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KANT: LIBERDADE DA FORMA E FORMA DA LIBERDADE! — Virginia Figueiredo Ampliar a arte? Nao. Antes toma a arte para ir contigo na via que é mais estreitamente a tua. E liberta-te. — PAUL CELAN, O meridiano O segundo nascimento da Estética Como me coube a tarefa de abordar o pensamento de Kant sobre a arte, terei de enfrentar, logo adiante, a interpretagao quase cristalizada segundo a qual, se nao é negativamente, é de modo bastante ambiguo que Kant, no final do século XVIII, inseriu, dentro da sua fenomenal Estética, o problema da arte. Sao varios argumentos bastante consistentes, alids, que levaram o comentario oficial a decidir por aquela posigdo negativa dian- te da arte. O primeiro desses argumentos afirma: como o prin- cipal problema da Estética de Kant é 0 jufzo estético, o ponto de vista nela privilegiado é 0 do espectador, e nao o do artista. Em outras palavras, trata-se de uma teoria do gosto ou, como diz Henry E. Allison,? mais de uma “Estética da Recepg4o” do que de uma “Estética da Produgdo (Criagao)”. Em seguida, alega-se que, em geral, para Kant, o belo que € digno de toda atengao é aquele que a natureza produz involun- taria e espontaneamente, i.e., sem qualquer intengdo ou finali- dade. Em contrapartida, o carater inegavelmente intencional e artificial das obras de arte despertaria no filésofo muito pouca (ou até nenhuma) simpatia por elas. OS FILOSOFOS E A ARTE 59 O argumento definitivo, no entanto, os intérpretes encon- tram explicitado claramente no pardgrafo 42 da Critica da facul- dade do juizo,} 0 qual estabelece literalmente uma diferencga entre os homens de gosto que admiram a beleza da natureza e aqueles que cultivam o belo artistico, diferenga essa que é bastan- te desfavoravel aos tiltimos: enquanto os primeiros denotariam uma “disposigéo de 4nimo favoravel ao sentimento moral”,4 os amantes da arte seriam “habitualmente vaidosos, caprichosos [e] entregues a perniciosas paix6es”. Como o sistema da filosofia kantiana foi entendido tradicionalmente como convergéncia rumo 4 moralidade, pode-se avaliar o quanto essa indisposigao dos admiradores do belo artistico para o “moralmente bom” constituiu um argumento fatal contra a arte. Last but not least, o Unico artista que entra e sai da pélis kantiana sem ser barrado € o génio, pois, na verdade, a sua regra € a mesma da natureza. Isso quer dizer, pelo menos paradoxal e aparentemente, que a regra do génio, em ultima andlise, nao é... artistica. No entanto, nesse quadro — de modo geral bastante desfavo- ravel 4 arte — encontramos alguns intérpretes, dentre os quais destaco o proprio H. Allison e Eva Schaper (cujas leituras me fornecerao, em varios momentos deste texto, um importante fio condutor), que consideram que nao devemos entender a refle- x4o kantiana sobre a arte e 0 génio como sendo apenas uma nota marginal ou uma digressao com relagao 4 questao do gosto que ocupa inquestionavelmente um lugar privilegiado na CFJ. Cito Schaper: O presente estudo j4 esta comprometido com a visao de que 0 problema do gosto é central para a estética de Kant (um com- promisso refletido pela proeminéncia dada A sua elucidagio); mas nem por isso est comprometido em garantir que as sees sobre arte e genialidade tenham apenas uma importancia mar- ginal ou constituam uma digressdo do tema principal. [...] Uma das razdes pelas quais 0 pensamento de Kant sobre a arte encontra com frequéncia uma resposta confusa € que o préprio Kant, aparentemente, admite uma nitida preferéncia pela bele- 60 Virginia Figueiredo za natural em detrimento da beleza artistica. Outra razao é que os fatos de sua vida, tal como os conhecemos, indicam que era improvavel a sua familiaridade com trabalhos artisticos. “Kant provavelmente nunca viu uma bela pintura ou uma bela escul- tura... Seu gosto musical era completamente filisteu e apenas para a literatura o seu senso critico era refinado e preciso.” [LEWIS WHITE BECK, Early German Philosophy: Kant and his Predecessors. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1969, p. 498] Sabendo isso sobre Kant, sempre ouvimos que, dificilmente, sua teorizagao sobre a arte poderia inspirar con- fianga. Entretanto, deveria ser ébvio que tais observagdes nao tém peso para desqualificar os seus insights filoséficos. Ainda assim, com frequéncia permitimos que elas perturbem a nossa ateng4o ao que Kant tem a dizer. Seguindo os conselhos de Schaper e sem deixar que as observagées sobre o “filisteismo” e o mau gosto de Kant pertur- bem a nossa atengao, tentemos ouvir o que ele tem a nos dizer sobre o problema da arte abordando sua complexa e importante obra, a Critica da faculdade do juizo, na qual est4 condensada toda sua sistemAtica Estética. Recomecemos, entao, lembrando o imenso impacto que a CFJ promoveu na sua €poca, impacto que, alias, a meu ver, continua a suscitar na nossa contempora- neidade. Nao hesitaria em afirmar que sua publicagdo, em 1790, provocou uma verdadeira revolug4o copernicana no centro daquela disciplina recém-fundada, cujo nome de batismo foi precisamente Estética. Ou concordar com Benedito Nunes,® quem, um dia, escreveu que a Estética teve um duplo nascimen- to: a primeira vez, com os gregos, quando o belo nao tinha qual- quer autonomia e n4o se diferenciava nem do bom nem do verdadeiro e, um segundo nascimento, justamente com Kant. O mesmo Nunes, em seu livro Introdugdo 4 filosofia da arte, ensina que a Estética moderna foi precedida pela “uniao teérica do Belo com a Arte”, a qual se deu no Renascimento, e, além disso, que essa unido s6 péde ocorrer em virtude da mediagao de uma “terceira ideia, a de Natureza, a qual nessa época adqui- riu sentido preciso”.” OS FILOSOFOS E A ARTE 61 Veremos o quanto a ligagao da Arte com a Beleza através da mediagdo do conceito de natureza constitui uma das mais pode- rosas chaves de leitura da Estética kantiana. Pode-se dizer com bastante legitimidade (como tantas vezes insistiu a critica hege- liana) que um dos pontos de partida da Estética de Kant é preci- samente o “belo natural”. Mesmo deixando Hegel de lado, temos de reconhecer que a quase totalidade dos temas na CFJ converge para a natureza. Se nos propusermos a pensar na CFJ dentro do contexto da filosofia critica como um todo, espe- cialmente nos termos das duas Introdugées,8 poderemos con- cluir, com algum acerto, que ela constitui nada mais do que outro ponto de vista a partir do qual encarar a (mesma) nature- za. Frequentemente, Kant se referiu a essa nova perspectiva inaugurada pela CFJ como “técnica” ou “artistica”, diferente daquela que caracterizara a Critica da razdo pura, que era “mecAnica” ou “cientffica”. Portanto, apreender a natureza este- ticamente significa apenas contempla-la (deter-se na admiragdo de suas formas) sem qualquer interesse teérico-cognitivo ou pratico. Além disso, como dito anteriormente, a necessidade de afirmar o belo natural em detrimento do belo artistico talvez decorra da impossibilidade de atribuirmos vontade ou intengao 4 natureza, liberando assim o belo de todo e qualquer ajuiza- mento moral.? As miultiplas espécies de Arte Na4o havendo espago aqui para tratar dos quatro momentos (qualidade, quantidade, relacdo e modalidade)!° nos quais se divide a “Analitica do Belo”, que € o primeiro livro da primeira parte — “Critica da faculdade do juizo estético” — da CF], e, muito menos, tratar dos dois modos (matemiatico e dinamico) de considerar o sublime, passo diretamente ao § 43 (“Da arte em geral”), ou seja, quase ao final da primeira parte da CF] (que aca- ba no § 60).11 Claro que, antes disso, Kant havia feito referéncias 62 Virginia Figueiredo dispersas 4 arte, mas apenas ai (§ 43), ele ensaia uma definigao sobre arte que, segundo Allison, tem a forma de uma definigao es- colistica,!2 dividida em géneros e espécies. H4 uma verdadeira proliferagao de diferenciagées. Primeiramente, para definir a “arte em geral”, Kant tem de fazer grandes distingdes “genéri- cas”: entre arte e natureza, entre arte e ciéncia e, finalmente, entre arte e técnica. A distingao mais importante é entre arte e natureza, que vai, posteriormente, desdobrar-se numa discussao mais séria do que as outras.13 Kant, entao, comega distinguindo o fazer (artistico), do qual resulta uma obra, do agir (natural), do qual resulta um efeito: “A arte distingue-se da natureza, como o fazer (facere) distingue-se do agir ou atuar em geral (agere) e 0 produto ou a consequéncia da primeira, enquanto obra (opus), distingue-se da ultima como efeito (effectus).”14 Assim, continua o filé6sofo, embora alguns gostem de chamar a colmeia de obra de arte, isso nao esta rigorosamente correto, pois nao se pode alegar que ela tenha como fundamento uma “ponderagao racional”. Essa primeira distingdo entre um produ- to da natureza e da arte estabelece que, sendo esta tiltima, obra dos homens, ela tem uma origem racional, enquanto o produto da natureza, no caso, das abelhas, € puramente instintual, sem consciéncia. Aqui também se anuncia outro problema sério para quem pretende interpretar a CFJ como um todo sistematico, como € 0 caso de Allison. Tentemos esclarecer um pouco esse problema. Se nao se quer admitir que tanto a quest4o da arte quanto a do génio (liga- das claramente a uma “Estética da criagdo”) estejam fora da moldura da CFJ, que estaria voltada exclusivamente para a ques- tao do gosto e, portanto, do juizo estético do espectador, entao é necessario desfazer as contradigdes que suscitam a considera- ¢4o, dentro do sistema, daquela consciéncia,!5 intengao ou “ponderacao racional”,!6 essenciais A definigdo da obra de arte. O problema € que a indeterminagado conceitual esteve presente, pelo menos, em trés momentos importantes do argumento kan- tiano (na “Analftica do Belo”), ao caracterizar as condigdes do OS FILOSOFOS E A ARTE 63 juizo estético puro. No primeiro momento, quando se tratava de distinguir o belo do interesse pratico; no segundo momento, ao diferenciar a universalidade objetiva (fundada em conceitos) teérica ou pratica da universalidade subjetiva estética (que é sem conceitos); no terceiro momento, ao exigir que nenhuma representagao de fim antecedesse a percepgao da forma da con- formidade a fins.17 HA uma clara tens4o entre o principio (inde- terminado conceitualmente) que rege a contemplac¢ao do belo natural e aquele que julga a intenga4o ou mesmo uma represen- tagao de fim que est4 implicada até no ajuizamento da beleza artistica,!8 e a fortiori na produgao artistica. O ensaio de Allison, “Fine arts and Genius”, j4 citado aqui, dedica-se priori- tariamente A solugdo dessa tenséo. Ou bem concluimos, seguin- do a “letra” do texto kantiano, que o sentimento de prazer com o belo artistico, ao contrario daquele com a beleza natural, nao “prepara” o 4nimo do espectador para experiéncia moral,19 ou bem decidimos seguir um certo tour de force que Allison faz para incluir o belo artistico, a arte e o génio sem contradicgées dentro do sistema transcendental da Estética kantiana. Voltarei a essa interpretagdo um pouco mais adiante. Por enquanto, prossigo com os pardgrafos da “definicao escolastica” da arte (§§ 43 e 44). A segunda disting4o (ainda genérica) diz respeito a arte e a ciéncia. Kant conclui junto com o senso comum: saber é diferente de poder. Alguém pode saber exatamente o que deve ser feito e nao possuir a habilidade para fazé-lo. E inegavel que a arte esta implicada com uma pritica. Mas de que tipo ser4 essa pratica? Tratar-se-4 somente de uma técnica, portanto, de um fazer? Ou, antecipando-me ao que ainda veremos mais adiante, pressupondo a relacao intima da arte com a natureza, ser4 legitimo perguntar: trata-se de um agir? A tais quest6es Kant responde com mais uma distingao, a terceira (§ 43), que se da entre arte e artesanato, ou, com outras palavras, entre artes livres e oficio (Handwerk). A primeira jus- tificativa para esta ultima distingao é bastante fragil e nos con- vence pouco. O filésofo afirma que as artes livres parecem um 64 Virginia Figueiredo jogo, i.e., “uma ocupagdo que é agradavel por si mesma”, enquanto o offcio € um “trabalho, isto é, ocupagdo que por si prépria é desagradavel (penosa) e é atraente somente por seu efeito (por exemplo, pela remunerag&o) que, por conseguinte, pode ser imposta coercitivamente”.?! Ora, sabe-se que um artis- ta pode sofrer muito enquanto produz sua obra e, vice-versa, que um artesdo pode ter muito prazer durante a execugdo do seu trabalho. Ja o fundamento seguinte para a distingao (arte/técnica) é mais consistente e suscita a nossa adesao. Kant reivindica a presenga do espirito nas artes que sao chamadas de “livres”. Esse “espfrito”, no qual j4 podemos pressentir seu estreito elo com o génio (a “Teoria do génio” comega no § 46), constitui o elemento que vivifica e intensifica a experiéncia esté- tica propriamente dita e prepara a distingao do par4grafo seguinte (§ 44) — entre as artes mecdnicas e estéticas -, 0 que parece ocorrer j4 dentro do “género”, quero dizer, a distingao talvez ja se dé entre as “espécies” de arte. Mas, antes de chegar a elas, preocupemo-nos em resumir a definigdéo de “arte em geral”. Mesmo que o préprio Kant nao nos oferega um resumo (como fizera, por exemplo, nos quatro momentos da “Analitica do Belo”), Allison o faz para nés: Arte em geral pode ser definida como uma atividade intencio- nal de seres humanos que visa a produgdo de certos objetos e requer um grau significativo de habilidade ou talento de alguma espécie. Correlativamente, os produtos dessa atividade sao obras de arte.22 Kant comega o § 44 (“Da arte bela”) afirmando a impossibi- lidade de uma “ciéncia do belo”. No ambiente da arte, ao con- trario do da ciéncia, h4 no m4ximo uma “erftica”. E por que Kant, mais do que qualquer outro filésofo, pode afirmar isso radicalmente? Porque foi ele quem defendeu esse “lugar especf- fico” do estético, que é 0 da reflexao:73 nem sensivel imediata- mente, nem (0 que nos interessa aqui enfatizar) conceitual. Os ro- manticos — e Walter Benjamin na esteira destes — perceberam OS FILOSOFOS E A ARTE 65 logo as {ntimas implicag6es entre esses dois conceitos kantianos de “reflexao” e de “critica” e souberam exploré-las. Se € possi- vel dizer que o legado kantiano tem alguma atualidade,?* ela se deve, a meu ver, a essa “dupla conceitual” (reflex4o e critica), cuja vigéncia atrevo-me a dizer que se manteve praticamente inalterada, apesar da imensa distancia que nos afasta daquela Estética. Apesar de essa afirmagao ter ares de eternidade, ouso reiterar essa vocagao da critica, pelo menos, enquanto existir algo a que chamemos “arte”. Em seguida, como € frequente, antes de defini-la, Kant saneia a nogao “arte bela” e trata de desfazer 0 “equivoco termi- noldégico”,25 talvez corrente em sua época, de uma “ciéncia bela”, insistindo que apenas a “arte” pode ser chamada de “bela”. Ele explica: se, para fazer a bela arte, é preciso muita ciéncia, por exemplo, para fazer uma bela poesia é necessario conhecer oratéria, versificacao, linguas antigas, a poesia de outros poetas etc., isso nao quer dizer que a propria ciéncia seja bela. E ele conclui: “uma ciéncia que devesse ser bela é um contrassenso.”26 Dando prosseguimento A operag&o analftica (multiplicando distingdes e separagées), Kant divide agora a arte em geral em artes mecAnicas ou estéticas. Estas ultimas, as “estéticas”, sao, por sua vez, divididas em agradaveis ou belas. Aqui esta valendo um critério muito pr6éximo Aquele que servira para separar os juizos determinantes dos juizos reflexivos, pois as “artes meci- nicas” sao aquelas que “conforme ao conhecimento de um obje- to possivel, simplesmente executa[m] as ag6es requeridas para torna-lo efetivo”;27 enquanto a “arte estética tem por inteng4o imediata o sentimento de prazer”.28 Além da distingao entre determinagao e reflexdo, talvez seja possivel compreender 0 sentido da oposicdo entre artes mecanicas e estéticas se apelar- mos para outra distingdo feita no primeiro momento da “Analitica do Belo”: entre o belo, 0 bom (tanto o “bom para”, instrumental e técnico, quanto o “bom em si mesmo”) ¢ 0 agra- davel. Enquanto as artes mec4nicas necessitam de um conceito, 66 Virginia Figueiredo as estéticas, envolvidas exclusivamente com o sentimento de prazer, dele nao necessitam: Bom é o que apraz mediante a razao pelo simples conceito. Denominamos bom para (0 titil) algo que apraz somente como meio; outra coisa, porém, que apraz por si mesma denomina- mos bom em si. Em ambos est4 contido o conceito de um fim, portanto a relagao da raz4o ao (pelo menos possivel) querer, consequentemente uma complacéncia na existéncia de um obje- to ou de uma ago, isto é, um interesse qualquer. Para considerar algo bom, preciso saber que tipo de coisa o objeto deva ser, isto é, ter um conceito do mesmo. Para encon- trar nele beleza, nao o necessito.2? A distingao seguinte, dentro da “espécie” (“artes estéticas”) — entre “artes agradaveis” e “artes belas” —, s6 sera plenamente elucidada, a meu ver, se avangarmos um pouco mais na discus- sao daquela distingao (entre o belo, o bom e o agradavel) conti- da no primeiro momento da “Analitica do Belo”. La, os juizos do agrad4vel estavam ligados 4 faculdade inferior de apetigao, em outras palavras, aos nossos desejos naturais e, por isso, os jufzos eram empiricos. Aqui, as “artes agrad4veis” sao aquelas que podem deleitar a sociedade em uma mesa: narrar entretendo, conduzir os comensais a uma conversacio franca e viva, disp6- la pelo chiste e 0 riso a um certo tom de jovialidade, no qual, como se diz, pode-se tagarelar a torto e a direito e ninguém quer ser responsavel pelo que fala, porque ele esta disposto somente para o entretenimento momentaneo e nao para uma matéria sobre a qual deva demorar-se para refletir ou repetir.3° Se era 0 critério do conceito que permitia distinguir o bom do belo, a distingao agora entre o agradavel e o belo se da através da sensagao. Tanto aqui (§ 44) quanto 4 (§ 3), o “agradavel” esta ligado a sensag4o imediata, por isso as artes agraddveis ndo dao o que pensar nem refletir, e “ninguém quer ser responsavel pelo que fala”. Kant inclui ainda, nessa categoria do “agradavel”, todos os jogos que “deixam o tempo passar imperceptivelmente”.3! OS FILOSOFOS E A ARTE 67 Diferentemente do pardgrafo anterior, aqui, Kant se preo- cupou em nos oferecer um resumo da definigdo de “arte bela”: Arte bela [...] é um modo de representacao que € por si prépria conforme a fins e, embora sem fim, todavia promove a cultura das faculdades do animo para a comunicagao em sociedade. A comunicabilidade universal de um prazer j4 envolve em seu conceito que o prazer nao tem de ser um prazer do gozo a par- tir da simples sensagao, mas um prazer da reflexao; e assim a arte estética é, enquanto arte bela, uma arte que tem por padrao de medida a faculdade de juizo reflexiva e nao a sensagao sen- sorial.32 As artes belas despertam assim um prazer reconhecido por Kant como “da reflexdo”, e isso significa que esse prazer nao provém dos sentidos, como no caso das artes agradaveis. E, além disso, ao afirmar que a faculdade envolvida na avaliagio das artes belas € a faculdade de julgar, Kant acaba por inclui-las, sem dtivida, na sua Estética sistem4tica. Errarfamos em nao dar a devida atengdo a esse § 44 da CFJ, pois, na verdade, é ele que, de modo bastante sutil, inclui a “arte bela” dentro do problema da “Critica do gosto”, justamente ao afirmar que o prazer pro- movido pela “arte bela” € reflexivo e que seu “padrao de medi- da” € a faculdade de juizo. Mas toda inclusao tem seu negativo, que € a exclusao. De fato, ao “elevar” (dignificando-a) a arte bela, num gesto correspondente, Kant exclui as “outras” artes: nao sé aquelas baseadas em conceitos, i.e., as mecanicas (ou Uiteis), o artesanato, as artes de officio; como aquelas “agradé- veis”, como é 0 caso dos jogos, da conversagao etc. S6 apés essa “dignificagao” (a qual correspondem varias exclusédes), € possivel “chegar” ao § 45, no qual a arte bela (e so- mente ela) ser4 relacionada a natureza. E essa “passagem” pela natureza que permite que, a partir do § 46 (“Arte bela é arte do génio”), a arte bela seja identificada como produto do génio, aquele que é dotado pela natureza. Alias, para fazer uma “pres- tag4o” completa do pensamento de Kant sobre a arte, seria s Virginia Figueiredo necess4rio tentar uma “atualizagdo” da teoria do génio. E pro- vavel que nao haja mais espago para isso aqui. Abismo no fundamento natural da arte bela! Seguirei inteiramente a orientagdo de Allison quando ele afirma que “a séria discussao kantiana sobre a arte comega no § 45”,33 cujo titulo “Arte Bela é uma arte enquanto parece ao mesmo tempo ser natureza” j4 anuncia, pelo menos, a metade do pro- blema, ou seja, o fato de Kant sé considerar bela a arte que pare- ce ser natureza. A outra metade Kant nao acrescenta no titulo, mas sim na primeira frase do § 45: “Diante de um produto da arte bela tem-se que tomar consciéncia de que ele é arte e nao natureza.”34 Embora as duas considerag6es tomadas em conjun- to possam parecer paradoxais (pois o que esta implicito no con- ceito de “arte” [a intengao, a finalidade] € precisamente o que deve faltar, ou melhor, deve estar excluido do conceito de “na- tureza”), Allison defende que elas nao sao “contraditérias entre si”.35 O argumento de Allison para desfazer esse aparente para- doxo da teoria da arte kantiana depende de uma comparagao com a nogao de “Fim natural” que €, por sua vez, “um conceito central da Critica do Juizo Teleolégico e que é supostamente aplicavel aos seres organicos”.3¢ A interpretag4o que Allison faz da teoria kantiana da arte parte, portanto, de um inegavel pres- suposto: a identificagao da obra de arte com o organismo. Antes de explorar essa possivel identidade, voltemos ao § 45. Mesmo que concordemos com Allison, que nao se trata de exigéncias contraditérias entre si, devemos, no entanto, reco- nhecer a dificuldade da perspectiva do espectador da obra de arte bela. Ao contemplar algo designado belo, dele é exigido, no minimo, que ocupe um duplo lugar (do Ser e do Parecer) simul- taneamente: a partir do “ser” (de que seja efetivamente a arte), ele tem de manter a consciéncia de que se trata de uma obra de OS FILOSOFOS E A ARTE 69 arte, isto é, de uma obra cujo fundamento se “refere [...] a algu- ma intengao qualquer e a um fim determinado”.37 Nessa primei- ra atitude, relacionada A sua esséncia, a arte é simplesmente oposta a natureza. Além de ser “artificio”, nada mais aqui se determina, pois, A semelhanga do conceito de belo, o conceito kantiano de arte permanece indeterminado (arte é obra do talento humano). JA a partir do parecer (o que a torna bela), isto é, partindo da forma que tem o objeto, o espectador deverd sen- tir “a liberdade no jogo de [suas] faculdades de conhecimento [sobre a qual] assenta aquele prazer que, unicamente, é univer- salmente comunicdvel, sem contudo se fundar em conceitos”.28 E notavel como essa segunda distingdo utiliza os mesmé mos termos que definiam o sentimento de prazer com o belo natural,39 e, por conseguinte, ao aproximar a arte bela da natu- reza, Kant parece querer minimizar a importancia da participa- ¢40 do conceito na relagdo do espectador com o belo artistico. O principal resultado dessa aproximagao consiste justamente em, contrariando aquela impressao gerada pela letra do § 42, citado no inicio deste texto,4° poder afirmar que também 0 belo artistico “prepara” o 4nimo para o sentimento moral. Nesta concepgao “classica”, a bela arte parecer natureza quer dizer, acima de tudo, que os meios e o esforgo através dos quais ela foi produzida nao devem aparecer. A beleza tem de parecer espon- tanea, casual, gratuita. Ela tem de promover no espectador 0 jogo livre das faculdades do espirito: imaginagao e entendimento. Essa segunda distingéo pretende ainda enfatizar aquela separa- g4o da bela arte das outras artes, por exemplo, das artes meca- nicas ou das artes de officio, nas quais o usuario (e nao mais 0 espectador) avalia a adequag’o do objeto, segundo seu conceito e sua finalidade previamente estabelecidos. Descobrimos ainda no final do primeiro pardgrafo da pagi- na (B 179), que a relagdo entre a arte bela e a bela natureza ¢ uma via de mao dupla: se, por um lado, a arte bela é aquela que parece ser natureza, por outro lado, fazendo o “caminho de volta”, Kant lembra a tese que sempre esteve subjacente ao texto 70 Virginia Figueiredo da CFJ, a de que “a natureza era bela se ela ao mesmo tempo parecia ser arte”.41 A tese do belo natural enquanto arte pode ser elucidada n4o sé pelo terceiro momento da “Analitica do Belo”, no qual se fala da beleza enquanto “uma forma da con- formidade a fins”,42 como também pela ideia de uma “técnica da natureza” que est4 presente nas duas Introdugées. A nature- za pensada nao mecanica, mas “técnica ou artisticamente”, como dizia a letra do préprio Kant, é aquela capaz de abranger em si os organismos, que sao aqueles “produtos da natureza [...] que contém em si mesmos uma tal vinculagao das causas eficien- tes, que em seu fundamento temos de colocar o conceito de um fim”.43 Allison vai buscar na segunda parte da CFJ, na “Critica da faculdade de jufzo teleolégica”, a definigao kantiana de “fim natural” como “causa e efeito de si mesma”.44 O tinico proble- ma € que essa definigdéo que Kant esta aplicando a Arvore, a ontologia tradicional s6 “permitia” aplicd-la a Deus; para a ontologia, apenas Deus é causa sui.45 Isso quer dizer que reen- contramos uma espécie de teologia natural, como me pareceu Lébrun apontar no seu ensaio “A terceira Critica ou a teologia reencontrada?”.46 A justificativa, em Ultima instancia, da exis- téncia dos organismos na natureza, dessas entidades que, como aponta Allison, nao apenas sao “organizadas”, mas se “auto- organizam”, seria imaginar um autor genial e inteiramente racional, colocado de fora como um Deus Criador? — Nao! Continuemos com Allison, explorando a mise-en-abime que constitui, sem dtivida, essa relagao de espelhamento, que Kant nos propée, entre natureza e arte. Cito Allison: Assim como acabamos de ver que o problema na concepgao da possibilidade da obra de arte € conceber como um objeto pode parecer “natural”, no sentido de aparecer como se nao [fosse] projetado [designed], mesmo sabendo que é um produto da arte (e portanto projetado); agora aprendemos que o problema na concepgao da possibilidade da finalidade natural é entender como um objeto pode continuar a ser concebido a luz da ideia OS FILOSOFOS E A ARTE 71 de finalidade (ou como se fosse uma obra de arte), apesar do fato de saber que é um produto da natureza.4” Resumindo numa parAfrase a citag4o, temos: de um lado, o belo natural, cuja forma parece que € artistica; de outro, o belo artistico, cuja forma parece que é natural. Segundo Allison, em ambos os casos, da natureza e da arte, Kant tentava, dificilmen- te, fazer uma “revisdo significativa do nosso modo corriqueiro de entender a causa eficiente”.48 De fato, varios conceitos da CFJ convergem para uma critica da ideia de uma produgao voluntdria,49 a qual esta sempre implicita no nosso modo de pensar a causalidade eficiente de acordo com o modelo fabril, artesanal. Prova disso € a nossa tendéncia a “resolver” o proble- ma das condigées de sua possibilidade, quer do organismo, quer da obra de arte colocando como causa um demiurgo, respectiva- mente, Deus ou o artista genial. Kant estava tentando delimitar uma causalidade sui generis que manteria uma “remota analo- gia” com a nossa familiar causalidade final,5° a qual pareciaa ele estar em jogo tanto no organismo quanto na obra de arte. Conclusao Nao vejo outra “safda” para o raciocinio circular e ao mesmo tempo abissal, a nao ser que apelemos para a questo da liberda- de. E ela que nos fornecera um fio condutor, para usar a expres- sao de Lébrun: “uma linha de horizonte [ou limite] de tracado cheio”, capaz de nos langar para além da circularidade que pode se tornar viciosa. Assim, a indeterminag4o conceitual que Kant insiste em preservar como essencial ao sentimento de beleza (tanto natural quanto artfstica) tem uma fungao muito impor- tante, na medida em que nega que o sentimento de prazer seja constitufdo por qualquer verificagao da adequagao de uma forma ao seu contetido, como Hegel, depois de Kant, de modo retrogrado, irda sugerir. Um dos motivos que, a meu ver, propi- cia o prazer que sentimos diante do belo (natural ou artistico) é 72 Virginia Figueiredo que ele nos torna testemunhas da liberdade, que, nesse caso, tanto faz se provém da natureza ou da arte. O importante é que se possa traduzir “sentimento da reflexao” por “sentimento de liberdade”. Poderiamos talvez resumir que a beleza (natural ou artfstica) seja a forma da liberdade ou, o que da quase no mesmo: que a forma bela resulte da “acgdo”, do “trabalho” da li- berdade (todos os termos aqui sao impréprios para designar 0 modo como ela age)... Por isso, apelamos para termos como “originalidade”, “genialidade”. Mas talvez o melhor nome da liberdade seja aquele que Hannah Arendt deu, inspirada por um inédito Agostinho: um comego. E comego quer dizer que 0 pra- zer com a forma da liberdade advém de uma experiéncia de ampliagaéo de mundo. O tempo e 0 espacgo do mundo sao ampliados pela liberdade da forma. Tanto na natureza que pare- ce arte quanto na arte que parece natureza, encontramos essa forga do inaugural, do comego. Concluindo, cito uma longa e bela passagem de Arendt sobre 0 conceito de liberdade: Encontramos em Agostinho nao apenas a discussao de liberda- de como liberum arbitrium, embora essa discussao se [tenha tornado] decisiva para a tradicao, mas também uma nogio, con- cebida de modo inteiramente diverso, que surge, caracteristica- mente, em seu unico tratado politico, De Civitate Dei. Em A Ci- dade de Deus, {...] a liberdade € concebida nao como uma dis- posigéo humana {ntima, mas como um carater da existéncia humana no mundo. Nao se trata tanto de que o homem possua a liberdade como de equacioné-lo, ou melhor, equacionar sua aparicéo no mundo, ao surgimento da liberdade no universo; 0 homem € livre porque ele € um comego e, assim, foi criado depois que o universo passara a existir: [Initium] ut esset, crea- tus est homo, ante quem Nemo fuit.5! No nascimento de cada homem esse come¢o inicial é reafirmado, pois em cada caso vem a um mundo jé existente alguma coisa nova que continua- r4 a existir depois da morte de cada individuo. Porque é um comego, o homem pode comegar; ser humano e ser livre séo uma tinica e mesma coisa. Deus criou o homem para introduzir no mundo a faculdade de comegar: a liberdade.52 OS FILOSOFOS E A ARTE 73 Para fechar 0 circulo, quero relacionar o epilogo com a epi- grafe. Se cada homem, ao nascer, € um comego, como diz Arendt, posso concluir que a liberdade de cada um encontra-se na sua “singularizagao”. Sem tempo nem espago para desdobrar sobre a teoria kantiana do génio as consequéncias das reflexées de Arendt sobre a liberdade, gostaria apenas de indicar para onde acredito que elas apontem. Para a perspectiva de o génio nao ser nenhuma subjetividade excepcional — nem mesmo, como entendera Deleuze, uma “intersubjetividade excepcio- nal”53 —, mas tao somente uma espécie de protétipo da subjeti- vidade transcendental. Talvez o génio nada mais seja do que alguém que levou as tiltimas consequéncias 0 proceso de “singularizagdo”, ou, parafraseando o trecho do discurso do poeta Paul Celan, que serviu de epigrafe para este texto: alguém que estreitou a via que era sua, e libertou-se. NOTAS 1 Este texto € um dos resultados da pesquisa que desenvolvo com apoio de uma Bolsa de Produtividade do CNPq, intitulada “Kant e a arte contem- poranea”, mas também remaneja alguns antigos textos publicados sobre a Critica da faculdade do juizo, de Kant. Cabe mencionar, sobretudo, O génio kantiano ou o refém da natureza. In: Impulso, Revista de Ciéncias Sociais e Humanas, v. 15, n. 38, set.-dez. 2004. 2 Allison. Fine Art and Genius. In: Kant’s Theory of Taste: a Reading of the Critique of Aesthetic Judgment, Cambridge, Mass.: Cambridge University Press, 2001. No entanto, Allison situa-se justamente entre os autores que subvertem aquela perspectiva tradicional e conseguem encontrar um lugar de muita importancia para a arte na Estética de Kant. Como ele demonstra nesta passagem, p. 279: “Deve-se reiterar que ¢ precisamente o problema da explicacdo da possibilidade da produgéo da obra de arte (aquela que parece natureza, embora estejamos conscientes dela como arte) que levou Kant a sair do foco exclusivo da questio do gosto (ou de uma ‘Estética da Recepgo’) para o problema da produgio artistica (ou ‘Estética da Criagao’).” 74 Virginia Figueiredo 3 Kant. Critica da faculdade do juizo. Trad. Valétio Rohden e Antonio Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitaria, 1993. A partir daqui, utilizarei a abreviagdo CFJ. 4 Kant. CFJ (B 165-166), p. 144-145: “Foi com as melhores intengdes que aqueles que de bom grado quiseram dirigir para o fim tiltimo da huma- nidade, ou seja, o moralmente-bom, todas as ocupagées dos homens, as quais a disposigao interna da natureza os impele, consideraram o interes- se pelo belo em geral um sinal de um bom carter moral. Nao sem razo foi-Ihes todavia contestado por outros que apelam ao fato da experién- cia, que virtuosos do gosto so ndo sé frequentemente mas até habitual- mente vaidosos, caprichosos, entregues a perniciosas paixées, e talvez pudessem ainda menos que outros reivindicar 0 mérito da afeigao a prin- cipios morais; e assim parece que o sentimento pelo belo é nao apenas especificamente (como também de fato) distinto do sentimento moral, mas que ainda 0 interesse que se pode ligar aquele é dificilmente compa- tivel com o interesse moral, de modo algum, porém, por afinidade inter- na [...] Ora, na verdade concedo de bom grado que o interesse pelo belo da arte (entre o qual conto também o uso artificial das belezas da natu- reza para o adorno, por conseguinte para a vaidade) ndo fornece absolu- tamente nenhuma prova de uma maneira de pensar afeigoada ao moralmente-bom ou sequer inclinada a ele. Contrariamente, porém, afir- mo que tomar um interesse imediato pela beleza da natureza (ndo sim- plesmente ter gosto para ajuizd-la) é sempre sinal de uma boa alma; e que se este interesse é habitual e liga-se de bom grado a contemplagao da natureza, ele denota pelo menos uma disposi¢do de animo favordvel ao sentimento moral” [grifos meus]. 5 Cf. Schaper. Taste, Sublimity, and Genius: The Aesthetics of Nature and Art. In: The Cambridge Companion to Kant, ed. Paul Guyer, Cambridge, Mass.: Cambridge University Press, 1992, p. 386 [grifos meus]. 6 Cf. Quarta capa do livro O belo auténomo, org. Rodrigo Duarte (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1997), na qual Benedito Nunes escreveu: “No sentido lato da palavra, [a Estética] existiu desde a Antiguidade greco- romana, mas no sentido estrito, que ainda Ihe conferimos, de conheci- mento do belo artistico, nem tedrico nem pratico, ao qual Kant negaria o titulo de ciéncia, seu bergo foi a época moderna.” 7 Nunes, B. Introdugao a filosofia da arte. Sao Paulo: Atica, 1989, p. 10. 8 Cf. Terra, R. Duas introdugées @ critica do juizo. Sio Paulo: Tluminuras, 1995. * Cf. Allison. The Sublime. In: Kant’s Theory of Taste..., p. 337: “Em seu [de Kant] modo de ver, esse [cardter estético] fica necessariamente com- prometido se qualquer consideragao sobre a finalidade ou perfeigdo do OS FILOSOFOS E A ARTE 75 objeto figurar como parte da base da complacéncia. Isso é muito mais dificil de impedir, no entanto, se 0 objeto for um produto da arte do que da natureza.” 10 Kant estava t4o convicto de incluir a CFJ no seu sistema transcendental que, apesar de ter defendido a especificidade e diferenca irredutivel da faculdade do juizo frente as demais faculdades (entendimento ou razio), adota o fio condutor das categorias para a apresentacao do juizo de gosto. Nos quatro momentos da Analitica do Belo, Kant examinar4: no primeiro, da qualidade, o desinteresse; no da quantidade, a universalida- de subjetiva; no terceiro, da relacao, a finalidade sem fim; e finalmente, no quarto momento, da modalidade, a necessidade exemplar. 11 Cf, Allison. Fine Arts and Genius, op. cit., p. 271: “Além do tratamento dos jufzos estético e teleolégico numa mesma obra, talvez o traco mais estranho da CFJ, pelo menos para um leitor pés-hegeliano, para quem ‘Estética’ ¢ ‘Filosofia da Arte’ sao sindnimos virtuais, seja o fato de que apenas muito préximo do final da porgao tratando do juizo estético (para ser exato, no parégrafo 43) que Kant se volta para o t6pico das Belas Artes.” 12 Idem. Op. cit., p. 273. 13 Idem. Op. cit., p. 274. 14 Kant. CFJ (B 174), p. 149. 15 Allison. Op. cit., p. 273: “Arte [...] € concebida como um produto da intengdo e habilidade humana consciente.” [grifo meu] 16 Cf. Kant. CFJ (B 174), p. 149. 17 Idem. Op. cit. (B 61), p. 82. 18 Idem. Op. cit. (B 165-166), p. 144-145. 19 Idem. Op. cit. Cf. nota 4. 20 Idem. Op. cit. (B 175), p. 150. 21 Idem. 22 Allison. Op. cit., p. 273. 23 Kant definiu os sentimentos estéticos do belo e do sublime como senti- mentos da reflexdo. Foi dessa maneira (inédita, diga-se de passagem) que ele garantiu a universalidade do jufzo de gosto, ao mesmo tempo, distinguindo-se das duas tendéncias estéticas que estavam em vigéncia em sua época: de um lado, a empirista, sensualista, para a qual 0 gosto seria proveniente exclusivamente da sensagao; de outro, a racionalista, intelectualista, para a qual o belo seria um conceito derivado de outros, como a perfei¢ao, a harmonia ou a simetria. 24 Cf. a atualidade da Estética de Kant, ver, sobretudo, o livro de Thierry de Duve, Kant after Duchamp. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1999. 25 Kant. CFJ (B 177), p. 151. 26 Idem. Op. cit., p. 150. 27 Idem. Op. cit. (B 178), p. 151. 28 Idem. Ibidem. 76 Virginia Figueiredo 29 Idem. Op. cit. (B 10), p. 52. 30 Idem. Op. cit. (B 178), p. 151. 31 Idem. Op. cit. (B 179), p. 151. 32 Idem. Op. cit. (B 179), p. 151. 33 Allison. Op. cit., p. 274. 34 Kant. CFJ (B 179), p. 152, grifo meu. 35 Cf. Allison. Op. cit., p. 275. 36 Idem. Op. cit., p. 276-277. 37 Kant. CFJ (nota B 61), p. 82. 38 Idem. Op. cit. (B 179), p. 152. 39 Idem. Op. cit. (B 29), p. 62. Trata-se de uma passagem do importante § 9, que nos propée um problema (“‘se no juizo de gosto o sentimento de prazer precede o ajuizamento do objeto ou se este ajuizamento precede o prazer”) cuja solugao, segundo o proprio Kant, constituiria “a chave da critica de gosto”: “Este ajuizamento simplesmente subjetivo (estético) do objeto ou da representagao, pela qual ele é dado, precede, pois, o prazer no mesmo objeto e € o fundamento deste prazer na harmonia das facul- dades do conhecimento; mas esta validade subjetiva universal da compla- céncia, que ligamos A representago do objeto que denominamos belo, funda-se unicamente sobre aquela universalidade das condicées subjeti- vas do ajuizamento dos objetos.” 40 Cf. referéncia ja feita nas notas 4 e 5 deste texto: Kant. CFJ (B 165-166), p. 144-145. 41 Kant. CFJ (B 179), p. 152. 42 Idem. Op. cit.(B 61), p. 82. 43 Kant. Primeira Introdugao, IX, 42. In: Terra. Op. cit., p. 72: “Encon- tramos, porém, entre os produtos da natureza, géneros particulares e muito extensos que contém em si mesmos uma tal vinculacao das causas eficientes, que em seu fundamento temos de colocar 0 conceito de um fim, mesmo se quisermos instaurar apenas experiéncia, isto €, observacao segundo um principio adequado a sua possibilidade interna.” 44 Kant. CFJ (B 286), p. 213. 45 Cf. Allison. Op. cit., p. 277-278. 46Lébrun, G. Sobre Kant. Trad. Rubens Torres Filho, S40 Paulo: Iuminuras, 1993. Seria longo demais para os limites deste texto acompa- nhar o argumento inteiro de Lébrun que nao tem nada de trivial como pode parecer pelo modo como citei o titulo do seu ensaio. Lébrun, alias, como Allison, reconhece que uma discussio importante com o Hume dos Didlogos sobre a religiao natural ecoa o tempo todo na CF] e que, s6 nesta obra, Kant teria encontrado uma “outra base [...] para 0 conceito de théos” (p. 90). Mas, discordando de Allison, para quem a CFJ viria ainda resolver um problema epistemoldgico, Lébrun continua com estas palavras que cito a seguir e que, a meu ver, pressentem a posteridade da CEJ: “[Na CFJ] é um outro kantismo que se delineia. Um kantismo do OS FILOSOFOS E A ARTE 7 qual a epistemologia nao é mais sendo 0 preambulo. Um kantismo parao qual o suprassensivel € uma linha de horizonte de tracado cheio (e nio mais a sombra, ainda muito abstrata, de nossa finitude) — um além impenetravel, sem dtivida, mas somente para quem teima em viver na nostalgia da thedria e recusa-se a compreender que o conhecimento est4 longe de medir nosso poder de pensar. Pensar é algo bem diferente de determinar objetos naturais: 0 estudo do juizo reflexionante, demons- trando isso, libera-nos do ponto de vista te6rico e dispde-nos, portanto, a reconsiderar a obra critica” (p. 90-91, grifos meus). 47 Allison. Op. cit., p. 278. 48 Idem. Op. cit., p. 278-279. 49 Cf. Lebrun. Op. cit., p. 84. 50 Cf. Allison. Op. cit., p. 278. $1 AGOSTINHO. Cidade de Deus, Livro XII. Apud ARENDT, H. “Que éa liberdade?” In: Entre o passado e 0 futuro. Trad. de Mauro Barbosa. Sio Paulo: Perspectiva, 2000, p. 216. 52 Arendt, H. Op. cit., p. 215-216. 53 Deleuze, G. “LIdée de génese dans |’Esthétique de Kant”. In: Revue d'Esthétique, 1963, p. 131-132. BIBLIOGRAFIA ALLISON, Henry. E. Kant’s Theory of Taste: a Reading of the Critique of Aesthetic Judgment. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. DE DUVE, Thierry. “Kant depois de Duchamp”. Trad. Andrew Stockwell. In: Revista do Mestrado em Historia da Arte, EBA, UFR], v. 5, 2° sem. 1998. DELEUZE, Gilles. Para ler Kant. Trad. Sonia Dantas Guimaries. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. DUARTE, Rodrigo. (org.) Belo, sublime e Kant. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. FIGUEIREDO, Virginia. Os trés espectros de Kant. In: O que nos faz pensar? Cadernos do Departamento de Filosofia PUC-RJ, n. 18, set. 2004. KANT, Immanuel. Critica da faculdade do juizo. Trad. Valério Rohden e Antonio Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitaria, 1993. LEBRUN, Gerard. Sobre Kant. Org. e trad. Rubens Torres Filho. Sao Paulo: Iluminuras, Edusp, 1993. PARRET, Herman. (org.) Kants Asthetik — Kant’s Aesthetics — L'Esthétique de Kant. Berlim/Nova York: Walter de Gruyter, 1998. ROHDEN, Valério. (org.) 200 anos da critica da faculdade do juizo de Kant. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1992. 73 Virginia Figueiredo

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