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LF TMU WE CASE TRY EEE | | 1 Os espacos publicos sio dominados por homens — eis um territrio patriarcal. O movimento feminista nao mudou isso. Tampouco teve for¢a suficiente para “retomar a noite” e fazer de locais escuros lugares seguros para as mulheres passearem, vagarem e perambularem & vontade. O éthos do espaco publi- co permanece inalterado. A igualdade de género chegou ao ambiente de trabalho, mas na rua toda mulher que se atreve a andar sozinha a noite se torna um corpo a venda, um corpo em busca de drogas, um corpo em decadéncia. Uma mulher que perambula e fica 4 toa no espago publico é vista por todos, per- cebida, observada. Ela, queira ou nao, se torna uma presa para o predador, para o Homem, seja ele um cafetio, um policial ou apenas um transeunte. Nas cidades, as mulheres nao tém terri- tério ptiblico para ocupar. Elas devem estar em constante movi- mento ou entao enclausuradas. Elas precisam ter um destino certo, Nao podem relaxar, nao podem ficar 4 toa. Varandas e sacadas foram feitas para que as mulheres tives- sem algum espago ao ar livre. Séo uma caracteristica comum da vida no Sul. Antes de o ar-condicionado existir, passava-se o veriio na varanda; era o lugar onde todos se reuniam no inicio da manhie no fim da noite. No Kentucky de bairros negros 179 pobres do Sul, formado por casas estreitas de ripas de madeira, uma varanda era sinal de portas abertas. Sair para a varanda significava ver e ser visto, ndo ter nada a esconder. Sinalizava uma vontade de ser conhecido. Muitas vezes, os barracos dos menos favorecidos davam direto para a poeira e a sujeira — nao tinham tempo nem recursos para construir uma varanda. As varandas das casas onde cresci eram cendrios de amiza- de — um espaco externo ocupado por mulheres enquanto os homens estavam fora, trabalhando ou perambulando pelas ruas. Sentar-se na varanda significava que todo o trabalho domésti- co ja tinha sido concluido: a casa estava limpa, a comida feita. Ou descansar enquanto a governanta ou a empregada doméstica terminava a limpeza, se vocé fosse rica 0 suficiente para tanto. Nés, criangas, precisavamos de permissao para sentar na varanda, para ocupar aquele espaco de lazer e descanso, nem que fosse por pouco tempo. A primeira casa que habitamos nfo tinha varanda. Era uma casa de blocos de concreto, construida para abrigar os homens que trabalhavam em busca de petréleo fora dos limites da cidade, portanto um lugar de espera para pessoas determina- das a se mudar e seguir em frente — um lugar em meio A nature- za. No meio da natureza, nao havia vizinhos para acenar ou com quem conversar, ou gente para cumprimentar, de quem se podia notar a presenga pelo bater de portas ao entrar e sair. Uma casa sem vizinhos nao precisa de varanda, apenas de estreitos degraus para permitir a entrada e a saida dos moradores. Quando nos mudamos desse lugar afastado, quando ascen- demos socialmente, as condigées financeiras favoraveis nos levaram para um sobrado de madeira. Nosso novo come¢o foi grandioso: era uma casa ndo apenas com uma, mas trés varan- das — uma na frente, uma na lateral e uma na parte de tras. | a F Na varanda lateral, era possivel dormir quando o calor do dia dava uma trégua. Levar os sonhos IA para fora fazia o escuro parecer seguro. E, dentro dessa seguranga, uma mulher ou uma crianga — menina ou menino — podiam se demorar. As varan- das da lateral eram locais para encontros secretos, longe das vistas de qualquer pessoa, onde os visitantes podiam ficar por um longo tempo sem ser notados. Depois de um ano com uma varanda lateral e seis meninas adolescentes, papai a fechou com drywall, subiu paredes, bloqueou a porta. O lugar se tornou, ento, 0 quarto do meu irmio, um espago fechado sem janelas. Sentévamos na varanda dos fundos e faziamos tarefas como selecionar nozes, debulhar milho e limpar peixe, quan- do Baba, minha avo materna, e os outros conseguiam um bom dia de pesca ou quando os agricultores negros traziam os frutos de seu trabalho a cidade. Nossa varanda dos fundos era pequena. Nao havia lugar para todos nés. Era um espago limitado para amizades. Eu me sentia mais confortavel nessa varanda quando era crianga, fora das vistas dos adultos: ali podia fazer minhas reflexées infantis, sonhar acordada, sem a interrupgdo de pessoas entrando e saindo e dizendo uma coisa ou outra, sem gente chegando para descansar. Na casa do st. Porter (0 idoso que viveu e morreu 14 antes de nos mudarmos), havia um sentimento de eternidade, de atemporalidade. Ele imprimiu na alma da casa seu sabor, o gosto e o cheiro de uma vida longa. Nés honravamos esse sentimento ao usarmos 0 nome dele quando falavamos da casa na First Street. Na mente patriarcal de nosso pai, o sr. V., a varanda era uma zona de perigo — na sua cabega machista, todo espaco feminino era um perigo iminente, uma ameaca. Um homem estranho den- tro da varanda do sr. V. estava fadado a se tornar um possivel alvo: entrar na varanda, em um santudrio feminino, aos olhos de qual- quer patriarca, era o mesmo que violar a mulher de outro homem. E todas nés — mie, filhas — éramos propriedade de nosso pai. Como todo patriarca, de tempos em tempos ele nos lembrava a quem pertencia aquela casa. Era um mundo no qual as mulheres nao tinham direitos, mas podiam ocupar a varanda. E a varanda era colonizada por ele, tornando-se uma vitrine para a qual outros homens poderiam olhar, mas nunca ter nenhum contato — era um lugar que no interessava ao nosso pai, um lugar onde ele nao sentava. De fato, nosso pai sempre agiu como se odiasse a varan- da. Muitas vezes, ele entrava pela porta dos fundos ao chegar do trabalho, demarcando seu territério, para nos pegar de surpresa. Aprendemos que era melhor nao sermos vistas na varan- da quando ele aparecesse na calgada depois de um longo dia de trabalho. Aprendemos qual era o nosso lugar: dentro de casa, proporcionando um mundo confortdvel para o patriarca, preparadas para nos curvar e servir — nao se curvar no sen- tido literal, mas subordinar nossa vida. E assim era. Portanto, nao era de estranhar que gostdssemos tanto da varanda. Ansidvamos por sair daquele espaco vigiado pelo patriarcado da casa — que, 4 sua maneira, era uma prisao. Como tantas outras coisas destrufdas pela ira patriarcal, tantos espagos femininos arruinados, a varanda foi tomada de nés por nosso pai, o patriarca, em uma noite muito quente de verdao. Na volta para casa depois do trabalho, domi- nado por um ataque de citime, ele comegou a esbravejar assim que chegou a calgada que levava a escada, proferindo ameagas, palavrées. Eramos todas mulheres ali na varanda, separan- do nossos corpos como ondas no mar, abrindo espaco para que ele empurrasse mame com mios violentas para dentro 182 a de casa, onde as repetidas ameagas de morte vindas dele nao pudessem ser ouvidas pelos vizinhos. Esse trauma da violén- cia masculina sufocou minha adolescéncia nos bragos de uma profunda e permanente dor — tirou de mim a amizade femi- nina, a liberdade dos dias e das noites na varanda. Encurraladas nos vaos da patriarcal guerra de género, fica- mos sem nossa varanda, temendo que qualquer inocente apro- ximagao masculina vista pelo nosso pai pudesse desencadear uma raiva insana. Do lado de fora, eu via a distancia o desam- paro de um espaco dizimado, sem energia vital e mergulhado em solidao. Mamie e papai repararam os lugares feridos pela raiva e mantiveram o laco intimo entre os dois. Mudaram-se da casa do sr. Porter para uma pequena casa de madeira sem - varanda; e, mesmo quando uma pequena varanda foi construi- da, ela nao servia para sentar, apenas para ficar de pé. Talvez esse espaco tenha aliviado a ansiedade de meu pai quanto ao perigo feminino, quanto ao poder das mulheres. Sem dtivida, nosso pai, como todo patriarca, sentia que a varanda, como lugar de encontro das mulheres, representava uma potencial ameaga 4 dominag’o do macho sobre a casa. A varanda, um espaco intermediario entre a casa e o mundo das calcadas e das ruas, simbolizava um limite. Cruza-lo abria a possibilidade de mudangas. Mulheres e criancas na varanda podiam comegar a interpretar o mundo exterior com um olhar diferente daquele aprendido em um lar patriarcal. A varanda nio tinha dono; nem mesmo nosso pai podia conquisté-la. As varandas podiam ser abandonadas, mas nao tomadas, ocu- padas por um grupo em detrimento de outros. Um lugar democratico de encontros, capaz de abarcar pes- soas com diversas histérias de vida, com diferentes perspectivas, sd a varanda era um espaco de transito livre, ancorado apenas pelo banco de balanco suspenso — até mesmo isso era um simbolo de prazer. O balango sugeria o desejo implicito de se movimentar livremente, de ser transportado. Simbolo de diversdo, capturava o permanente anseio pela infancia. Ele nos levava a tempos pas- sados, nos fascinava, nos hipnotizava com seu vaivém. O balango da varanda era 0 local de construgio da intimidade, do desejo que surgia com a aproximago nascida de seus movimentos. Na minha infancia, quando todos se sentavam nas varandas, em geral nos balangos, essa era a maneira de estabelecer contato uns com os outros, a maneira de criar uma comunidade. No tra- balho de M. Scott Peck sobre a formagao de comunidades e paz, The Different Drum, ele explica que uma comunidade de verdade estd permanentemente unida e “tem como caracteristica a inte- gridade, sempre”. A integridade em nossas comunidades segrega- das durante minha infancia e adolescéncia baseava-se no cultivo da cordialidade, do respeito pelos outros e do reconhecimento de sua presenga. Passar pela casa de alguém, ver essa pessoa na varanda e nio falar com ela ia contra os principios da comuni- dade. De vez em quando, meus irmios e eu ousdvamos ignorar a pratica de cordialidade, que incluia respeitar os mais velhos, e pass4vamos pela casa dos outros de forma esnobe, sem falar nada. Assim que cheg4vamos em casa, mamie jé teria recebido uma ligac&o reclamando que no tinhamos sido educados e respeito- sos. Ela nos fazia voltar e desempenhar 0 ritual necessario de falar com os vizinhos sentados nas varandas. Em Um mundo esperando para nascer: a civilidade redescober- ta, M. Scott Peck inclui em sua discussao sobre a formagao de comunidades a pritica da civilidade. Ao crescer no Sul na época da segregacdo, fui criada para acreditar na importancia da cor- 184 : Fa tesia. Isso era mais do que apenas reconhecer a necessidade de ser educado, de ter boas maneiras; meus irmaos e eu deverfamos estar sempre cientes da interconectividade e da interdependén- cia entre todas as pessoas nossa volta. O que aprendi vendo os vizinhos em suas varandas e parando para conversar com eles, ou apenas para cumprimenté-los de um jeito cordial, foi uma forma valiosa de honrar nossa conectividade. Peck diz que a civilidade é motivada de modo consciente, sendo essencialmen- te uma pratica ética. Ao praticar a civilidade, lembramos a nds mesmos, ele escreve, que “cada ser humano — vocé, seu amigo, um estranho, um estrangeiro... — é precioso”. A etiqueta da civilidade vai, ent&o, muito além do comportamento: inclui um entendimento psicoanalitico mais profundo, de reconhecé-la como algo que nos faz sujeitos em vez de objetos uns dos outros. E longa a histéria de luta dos afro-estadunidenses pela rea- firmaco de si mesmos como sujeitos enquanto o impacto desu- manizador do racismo age para nos manter no lugar de objetos. Em nosso mundo segregado do interior, viviamos em comuni- dades de resisténcia, onde o simples gesto rotineiro de sentar na varanda era uma forma de humanizacio. Era comum os brancos racistas sentirem raiva ao ver um grupo de negros reunidos em uma varanda. Eles passavam despejando sobre nds expresses depreciativas, como “macacos acomodados” (porch monkeys), tanto para mostrar desprezo quanto para mais uma vez con- jurar a iconografia racista ligando a negritude com a natureza, com animais selvagens. Por ser um limite revoluciondrio entre a casa e a rua, a varanda podia, assim, ser um lugar de resistén- cia antirracista. Enquanto os brancos podiam interpretar como bem entendessem as agGes de pessoas negras na rua, O individuo ou o grupo de negros reunidos em uma varanda desafiavam tal 105 aot interpretagao. O olhar racista podia apenas observar, mas nunca saber de verdade o que ocorria em nossas varandas. Eu ainda era crianca quando descobri que algumas pessoas brancas consideravam os negros inferiores aos animais. Meus irmios e eu observavamos da varanda os brancos trazendo de volta para casa seus criados, empregadas e cozinheiras, cujo trabalho duro proporcionava conforto A vida de seus patrées. Os empregados negros sempre eram relegados ao banco de trds do carro. Ao lado dos motoristas brancos, no banco do pas- sageiro, la estava o cachorro, enquanto o trabalhador negro sentava atr4s. Essa visio me ensinou muito sobre a interco- nectividade entre raga e classe. Eu me perguntava 0 que sen- tia o trabalhador negro quando chegava a hora de ir para casa e ocachorro ocupava o banco do passageiro, nunca oferecido a uma pessoa negra por causa do racismo e da supremacia branca. Mesmo crianga, eu percebia a vergonha desses traba- lhadores, porque eles nunca olhavam pela janela; nem se davam conta do que acontecia no mundo fora do carro. Era como se fossem levados para casa em transe — desli- gar-se de tudo era uma forma de bloquear a vergonha. Como sombras silenciosas cabisbaixas no banco de tras de carros ele- gantes, os solitarios trabalhadores nunca olhavam em direcio a varanda, onde negros “libertos” reuniam-se para se divertir. Eu era a menina que eles nao viam, sentada no balango; eu sentia a dor deles, torcendo para que ela cessasse. E me sen- tava e balangava, para a frente e para tras, sonhando com um mundo onde os negros ndo sentissem medo. Ao superar 0 medo racializado, abandonei 0 ritmo dos balangos da varanda, das noites quentes cheias de pessoas carinhosas e risadas que iluminavam a escuridao como vaga- -lumes. Fui para a Costa Oeste para estudar, longe do indo- lente apartheid, fruto das leis de segregacao ja extintas, mas ainda muito presentes em nossa realidade. Fui para o Norte, pois o Sul me negava o direito de me tornar uma intelectual. Mas, assim como os negros descritos pela antropéloga Carol Stack, que saem do Norte para retornar ao Sul ansiando por uma vida que eles temem estar perdendo, também voltei ao lar. Para qualquer sulista que chegou a amar 0 Sul, ali serd eter- namente o seu lar. Desde o nascimento respiramos seu aroma inebriante e encantador, e o que nos conforta, no fim das con- tas, é o proprio ar. Desde o nascimento, nés, sulistas, somos seduzidos e marcados pelos vislumbres de uma vida cordial, uma comunhio dificil de encontrar em outro lugar. Essa vida foi encarnada por mim no mundo da varanda. Quando estava procurando um lar no novo Sul (ou seja, 0 lugar onde a mentalidade segregacionista ainda se manifesta de forma grosseira), descobri uma cultura imobilidria na qual prevalece o lucro material em detrimento do desejo de man- ter bairros e ragas puras. Como estava 4 procura de um lugar préximo da 4gua que me permitisse chegar andando aonde quisesse, cercada por um cenério tropical no meio da nature- za, um lugar onde pudesse visitar os amigos e sentar em suas varandas, eu me vi pesquisando bairros habitados na maioria por brancos tradicionais. Em busca do meu lar sulista, eu que- ria uma casa com varanda. Reformei um bangalé da década de 1920, parecido com aqueles que nos classificados da loja Sears & Roebuck eram oferecidos por menos de setecentos délares, com ou sem banheiro. Meu prazer era trabalhar na varanda. Quando tentava conversar com vizinhos que me ignoravam ou nio escondiam o fato de terem escolhido aquele lado da cida- . de para evitar os pretos pregui¢osos, penso no Softimento das primeiras familias negras que compraram suas casas em bair- ros “brancos” na época dos movimentos pelos direitos civis — e que esse sofrimento, junto com a dor dos companheiros na luta por justiga, me deu liberdade para que hoje eu possa escolher o meu lar. Nessa comparago, 0 que outros negros € eu sofremos atualmente ao levar diversidade para espacos antes ocupados somente por brancos é um mero desconforto. E importante prestar homenagem e honrar a meméria des- ses valentes negros, que lutaram e sofreram para que hoje eu possa fazer o que quiser e morar onde bem entender. Assim, fiz de minha pequena varanda um lugar de resisténcia antirracista, um lugar para praticar a etiqueta da civilidade. Eu e as minhas duas irmas que moram préximas de mim costumamos nos aco- modar na varanda. Acenamos para todos os passantes, a maio- ria brancos, a maioria resistente A nossa presenga ali. Mulheres brancas sulistas, tanto idosas quanto jovens, so as que menos se esforgam para ser cordiais. Aqui no novo Sul, muitas mulhe- res brancas sentem falta dos velhos tempos, quando havia uma negra para servi-las, oprimida pela for¢a da pele branca delas. Uma proprietéria negra rompe com essa fantasia machista racializada. Nao importa quantas mulheres brancas desviem 0 olhar. Olhamos para elas e, sustentando o olhar, confirmamos nossa subjetividade. Falamos com elas, oferecendo a hospita- lidade sulista, a civilidade ensinada por nossos pais para que féssemos cidadas responsaveis. Falamos com todo mundo. De brincadeira, chamamos essas pequenas intervengées de mais um “momento Martin Luther King”. Apenas sendo cordiais, cumprimentando, “interagindo”, estamos fazen- do um trabalho antirracista de integracao nao violenta. Isso inclui conversar e dialogar com os poucos negros que passam pela varanda, a maioria trabalhadores mal remunerados e maltratados. A eles, oferecemos nossa solidariedade na luta. No famoso ensaio de King chamado “Loving Your Enemies” {Ame seus inimigos], ele nos fez refletir que se aproximar dos outros com amor € 0 tinico gesto de civilidade capaz de criar as bases de uma verdadeira comunidade: O amor € a tinica forga capaz de transformar um inimigo em um amigo. Nunca vamos nos livrar de um inimigo responden- do ao édio com o édio; nos livramos de um inimigo ao elimi- nar a hostilidade. Por sua natureza, o édio destréi e devasta; Por sua natureza, o amor cria e constréi. O amor transforma com seu poder de redengao. Dentro do meu lar no Sul, consigo criar um mundo livre da hostilidade racista. Quando vou para minha varanda, eu me conscientizo sobre questées de raga ao perceber o olhar hostil e racista de alguns brancos, e consigo diferencid-lo do olhar acolhedor de boas-vindas e reconhecimento de individuos brancos que também entendem a etiqueta da civilidade, da construgdo comunitéria e da paz. O “bangalé luz das estrelas” — assim nomeado na planta divulgada nos classificados da Sears & Roebuck da década de 1920 —, meu lar atual no Sul (como boa némade moderna, no fixo residéncia em um lugar), tem uma varanda enorme. De estuque sobre madeira, a casa foi remodelada para ganhar um ar mediterraneo. A aparéncia arquiteténica da varanda nao é convidativa para um balanco, uma cadeira de balango ou mesmo um banco comum. Coberta com ladrilhos mexica- tno nos cor de areia, no é uma varanda destinada a um verdadei- ro repouso. Por ser larga, com arcos e colunas arredondados, ela convida as pessoas a abrirem a alma, a entrarem no cora- ¢&o da casa, atravessando uma soleira tranquila. Quando voltei para o Sul, senti falta de uma varanda ideal para receber amigos e ter conversas noite adentro. No entanto, por ser fiel A minha voz interior, eu aceito a vontade arquite- ténica da varanda e a deixo como esta, sem assentos a mais, apenas uma estrela de estanho como decoragao. A varanda é destinada a permanéncias curtas, com bastante espago para ficar de pé, olhar o exterior e observar o que se passa na vizi- nhanga, um lugar para fazer contatos — um lugar para ser visto. Nos antigos classificados da Sears & Roebuck, as casas recebiam nomes e uma descrigao de qual tipo de vida seria imaginada nelas. O meu “bangalé luz das estrelas” era descrito como “um lugar para uma vida distinta e unica”. A primeira vez que me sentei na varanda, antes mesmo de entrar na casa cheia de luz natural, proclamei, com a velha linguagem sulista: “Minha alma agora pode descansar”. A varanda perfeita é um lugar de descanso para a alma. No Kentucky, minha casa nas colinas possui uma varanda larga com vista para o lago, do qual tiramos a 4gua para consu- mo. Nao é uma varanda para encontros e confraternizagées. Por ser uma casa empoleirada no alto da colina, ninguém passa por ela ou pela varanda. Assim como o “bangalé luz das estrelas”, a varanda é destinada a “quietude e repouso”. Ela convida ao. siléncio — que permite ouvir as vozes divinas ao redor. 190

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