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consiste em recomendar o sucesso pela beleza, e depois alertar contra o risco que h4 em vendé-la fora das passarelas. (3 de dezembro de 2000) O AreTo AuTORITARIO Tenho defendido as novelas. Contra a opiniao de mui- tos colegas da Universidade, sustento que elas tém papel positivo na transmissao de certos ideais, em especial o da igualdade da mulher em relagdo ao homem e o da conde- nagao do preconceito de raga. E claro que a TV é menos profunda ou pioneira que os grupos feministas ou de consciéncia indigena ou negra — mas s6 ela pode levar uma idéia, um nome de livro, um comportamento a 50 ou 60 milhdes de pessoas. Mas, justamente porque defendo o que é positivo nas novelas, devo criticar 0 afeto autoritario que nelas se vé. Penso no despotismo do patrao sobre os empregados, e da patroa sobre a doméstica negra. Um personagem como Pedro (José Mayer) em Lagos de Familia nao respeita as pessoas — € no entanto é, globalmente falando, mais sim- patico que antipatico. A TV ainda tolera condutas que so- cialmente se tornaram inaceitaveis. Uma novela precisa ter personagens de varias classes sociais. Se nao tiver pobres, classe média ¢ ricos, nao atin- gira todos os publicos. E a comunicagio entre essas classes se da sobretudo pelo amor. Isso faz parte das regras do ge- nero e nao vou contesté-las aqui. O problema, porém, é que no contato entre os ricos e os pobres desponta um autoritarismo que acabamos acej- 40 TELEJORNAL tando, nés, espectadores, gragas a um enredo que faz das personagens despoticas figuras agradaveis, humanas, qua- se positivas. Por que essa simpatia, ou tolerancia, com os minidés- potas do dia-a-dia? Nossa sociedade nunca liquidou seu le- gado autoritdrio. Quando se aboliu a escravidao, nao hou- ve um projeto de cidadania para os negros. Ao contrario, tudo servia de pretexto para reprimi-los — por exemplo, a capoeira, os cultos afro-brasileiros, que eram caso de policia, Nosso know how de relaces sociais ainda tem um qué da escravatura. Aceitamos muitas vezes que o elemento descontraido, simpatico, afetuoso venha junto com uma centelha de autoritarismo. Lembremos como Lima Duarte se especializou em fazer clones de Sinhozinho Malta - 0 fazendeiro de Roque Santeiro (1985-1986), que simboliza- va todo o entulho da ditadura militar sobrevivendo no re- gime civil. Mesmo quando a TV valoriza a mulher perante o ho- mem, seu limite de atuagao é a sociedade de consumo. Nossa televisdo é muito mais consumista que as européias. Quem tem vale mais do que aquele que nao tem. E por isso © patrao muitas vezes trata mal o empregado. Isso € tao comum que as vezes nem se percebe. Suges- tao: prestem aten¢ao no modo como as pessoas sao servi- das a mesa, nas novelas. Verifiquem se agradecem a empre- gada, se dizem “por favor”. £ mais provavel que lhe dirijam alguma palavra atravessada — e que isso acabe passando, nao digo como bom, mas como natural ou comum. O Brasil vai melhorar do autoritarismo quando esse tipo de conduta nao for mais aceito, quando nao suscitar 41 =. mais sorriso, sequer amarelo, mas causar tepulsa ou pelo menos estranheza. Quando nao nos reconhecermos mais, ou nao reconhecermos mais nosso pats, no recorte que trata os mais pobres como desprovidos de direitos, e até mesmo do direito elementar de ouvir, sempre, “por favor” © AFETO AUTORITARIO e“obrigado”. Isso € pouco? Nao acho. Ha varios modos de ajustar contas com um passado detestavel. Um deles é mexer nos pequenos gestos, percebendo que nossos valores nao séo coisa muito abstrata, mas se exprimem em nosso modo de guiar o carro ou de tratar a pessoa do lado, O mesmo vale para a TV ~e, quando ela nao agir bem, devemos cobrar isso dela, Melhorar o pais dé trabalho. Isso inclui reclamar pelo que achamos justo. ie (17 de dezembro de 2000) Marta Supticy EA TV Amanha [em 1? de janeiro de 2001] assumem os no- vos prefeitos, com a expectativa de mais cidadania e de éti- ca na politica. Na terceira maior cidade do mundo, toma posse uma mulher. Como Marta Suplicy criou e presidiu o grupo TVer, a mais conhecida organiza¢éo nao-governa- mental de acompanhamento critico da televisio, vale a pena falar dessa dimensao da nova prefeita. Ha trés anos, ante a insatisfagao popular com a progra- magao da TV, Marta Suplicy reuniu profissionais de diver- fs areas — psic6logos, advogados, jornalistas, cientistas so- Ciais, estudiosos do assunto e até mesmo eu — para discuti-la, 42 2 Renato Janine Ribeiro O AFETO AUTORITARIO TELEVISAO, ETICA e DEMOCRACIA Atelié Editorial

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