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{I | Mauro Martins Amatuzzi AEDIEORA 2: Edigao por uma PSICOLOGIA /HUMANA E preciso que a Psicologia busque se aprofundar naquilo que é caracteristicamente humano. Do contrario ela nao podera contribuir no dialogo dos que buscam saidas verdadeiras para os problemas pessoais e sociais que enfrentamos em nosso mundo conturbado. E preciso que ela se debruce sobre os sonhos que alimentamos em nosso intimo, sobre nosso desejo de uma vida mais digna, sobre o sentido que queremos dar as nossas vidas, sobre as formas como podemos, de verdade, dar andamento as nossas mais legitimas aspiragdes. E isso nao apenas em termos individuais, mas, também, em termos da comunidade que constituimos, entre nés humanos e com a natureza, mae que nostodeia. Este livro procura resgatar para a Psicologia - como estudo e pratica de desenvolvimento da pessoa humana — aquilo que nos vem da tradigaéo humanista. Procura ‘9 sentido que pode ter o humanismo para a Psicologia (capitulo 1), ¢ os fundamentos. desse sentido numa fenomenologia da fala e do silencio (capitulo 2). Busca aplicar, em ‘seguida, 0 que foi ai levantado ao campo da pesquisa do humano (capitulos 3, 4 € 6), a psicoterapia (capitulos 5 e 7), construgaode uma psicologia popular (capitulo 8), e ao esforgo de construir uma comunidade verdadeiramente humana (capitulo 9). Por uma PSICOLOGIA Humana Mauro Martins Amatuzzi DIRETOR GERAL Wilon Mazalla Jr. COORDENACAO EDITORIAL. Willian F. Mighton COORDENAGAO DE REVISAO Erika F. Silva REVISAO DE TEXTOS Vera Luciana Morandim R. da Silva EDITORAGAO ELETRONICA Sofia Cavalcante REVISAO DE FILMES Rosangela A. Santos CAPA Fabio Cyrino Mortari Dados Internacionais de Catalogagao na Publicacio (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Amatuzzi, Mauro Martins Por uma psicologia humana / Mauro Martins Amatuzzi. -- Campinas, SP: Editora Alinea, 2008. 2* edigio. 1, Psicologia humanista 1. Titulo. 01-4247 CDD - 150.198 indices para catalogo sistematico: 1. Psicologia humanista. 150.198 ISBN 978-85-7516-243-9 Todos 0s direitos reservados & Editora Alinea Rua Tiradentes, 1053 — Guanabara ~ Campinas-SP CEP 13023-191 — PABX: (0xx!9) 3232.9340 e 3232.2319 www.atomocalinea.com.br Impresso no Brasil Agradego aos editores das revistas abaixo mencionadas ¢ a diretoria ANPEPP juntamente com a Dr* Regina Maria Leme Lopes Carvalho, a ermissao de retomar textos ai publicados originalmente, para a composi¢ao presente livro: Arquivos Brasileiros de Psicologia Estudos de Psicologia (PUC-Campinas) Psicologia em Estudo Psicologia: Teoria e Pesquisa Prometeo ~ revista mexicana de psicologia humanista y desarrollo humano Coletaneas da ANPEPP. presentacao. ipitulo I. Humanismo e psicologia \pitulo IT. Siléncio e palavra .. Da fala ao siléncio surgimento do secundario...... A compreensao. ipitulo IIL. Investigago do humano ... ipitulo IV. Pesquisa do vivido pitulo V. Atendimento psicoterapico.... ‘A palavra foi feita para calar..... Escutar é abrir-se para o mundo, e responder upitulo VI. Versio de Sentido .... Compreendendo a VS a partir de sua histéria hist6ria e outras abordagens Tentativa de defini¢ao .. Para uma fundamentagao teéric: Principios gerais para 0 uso da Versio de Sentid Capitulo VII. Etapas do processo terapéutico A problematica... O material... Os caminhos da anilise....... Os resultados... O alcance desses resultados. Confirmagées externas ConsideragGes finais. Capitulo VIIL. Psicologia popular. Capitulo IX. Processos humanos ... O que é processo Os processos na vida A explicag4o psicoldgica do processo.. Processos grupais Processo comunitario e outros 4mbitos...... m sobre todos os humanos que em salas de aula, em ruas € , em sessOes de psicoterapia, em reunides de sindicatos, em ‘ec igrejas traduziram em atitudes seus compromissos e valores. a de tudo um manifesto a favor do existir humano em 0, numa arrojada aventura iluminada e nutrida pela palavra. juro Amatuzzi tem sido assim, um psicdlogo que filosofa, em tiplas atividades como professor, pesquisador, conselheiro € liste nao é apenas mais um de seus livros; constitui uma sintese nificados atribuidos, ao longo de mais de trés décadas, a consistentes no sentido de um engajamento com pessoas ¢ dades na lida diaria pela recuperagéo da dignidade humana. foram, certamente, as versdes de sentido, mas nunca em ento do sentido do proprio viver, como valorizagao do cotidiano nstrugao de experiéncias pessoais. - Os capitulos que compédem esta obra mantém a énfase no smo como uma perspectiva de abordagem ao psicolégico, na ‘a como definigdo primeira do ser humano, na investigagao do ido como possibilidade de uma apreensio compreensiva do diano, no processo como historicidade critica e constitutiva. Por uma Psicologia Humana & um titulo que marca a Mificagao do autor com a praxis de uma atividade profissional, O cuidar ... Criando bolsdes de humanismo . Referéncia: cuja matriz de pensamento substancia um compromisso com desenvolvimento de uma abordagem interdisciplinar aos problemay e ao desenvolvimento humano, aplicada a individuos, grupos ¢ comunidades. Isso, em esséncia, define 0 proprio surgimento di Psicologia Humanista em sua retomada dos valores renascentistas, com énfase na recuperagao da importancia do homem em seu tempoe contexto, valorizado em sua totalidade. Sim, quero a palavra Ultima que também é tao primeira que jé se confunde com a parte intangivel do real. Ainda tenho medo de me afastar da légica, porque caio no instintivo eno direto, e no futuro: ainvengao do hoje ¢ © meu Unico meio de instaurar o futuro. Clarice Lispector em sua Agua Viva parece traduzir de maneira simples e ainda assim magnifica a importancia de um livro como este, em que da palavra emerge a confirmagao do vivido em sua concretude atual e do transcendente como devir humano. De um ponto de vista estritamente pessoal, julgo imprescindivel também reverenciar 0 homem Mauro Amatuzzi, meu colega e parceiro num processo em que a cronologia do tempo é de menor importancia face a grandeza do inusitado, das vivéncias diversas, das contradigdes feitas de encontros e desencontros, da magia em momentos de descoberta académica. Em meio ao turbilhdo das pesquisas, dos relatorios, das reunides administrativas, sobrevive o aconchego de abragos essenciais, de olhares certeiros, a nos acalentar a certeza de que ainda nos importamos com o outro, este amigo que pode ainda ser cumplice nas horas, tantas vezes vazias e despidas de significados, em que o humano parece escapar de dentro de nossos papéis ¢ desempenhos. Vera Engler Cury O texto a seguir corresponde originalmente a uma palestra pronunciada na JV Jornada de Psicologia Humanista, promovida pelo Centro de Psicologia da Pessoa e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, em agosto de 1988, ¢ depois publicada em Arquivos Brasileiros de Psicologia, 41, (4), pp. 88-95, set./nov. de 1989, com 0 titulo O significado da Psicologia Humanista, posicionamentos filoséficos implicitos. Ainda gosto bastante dele. Parece-me que ele aponta para a largueza do territério de uma Psicologia realmente Humana. Fiz pouquissimas modificagGes, somente para adaptar o texto ao novo titulo. Hoje creio que & melhor falarmos do Humanismo na Psicologia, do que da Psicologia Humanista. essencial do que quero dizer a respeito desse assunto pode ser colocado em algu- mas poucas proposigées. E a primeira é a inte: o homem nao é um “bicho que fala”, mas le ¢ a propria palavra, isto é, ele é palavra. Reen- tro aqui uma idéia que é tanto de Heidegger ymo de Buber: nao é a linguagem que se encontra homem, mas 0 homem que se encontra na lin- uagem. A segunda proposi¢ao é que isso nao é poesia” ou jogo de palavras, como talvez possa parecer, Trata-se de uma afirmagao muito precisa, jue nos coloca num outro ambito de considera- Ges, ou seja, que implica mudanga radical de pon- to de vista. E a terceira é justamente que essa 10 Mauro Martins Amatuzzi mudanga radical de ponto de vista 6 0 que mais caracteriza a con- tribuigao do humanismo para a psicologia. Nao se trata, com efeito, nem de uma mudanga de objeto, nem de uma mudanga de método, e nem mesmo, quem sabe, de uma mudanga tedrica. Trata-se na rea- lidade de uma mudanga na relagdo com o objeto. Essa mudanca 6 capaz de assumir em determinados momentos 0 mesmo método, s6 que num contexto onde o sentido global é outro, o que faz com que a visdo resultante (a teoria, nesse sentido) seja outra, mais abrangente, capaz de conter as vis6es anteriores, s6 que como parciais, ¢ reco- nhecidas como parciais. Nessa nova visio a teoria, alias, se torna ela mesma relativa: nao se trata mais de teorizar, como um fim. A teoria passa a ser ela também um momento de algo mais amplo, que 6 0 que afinal importa. E esse algo mais amplo é antes um compromisso que uma teoria. Uma das coisas que subjaz a essas proposigdes 6 que a consideracao do sentido é fundamental. Para compreender 0 ser humano, tenho que lidar com questées de sentido. A consideragdo do ser humano em termos de causa ¢ efeito, antecedente e conseqiiente, parte e todo, por mais cabivel, correta ou verdadeira que possa ser, nao da conta do que seja o ser humano como totalidade em movimento. Em outras palavras: posso explicar certas ocorréncias humanas ou comportamentos a partir de “causas” internas ou externas (motivagGes inconscientes ou configuragdes de estimulo, por exemplo), posso analisar relagdes de antecedente-conseqiiente (como por exemplo 0 efeito de uma recompensa), ou posso explicar certas coisas em fungao das relagdes parte-todo (como por exemplo quando digo que o modo de ser de uma pessoa é a repercussao individual de problemas ou situagées coletivas bem caracterizaveis). Posso ainda descrever como é que tudo isso se articula numa espécie de historia geral de conflitos e fantasias, e que se aplicaria a todas as pessoas ou a maioria (psicologia do desenvolvimento). Cada uma dessas coisas é valida e possivel, e de fato é feita, com muitas pesquisas, certamente. Mas nenhuma delas em separado, e nem todas somadas, dio conta do ser humano como totalidade em movimento. Algo fica faltando, e nao é algo que possa ser cumprido dentro de cada um daqueles enfoques. Nao é tanto que essas explicagdes estejam incompletas. Sim, até estdo, e haverd sempre mais a Por uma Psicologia Humana u pesquisar nessa linha. Mas a incompletude a que me refiro é de outra ordem. Talvez “explicagdes” dessa natureza nao bastem, e por mais que somemos explicagdes nao estaremos entendendo ainda o principal desafio que se coloca para nés face ao nosso viver: 0 que vamos fazer com nossa vida? Que sentido vamos dar a ela, ¢ de tal forma que nao nos isole de um sentido mais global? Sob esse enfoque o ser humano nos aparece nado como resultante de uma série de coisas, mas como, fundamentalmente, o _ iniciante de uma série de coisas, ¢ os desafios daquilo que ele deve criar no so respondiveis com explicagées daquele tipo. O homem 86 aparece naquilo que ele tem de mais proprio, com a questo do sentido, nio com a questao da causa explicativa. A relagao explicativa se refere ao homem como resultado, como repertorio, ou como recebido, e, portanto, em definitivo, ao homem como passado. Nao se refere ao homem atual, ao homem desafiado, ao homem tendo que responder e posicionar-se, ao homem presente (face a um futuro). Este homem atual, presente, desafiado, interpelado, em movimento, é 0 que encontra as questdes de sentido: essas so as quest6es presentes, que surpreendem o homem como existente (nado apenas como natureza, como diria Merleau-Ponty). Dizer que o homem é um “bicho que fala” (0 que equivale a dizer que é um “animal racional”) é ficar no ambito das explicagoes, e portanto, do homem como resultado. Mas isso nao é ainda o homem atual. S6 poderemos chegar a ele mudando 0 ponto de vista e assumindo as questées de sentido que definem sua atualidade. O que cle fala? O homem atual, presente, existente, € constituido pelas questdes de sentido. Ora, a palavra é exatamente a questio do Sentido. Por isso o homem atual se encontra na palavra, e nio o contrario. E na decifragao de suas questdes de sentido que o homem pode se instaurar em sua atualidade. Mas é preciso tomar cuidad essa decifragaéo pode ser vivida como uma redug&o ao esquema explicativo onde apenas encontraremos 0 homem-resultado, e nao o homem em sua atualidade. Isso, para Merleau-Ponty, seria permanecer no nivel da palavra secundaria, da fala inauténtica, do falar sobre, da fala sobre falas. A fala sobre falas é ainda um discurso No passado. A decifragao do sentido sé sera um discurso no presente fe for vivencial, experiencial, uma vivéncia do préprio sentido 12 Mauro Martins Amatuzzi criando novos sentidos. E enfrentando os desafios que vou decifrando os sentidos e criando novos sentidos. 4 decifracao dos sentidos que permanece no atual identifica-se com o enfrentamento dos desafios, e nao é apenas um estudo deles. O homem atual, portanto, encontra-se no assumir as questdes de sentido e isso significa uma reviravolta completa de perspectivas (do homem-resultado para 0 homem-atual). E é exatamente essa reviravolta que faz o sentido do humanismo na psicologia. Antes de passarmos para um outro ponto, gostaria de trazer aqui uma consideragao paralela que pode nos ajudar a compreender essa questo que acabo de formular. A diferenga que existe entre essas duas perspectivas é a mesma que existe na consideragao da cultura como resultado (ou como produto), e da cultura como ato cultural. Uma coisa é estudar os produtos culturais (objetos, maquinas, obras de arte, utensilios, ou outros produtos como a ciéncia, a religiao, ou as estruturas de parentesco ou estruturas de relagdes de trabalho etc.) de algum grupo social ou sociedade. Aqui estamos estudando a cultura de um povo como algo dado, e, portanto, acabado. Outra coisa completamente diferente (embora possa incluir a primeira) é ser agente cultural, produzir cultura, inserir-se num movimento vivo de produgao cultural. A diferenga entre essas duas coisas é clara. Ora, acontece que o termo “cultura” pode ser definido em uma dessas duas diregées, originando-se dai muita confusdo. A cultura que é vista pelo estudioso nao tem nada a ver coma cultura que é praticada pelo agente cultural. No primeiro caso temos um produto acabado e mais ou menos estatico: é a cultura como produto cultural. No segundo, temos a cultura como contetido de um movimento incessante, algo em constante mutagiio. No primeiro caso fazemos historia no sentido de retratar um passado (ou algo acabado), no segundo fazemos histéria no sentido de construira historia em curso. Ea historia que fazemos retratando s6 tem sentido em fungao da historia que estamos construindo. A cultura de um povo nao é algo feito, mas algo que se faz, e reduzir uma coisa 4 outra é, na realidade, esmagar o potencial criativo de um povo, e tentar estagnar um movimento, impedindo que esse povo enfrente seus verdadeiros desafios, A cultura ha que ser definida como um processo vivo e nao como um conjunto de produtos acabados. O ser humano tem que ser captado em seu movimento, € isso s6 pode ser feito movimentando-se, inserindo-se num Por uma Psicologia Humana 13 processo. O homem como resultado, ou a cultura como produto, nao sao ainda o homem atual ou a cultura que se faz. Acredito que 0 sentido do humanismo em psicologia é 0 de nos colocarmos na postura do atual, do presente, do atuante, do em curso; e todas as explicagées s6 terao valor como instrumentos para isso, mesmo que, como instrumentos, permanecam aquém dessa atualidade. Voltemo-nos agora para o Humanismo, e vejamos 0 que essa palayra nos sugere. Podemos encontra-la usada pelo menos de quatro modos diferentes em relagao a Psicologia. 1. No sentido estrito o Humanismo é um movimento cultural, europeu, tendo seus primérdios ja no século XIV, e que esteve intimamente ligado 4 Renascenga. Mas é talvez dai que 0 termo tenha se generalizado, podendo ser aplicado a qualquer filosofia que coloque o homem no centro de suas preocupagdes, ou como um adjetivo aplicavel a outros movimentos, como é 0 caso da “psicologia humanista” (ou do humanismo na psicologia). O movimento cultural da Renascenga precisa ser entendido em fungio de seu contexto. De algum modo ele aparece como uma espécie de reac&o contra um sobrenaturalismo medieval que naquela época significava um desprezo pelo que é humano: nada das coisas desta vida é importante a nado ser aquilo que aqui é uma aquisi¢ao de méritos para a vida futura, eterna, apds a morte. A vida presente, nesse sentido, nao é levada a sério em sua consisténcia propria, ndo tem valor nenhum em si mesma. O préprio homem, em si, em seu corpo, nao precisa ser cultivado, uma vez que seu destino é a morte; 0 importante é cuidar da alma imortal. As coisas do mundo sao transitérias e um cendrio passageiro para as coisas eternas, que s&o as que importam. A arte, a ciéncia, a politica, a beleza, a flexibilidade corporal nao so coisas que devam deter o interesse do sabio, mas sim, as coisas eternas, sobrenaturais, as virtudes da alma. A satide do corpo, a maturidade psicolégica nao sao importantes a nao ser como substrato minimo para as virtudes que nos preparam para a vida eterna. O humano, o temporal, este mundo sao assim 14 Mauro Martins Amatuzzi altamente desvalorizados em favor do espiritual, do eterno, do sobrenatural. A cultura antiga, representante desse humano, era, assim, mais ou menos desprezada, ou entao era lida como um simbolo ou apelo de algo outro, maior. Nao que isso tivesse caracterizado a Idade Média toda. Mas eraa forma como uma face do pensamento medieval foi lida a partir do ponto de vista da Renascenga e do Humanismo. Uma nova necessidade nos faz freqiientemente caricaturar a visdo anterior. Seja la como for, esse humanismo nasceu sob a bandeira da revalorizacao do humano, o que significava na pratica um retorno aos classicos, e 4 cultura paga greco-romana. O que é humano tem um valor em si mesmo, © nao como mero suporte ao sobrenatural; este mundo nao é apenas um cendrio provisério e sem importancia para algo que nao tem nada a ver com ele; 0 tempo, 0 que se constréi paulatinamente, o crescimento humano sio importantes (o tempo, e nao a eternidade, é onde se constroem as coisas, € estas coisas que construimos). O homem é corpo tanto quanto alma, e é como um todo que ele tem que ser cuidado. Virtude é 0 desenvolvimento das potencialidades humanas, endo algo acrescentado de fora. Para alguns isso representou uma rejeigao da visao teoldgica das coisas, e no século XX isso é representado pelo humanismo ateu (cujo exemplo mais contundente é Sartre). Para outros essa revalorizagao do humano, do mundo, do tempo nao se define por um posicionamento anti-religioso ou ateu. Existe todo um humanismo cristo segundo o qual é na trama deste mundo que realidades definitivas esto sendo construidas (e um exemplo eminente desse humanismo em nosso século é Teilhard de Chardin). De qualquer forma essa revalorizacaio do homem, das coisas do homem, da historia humana, daquilo que aqui efetivamente se faz, da atualidade do humano, nao se relaciona necessariamente com uma posicao religiosa ou anti-religiosa. O que polariza esse movimento é justamente uma volta a atualidade do humano, e um acreditar que esse é 0 caminho. 2or uma Psicologia Humana 15 2. Erich Fromm fala do humanismo nao como um movimento localizado na Europa do século XIV. Ele fala de uma tradigéio da ética humanista que encontra representantes em praticamente todas as épocas do pensamento ocidental. Ele proprio pretende ser um pensador que se insere nessa tradi¢aio. “Na tradigao da ética humanista”, diz ele, predomina a opiniao de que oconhecimento do homem éa base para o estabelecimento de normas e valores (1947, p. 31). “Normas e valores” aqui referem-se 4 quest’io do caminho, por onde vamos, que é a questéo do sentido. Na tradigao humanista essa questo se responde a partir de um conhecimento do homem. E Fromm continua: Os tratados de ética de Aristételes, Spinoza e Dewey [...] sao por isso, ao mesmo tempo, tratados de Psicologia (Id. ibid.). O equacionamento € 0 encaminhamento desses problemas sao ao mesmo tempo ética e psicologia. Etica, porque seu contetido € a questo do sentido, do por-onde-vamos; e psicologia, porque para isso nos debrugamos sobre o homem buscando um conhecimento de sua natureza. Um pouco antes Erich Fromm havia dito: Na ética humanista o bem éa afirmagao da vida, o desenvolvimento das capacidades do homem. A virtude Consiste em assumir-se a responsabilidade por sua prépria existéncia. O mal constitui a mutilagao das capacidades do homem; © vicio reside na irresponsabilidade perante si mesmo (Id. ibid., pp 27-8). Rogers e Maslow aproximam-se bastante de semelhantes concepgdes. No fundo existe uma crenca no homem, uma confianga no que nele se manifesta. A expressaio tedrica disso € a tendéncia atualizante de Rogers, ou o conceito de auto-atualizagao de Maslow. O que esté na raiz do humanismo nfo é, pois, apenas um postulado tedrico, ou uma hipétese, mas uma atitude concreta em favor do homem. Isso é mais fundamental que as teorias que a partir dai se constroem. Teorias diferentes sobre o homem podem ser consideradas humanistas. O que as une nfo € tanto que todas aceitem determinadas afirmagées, mas uma atitude. Por isso Fromm fala de uma tradigao ética: ha valores envolvidos, mais que afirmacgdes abstratas. Ha posicionamentos e compromissos, e nado 16 Mauro Martins Amatuzzi apenas teses cognitivas (isso nao quer dizer, é claro, que esses posicionamentos devam ser ingénuos: existe toda uma elaboragao critica posterior que tende a confirmé-los, € isso no proprio Erich Fromm). - André Amar, numa visao de conjunto da histéria da psicologia publicada num diciondrio de psicologia francés, situa quatro momentos dessa histéria. O da Psicologia Aumanista, que, na sua consideragao, é o que vem da Idade Média ou mesmo da Antigiiidade grega, e vai até o comeco da psicologia cientifica; caracteriza-se basicamente por um posicionamento ético, isto é, por uma ndo-dissociagdo entre uma pesquisa objetiva, digamos, e um posicionamento de valores: é a psicologia brotando do contexto de uma ética, de uma visao do sentido da existéncia. O segundo momento é 0 da psicologia cientifica.onde exatamente se da essa ruptura entre a objetividade cientifica e a ética. Ele situa depois, como terceiro e quarto momentos, a psicandlise e a Psicologia fenomenolégica, e neste ultimo, principalmente, comegam a reaparecer coisas do primeiro momento. E curioso notar que esse autor, sendo europeu, nao fala da psicologia humanista tal como esse conceito aparece nos Estados Unidos, como algo bem especifico, mais do que no sentido de Erich Fromm, inclusive. Sua classificagao sugere também que além de um posicionamento ético indissociavel, uma psicologia humanista implicaria uma. critica a atitude cientifica. Retomaremos a esse ponto. Vemos que esses trés sentidos de humanismo convergem. em seu denominador comum, apontam para o mesmo: ponto, tém o mesmo “sentido”. . Mas concentremo-nos agora, entdo, na psicologia humanista no sentido restrito e contemporanco do termo. E aqui dois livros que se tornaram classicos, por exemplo, Psicologia Existencial Humanista, de Thomas Greening, e A Psicologia do Ser, de Abraham Maslow. E 0 tempo ¢ a década de 1960 nos Estados Unidos. Tempo de guerra do Vietna; crise moral, de valores. O pais envolvido por uma guerra considerada absurda pelo povo americano. E esse Por uma Psicologia Humana 17 questionamento nao era apenas tedrico: teve inumerdaveis manifestagdes pessoais e coletivas, as quais certamente tiveram uma importancia para a retirada das tropas americanas do Vietna. Tudo isso representou um grande questionamento coletivo do sentido da presenga americana no mundo, Uma crise ética. Esta psicologia humanista surgiu como uma reagio, a partir da insatisfagao sentida face aos dois conjuntos tedricos mais importantes em psicologia: 0 behaviorismo e a psicandlise; bem como face a uma descrenca nas possibilidades da filosofia. Nao se tratava de negar as descobertas feitas no behaviorismo e na psicandlise, mas de um sentimento de que eles, permanecendo em suas perspectivas originais, nado traziam as respostas de que se precisava: o ser humano com seus questionamentos atuais nao estava 14, por mais validas que fossem as explicagdes ai dadas. Poderiamos dizer que essa psicologia, permanecendo nos quadros de sua ortodoxia, podia nos dizer como treinar um soldado, ou porque um soldado ficava perturbado quando voltava da guerra, mas nio era esse 0 problema do povo americano. O problema era qual o sentido da guerra, ¢ qual o sentido da vida e da morte (ou da minha vida e morte, ou de meu filho ou de meu marido). E aqui a psicologia tradicional nao ajudava muito. E tudo isso ' era urgente: os jovens estavam morrendo, ¢ 0 holocausto ja estava no horizonte. Quanto 4 filosofia, para Maslow pelo menos, ela aparecia como um conjunto de palavras apenas, sem nada de mais concreto. Quando o humanismo afeta a psicologia, entao, resulta dai nio ina teoria especifica, nem mesmo uma escola, mas sim um lugar ¢omum onde se encontram (ainda que com pensamentos diferentes) todos aqueles psicélogos insatisfeitos com a visio de homem " Implicita nas psicologias oficiais disponiveis. O rétulo especifico de icologia humanista é apenas um episddio, diria momentineo, de {go que tem um sentido maior: a presenca de uma atitude humanista interior da psicologia. Mauro Martins Amatizzi Penso que posso colocar esse sentido maior em quatro pontys: 1. A primeira parte do livro de Maslow tem por titulo exatamente “Uma jurisdigao mais ampla para a psicologia’, e os dois capitulos que compéem essa parte sfo: “Para uma Psicologia da satide”, e “O que a psicologia pode aprender com os existencialistas”. Trata-se, no fundo, de admitir quea psicologia possa trabalhar a questo dos fins, da sade, da auto-realizagao, € nao apenas dos meios, da doenga ou Jo ajustamento minimo. Mas isso tudo é aquest&o do “para onde vamos”. A psicologia nao pode ser apenas um conjunto de conhecimentos técnicos a servigo de qualquer finalidade; & enquanto toma para si também essa questiio que ela se fiz afinal uma ciéncia do homem, e nao antes. Isso tem a ver com a neutralidade ética da ciéncia coro alguma coisa a ser redimensionada (e acredito que essa questo nao se aplique apenas as ciéncias humanas). A ci€ncia sé é eticamente neutra formalmente, abstra itamente. O ato cientifico concreto nunca é neutro: ele se insere num contexto de sentido e serve a alguma direcao do caminher humano. Para nos convencermos disso, basta que consideremos os critérios de financiamento de pesquise, Mas essa no neutralidade vai mais longe e toca na propria questao do alcance do saber: aquilo que eu vejo depende do Ponto de vista a partir do qual me coloco para olhar. E so dentro de um posicionamento de compromisso com 0 se: humano como um todo (coisa que nao é nada abstrata, mas acarreta até posi¢des politicas) que meus olhos se abrer para determinados aspectos do ser humano, ou que me disponho a pesquisar determinados problemas e de um determinado modo. 2: Husserl foi um dos que iniciou um questionamento da aplicagao do método cientifico a realidade humana. Nao se nega a validade das conclusdes. Mas se discute 0 alcance delas. Aquilo que elas afirmam caracteriza o ser humano? Para Husserl, a originalidade da consciéncia fica fora do alcance do método das ciéncias naturais exatamente por sua realidade intencional (que sé é captada através da questo do sentido). Por uma Psicologia Humana 19 A atitude cientifica define um tipo de relagao (a relacdo objetificante) que ndo capta a pessoa atual mas apenas o ser humano como resultado. Para Buber, o centro da pessoa sO se revela no ato da relagdo. As afirmagées cientificas podem ser verdadeiras mas nao caracterizam aquilo que é especificamente humano. A maneira como costuma ser tratado o processo de comunicagao dentro de uma abordagem cientifica seria um exemplo interessante. O processo pode ser dividido em seis momentos: 1) o da mensagem intencional a ser comunicada; 2) o da codificagio da mensagem; 3) a comunicacio ou expressao propriamente dita; 4) a recep¢ao da comunicagao através das janelas sensoriais; 5) a decodificagdo no nivel central superior; e 6) a compreensdo da mensagem. Tenho seis coisas diferentes e bem especificas (¢ um distirbio de comunica¢ao pode ser situado em um desses seis estgios). Por mais util que possa ser tal esquema, em termos de compreensao do que vema ser a comunicacao ou mesmo 0 ato expressivo, nada de mais falso do que esse retrato. Para nao falar sendo de um aspecto, a propria mensagem depende dos Ppassos seguintes, neles se transforma, nao esté plenamente constituida independentemente deles. Ela s6 se torna 0 que é quando ja nao é mais pura mensagem intencional (mas ja & comunicagao, por exemplo). A ciéncia tradicional nao tem como lidar com isso. Um outro exemplo é 0 do gesto significativo: 0 dedo que aponta para a lua, por exemplo. Idiota é aquele que, quando aponto para a lua, olha para meu dedo. A esséncia de um gesto s6 ¢ dada fora dele. Olhando para o dedo, por mais que 0 analise e disseque cientificamente, nao chegarei a lua, e portanto, nem mesmo 4 realidade de minha mao atual como gesto, como presenga. Ora, o homem é essencialmente um gesto, em sua presenga ou em sua existéncia, Ele é um atribuidor de sentido, e é assim que cle constitui um mundo e se constitui a si mesmo na relagao com o mundo. Se separarmos as coisas, compartimentalizando-as, nao mais veremos a realidade significativa, a atual, 0 presente. Nada mais diferente de um movimento que um retrato, nada mais diferente de um ser vivo que um cadaver. 20 w Mauro Martins Amatuzzi A diferenga entre a pesquisa objetiva e a participante também ilustra a mesma questo. Nao se trata apenas de uma diferenga de método para se conseguir 0 mesmo resultado. O saber produzido é concretamente outro, o assunto pesquisado é outro, o possuidor do saber é outro. Trata-se de uma diferenga na forma de conceber a relacgao humana e 0 conhecimento. - Gosto de entender a atitude fenomenolégica por comparagao com a atitude ingénua ea critica. Segundo a atitude ingénua, existe um mundo independente, constituido por si mesmo, e como tal cognoscivel (e Maslow fica ainda nessa atitude, ao que parece; é o prego que ele paga por nao ter sido um pouco mais filésofo). J4 na atitude critica, sabemos que o que percebemos desse mundo depende de nossos referenciais. Costuma-se referir a Kant, com sua critica ao conhecimento, para 0 nascimento mais forte dessa atitude; é preciso relativizar 0 conhecimento e estudar os referenciais através dos quais ele se da. Creio que a atitude fenomenolégica vai além da critica, e eu a formularia assim: é sé na interagao que teremos 0 verdadeiro conhecimento. O conhecimento compée a interagao humana com o mundo, é um aspecto dela. Uma interagiio sem conhecimento é pobre e de um nivel inferior, e ilude se nao nos dermos conta disso. O humanismo em’ psicologia aponta para uma atitude fenomenolégica. - E so nessa postura totalmente diferente que se revela o homem no que ele tem de proprio, Aquilo que se revela ai é uma totalidade em movimento, uma criatividade, e nado completamente isolavel de totalidades mais abrangentes. 0 homem como pessoa atual é 0 homem como palavra, isto é, como abertura para algo outro, onde corpo e alma sao indissocidveis (nao podendo ser compreendidos um sem 0 outro); é ato e no resultado (isto é, existe na interagdocom © mundo e com os outros homens); é busca de sentido, atribuigao e comunicagio de sentido, criagéo de mais sentido. No fundo, a meu ver, a Ppresenga do Humanismo na Psicologia é a presenga de uma saudade. Saudade do homem atual, desafiado no presente em telagdo ao sentido de sua vida. Capitulo jammed pees Siléncio e Palavra Juntamente com a questo do sentido, temos também a questao da palavra, no menos importante para caracterizar oO humano, Nada entenderemos do “aparelho significatério” (expressdio que poderia substituir a de “aparelho psiquico”) sem levar em conta a intencionalidade ¢ a linguagem. Esse texto foi publicado originalmente em 1992, na revista. Estudos de Psicologia (PUC-Campinas), 3), pp. 77-96, com 0 titulo O siléncio e a palavra. Fago aqui pequenas alteragées de detalhes apenas para melhor expressar 0 que esta sendo exposto. No item III, quando se trata do secundario, houve modificagdes um pouco maiores, mas mesmo assim consistiram apenas em acréscimos de algumas poucas frases visando explicitar a relagao do tema com a psicologia e a psicoterapia. ste capitulo poderia ter o seguinte subtitulo: uma leitura de Merleau-Ponty a partir das preocupagdes de um psicoterapeuta. De , ele nao pretende reconstituir 0 pensamento © Merleau-Ponty em seu contexto proprio ea ir das questdes que ele se colocava. Mas visa jonder a uma pergunta como “em que esse fil6- nos faz pensar, a nds psicoterapeutas?”, ou que ele pode nos ajudar a pensar nossas pré- questdes?”. E claro que essa elaboracao pres- uma primeira leitura dos textos a partir da algumas pistas foram surgindo. Uma dessas 1s @ aidéia de siléncio, nao apenas como ausén- ruidos, mas como algo positivo e embriond- 2 Mauro Martins Amatuzzi tio no plano das significagdes. Nao pretendemos seguir tdas as pistas, mas comegaremos por esta. Essa maneira de ler um autor (j4 falecido) no é isenta de Tiscos e armadilhas, Contudo penso que poderemos evitd-las se levarrM0S em conta que as preocupages que nos guiam néo so necessariamente as do autor lido e que devemos tomar cuidado para nao misturar as'COisas, atribuindo a ele pensamentos que serao nossos, mesmo duando suscitados por ele. A pesquisa foi feita basicamente em quatro textos: Fenome/tlogia da Percepeao (FP), A Estrutura do Comportamento (EC), Sobre a Fenomenologia da Linguagem (FL), a Linguagem Indireta e as Vo2es do ‘Silencio (LIVS), os quais foram citados a partir da edigdio em portugues, se bem que algumas vezes a tradugio tenha sido modificada levar!do em conta 0 original francés. Vamos formular agora, a titulo de hipoteses, algumas afirmagdes que poderdo nos orientar no comeco dessa |¢itura. Veremos depois 0 que os textos nos dizem a respeito. Aplena expressividade ou nao da fala, ou seja, sua autenticidade, pode ser descrita a partir de sua relagdio como pré-verbal que a mobiliza. Este algo que a precede ¢ a mobiliza, posto que nao-verbal, pode ser denominado, numa aproximagio primeira, de siléncio. A fala é ruptura de um determinado siléncio. Do siléncio total do viver biolégico emerge uma regig® que vem a ser a inten¢Go significativa (ou intengiio de significar), E essa intengdo que remete a fala como a sua origem. Quando falamos de significado, referimo-nos, na realida(e, a0 aspecto conceitual, abstrato, de algo que & mais vasto e, er” sua concretude, envolve outros aspectos, pois é também sentin €nto, experiéncia de valor, desejo, intengaio. A maneira pela qual a fala se une a esse algo mais amplo 0 expressa e lhe da forma, é aquilo qu® the constitui sua significdncia, ou significatividade, digamos assim. Uma fala ser4 tanto mais significativa, quanto mais estiver diretamente conectada com essa porgio emergente de siléncio» (Ue coloca o falante face a um mundo novo. Prefiro aqui o t@rmo cancia, ao invés de significagiio, porque este ultimo é ainda limitado ao aspecto conceitual daquilo que quero dizer. Ao falar> 40 apenas faco signos a partir de uma intengao ja pronta, Na verdade a Por uma Psicologia Humana 23 fala auténtica decide e desencadeia algo. Ela nao apenas traduz, mas cumpre, da andamento a uma intengdo, tornando-a, de certa forma, passado como mera intengiio, e dando origem a novas intengdes no interior de um movimento. De que se trata, na realidade? Que siléncio é esse e como ele germina num falar? Nao é a esse siléncio que importa chegar no pro- cesso terapéutico, para que ele possa ser falado e assim desencadear o Viver criativo? Da fala ao siléncio 1. Eis como Merleau-Ponty fala desse siléncio: Perdemos a consciéncia do que ha de contingente na expressao e na comunicagao, seja na crianca que aprende a falar, sejano escritor que diz e pensa pela primeira vez alguma coisa, finalmente em todos aqueles que transformam em palavras um certo sil&ncio (FP, p. 194). A crianga que aprende a falar nao apenas incorpora signos Novos ao seu repertério: ela tem acesso a um novo modo de tomunicagao e de relacdo com o mundo. Esse exemplo vem ao lado daquele do escritor quando diz e pensa pela primeira vez alguma Gisa, o que é diferente de simplesmente repetir o ja pensado ou de fier um novo arranjo, mas que, na verdade, nada cria de novo. Trata-se sempre do acesso primeiro 4 palavra. E mesmo “quando usamos para isso palavras j4 conhecidas, se realmente #slamos dizendo algo pela primeira vez, ¢ assim criando para nos ‘Ugnificados, émais verdade dizer que a fala contribui para modificar sentido comum das palavras, do que dizer que ela é constituida por ws sentidos comuns (FP, p. 190). Quando a fala ¢ original cla faz evoluir a propria lingua. Esses is casos de acesso a palavra (0 da crianga e do escritor) sdo slamente exemplos de todos aqueles que ‘ransformam em palavras certo siléncio. Um certo siléncio. Nao todo siléncio, nem quer siléncio. Um certo. Perdemos consciéncia do que ha de ie € novo no ato realmente expressivo. 24 Mauro Martins Amatuzzi E logo em seguida Merleau-Ponty acrescenta: Nossa vista sobre o homem permaneceré superficial enquanto nao remontarmos a esta origem, enquanto nao encontrarmos, sob o barulho das palavras, © siléncio primordial, enquanto nao descrevermos o gesto que rompe esse siléncio (FP, p. 194). O siléncio primordial é, por assim dizer, a alma da palavra pronunciada, é aquilo que se concretiza e adquire sentido no mundo com 0 discurso. A ruptura do siléncio que da origem 4 fala nao é propriamente a eliminagao do siléncio, mas uma realizagao dele. _ _ 2.Merleau-Ponty da, dentre outros, os seguintes exemplos da fala originaria: a do apaixonado que descobre seu ‘sentimento, a do escritor e do fildsofo que despertam a experiéncia primordial anterior as tradigdes (FP, p. 189). Nesses exemplos 0 siléncio pré-verbal que mobiliza e dé vida a fala é identificado como o sentimento que o apaixonado descobre (tevela-percebe) e a experiéncia primordial (anterior as tradigées) que 0 escritor ou filésofo despertam (acordam, trazem a vida ou 4 consciéncia). O sentimento preexistia, mas quando descoberto ele adquire um estatuto existencial novo. A esta luz, antes de ser pronunciado, ele era um pré-sentimento. S6 agora ele é assumido como tal, com esse sentido. A experiéncia primordial preexistia, mas s6 quando desperta é que ela tem acesso a um outro nivel e se realiza no compromisso da pessoa. S6 quando pronunciados é que sentimento e experiéncia adquirem sua realidade determinada e plena. Descobrir 0 sentimento e despertar a experiéncia primordial s4io também formas de romper 0 siléncio. Quando rompido o siléncio se revela pois como sentimento ou experiéncia. Nao como conceito ou idéia. Estes mais 0 exprimem posteriormente do que o constituem. 3. O siléncio esta para a fala assim como a inspiracdo esta para a obra de arte. A inspiragao antes da obra é uma inquietagao apenas, um determinado estado de procura, e o artista s6 sabe definitivamente © que ele queria pintar depois do quadro pronto. A inspiragao o guia, mas nao é um quadro interior. O pintar é 0 ato criativo,O artista sé tem um meio de se representar a obra na qual trabalha: é necessdrio que ele a faca (FP, p. 191). E ainda: A expressao estética confere ao que ela exprime a existéncia em si (FP, p. 193). Por uma Psicologia Humana 25 Com a fala auténtica ocorre algo semelhante: A fala, naquele que fala, nao traduz um pensamento ja feito, mas o cumpre (FP, p. 189). Ou: O prdprio sujeito pensante esta numa espécie de ignorncia de seus pensamentos enquanto nao os formulou para si ou mesmo falou e escreveu, como mostra o exemplo de tantos escritores que comegam um livro sem saber ao certo © que escreverao nele (FP, p. 188). 4. Dois tipos de expressdo descrevem esse siléncio: 1. um certo vazio da consciéncia (FP, p. 194); um voto (desejo) instanténeo (FP, p. 194); um vazio determinado (FL, p. 134); um certo vazio (FL, p. 134); uma certa caréncia que procura se preencher (FL, p. 194); ¢ 2 intengao significativa nova (FP, p. 194); intengao de falar (FP, p. 185); intengo significativa em estado nascente (FP, p. 20 intengao significativa que poe em movimento a fala (FP, p. 194). Eis alguns textos onde aparecem essas expressdes: Para o sujeito falante exprimir é tomar consciéncia; nao ‘exprime somente para os outros, exprime para que ele proprio saiba 0 que visa. Se a palavra quer encarnar uma intengo significativa, que 6 apenas um certo vazio, nao é somente para recriar em outrem a mesma falta, a mesma privagio, mas ainda para saber de que ha falta ¢ privacio. [...] Para a intengéo significativa, voto mudo, trata-se de realizar um certo arranjo dos instrumentos jé significantes ou das significacées j4 falantes [...] suscitando no ouvinte o pressentimento de uma significacao outra e nova, e, inversamente, promovendo naquele que fala ou escreve a ancoragem da significacao inédita nas significacées jA disponiveis. [...] Exprimo quando, utilizando todos esses instrumentos jé falantes, faco-os dizer alguma coisa que nunca haviam dito (FL, pp. 134-135). A intengao significativa é mais de ordem dinamica, do desejo, lo que de ordem cognitiva, conceitual. E a fala é primeiramente o dlesencadeamento de algo dessa ordem dinémica, mesmo que possam esultar dai pensamentos. * A intencao significativa em mim (como também no ouvinte que a reencontra ao me escutar), mesmo que deva em seguida frutificar em “pensamentos”, no momento é 26 27 Mauro Martins Amatuzzi ior uma Psicologia Humana apenas um vazio determinado a ser preenchido pelas palavras 0 excesso do que quero dizer sobre aquilo que jé foi dito (FL, p. 134) (destaque do autor). Ena Fe enomenologia da Percepgao: Da mesma forma que a intencéo significati mos Int ignificativa que ih ee pati do Outro nao é um pensamento explicte, jue icla que procura se preencher, da mesma nee retomada por mim desta intengao nao é uma operagao am Pensamento, mas uma modulacao sincrénica de minha ncia, uma transformagio de meu ser (FP, p, 194), 5. O que precede a fala origi i ‘a original e a habita dando-lhe vi mk ae Merleau-Ponty, nao € O pensamento, Este ee sal i , ie aa verdadeiramente © que pensamos quando o dizemos, O que htsee i: € pois uma mobilizacéo Para falar (intencao significativa ‘0 nascente, desejo, caréncia, vazio, siléncio primordial) ie intengao de falar sé se encontra numa experiéncia "como a ebulicdo de um liquido, quando na densidade do ser, zonas de vazio se it (FP. p 208) constituem e se deslocam para fora uma capacidade de auto-ultrapassamento, A ; : ns Al falante) é aquela na qual a intengio significativa se ones ra em estado nascente. Aqui a existéncia se polariza bets eer “ nao pode ser definido Por nenhum © natural. [...] Esta abertur: ; é ‘a sempre recriad; [. rt Pr jada nia Plenitude do ser & o que condiciona a primeira palavra da como a dos conceitos (FP, p. 207). E em outro lugar: E necessério pois reconhecer como fato ulti Poténcia aberta e indefinida de significar, ito gone tempo de captar e de comunicar um sentido, pela qual ohomem fe transcende em diregdo a um comportamento novo, ou em regio a0 outro, ou em diregio a seu préprio pensam, através de seu corpo e de sua palavra (FP, p. 204), oe 6. Recuamos pois da fala auténtica para a intengao de falar que ¢um certo vazio, um desejo, um siléncio determinado, que por sua vez emerge da natureza ou do passado como um salto qualitativo pressupondo uma abertura na propria natureza. E pela fala original que o homem se transcende a si mesmo em dire¢4o a um sentido Hoyo. Isso nao é um mero movimento cognitivo. E um movimento existencial. Reconhecemos ai alguns niveis: * oda fala auténtica; * o do sentimento ou experiéncia nomeados pela fala; * o da intengdo significativa na fala; * o da intengdo significativa em estado nascente, caréncia, vazio, siléncio determinado; e * oda abertura ou poténcia aberta e indefinida de significar ou de se transcender. Na verdade 6€ dificil distinguir todos esses niveis. B nossa Onsideracao que incide em separado sobre “partes” de um processo em que concretamente eles estdo interpenetrados. Se por vezes Sonseguimos separar um momento como anterior a outro, sera mais Gomo momento de gestagao e nao propriamente algo outro. * » Do siléncio a fala 1. No caminho de volta do siléncio a fala um primeiro aspecto é 0 mistério da expressao. Merleau-Ponty usa expressdes como “lei mnhecida” e “milagre”. Em nossa arqueologia fenomenoldgica, ndo da fala chegamos ao siléncio ¢ suas raizes, por camadas que se fam. E podemos voltar. Em tudo isso descrevemos processos, € as descrigdes tém certamente um referente identificdvel. Mas, em itivo, ndo explicamos 0 ato expressivo. A intengao significativa nova s6 se reconhece recobrindo-se de significagées ja disponiveis, resultadas de atos de expressio anteriores. As significacées disponiveis se entrelacam repentinamente segundo uma lei desconhecida, e de uma vez por todas um novo ser cultural comecou a existir. O pensamento e a expressao constituem-se pois 28 simultaneamente, quando nossa aquisicao cultural se mobiliza a servigo desta lei desconhecida, como nosso corpo de Fepente se presta a uma gesto novo (FP, p. 194). E uma capacidade do corpo humano apropriar-se, em uma série indefinida de atos descontinuos, de nticleos significativos que ultrapassam e transfiguram seus Poderes naturais. Este ato de transcendéncia se encontra Primeiramente na aquisigao de um comportamento, depois na comunicagéo muda do gesto: & pela mesma poténcia que o Corpo tanto se abre a uma conduta Nova quanto a faz compreender a testemunhas exteriores. Nos dois casos um sistema de Poderes definidos de repente se decentra, se rompe e se organiza sob uma lei desconhecida, tanto ao sujeito quanto a testemunha exterior, e que se revelaa eles nesse exato momento [...]. A linguagem coloca o mesmo problema: uma contragao da garganta, uma emissio sibilante de ar entre a lingua e os dentes, uma certa maneira de movimentar nosso corpo se deixa de repente investir de um sentido figurado, © 0 significam fora de nds. Isto ndo 6 nem mais nem menos mmilagroso que a emergéncia do-amor no desejo, ou do gesto nos movimentos desordenados do comeco da vida (FP, p. 204), 2. Como esta lei desconhecida atua? Ela trabalha sobre significages disponiveis fornecidas pela cultura, (que abstratamente consideradas constituem a lingua como parte principal de um sistema de signos), reorganiza os signos em fungao de uma intengao significativa nova, e os fazem dizer algo que nunca antes disseram. E € por isso que as falas realmente expressivas acabam contribuindo para a propria evolugio da lingua. Significagdes disponiveis, isto é, atos de expressio anteriores, estabelecem entre os sujeitos falantes um mundo comum ao qual a palavra tual e nova se refere [...]. O sentido da fala nada mais é do que 0 modo como ela maneja este mundo linguistico ou como ela modula sobre este teclado de significagées adquiridas (FP, p. 197). E como foram adquiridas essas significagdes? Como todos os gestos significativos que langam o ser humano no nivel propriamente humano: um comportamento novo (de outra ordem de complexidade), um gesto mudo, a linguagem, como vimos no texto anterior (FP, p. 204). Mauro Martins Amatuzzi Poruma Psicologia Humana 29 (As significagées se tornam disponiveis) quando, em seu tempo, foram instituidas como significagses a que posso recorrer, como significagdes que tenho — e o foram por uma operacao expressiva do mesmo tipo. [...] Exprimo quando, utilizando todos esses instrumentos ja falantes, fago-os dizer alguma coisa que nunca haviam dito (FL, p. 135; cf. também FL, p. 136, e FP, p. 207). 3. E importante ressaltar aqui o condicionamento que a lingua iisponivel representa, para que possamos depois ultrapassa-lo na ira expressdo. - en traz consigo uma atitude, um determinado modo de se Welacionar com o mundo, e suas palavras, antes de carregarem um onceito abstrato, trazem uma significagao emocional presa a elas, tudo isso resultando da sedimentagao dos atos expressivos que vém Ponstituir o conjunto de significages disponiveis. é (As diferencas entre as diversas linguas) no representam diferentes convengées arbitrérias para exprimir 0 mesmo 7 pensamento, mas sim diferentes maneiras parao corpo humano a de celebrar o mundo e finalmente de o viver (FP, p. 198). hi Ao vivermos numa lingua, portanto, somos subsidiérios de li experiéncia acumulada que a constitui. Isso nada mais é que a munidade cultural na qual crescemos e vivemos e que identemente determina nossas condutas. : Isso que estamos aqui chamando de contetido de uma lingua, modo de ser sedimentado por ela (pela comunidade na qual 0s), pode se verificar até mesmo no nivel das palavras. Sem ida as palavras denunciam um modo de recortar 0 mundo e ito de se comportar. Merleau-Ponty fala da atitude que elas m e de seu significado gestual, linguageiro, que capta uma cia emocional. E é sobre esse significado gestual que se ri posteriormente um significado conceitual (cf. FP, p. 190, 197). A lingua transmite diretamente, concretiza, um modo de se wlonar com o mundo (FP, p. 201). F 4, Mas ao mesmo tempo que isso se relaciona com um. estilo de (a conduta ai sedimentada), relaciona-se também com estilos ais, Temos no sé 0 estilo de nossa lingua, mas também nossos i proprios. Quanto a isso podemos dizer que cada um tem sua 30. Mauro Martins Amatuzz) lingus Opri: i. ites i Pee Constréi, com a forma que usa sua lingua, seu jeito 0 é ‘ 2 it Solaris Portugués) de falar, o que equivale a dizer, sey € se relacionar ou de construi ’ ; ruir 0 mundo. E t i um segundo nivel de determinacd nis anenae ad , Tmina¢ao: somos tributarios na comunidade onde fomo: iali rice a tein 's SOcializados, m: é Oprii meee maa ', Mas também de nossa Propria maneira de existir desse pensamento, i Sotaque do flésofo (FP, p. 190), roeunde © tom, 0 sedimentagao e uma experiéncia adquirida. No caminho de volta do siléncio a fala, indivi, i ie a de ee discurso expressivo), ou de um pensamento — ‘versal (no plano de um discur: Sfico) ‘ 80 filos6fico), para alé i = , lém dos estilos, é Preciso que passemos pela concretude de uma determinada expressio, | Se houver um pensamento universal (para além dos estilos), sera retomando 7 esfor¢go ; expressdo e tilos), id. fe d Si comunicagao tal como foi te r ingua que o entado por uma [i obteremos, assumindo todos os equivocos, todos os ; ; deslizamentos de sentido le uma tradigao lingiiisti ido de q a tradi i igao lingiiistica é - m 2 te ita e 198 lustamente medem sua poténcia de expressao Hira Psicologia Humana 31 ____ Mas isso que vale para a filosofia (sé chego ao universal passando jielo particular), vale também para o esforgo de compreensiio profunda deuma pessoa em psicoterapia. O desejo sé aparece nas entrelinhas do eatilo, ___ Oque importa no momento, nessa viagem de volta do siléncio 4 fila, 6 nos darmos conta de como ele vai se revestindo de nificados, passando pela cultura e pela histéria pessoal. Mas se estamos considerando a fala auténtica, a expressao nao termina ai. 5. A expressao é, na verdade, um tatear em torno de algo que lente, mas sem se apropriar e conter plenamente. Isso sera ante na hora de pensarmos a compreensao. Por ora fiquemos algumas indicagdes de Merleau-Ponty. Se ela (a lingua) quer dizer e diz alguma coisa, nao é porque cada signo veicule uma significagao que lhe pertenceria, mas __ porque todos juntos aludem a uma significagao, sempre em Sursis se considerados um a um, e em rumo a qual eu os _ultrapasso sem que nunca a contenham (FL, p. 132). No que se refere a linguagem, se o signo se torna Significante por sua relagao lateral a outros, o sentido sé urge entao a intersecgao e como no intervalo das palavras (LIVS, p. 143). O sentido, quando é novo, nfo est contido pelas palavras, 6 indicado por elas, e isso mesmo representa 0 caminhar do ano. O que queremos dizer [...] nao é sendo o excesso do que sobre 0 que jd foi dito (LIVS, p. 175). 6, Finalmente a “determinagao” ultima da fala auténtica. O que ienta ela? O que ela faz, ou cumpre? Que exprime pois a linguagem se nao exprime pensamentos? Elarepresenta, ou melhor ela é.a tomada de posicao do sujeito no mundo de suas significacées [...]. O gesto fonético realiza, para o Sujeito falante e para aqueles que o escutam, uma certa ‘estruturacao da experiéncia, uma certa modulagao da existéncia, @xatamente como um comportamento do meu corpo investe para mim e para o outro os objetos que me cercam de uma certa lignificacao (FP, pp. 203-4). 32 Mauro Martins Amatuzz) Psicologia Humana (Na poténcia aberta de significar) o homem se transcende em diregao a um comportamento novo ou em diregdo ao outro ou em direcao a seu préprio pensamento através de seu corpo e de sua palavra (FP, p. 204). nee fi . . fala da crianca que pronuncia sua primeira palavra, a do Tomada de posigao do sujeito, estruturagio da experiéncia, nado que descobre seu sentimento, a do “primeiro modulagao da existéncia, transcendéncia em direcéio ao comportamento, homem que falou”, a do escritor e do filésofo que despertam a novo. Essas afirmagdes mostram o carter existencial, comprometedor, periéncia primordial anterior as tradigdes (FP, p. 189, nt.5). envolvente, decisério da verdadcira expresso. Dizer realmente algo ¢ tomar posi¢ao, e com isso entrar num mundo novo, pelo menos no que diz respeito a um aspecto particular. A fala auténtica depende mais do “eu posso”, do que do “eu sei”, diz também Merleau-Ponty (FL, p. 133), Com a fala auténtica o homem, apoiado no contexto cultural e em sua propria experiéncia pessoal, os transforma e os leva adiante, No caminho de volta do siléncio a fala, encontramos pois: * uma lei desconhecida; * significagdes disponiveis que esto no sujeito como uma possibilidade corporal ou esséncias emocionais; * aquilo que a lingua usada contém como atitude recebida ou modo de ser (a presenga da cultura); * os estilos pessoais ou modos de ser da experiéncia pessoal, também como recebidos e constituintes da expressio (a pre- senga da histéria pessoal); * a expresso como um tatear em torno de um sentido nunca plenamente contido em palavras; e, finalmente * uma tomada de posigao do sujeito (que transfigura todas as ), cada fala que rompe o siléncio langando o falante numa nova Merleau-Ponty chama a isso fala auténtica ou originaria. E dentre os exemplos possiveis Sfio essas falas assim densas que se identificam com o ito; nesses momentos expressivos a fala ndo traduz um lento ja feito, mas o cumpre (FP, p. 189), ela é a efetuagéo do ento, como também diz Merleau-Ponty, e é por isso que s6 sei 0 (em se tratando de pensamento novo, nascente) quando o issim como um artista sé sabe o que quer pintar depois que 0 quadro, ou um poeta 86 sabe, em definitivo, o que quer dizer, jue escreveu o poema. E essa fala expressao origindria que i desejada mobilizagao do ser em diregao a sentidos novos esta no secundario, e com ela seu existir. A pessoa nao encontra a, E as questdes que nos ocorrem agora sao: 4. 0 que é exatamente essa expressio segunda (que nao cumpre tudo o que a originaria cumpre), e como ela se tornou possivel? . 'b. podemos separar claramente dois tipos de fala, uma auténtica € outra nao, ou trata-se mais de duas dimensGes aparentes em qualquer fala, de forma que possamos encontrar um solo de autenticidade mesmo em uma expressao segunda? determinagdes anteriores). Ocorre que a maioria de nossas falas ndio tem essa densidade da fala verdadeiramente expressiva e nova. Como se introduz ai no mundo de nossa linguagem a fala banal, corriqueira, empirica, mais t ou menos repetitiva, que no acrescenta nada nem langa a pessoa em um compromisso novo? 2. Vejamos entao como Merleau-Ponty introduz a distingao. $ noe wimeiro texto ¢ o seguinte: O surgimento do secundario 1. Tudo 0 que dissemos até agora refere-se a fala auténtica, aos momentos realmente expressivos da fala: a primeira fala pronunciada com sentido, cada fala onde um novo sentido se cria ou esta se Ha lugar, é claro, para se distinguir uma fala auténtica, que formula pela primeira vez, e uma expressao segunda, uma fala Sobre falas, na qual consiste o ordindrio da linguagem empirica. Somente a primeira é idéntica ao pensamento (FP, p. 189, nt. 4). 34 Mauro Martins Amatuzz| -- Nesse texto 0 que se opée a fala auténtica é uma expressio segunda. Em outros lugares aparecem termos como fala origindria opondo-se a uma fala derivada. A expressio pode ser segunda, ou derivada em relagao a uma primeira. A palavra constituida, tal como funciona na vida cotidiana, sup6e preenchido o passo decisivo da expressio 3 (FP, p. 194), portuna chamada de um signo pré-estabelecido, ndo o é Certamente podemos imaginar um homem que sé falasse iara.a linguagem auténtica. E, como disse Mallarmé, amoeda automaticamente; mas isso seria ou efeito de danos cerebrais, como ta que se passa em siléncio de mao Th mee bbe aha no caso dos afasicos, ou entao nao seria uma lin: iguagem propriamente Yerdadeira palavra, aquela que significa, que tor dita, como € 0 caso de macacos que “aprendem a falar”, ou de Evo na coisa, nao é, aos olhos do uso empirico, sendo perturbagdes genéticas muito severas e no entanto compativeis como. cio, visto que nao vai até o nome comum. A linguagem é uso mais ou menos mecanico de algumas poucas palavras. A r si mesma obliqua e auténoma e, se Ihe ocorre significar linguagem segunda, contudo, ao contrario disso tudo, é comum em tamente um pensamento ou uma coisa, trata-se apenas nossa vida. E nossa linguagem ordindria, corriqueira, pela qual uma capacidade secundaria, derivada de sua vida interior. designamos objetos e interagimos no cotidiano. Estamos falando fato 0 escritor, como 0 tecelao, trabalha as avessas: pois de uma possibilidade comum, nao extraordinaria, de quem quer jocupa-se unicamente com a linguagem € ae trilha que tenha tido acesso a fala. j-se de repente rodeado de sentido (LIVS, p. 145). Uma outra caracteristica dessas falas é que elas, ainda que as vezes complexas, na verdade nao trazem nada de novo, Sao falas que nao exigem de nds nenhum verdadeiro esforgo de expressio (FP, p. 194), Passem-me 0 sal, vou comprar pao, que horas s40?, quanto custa? ~ sao exemplos de falas de manutengao, e sua compreensiio é imediata por qualquer pessoa que seja da mesma comunidade lingiiistica. Sio instrumentos de nosso cotidiano viver, do manuseio social de objetos em fungao de nossas necessidades. E sio Jalas sobre falas porque correspondem ao uso derivado de palavras que originariamente na comunidade foram expressivas, a servigo de necessidades também derivadas, nesse sentido que nao procuram romper algum siléncio primordial. Com elas ndo ha necessidade de significagdes novas, Merleau-Ponty as chama de falas banais. lotemos, de passagem, que aqui surgem dois sentidos novos de 0”. O primeiro é0 da linguagem empirica, que significa mas nao gente um sentido novo. E 0 siléncio com que passamos para los a moeda conhecida e gasta. Outro ¢ 0 siléncio da verdadeira porque ao tornar presente um sentido novo ela nao significa nomes comuns. E obliqua, o sentido novo surge nas as, € por isso mesmo esta fala faz evoluir a lingua. Mas como se forma essa expresso segunda, esse uso significagdes disponiveis, como uma fortuna adquirida. A ir destas aquisig6es, outros atos de expressao auténtica Vivemos num mundo onde a palavra esta instituida. Para 1 ee vse (FF. p.207) todas essas falas banais possuimos em nés significagdes j4 formadas. Elas somente suscitam em nds pensamentos segundos; e estes, por sua vez, se traduzem em outras tantas Palavras que no exigem de nés nenhum esforco verdadeiro de expresso, e nao pedem de nossos ouvintes nenhum esforgo de compreensao (FP, p. 194). § expressOes originais se sedimentam em aquisi¢gdes , significagdes disponiveis, as quais poderao ser retomadas juagem empirica derivada (expressio segunda), ou entdo ntalizando expressGes novas onde havera, neste caso, uma agao do sentido dos instrumentos culturais. 36 Mauro Martins Amatuzzi A palavra (fala) enquanto distinta da lingua, é esse momento em que a intengao significativa, ainda muda e toda em ato, revela-se capaz de incorporar-se a cultura, minha e de outro, capaz de me formar ede forméa-lo, transformando © sentido dos instrumentos culturais. Por sua vez torna-se “disponivel” porque, retrospectivamente, nos daa ilusio de que estava contida nas significacdes ja disponiveis, quando na verdade, por uma espécie de astiicia ela as esposara apenas Para infundir-Ihes uma nova vida (FL, p. 136). A expresso segunda, seja no sentido da linguagem empirica ordindria pela qual prosseguimos nosso cotidiano, seja no sentido de uma fala que de fato nao cria um sentido novo (mesmo quando as vezes 0 pretenda, como é 0 caso do discurso circular da pessoa que Procura terapia), 6 uma possibilidade que se insere na propria natureza da linguagem do homem. E, finalmente, para alargarmos um pouco mais o Ambito de possibilidades dessa expressao segunda, citemos dois textos, um anterior e outro posterior a “Fenomenologia da Percepcao”. No primeiro, para elucidar a questiio das telages alma/corpo, Merleau-Ponty evoca as relagdes conceito/palavra. Nos dois casos nao podemos separar os dois termos como se fossem duas coisas ou substancias. Eles se unem naquilo que é 0 concreto: 0 comportamento humano (para os termos alma/corpo), e a fala viva (para os termos conceito/palavra). Esse concreto é a operagéo constituinte na qual percebemos depois os dois termos como “produtos separados”. Assim sendo, cada grau de complexidade do comportamento humano (operagaio constituinte do corpo/alma) seria corpo em relagao ao grau mais complexo, e alma em relaco ao menos complexo, assim como cada fala efetiva (operagiio constituinte do conceito/ palavra) é palavra (vocabulo) em relacao a falas posteriores e conceito (pensamento) em relacao a falas anteriores. Os dois pares sao inseparaveis, mas os distinguimos para compreender o proprio dinamismo da operacdo em questao (0 comportamento ou a fala). O corpo em geral, assim como a palavra (vocabulo), seria o adquirido; e a alma em geral, assim como 0 conceito (pensamento), seria 0 sentido novo que se instaura. Um nao vive sem 0 outro, mas nao so duas operagdes nem duas coisas, mas dois momentos de nossa consideragio, necessarios para compreender a cologia Humana. dade da operagao. Nesse contexto a expressao “linguagem ’ aparece significando a materialidade das palavras, por iO 40 conceito/pensamento que seria o sentido. A “fala viva” e ‘4 0S reine. Ai o sentido novo adquire corpo e se tora entdio um ido, disponivel para operagées ulteriores. Pode-se certamente comparar as relacées entre a alma e ) Corpo comas relagées entre o conceito ea palavra vocabulo mot), mas com a condi¢ao de se perceber, sob esses pro- tos separados, a operacao constituinte que os une, e de se ncontrar, sob as linguagens empiricas, acompanhamento xterior ou vestimenta contingente do pensamento, a fala (parole), que 6, somente ela, a efetuagao do Pensamento, le 0 sentido se formula pela primeira vez, funda-se assim IMO sentido, e se torna disponivel para operagées ulteriores , p- 243). fala viva citada aqui ¢, evidentemente, a propria operagao \iva no sentido auténtico do termo. E a linguagem empirica mo 0 “corpo” dessa operagac “acompanhamento exterior ou fa contingente do pensamento”. E sob ela que devemos ta “fala viva” se quisermos chegar ao sentido. Aqui a empirica nao é, pois, sin6nimo ou exemplo de fala banal, go que esta presente também na fala auténtica. 1d na fala uma camada superficial que devemos ultrapassar legarmos ao sentido. O texto nao é completamente claro a mas creio podermos dizer que, desde que se trate de fala e ‘Mero automatismo ou rea¢do mecanica, podemos procurar ” que esta sob a “linguagem”. O tatear em tomo do sentido Se procura pode nos parecer linguagem empirica no sentido sio segunda, mas contém algo vivo, um sentido em », um siléncio que procura se romper. Ora, esse parece ser 0 ico da pessoa que procura terapia: seus falares parecem idos no secundario, um falar-sobre que nao tem desencadeado ‘mas que por ja ser um tatear (quando na terapia), aponta par outro texto é bem posterior 4 “Fenomenologia da 0”. Ele mostra que um discurso teérico, abstrato ou mesmo , pode ficar aquém do que pretende resolver se nao for truto da 38 Mauro Martins Amatuzz) sologia Humana elaboragao de uma experiéncia concreta, de um vivido que inclui fala secundaria nao cria significados novos mas apenas conhecimentos, experiéncias anteriores, valores. Ou seja, se no for Xecuta (ou aplica) significados antigos. Por isso ela nao exi- uma auténtica operagio expressiva. Nao basta que articule ge esforco especial de expressao nem de ere ce corretamente conceitos ou fatos observados, diriamos. E preciso que ma como outra sao imediatas (a fala _novalliextey tudo isso seja feito como auténtica ‘operacio expressiva. Sendo Bepressio € também de inate Data perde-se a relevancia, a significdncia. Ora, isso é também uma forma 4 fala secundaria é uma ee ain - ccna de secundario: ficar aquém dos problemas que se desejava resolver, ‘hatureza da linguagem humana. Falas origi por mais complexo que possa ser o discurso, Um discurso cientifico, dari te, e isso é necessario para a vida cotidiana; ou mesmo filoséfico, corretos do ponto de vista formal, podem ser pun ee a ossibilidade da linguagem existe também irrelevantes, nao significantes, inoperantes diretamente, ey causa ae da capacidade de significar (a fala) que ne Jancis a0 “dives? uso se ae secundarios. Até mesmo a ciéncia pode nao “dizer” nada. decorre de um distanciamento do siléncio originario: é pos- jivel falar assim distanciado de si, mas esta fala nao envolve em significagdes disponiveis que sdo depois usadas se- © que queremos dizer no se mostra, fora de toda palavra, como pura significacao. Nao é senao 0 excesso do que vivemos pessoa como um todo e nem a compromete; sobre o que ja foi dito. [..] (No campo do pensamento politico, uma fala sera inauténtica quando se esperaria, pelo contexto da por exemple) toda asioe todo oxrhrchneto do passam fel onde ela se enconra, que ela fosseplenamente expres conhectnarto tod sr noses penta oes es en ecatinno ingano pelo tio valores) e querem propor valores que nao tenham tomade ap cclibersdamente ou nao), ela deixa es Corpo em nossa histéria individual e coletiva, ou bem, o que di Gxpressiva, ¢, de fato, naquele momento, 0 suj no mesmo, escolher meios por um calculo e Por um proceder de um contato com seu proprio siléncio; : otc aio inteiramente técnico, acabam aquém dos problemas que + no entanto, por ser apesar de tudo expressiva (a sa desejavam resolver (LIVS, p. 175). plenamente), a fala secundaria, mesmo quando peer Haas, gs : 4 NORE) contém em sua concretude pistas dinamicas para o que pode- A possibilidade do secundério se instala até mesmo no interior popterm do discurso cientifico, filoséfico, politico ou técnico. E nesses casos Baz.2 Set tuténtico ou otiginel. © que determina isso, como sempre, é ele ndo ser uma operacao diretamente expressiva (ou seja, estar desconectado do siléncio que é © excesso do que vivemos sobre 0 que ja foi dito). Mas nesse préprio vazio, creio, podemos ver, dissimulado, 0 sopro da vida. As possibilidades do secundario nao se limitam pois as falas Corriqueiras necessarias em nosso cotidiano. Mas se esses alargamentos sao validos, entdio podemos ver, até mesmo sob a linguagem corriqueira, uma certa expressividade: a da manutenc¢io do vivo. E é por isso que embora “segunda”, Merleau-Ponty ainda usa 0 termo “expressao” quando fala de “expressdo segunda”, 5. Desses textos de Merleau-Ponty ficam pelo menos sugeridas algumas proposigées de interesse para 0 psicélogo terapeuta: Sreio que podemos acrescentar que a fala de uma pessoa que psicoterapia é um tatear em torno de um significado, um de expressdo, que no entanto nao chega a ser plenamente cedido. Esse tatear, contudo, aponta para uma diregdo que é 0 gnificado em gestacao. Cabe ao terapeuta favorecer essa , OU ao menos no atrapalha-la. Mas como? a. ee A a. ompreender profundamente significa ouvir o siléncio em qualquer fala. 40 Quando ouvido é que ele é realmente dito, e isso é umi mobilizagao do ser. Ouvir nao é um ato de inteligéncia ou do pensamento, mas um participagao existencial em um movimento de gestacio ou parto no plano do sentido. E pelo conjunto de minha resposta interativa qué mostro que ouvi. Ela sera a elaboragdo de meu siléncio face ao outro que me dirige a palavra. Creio que os textos de Merleau-Ponty apontam para isso. 1. A compreensiao vai além dos significados ja conhecidos dos instrumentos falantes, ou seja, dos termos usados. Ela atinge uma fonte, o centro do discurso, um sentido novo. Com o exemplo da compreensio de um texto filoséfico, ele escreve: qui que aparece aquela nota de rodapé em que Mae compreensio sO se aplica & fala auténtica. Nas falas nfio ha necessidade de um esforgo de compreensao. & verdade que em expressies segundas podemos encontrar m nticleo de autenticidade, isso que ele diz da compreensio da ica se aplica pelo menos em parte 4 compreensao de qualquer 0 que o que muda, no caso da pessoa em terapia que tenta se mas de fato nao o consegue de forma satisfatori & que os ypontam para um centro realmente, mas eles nao so ainda ”, e por isso a expressiio nao € completa. : Um outro texto, também sugestivo, nos diz que a i oua discurso auténtico é como um “encantamento”. Somos ! pelo discurso, sentimos sua necessidade, embora nao prever onde ele vai chegar. Nem o sujeito falante pensa fala, nem o ouvinte pensa no que est ouvindo. oO pensar do eu proprio falar, e o do ouvinte, seu compreender. S6 depois, do discurso, quando o ouvinte acorda, por assim dizer, é que ir pensamentos sobre 0 discurso. O fato é que temos o poder de compreender para além do que pensamos espontaneamente. Alguém sé pode nos falar numa linguagem que j4 compreendamos: cada palavra de um texto dificil desperta em nés pensamentos que nos Pertenciam antes, mas essas significagdes se enlacam as vezes num pensamento novo que as remaneja totalmente; somos. entao transportados ao centro do livro, reencontramos a fonte (FP, p. 189). “O orador nao pensa antes de falar, nem mesmo enquanto \, sua fala é seu pensamento. Da mesma forma o scent © concebe a propésito dos signos. O “pensamento’ do fador € vazio enquanto ele fala, e, quando alguém 1é um xxto para nds, se a expressao é bem-sucedida, nao teremos lum pensamento & margem do proprio texto, as palavras pam todo nosso espirito, elas vem preencher exatamente a espera e sentimos a necessidade do discurso, mas nao famos capazes de prevé-lo e somos possuides por ele. ° fim discurso ou do texto serd.o fim de um encantamento. So entao oderdo surgir pensamentos sobre o discurso ou sobre o exto; antes o discurso era improvisado eo texto ompreendido sem um tinico pensamento, 0 sentido estava sente em toda parte, mas em nenhum lugar posto por ele \esmo (FP, p. 190). te trecho enfatiza o cardter direto da compreensao. Ela nao xiva, somos transportados pelo discurso. O maximo que 08 fazer, creio, 6 nao impedirmos isso. E uma forma de 0 lir seria determo-nos reflexivamente em cada palavra. Um texto jor de Merleau-Ponty cabe bem aqui: Este ser transportado ao centro do discurso e descobrir 0 sentido para além dos significados parciais nao é como a resolucao de um problema. No problema a incégnita aparece pela sua relagao com os termos conhecidos do problema, quase mecanicamente. Na compreensao de uma pessoa nao é assim. Aqui é sé na medida em que me aproximo do sentido que as palavras vao se mostrando como signos que realmente apontam para ele. Antes nao. Nao ha nisso nada de compardvel a resolugéo de um problema, em que se descobre o termo desconhecido por meio de sua relacao com termos conhecidos. Porque o problema sé pode ser resolvido se for determinado, isto é, se © cotejo dos dados designar ao desconhecido um ou varios valores definidos. Na compreensao do outro, o problema é sempre indeterminado, porque somente a solugéo do problema fara aparecer retrospectivamente os dados como convergentes, somente o motivo central de uma filosofia, uma vez compreendido, da aos textos do fildsofo o valor de signos adequados (FP, p. 189). 42 Mauro Martins: Amatuzzi jcologia Humana 43 © que com demasiada deliberacao procuramos nao 0 ‘idade de atos que é essa compreensao de gestos, ¢ 0 fato de essa obtemos, nao faltando pelo contrario idéias, valores, a quem dade operativa confirmar o outro no seu significado, e a mim souber absorver, meditando na vida, o que de sua fonte em minha compreensao. espontanea se libera (LIVS, p. 175). F = 2 i q ® J A comunicagao ou a compreensao dos gestos se obtém ela reciprocidade de minhas intengGes com os gestos do tro, de meus gestos com as intengées legiveis na conduta lo outro. Tudo ocorre como sea intengao do outro habitasse meu corpo, ou como se minhas intengdes habitassem o seu .,]. O gesto esta diante de mim como uma pergunta: ele me \dica alguns pontos sensiveis do mundo e me convida a me nir a eles. A comunicagéo se completa quando minha nduta encontra neste caminho seu préprio caminho. Ha nfirma¢ao do outro por mim e de mim pelo outro. [...] Nao mpreendo os gestos do outro por um ato de interpretagao lectual (FP, pp. 195-6). 3. Mais adiante entretanto ele fala do esfor¢o de compreensao, As palavras banais nao exigem de nés nenhum verdadeiro esforgo de compreensio. Ja vimos esse texto acima. Para todas essas falas banais Possuimos em nés significagées j4 formadas, e essas falas bamais nao exigem de nds nenhum esforco verdadeiro de expressao, e nao pedem de: Rossos ouvintes nenhum esforco de compreensao (FP, p. 194). Nao hi oposigao entre o carater direto da compreensio e o fato de que as vezes cla exige esforgo. O que se acrescenta aqui como caracteristica do compreender, quando ele exige esforgo, é que ele supde uma abertura para o novo, que é coisa que néo é necessaria no simples caso da linguagem ordinaria. Podemos ent3o acrescentar essa abertura para © novo como uma outra caracteristica da compreensio, 4.E preciso citar de novo aqui um texto que também ja. lemos, onde essa abertura para 0 novo vai aparecer como um movimento do préprio ser, uma transformagao mais global, portanto, do que ade um simples pensamento. ‘om 0 gesto lingiiistico ocorre algo parecido. Acompanho a @ se comunica em sua intencionalidade, e com isso confirmo-a zer confirmando-me em meu compreender, numa espécie de dade de pensamento em ato. Essa confirmagao aqui nao éclaro, uma concordancia com 0 que 0 outro diz em termos de também suas idéias. Isso seria um pensamento segundo. isso sim que quando compreendo posso pensar junto. ler é participar do sentido. Em resumo, sido caracteristicas da compreensao: ela vai além do entendimento dos significados literais e transporta-nos para o sentido novo apontado por eles; ela tem um carater direto; (Na compreensao da fala de outra pessoa) nao & Primeiramente com representagdes ou com o pensamento que eu me comunico, mas com um sujeito falante, com um certo estilo de ser e com o mundo que ele visa. Assim como intengao significativa que pds em movimento a fala da outra pessoa nao & um pensamento explicito, mas uma certa caréncia que procura Se preencher, assim também a retomada por mim dessa mas implica abertura para 0 novo, e, portanto, saida da atitu- intencéo nao é uma operagio do meu pensamento, mas uma Se ctidiana; eran agp rt ” geste elaéuma transforma¢ao global do ser (junto comas transfor- acgdes do falante) e nao apenas um ato do pensamento; implica uma reciprocidade operativa na qual os interlocuto- res se confirmam em suas intengGes significativas. A retomada da intengao significativa do outro, na compreensio, nao é uma operacdo do pensamento, e sim uma transformagaio mais global do ser que acompanha a mutagao daquele que esta se comunicando. 5. A seguir Merleau-Ponty compara a fala com o gesto, dizendo que ela é um gesto lingilistico. No contexto dessa comparagao aparece como compreendemos o gesto. E 0 que gostariamos de destacar é lemos comentar esse liltimo ponto dizendo que quando essa Ao ocorre, o siléncio se aquieta, a pessoa esta como ja para um mundo novo, ¢ novas intengdes podem comegar a se 6 O movimento existencial que se procura desbloquear na ia. a) TTT O ponto de partida deste capitulo é 0 interesse em conhecer melhor as formas de investigagao do humano, e com isso avangar nessa pratica. Com essa intengdo permito-me retomar aqui, com modificagées, 0 texto de uma palestra proferida na Universidade Federal do Ceara, no final de 1993, e publicado na revista Estudos de Psicologia (PUC-Campinas) com data de setembro de 1994, /1(3), pp. 73-77, com 0 titulo A investigagdo do humano: um debate. Vamos manter aqui 0 tom coloquial que tinha 0 texto da palestra. ) de professor orientador de projetos de acgao em Psicologia. Que posturas episte- démico. do estou dangando estou fazendo uma io do humano. Seria entao o dangar um iGncia? Se o for nao saboreio a danga, e onhecimento resultante seja mais pobre que eu poderia adquirir se dangasse sem de conhecimento cientifico. io que ha aqui algumas coisas a se r. Uma é que ha varios caminhos para a 46 Mauro Martins Amatuzz| ina Psicologia Humana 47 investigagao do humano. A ciéncia, com certeza nao é 0 unico, ¢ indiscutivel. Bastava que se fizesse uma observacado talvez nem mesmo o mais rico. A poesia é uma forma de investigar natica, e com regras de precisao. Os fatos podem ser olhados de humano; a literatura, o teatro também. A amizade é uma forma de 1 neutra. A natureza est ai, ela funciona de acordo com leis que investigar o humano; a luta politica, o lazer, o esporte. A psicoterapia mem pode descobrir objetivamente, e, ao contrario da filosofia, também. Ha muitos caminhos. 4 procedimentos objetivos néio so passiveis de interminaveis O resultado dessas investigagdes, porém, nao é sempre do \issdes. Podemos ter normas confidveis para dirigir nossas a¢des. mesmo tipo. E essa é a segunda coisa que queria considerar. Quem , a ciéncia nasceu gerada no utero da filosofia, e opondo-se a danga, conversa com amigos, pratica esporte, faz politica com certeza do isso para garantir uma nova forma de vida social ou as aprende muito sobre o humano. Mas esse saber se encontra nele as $ novas que tomava a inquietag¢do humana. vezes de forma somente tacita. E o saber do homem de experiéncia, Em seu bergo a ciéncia ja se anuncia como una: os fatos que o habilita a reagir de formas mais adequadas quando diante de 0S € sociais nao so diferentes dos fatos naturais, e portanto algum desafio novo. Mas nao necessariamente esse saber se sabe de ser investigados da mesma forma. E claro que nao foi assim forma refletida. iimples desde o comego. A filosofia quis guardar o humano para Ha uma diferenga entre o saber tacito, experiencial, e 0 saber entregar apenas o nado humano para a ciéncia. Mas acabou explicito, representado para o préprio sujeito. Este ultimo também ndo essa disputa, pois a ciéncia pretendeu abarcar tudo, ¢ seu pode mostrar diferengas quanto ao grau em que é assegurado de tigio foi muito grande. A filosofia acabou ficando desacreditada forma objetiva ¢ publica. Ele pode, de fato, ser obtido por meios que iuitos. O “ser” (objeto da filosofia) nfo ajudava muito: ta nao dependam da experiéncia subjetiva, de modo que qualquer Jugio da vida social, como os “fatos” (objeto da ciéncia). E pessoa possa verificar que é assim, ou melhor, possa ser convencida avel foi preferido pelos principes. : de que os fatos demonstram tal coisa. E uma questio de légica Pouco a pouco, entretanto, e nao sem a influéncia dos poetas € aplicada aos fatos. A sofisticagao desse ultimo tipo de saber é a literatos (Gusdorf, 1990), comegou um movimento que ciéncia. A humanidade construiu uma ciéncia, um saber objetivo e licava a originalidade do humano. O que é proprio do humano publico, e que pode ser apropriado por quem o estuda. E mais. Na §e deixa captar pelos métodos da ciéncia. Mas ento nao pode complexidade de nossa vida atual, esse tipo de saber se tornou necessario, indispensdvel, insubstituivel. A nossa sociedade nao poderia funcionar sem ele. A nossa sociedade tal como ela é nao poderia subsistir e manter-se em movimento sem o saber produzido pela ciéncia (e por sua filha dileta, a tecnologia). Mas estamos correndo demais. Antes mesmo da ciéncia havia uma forma de saber, mais baseada no pensamento e na experiéncia de vida, mas que se pretendia geral, universal. Uma reflexio rigorosa sobre as coisas. Era a filosofia. S6 que, de repente, a filosofia comegou a parecer algo nao certo, nao seguro, e nao pratico para oe ce % atender as necessidades dos homens (fossem elas pragmaticas ou de iposta pelas ciéncias humanas é do tipo sujeito-sujeito, pois ° conhecimento). O pensamento nao tinha um juiz que decidisse sobre aqui é um outro sujeito. O tipo de objetividade que se pode ter é, seu acerto ou erro. Foi assim que apareceram os fatos. Os fatos \ uma objetividade que nasce de um entendimento entre decidiriam. E esses fatos poderiam ser medidos objetivamente e de iijeitos, é uma objetividade que brota de uma inter-subjetividade. O idar com a autodeterminacdo, com a liberdade, com a slividade etc. E as ciéncias humanas foram nascendo do seio da fa, que entio foi rebatizada pelos humanistas como ciéneia . E os cientistas humanos, ao contrario dos cientistas naturais, savam o discurso simples de uma ciéncia una. Digamos que a lo pressuposta pela investigagao nas ciéncias naturais ¢ do tipo ito-objeto. O objeto é uma parte do mundo; o mundo existe em si; 0 to pode captar suas leis objetivamente, sem que haja nenhum ilvimento, mas apenas, digamos, um olhar. Ja a relagado

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