelhante “coisa” emergiu historicamente. 96 3 VARIOLA, VACINA E “VACINOPHOBIA” A HISTORIOGRAFIA RECENTE SOBRE ‘A REVOLTA DA VACINA Rio de Janeiro, novemibro de 1904. A divulgago do projeto de regulamentagio da lei que tornara obrigat6ria a vacinagéo antivaridlica transforma a cidade em praca de guerra. Durante uma semana, em meio a agitagdes politicas ¢ tentativa de golpe militar, milhares de pessoas saem &s ruas ¢ enfrentam as forgas da policia, do exército € até do corpo de bombeiros e da matinha. O saldo da refrega, segundo os jomais da época: 23 mottos, dezenas de feri- dos, quase mil presos, sendo que centenas destes enfrentariarn um breve “estigio” na ilha das Cobras e, em seguida, uma viagem sem regresso para o Acre. Com os prisioneiros sendo viciosamente sur- rados na ilha, Lima Barreto, que andara sofrendo ameacas naque- les dias, sugere que o estado de sitio reinante passe a ser chamado de “estado de fazenda”. Tal denominagio parecia mais coerente dos quase quatro séculos de escravido no pa sitio para fazenda, ha sempre um aumento, pelo menos no nimero de escravos”.! (O tom acidamente irdnico de Lima Barreto aponta para tragos mesmice no intenso processo de reconstrugfo aca0", pelo qual passava a Capital Feder queles anos, Mas se a ironia de Lima Barreto se dirigia a seus ini- migos habituais — burocratas, burgueses, fazendeiros —, hhistoriografia mais recente tem se preocupado em entender a mo- 97 tivagdo dagueles com quem o romancista simpatizava: as legides de descontentes que ganharam as ruas na maior revolta popular da hist6ria da cidade até entdo. José Murilo de Carvalho, por exem- se declara interessado em desvendar “aspectos da mente po- pular” em se sobre a revolta, exprimindo talvez uma atitude ‘mais geral entre os historiadores do tema nos dltimos tempos? Tal perspectiva visa certamente corrigir visGes anteriores que inter- pretavam as ages dos revoltosos de 1904 simplesmente como coi- sa de desordeiros e vagabundos, ou como objeto de manobras ou manipulagSes de politicos oportunistas, ov ainda como sintoma de sociedade carioca ( Sevcenko arremat nna, mas contra a de que, em algum momento de sua narrativa, nos seria dado vis- lumbrar uma cultura popular tradicional e marcadamente auté- noma, capaz de informar a interpretagao de que os eventos de 1904 teriam sido a luta da classe trabalhadora carioca em defesa de valores ou modos de vida que se encontravam ameagados diante da avalanche do proceso de aburguesamento da sociedade, No porém, 0 que acontece. A descrico das possiveis motiva- es dos manifestantes se baliza na negagdo: eram contra o pro- cesso de aburguesamento € seus agentes — encarnados nas figu- ras de politicos, 5, forgas de repressio etc. Em outras pala mais pungentes demonstragbes de \res do pais contra a exploragao, |plrio a que eram submetidos p: fase da nossa hist6ria” (p. 10) istragdo publica nessa orreto e a andlise de Sevcenko ja- tensidade do softimento eda repressio desencadea- 98 dos portal process histérico entre a populagio pobre da cidade. O sentimento de indignacao que move a narrativa € solidamente finca- do numa das mentes mais Iticidas do perfodo: para Lima Barreto, “Levamos a procurar as causas da civilizagao para reverencié-las ‘como se fossem deuses... Engragado! E como se a civilizagio tives- se sido boa e nos tivesse dado a felicidade!”.* O problema, contudo, € que a virtude do texto de Sevcenko acaba sendo também o seu limite. Devido & auséneia de uma pesquisa documental mais siste- mética, na narrativa deste autor os populares sempre reagem — “re~ sistem” —, nunca agem, isto é nunca se sabe exatamente que tipo de experiéncia histérica, de formas de entender o mundo € a sua situagao de vida poderiam informar positivamente movimento de Ita contra a vacinagiio. Além disso, hé aqui uma visio monolitica e zgeneralizante, tanto deste universo popular quanto daquele projeto mais geral de aburguesamento da sociedade De qualquer refinadissima, atinge plenamente o objetivo proposto. 34 José Murilo de Carvalho argumer 1904 foi a “revolta fragmentada de uma sociedade fragmentada”> Em outras palavras, Carvalho procura especificar 05 motivos que teriam levado aos protestos, enfatizando menos o sentido mais ge- | ral de resisténcia ao processo de aburguesamento salientado por Sevcenko. Assim, havia setores sociais, interesses e insatisfagdes ‘arias que se teriam articulado de forma complexa e contraditéria nos eventos que conduziram a revolta. Apés procurar relativizar a Jmportancia de uma série de fatores habitualmente apontados como fundamentais na banas radicais por que passava a cidade naquela quadra —, 0 autor identifica aquilo que seria 0 tema comum aos diversos grupos € setores socizis envolvidos nos distirbios: haveria uma “justificati- ‘va moral” para a revolta. Segundo ele, “No que se refere a0 povo, 4 parte que nos interessa aqui de modo especial, a oposigao adqui- 10s poucos caréter moralista (..] Buscou-se entéo explorar a da invasio do Jar e da ofensa & honra do chefe de familia ausente a0 se obrigarem suas filhas e mulher a se desnudarem pe- 99 ante estranhos.A expresso ‘messalina’ usada por Vicente de Souza tony hobs 0 yy prrerey | {Goes e valores que possam ter informado as massas populares eVieritos ‘de’ 1904. Teresa Meade foi — 0 “Centro” do trecho citado era o Centro das Classes Operd- tias.6 Mesmo se houvesse uma demonstragao cabal de que aqueles operdrios especificos compartilhavam o sentimento de terrorismo ‘moral presente na fala de Souza, ¢ se colocassem em pé de guerra devido as “messalinas” de seu discurso, nio acharia crivel que 2 ‘motivada por tal tipo de “justificativa moral”. O pro- Dblema aqui é que Carvalho parte do pressuposto de que a “frag- | mentagGo social” era uma heranga inescapével do periodo da es- cravidio; i “desenvolvimento de forte tradigao artesanal” a moda ocidental entre a classe trabalhadora carioca, entdo se in no poderia haver tradigio ou experiéncia alguma informando os atores populares da revolta. Ou pelo menos nao hi esforco siste- ‘iético para entender que valores ou tradig6es seriam essas — ou nao hé nada para além do pressuposto de que o tipo burgués de ‘obsessio com o comportamento e a honra feminina possa ser sim- plesmente generalizével para toda asociedade. Conforme demonstra diverso da moralidade burguesa de plan- to na mente dos politicos do perfodo.” E claro que havia na época uma insatisfagio popular cor mais agressivas invasbes de “ter tdo efeito devastador” entre “o ovo”, tomando-se assim importantes para a eclosdo da revol HG pesquisas recentes sobre a Revolta da Vacina que sugerem ‘outros caminhos possiveis de trilhar no objetivo de buscar as tradi- 100 data em relagdo a atuago dos funcionérios da higiene — sempre apoiados no aparato policial indo promover desinfecebes, despejos e demoligdes de corti ‘como 0 assunto permane- ce em grande medida desconhecido, chegam a conclusio de que a les pretexto para uma revolta que tinha motivos “nfio foi contra a vacina, mas contra a hist6ria”; para Carvalh inimigo nio era a vacina em si mas o governo, em particular as. obrigatoria foi apenas a faisca que ateou por fim ‘Teresa Meade, a oposigio popular originara-se de um Jeque bas- tante amplo de ressentimentos, apenas teria se concentrado em | antivaritica,e6 Carvalho se preocupa em apontar a lacuna: “Nao | ls estado mas detido sobre as tentativas de implantagio da vacina | obrigat6ria e sobre as razées do fracasso da ago do governo”.' I 101 Mm Bew Famer g Toy S Siete gle Nr fom MeO I + weir # bes foto * Sequorter doretnte cpt. Dein eaaeties. seguimento 2 iniciativa de Meihy ¢ Bertolli — aqui com fontes ja bem mais ricas ¢ variadas —, procurarei tracar a histéria do servigo de vacinagiio e seus problemas na Corte desde o tempo de d. Joao v1, incluindo os debates entre os préprios médicos a respeito da eficdcia da vacina, A narrativa centrar-se-4 aos poucos no problema da expe- ri€ncia dos habitantes do Rio com o servigo de vacinagao, situando assim na longa duragio a tradigo de desconfianga dos populares em relagio & vacina e as praticas da medicina oficial em geral. Na tenta- tiva de aprofundar o entendimento das perspectivas ¢ valores que podem ter informado a resisténcia popular & vacinagao, farei uma Pee naprlinion coeonipgs caneppientcas eo brasileiras sobre doenga e cura, tendo como objeto especifico a va- rfola ¢ seu orixa particular, Omolu. Em seguida, examino a situago do servigo de vacinacdo nos anos imediatamente anteriores & revol- ta. Finalmente, e sem entrar propriamente na descri¢do dos aconte- cimentos de novembro de 1904 — assunto j4 adequadamente trata- do na bibliografia que acabo de comentar —, ousarei uma conclusaio buscando a articulagao possivel entre todos esses aspectos. . VARIOLIZAGAO E VACINAGAQ ria do combate & variola é a hist6ria da inoculagio e, .cina, e suas origens perdem-se na noite dos tempos. A idéia da inoculacdo do pus varidlico originou-se prova- velmente da crenga, presente em tradigdes de medicina popular em varias partes do mundo desde a mais remota antigiiidade, de que certas doengas poderiam ser evitadas através da aplicagao de ‘material similar & moléstia que se queria prevenir — tal aplicagao poderia ser natural, ritualistica, ou uma combinagio de ambas as, coisas, como ocorreu com freqiiéncia no caso da inoculagao do pus variélico ou variolizagtio. Sempre houve quem acreditasse, por exemplo, que carregar consigo ou oferendar uma pedra em forma de dente a uma divindade era meio seguro de evitar a dor de den- tes. J4 houve quem achasse que engolir pélo de cachorro danado poderia evitar a hidrofobia. E assim por diante.” 102 aly be b oh i oe mmm © ‘Um raciocfnio semelhante a0 caso do cio danado deve ter ori- ginado as primeiras tentativas de prevengdo a varfola. Sabe-se qual a técnica de variolizagio adotada pelos hindus. Eles guardavam du- ‘ante certo tempo as roupas contaminadas pelos variolosos para de- pois aplicar pedacinhos do seu pano sobre escarificagées feitas in- {encionalmente na pele dos individuos sos. al procediment tanto 0 conhecimento empfrico das vantagens pro! inoculago do pus como a observacio de que era dese uma atenuagdo do agente da moléstia pelo uso tardio dos fragmen- tos das roupas.™ Por volta do ano 1000, préticos chineses coletavam as crostas das feridas dos variolosos, reduziam-nas a pé, e entdo sopravam alguns gros, 8s vezes com 0 auxilio de um tubo de bam- ‘bu, nas narinas de pessoas em busca de protegao. Hindus e chineses tinham observado a possibilidade de adquirir imuunidade contra cer- tas doengas,e haviam entendido que, se determinada moléstia grave rnormalmente atacava um individuo apenas uma vez, era altamente desejével provocar um ataque atenuado do mal para assegurar a pro- tego das vitimas em potencial"* Hé referncias & pritica da inoculagao em Constantinopla em fins do século xvi jo xvin. Dois médicos gregos, Pylarini ¢ Timoni, removiam a matéria pastosa das pistulas dos variolosos ¢, utilizando-se de uma agulha previamente molhada no pus, fa- iam pequenas incisGes em pessoas ss. Timoni enviou uma des- rigdo de seu método ao dr. John Woodward, de Londres, e este apresentou um relatério sobre o assunto na Royal Society — pu- blicado em 1714. Uma violenta epidemia de variola se abateu so- bre Londres em 1721, causando cerca de 3 mil mortes. Apés 0 incentivo de membros da nobreza britinica e, é claro, a realizagio de experiéncias em cobaias humanas selecionadas — prisioneiros de Newgate —, 0 método ganhou notoriedade e se espalhou pelo reino. Ainda na década de 1720, passow a ser utiizado na Alema- tha, chegando mais tarde & Franga e & Russia. Apesar da propaga- 40 na Inglaterra e em outros paises da Europa, a variolizagdo tor- rnou-se logo matéria de controvérsias virulentas. Rapidamente se ‘reconheceu que ela as vezes causava a morte dos inoculados — | duas'a trés mortes em cada cem pessoas submetidas ao procedi- || mento—, ¢ a observagio cuidadosa trouxe a constatagio de que, ‘ 103 sem a rigida segregagdo dos inoculados, a ensidade de uma epidemia Nas col6nias inglesas da América, a variolizagao chegou ofi- cialmente junto com a epidemia de 1721, que parece ter viajado da ingindo primeiro o Caribe e depois @ a podia até agra rendo Cotton Mather, que sugeriu sua ado. logo conseguiu a conversao de um esculd . que inoculou dezenas de pessoas com excelente resultado. O mais davia, € a forma peta qual Mather havia primeiro toma- do contato com a p nda em 1706 as devotadas ovelhas de ‘sua par6quia presentearam-no com um escravo chamado Onesimus, originério da Africa ocidental. O pastor quis saber do negro se ele |jéhavia contraido a variola, uma preocupagdo comum dos proprie~ trios de escravos na época. Onesimus disse que sim, e que nao, € ‘explicou ao dono, num inglés pidgin que Mather procurou depois reproduzir, que em sua terra de origem ele havia se submetido a uma operagdo que o livrara para sempre da moléstia. O contou que entre os seus era comum a prética de extrair das pistulas dos variolosos e colocar uma gota do material assim obtido em cortes feitos na pele. Depois, continuow Onesimus, as pessoas ficavam um tanto doentes, apareciam algumas poucas y ‘mas ninguém morria do achaque nem no body have Small-Pox any more"). Mather se interessou pelo que ouviu € inquiriu outros escravos residentes em Boston sobre 0 assunto, Seus informantes deram-Ihe a impressio de que a pratica da inoculagao era quase universal na Africa no tempo em que ha- n sido obrigados a deixar o continente, Pode-se imaginar 0 es- panto de Mather quando, anos depois, I ‘Woodward sobre as experiéncias dos médicos de Constantinopla nas Transactions da Royal Society de 1714. Mather escreveu para Woodward em 1716, enfatizando as semelhangas entre 0 {que havia lido sobre 0 método utilizado pelos médicos gregos € o que havia ouvido dos africanos de Boston, Terminava encorajando a 104 adogio da inoculag#o na Inglaterra. Acabou ele mesmo tendo a chance de Iutar pela propagagao da prética em Boston durante os eventos de 1721. Dizia que nada havia contra as leis divinas em aprender com os negros uma maneira de evitar “o veneno da vario- Ja", assim como nenhum mal podia haver em aprender dos indios smo combater o veneno das cobras.” Os portugueses nao compartilharam do entusiasmo europeu € norte-americano com a variolizagio no século xvit. A explicagao para isso talvez esteja no fato de que a varfola, por motivos desco- mhecidos, e ao contrério do que ocorreu na Inglaterra e em outros paises da Europa, parece nio se ter constituido em grave problema de satide piblica em Portugal naquele perfodo. Por outro lado, a doenga era freqiiente no tréfico negreiro e nas colénias, porém a ‘oposigao das autoridades médicas portuguesas evitou a adogdo da variolizagao a nao ser de forma esporddica.'* No Brasil colonial, hd duas escassas referéncias a missionérios que tentaramn 0 método na regio amaz6nica em meados do século Xvn, mas ndo ha nott- cia de que a iniciativa tenha tido continuidade."* A situagao come- ou a mudar apenas no final da década de 1790, j4 tao as vésperas da descoberta e propagacio do método jenneriano —a vacina pro- priamente dita — que as tardias tentativas das autoridades portu- jguesas em adotar a variolizago no Brasil frequentemente se con- fundem comas controvérsias a respeito de quando e como a vacina foi introduzida no pafs pela primeira vez. ‘A histéria da descoberta da vacina jenneriana jé foi contada recontada um sem-mimero de vezes. Seu charme pastoril, porém, € imesistivel, e sempre hi tutano na forma como se decide contar/ recontar uma histéria. A medicina popular de diferentes tradigoes postula muitas vezes, freqiientemente com razio, que o trabalho em certas profissbes causa doengas espectficas, associadas a essas atividades; seguindo 0 mesmo , acredita-se que certos tipos de atividade imunizam os individuos contra doengas especi- ficas, Assim, por exemplo, era geralmente sabido no século xvt {que 0s trabalhadores das minas eram bastante suscetiveis de con- trair doengas nos pulmées. Por outro lado, em fins do século xvi era comum entre camponeses ingleses a idéia de que individuos ‘que trabalhavam no trato do gado, especialmente aqueles que se 105 cocupavam em ordenhar vacas, ndo contrafam a varfola. O dr. Edward Jenner parece ter se interessado por essa crenca popular meira vez. na década de 1770, quando uma camponesa que “nao corria 0 risco de contrair varfola porque havia na” (“I cannot take smallpox for I have had cowpo: uma doenga que ocorre ocasionalmente nas vacas, consistindo em nas grandes inoculagbes de bexigas que se rea- lizavam no reino a cada ano. Soube depois que tais pessoas, tendo esfoladuras nos dedos, contraiam botdes semelhantes a0 cowpox das vacas. Chegou assim 8 hipdtese, que jé Ihe fora sugerida pela camponesa, de que 0 juo que contraia 0 cowpor adquiria imunidade contra a varfola. Realizou ento experimentos — apli- cago de vacina e, depois de um certo periodo, inoculagdo de pus -varidlico na mesma pessoa para comprovar a imunizagao —e, apés jente observagio, apresentou os resultados de seu tra- 10 publicado em 1798. A medicina popular campo- a, e dera a Jenner a pista para a descoberta da vacinagéo antivaridtica® ‘A variolizagdo apresentava tantos riscos e problemas que a comunidade médica européia logo se convenceu das vantagens da descoberta de Jenner. Havia melindres, no entanto, pelo fato de a ‘operacio consistir na introdugao de matéria extrafda dos uberes de vacas. Alguns temiam que o processo fosse apenas a transferéncia para o homem de doengas caracteristicas desses animais, Segundo Caetano Guimaraes, médico brasileiro que defendeu tese sobre vacina antivariélica em 1892, os adversérios de Jenner the fizeram caricaturas, ¢ disseram que ele pretendia “bestializar os seus se- melhantes, introduzindo no corpo matérias piitridas tiradas das te- tas das vacas doentes”. As criancas vacinadas apresentariam, a pro- porgdo que se desenvolvessem, “feicdes de boi”, tumores surgiriam em suas cabegas “indicando o lugar dos chifres 2 fisionomia’ se transformaria “pouco a pouco em fisionomia de vaca, ea voz em mugido de touro” (grifos no original). Outra dificuldade era 0 fato de a vacina nao ser doenga muito frequente 106 ro gado. A solugéo adotada foi a propagagio da profilaxia pelo método da vacinagio braco a brago. Apés a inoculagio da vacina 1 (cowpox) num certo niimero de pessoas, os vacinandos se- 1s receberiam o fluido vacinico diretamente extrafdo do bra- que haviam sofrido a operacdo oito ou nove dias antes.” ‘Apesar de algumas discordancias entre os historiadores da ‘medicina, o mais provavel 6 que a vacina jenneriana tenha chega- do pela primeira vez a0 Brasil em 1804. Felisberto Caldeira Brant, futuro marqués de Barbacena, mandou a Lisboa, como cobaias, sete criangas de sua propriedade; um médico acompanhou os es- cravos, aprendeu a técnica da vacinago brago a brago, ¢ voltou aplicando o método sucessivamente aos cativos durante a viagem. Segundo Hercules Octaviano Muzzi, médico que trabalhou no ser- viigo de vacinago da Corte desde o seu inicio, nele permanecendo por mais de trés décadas, a vacina chegou “com toda a sua energia 4 Bahia’, sendo posteriormente enviada ao Rio pelo mesmo pro- cesso de vacinago braco a braco de escravos do dito marques. 0 rmarqués de Aguiar, vice-rei na ocasizo, encarregou Muzzi da con- servagio da linfa vacfnica na Corte, sendo as inoculagéses feitas as quintas-feires e aos domingos — costume que se manteve durante quase todo 0 século xix— no Palacio do Governo. Mas “o concur- so tomou-seextraordingrio, muito principalmente, porque chegando ‘aquadra das bexigas, viram o melhoramento deste flagelo. Estabele- cida a opiniio a favor da Vacina, ordenou o Vice-Rei, que 0 traba~ Iho fosse feito na Casa da Camara (...]". Muzzi ficou aparentemen- te sozinho na fungio até a “feliz chegada de Sua Majestade Real a esta Corte”, quando ficou “sob a inspegao” do dr. Theodoro Ferreira de Aguiar, médico que servia diretamente & familia real e que, ccoincidentemente, fora quem vacinara 0 primeiro negro do mar- qués de Barbacena em Lisboa e explicara 0 processo de vacinagao brago a brago ao facultativo que Id estava para aprendé-lo.”* O leitor é percebeu que, se 0 assunto € prevengio da varfola,, este historiador no esté baldo 20 naipe! Otho na tela, dedos no teclado, meia dizia de paginas, e af esté: uma hist6ria da luta con- tra esta terrivel doenga ao longo de milénios e passando por quatro continentes — Asia, Africa, Europa, América. Mas 0 primeiro de- safio surge mesmo com o dr. Muzzi e a afirmacao de que, nos go 107 primeiros tempos, 0 “concurso” & vacina “tomou-se extraordiné- rio’. Na verdade, a impressdo de que perfodo de implantagao da ‘vacina jenneriana na Corte fora também sua idade de ouro aparece ‘a mando de Oswaldo Cruz por Placido Barbosa e Cassio Resende. Publicada em 1909, com a perspectiva de quem ja passara pelos eventos de 1904, € agora experimentava um mal disfargado triunfa- lismo mérbido pelo fato de que, apés a virtual cessagio dos servi- {908 de vacinacao devido a revolta, o Rio assistira a sua pior epide- mia de varfola de todos os tempos — em 1908, com mais de 9 mil mortes—, 0s autores citam uma tese médica de 1839 frisando que "o povo [...] viu chegar” a vacina “e a recebeu com excessivo pra: zer eo governo entio aqui existente desenvolveu toda a atividade ue péde para a sua propagagio” (grifo no original). Hi indicios que podem apoiar a avaliagao positiva de Muzzi sobre a aceitagao inicial da vacina na Corte, Em primeiro lugar, ha importante aspecto, numa cultura politica absolutista, da atitude francamente favoravel & vacina expressa pelo principe regente & depois rei d. Jodo vi. O principe balofo dera o exemplo em Portu- gal, mandando vacinar seus filhos, d. Pedro e d. Miguel, pouco depois de a novidade chegar a Lisboa; também ordenara a tradu- gio e publicagao da obra de Jenner sobre a vacina.” No Rio, custou ‘um pouco a agir, mas acabou tomando a iniciativa de criar a Junta igo Vacinica por alvaré de 4 de abril de 1811. Muzzi jé tencarregado solitério do servigo e passava a trabalhar ‘numa equipe de trés vacinadores sob 0 comando do mencionado dr. Theodoro Ferreira de Aguiar e “debaixo das vistas do Intendente Geral da Policia da Corte e Estado do Brasil, ¢ do Fisico Mor do Reino”.* Segundo Vieira Fazenda, o interesse de d. Joao na vaci- iria aumentar no ano seguinte devido a uma tragédia familiar: a causaria a morte do principe d. Pedro Carlos, genro do fu- ‘esbelto mancebo de 25 anos de idade”.”” Em segundo lugar, estudos historicos recentes sugerem que bh uma relagao entre © ndmero e a intensidade das epidemias de da utilizago da vacina jenneriana na Corte. O nexo inicial aqui é 0 problema do trifico negreiro. Havia pratica- 108 — ‘mente um consenso na comunidade médica do Rio de que, da Corte por quatro anos seguidos, no inicio dos anos 30, era a cessagdo temporiria do comércio negreiro em virtude da lei de aboligio do trifico de 1831. Por outro lado, o retomno violento das bexigas em 1834 e a repeticdo de epidemias em 1835-6 e 1838-9 seriam resultado direto da retomada do tréfico, agora ilegal, pois “que muitos africanos aqui chegados com o flagelo, c populagio, ou alojados em depésitos nos subérbios da cidade”. que Pereira Rego estava correto, mesmo que ele trea variolae ceuropeu — a respeito do meio am- aracteristico do continente aftica- no, Em estudo recente, Dauril Alden e Joseph Miller investigaram detalhadamente a cadeia de transmissao epide ntre o Brasil e a Africa no que diz respeito a varfola desde 0 Xvi até a primeira metade do século xix. Em resumo, os autores argumentam que haveria uma relagdo entre perfodos de seca em regiées da Africa, ocorréncia de epidemias de varfola nes- tas regides, e transmissao da doenca para 0 Brasil por meio de um aumento do contingente de africanos sujeitos ao comércio negrei- +o que seriam provenientes destas regides deflagradas pela seca — ¢, por conseguinte, também pela fome € pela doenga. Em suma, acontecia com freqiiéncia de os traficantes terem acesso a cativos provenientes de regides em que havia um excesso populacional contingencial causado pela impossibilidade de alimentar apropria- < 128 em promover a varializago no Brasil foram tao tardios a ponto de se confundirem com as primeiras tentativas de introdugo do pré- prio método jenneriano no pafs.” Deixemos, porém, de hipéteses arriscadas. Temos os fatos, contra 0s quais no hi argumento. Assim era a hist6ria como real- ‘mente acontecia: Ainda que ofic rene no me fose comunicado, ei que alguns Muniepios da Provincia do Rio de Janeiro fram iguslmenteviti- ras pela varfola go sen viru em vez do vacinico, Esta praia de Tinta vaca extrada de bexiguetos, ci com eater msi benigno,pricaoutora seguida, quando Jenner no hava ainda deseoberto a miracloea vite do cowpor, tomo te absrda depois que a humanidade fi prsenteada por aqueleho- mem, cao nome sed imotal, com o dom naprciavel da vaca, ¢ tmoito mais absurda se tora quando dla se langa mo para fazer reroeeder uma epider de bexgas. Quando esa enfermidade €pro- dhusidaaificialmente por meio da inocula, nfo concorrendo as eireunstinias que Ihe fazem adquirir o caster epidémico, poucas wean é scediga de resultados desatoss,exceo ses m rem asinculagbes, por que enti dspor. prepara, ou mesmo det mina uma epidemia (si); porém quando a inculagio da varila benignase opera debaino de uma consitugfoepidémica ela ndo faz fendo tea’ ncéndio,e mis reqdentement aque que fo nock- Indo ca wima de bexigas conus. E porto que eu tenho cons tantementerepresentado conra esta prdica, esinda aqui insisto pela necestdnfe de medias que de una ver a prescrevam absolute te. E verdade que 0 povo baixo mormente 0 do ceéem eral que vacin € a prépria var primeira a mesma epugndnciae horror que Ihes inspira a segunda. ‘Touma seo pvo for convenientemente dvtrinado, se na.educapdo smitir 20s s30s a Este trecho 6 parte do relat6rio que Jacintho Pereira Reys en- ‘em janeiro de 1855 prestando con- to Vacfnico no ano anterior. O contexto 129 mais geral 6 como sempre, empenho do diretor em explicar 0 fraco resultado dos esforgos para vacinar a populagio. O autor ar- gumenta inequivocamente que a prética da variolizagao consistia ‘em obstéculo poderoso & propagacdo da vacina. Segundo ele, a inoculagao do pus variGlico agravava a intensidade das bexigas, € © “povo”, conhecedor dos riscos da variolizagao nessas situagbes, desconhecedor da diferenga entre vacinagdo e variolizagao, achava ue a vacina era “a prpria varfola”, sentindo por ambas igual “re- pugnancia e horror”. Em seu relatério concemente ao ano de 1848, Jacintho Reys jé se alongara nas causas da rejeicdo a vacina.”* Ele se referiu com detalhes a um documento que Ihe fora enviado por um comissério vvacinador da Provincia de Sergipe. O tal comissério fizera uma ex- ccursio pelo interior para “conhecer melhor do estado da vacinagao”, ‘eno seu relato de viagem “pintou” vivamente “o horror que a vacina incute na populagao; horror igual ao que produz a bexiga, ¢ que é até fomentado pelas proprias autoridades”. Tal “horror”, comentara 0 comissério vacinador, fazia até com que os “mais ardidos” levantas- sem “mio armada” contra os vacinadores. No mesmo relatério, Reys meneiona uma epidemia grave de bexiges que assolara a Corte no perfodo; a cidade estava com “centenares de semblantes afeiados recentemente pelas cicatrizes” deixadas pela doenca, cuja mortan- dade, “especialmente nos escravos africanos”, fora “muito além” da observada em anos anteriores. Ao enumerar didaticamente 08 pro- bblemas do servigo de vacinagio na parte final do texto, o chefe dos lanceteiros condena “o barbaro, ¢ intolerdvel abuso de se inocular 0 fluido varislico; abuso geval, e que me consta ser praticado até nes- ta Core” Visivelmente iritado com a situago que en- frentava, Reys conclui o relat6rio denunciando que a “indiferenca” do governo em relagao & variola se explicava pelo fato de a mortan- .,dade causada por tal doenca ndo ser do tipo a provocar “estrondo”; © isto “porque a classe indigente, € mormente a dos escravos” era a {que mais sofria com tais epidemias. Num dltimo recurso suasério, 0 vvacinador-mor mostrava-se chocado com “a enorme quantidade de bragos” que o pais perdia todos os anos para “a peste das bexigas”; ‘um argumento que certamente encontrou ouvides moucos naquele ‘no da graca de 1848, no qual milhares e milhares de africanos eram 130 ainda contrabandeados para o pafs sob as barbas de politicos ¢ auto ridades policais e judicidrias. “Palavras Toucas, ouvidos moucos”, reza o provéibio. Resta saber onde ficamos ap6s esse longo percurso entre rela- {6rios e citagées. A primeira impressfo & a de que as informagGes coletadas sio muitas vezes contraditérias, se nfo impossiveis de compatibilizar numa explicago untvoca e coerente das coisas. Por exemplo, havia aqueles que resistiam a vacina aplicada pelos médi- cos alegando que esta era a propria varols, passando entio a descre~ ver os Fiscos normalmente associados & varilizagio; mas torna-se dificil entender a ecusa 8 vacinaglo por esta ser confundida com a variolizagio se hi testemunhos inequivocos de que a inoculago do pus varidlico era conhecida e bastante praticada no pafs. Em suma, as razbes registradas pelos médicos para a resisténcia & vacina nos dleixam a dificuldade de explicar 0 porqué de tantas pessoas recorre- em variolizagao. Outro probleme: 0s esculépios ouviam da popt Jago que qualquer intervengZo no curso natural desta moléstia seria prejudicial ao paciente; mas e era este 0 motivo da recusa a atuagio dos médicos, nfo hé como explicas as evidéncias sobre 0 recurso @ ccurandeiros, homeopatas, ¢ até a “curiosos” que inoculavam a linfa varidlica. Dividas sobre dividas, e € melhor buscar dirimi-las antes que oleitor pegue do espirito e o leve a vagar em outras aragens. A primeira providéncia € desistir de procurar um modelo {nterpretativo nico para a interagao entre médicos¢ vacinophobos Se entre os proprios médicos havia controvérsias ¢ combates for- midéveis a respeito da eficicia da vacina, € apenas razoavel espe rar que a espécie dos vacinophobos fosse ainda mais variada. preciso reconhecer, em primeiro lugar, que houve resisténcia & va-

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