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Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


INSTITUTO DE PSICOLOGIA
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
Bernardo Parodi Svartman
Gustavo Martineli Massola
(Organizadores)
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

COMUNIDADE, TERRITÓRIO E
ENRAIZAMENTO: diálogos entre
a Psicologia Social Comunitária e a
Psicologia Ambiental Latino-Americanas

Coleção Fundamentos de Psicologia Social, v. 3

Editora CRV | Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo


Curitiba | São Paulo
2023
Copyright © dos Autores e da Editora CRV Ltda. – Brasil
Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Designers da Editora CRV
Imagem de capa: garrykillian | Freepik
Revisão: Os Autores

Universidade de São Paulo


Reitor: Carlos Gilberto Carlotti Junior
Vice-reitora: Maria Arminda do Nascimento

Instituto de Psicologia
Diretora: Ana Maria Loffredo

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Vice-diretora: Ianni Regia Scarcelli

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


CATALOGAÇÃO NA FONTE
BIBLIOTECÁRIA RESPONSÁVEL: LUZENIRA ALVES DOS SANTOS CRB9/1506

C728

Comunidade, território e enraizamento: diálogos entre a Psicologia Social Comunitária e a Psicologia Ambiental
Latino-Americanas / Bernardo Parodi Svartman, Gustavo Martineli Massola (organizadores). Curitiba : CRV; São Paulo :
IPUSP, 2023.
99 p. (Coleção: Fundamentos de Psicologia Social, v. 3)

Bibliografia
ISBN 978-65-251-3436-9 (Coleção Digital)
ISBN 978-65-251-3435-2 (Coleção Físico)
ISBN 978-65-251-4798-7 (Volume Digital)
ISBN 978-65-251-4801-4 (Volume Físico)
DOI 10.24824/978652514801.4

1. Psicologia 2. Psicologia Social 3. Comunidade – ambiente – enraizamento I. Svartman, Bernardo Parodi, org.
II. Massola, Gustavo Martineli, org. III. Título IV. Coleção Fundamentos de Psicologia Social, v. 3.

CDU 159.9 CDD 150


Índice para catálogo sistemático
1. Psicologia social – 301.152

2023
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004

Esta obra é de acesso aberto. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que
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Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)
Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)

Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO
DIÁLOGOS INTRODUTÓRIOS���������������������������������������������������������������������� 9

1. A DIALÉTICA DO ENRAIZAMENTO/DESENRAIZAMENTO
NAS EXPERIÊNCIAS DE PARTICIPAÇÃO E RELAÇÃO COM
O SOCIOAMBIENTE������������������������������������������������������������������������������������� 13
Bernardo Parodi Svartman
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Gustavo Martineli Massola

2. NOTAS SOBRE A PSICOLOGIA NA AMÉRICA LATINA:


epistemologia e transformação social������������������������������������������������������������� 39
Fernando Santana de Paiva

3. FATALISMO, PERSPECTIVA DE FUTURO E ELABORAÇÃO DO


DESTINO: reflexões sob a ótica das populações marginalizadas na
América Latina������������������������������������������������������������������������������������������������ 55
Antonio Euzébios Filho

4. O PROTAGONISMO INDÍGENA NA PROMOÇÃO DE


DIÁLOGOS COM A UNIVERSIDADE E A LUTA PELO
TERRITÓRIO TRADICIONAL���������������������������������������������������������������������� 67
Patrícia Moura Fernandes Silva
Rafaela Waddington Achatz
Danilo Silva Guimarães

5. COMUNIDADES QUILOMBOLAS: possibilidades de habitar o corpo


negro e viver no território�������������������������������������������������������������������������������� 81
Saulo Luders Fernandes
Jáder Ferreira Leite
Alessandro de Oliveira dos Santos

ÍNDICE REMISSIVO������������������������������������������������������������������������������������� 93

SOBRE OS AUTORES���������������������������������������������������������������������������������� 95
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APRESENTAÇÃO
DIÁLOGOS INTRODUTÓRIOS
Este livro busca apresentar de forma introdutória e integrada as áreas da
psicologia social comunitária e da psicologia ambiental tais como se desen-
volveram na América Latina. Também busca apresentar alguns campos de
pesquisa e atuação e explicar por que são importantes para ambas. Ele está
sendo escrito em um momento no qual as relações entre comunidades – espe-
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cialmente, mas não apenas, comunidades tradicionais – e ambientes vêm


sofrendo profundas mudanças no país.
Gostaríamos de destacar aqui a palavra relações. Nosso esforço não é o
de discutirmos comunidades e ambientes nas suas relações com a psicologia,
mas discutirmos o trinômio psicologia-comunidades-ambientes. Seguindo a
feliz expressão que ouvimos primeiro de nossa colega de departamento, a
professora Leny Sato, interessa-nos sobretudo não as palavras, mas os hifens.
Consideramos que este trinômio forma um todo, uma configuração, ou como
a psicologia gosta de dizer, uma Gestalt, de tal modo que não é possível
compreender plenamente um dos elementos sem compreender a relação que
estabelece com os outros. Gostaríamos de discutir as relações inescapáveis
entre as três palavras.
Essas relações variam com o tempo – são, portanto, históricas. Vivemos
atualmente a iminência de uma crise ambiental sem precedentes na história
humana, e essa crise ameaça o modo de vida e a própria sobrevivência de
bilhões de seres humanos. Já vivemos o aumento das migrações forçadas
por problemas como secas e inundações, pelo predomínio de formas de agri-
cultura pouco sustentáveis, pelo empobrecimento ecológico que decorre do
desmatamento em larga escala e pelos danos ambientais causados por formas
irresponsáveis de mineração. Ambientes e comunidades podem ser entendidos
como aspectos de um grande e único fenômeno. Qualquer discussão sobre
objetos históricos, assim, fica permanentemente marcada por seu momento e
sua evolução no tempo. Da mesma forma, objetos históricos também preci-
sam ser apresentados dentro de seu contexto socioespacial, geográfico, local.
Teorias desenvolvidas em países centrais nem sempre refletem adequadamente
os problemas enfrentados por países do sul global, que precisam talvez desen-
volver suas próprias teorias ou adaptá-las a sua realidade.
Buscamos mostrar que tanto os ambientes quanto as comunidades são,
sob uma perspectiva psicológica, mais complexas do que parecem à pri-
meira vista. As comunidades são os ambientes onde nos enraizamos, e podem
10

assumir formas inusitadas, especialmente num cenário digital. Os ambientes


são mais que os recursos naturais, apresentam aspectos físicos e simbólicos
entrelaçados e possuem também uma dimensão temporal – passado, presente
e futuro. A reflexão sobre cada um dos termos solicita o auxílio e a mediação
dos outros.
Não podemos apresentar esses objetos sem apresentar ao mesmo tempo os
campos do conhecimento que os estudam, porque as variações históricas desses
objetos se refletem nas próprias teorias criadas para estudá-los. A psicologia
ambiental constitui um campo um pouco mais recente que a psicologia social
comunitária em nosso continente, mas em rápida expansão, especialmente por

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seus vínculos com os estudos sobre a crise ambiental contemporânea. Ao con-
trário de outras regiões do globo, a psicologia ambiental realizada na América
Latina frequentemente reconheceu seus vínculos inseparáveis com a psicologia
social comunitária. Berroeta e de Carvalho (2020), por exemplo, destacam
como as contribuições de Montero (2004) e de Wiesenfeld (2001) permitem
mesmo falar em um campo denominado psicologia ambiental-comunitária,
que se desenvolve no continente. Aliás, vale lembrar que essas autoras são
consideradas referências fundamentais para os dois campos (e admitem, em
certa medida, transitarem por ambos), o que também se aplica a Martín-Baró,
cujos primeiros trabalhos versaram sobre um problema ambiental, a questão
habitacional (Mendonça & Lacerda Júnior, 2015).
O objetivo desta obra é apresentar conceitos e problemas centrais das
duas áreas – a psicologia social comunitária e a psicologia ambiental – a partir
do estudo de problemas concretos da América Latina. Essas áreas são unidas
por uma preocupação com a contextualização social e, especificamente, geo-
gráfica ou territorial dos fenômenos psicossociais, apesar de ambas apresenta-
rem em certos momentos tônicas diferentes (uma, nos vínculos comunitários,
outra, na relação com o ambiente). Outro ponto que aproxima as duas áreas
atualmente é a intenção de ampliar, desenvolver e integrar em suas pesquisas
e práticas as discussões relacionadas à interseccionalidade dos processos de
opressão social.
Entendemos que as relações intrínsecas entre psicologia ambiental e
social comunitária se consolidaram por necessidade histórica na América
Latina, o que se reflete no fato de produzirem pesquisas e intervenções mui-
tas vezes de forma bastante próxima. Mas apenas a criação de um aparato
conceitual que as relacione com rigor poderá ao mesmo tempo destacar suas
semelhanças e diferenças, de modo a permitir compreender melhor como seus
objetos, métodos e intervenções se articulam.
O primeiro capítulo apresenta de forma introdutória a história da psico-
logia social comunitária e da psicologia ambiental. Essa apresentação prepara
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E ENRAIZAMENTO: diálogos entre a Psicologia Social
Comunitária e a Psicologia Ambiental Latino-Americanas 11

a discussão sobre a noção de enraizamento/desenraizamento e sobre como


as lutas coletivas relacionadas a essas questões são especialmente relevantes
para nosso trabalho. A compreensão dialética das noções de enraizamento
e desenraizamento parece-nos auxiliar nesta tarefa de articulação das duas
áreas, pois ao mesmo tempo permite aproximar alguns dos objetos de estudo
e especificar aspectos das relações entre pessoas e seus contextos que serão
mais adequadamente estudados por cada uma delas.
O capítulo seguinte apresenta uma discussão sobre a história da psico-
logia social latino-americana e sobre sua práxis psicossocial. Essa discussão
tem como objetivo apontar as características marcantes de nossos trabalhos
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e pesquisas e também descolonizar o saber produzido na área. O problema


clássico do fatalismo é apresentado na sequência e discutido à luz das novas
atuações, reflexões e descobertas do campo. Por último, serão apresentados
os capítulos com discussões de experiências contemporâneas de atuação e
pesquisa. O primeiro capítulo desse bloco apresenta e discute a construção
da Rede de Atenção à Pessoa Indígena, um projeto de extensão universitária
desenvolvido pelos autores no IPUSP-PSE. O capítulo discute a abrangência
e limites do projeto na colaboração ao enfrentamento de vulnerabilidades
psicossociais que ameaçam as comunidades indígenas. O último capítulo
discute a pesquisa com as comunidades e os territórios quilombolas. Como
afirmam os autores, debater os territórios quilombolas é colocar em pauta os
conflitos étnico-raciais presentes em nossa história e como nossas pesquisas
e atuações se posicionam a esse respeito. Esses dois últimos capítulos, além
de apresentar pesquisas e atuações em sintonia com aspectos inovadores em
suas respectivas áreas, permitem a discussão concreta das possibilidades de
articulação dos dois campos.
12

REFERÊNCIAS
Berroeta, H., & de Carvalho, L. P. (2020). La Psicología Ambiental-Co-
munitaria en el Estudio de los Desastres: La Importancia de los Vínculos
Socioespaciales. Psykhe (Santiago), 29(1), 1-16. https://dx.doi.org/10.7764/
psykhe.29.1.1579

Mendonça, G. S., & Lacerda Júnior, F. (2015). A psicologia da libertação e


as questões habitacionais: história e constituição. Teoría y Crítica de la Psi-

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cología, 6(2015), 102-121. http://www.teocripsi.com/ojs/

Montero, M. (2004). Introducción a la psicología comunitaria: Desarrollo,


conceptos y procesos. Paidós.

Wiesenfeld, E. (2001). La problemática ambiental desde la perspectiva psi-


cosocial comunitaria: hacia una psicología ambiental del cambio. Medio
Ambiente y Comportamiento Humano, 2(1), 1-19. https://dialnet.unirioja.es/
servlet/articulo?codigo=2110643
1. A DIALÉTICA DO ENRAIZAMENTO/
DESENRAIZAMENTO NAS
EXPERIÊNCIAS DE PARTICIPAÇÃO E
RELAÇÃO COM O SOCIOAMBIENTE
Bernardo Parodi Svartman
Gustavo Martineli Massola
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1.1 Breve história da Psicologia Social Comunitária Latino-


Americana

A psicologia social comunitária que se desenvolveu na América Latina


buscou discutir desde seu surgimento como apoiar formas coletivas de enfren-
tamento das injustiças e desigualdades sociais presentes nesse amplo território
(Lane, 1996; Freitas, 1996; Montero, 2005; Góis, 2005). A centralidade desse
tema fica evidente numa série de aspectos que marcam a identidade dessa
disciplina no continente: a busca por conhecer os problemas enfrentados pela
maioria da população e nesse sentido tenta superar o caráter elitista da psico-
logia; a tentativa de superar a mera importação descontextualizada de teorias
e práticas, esforçando-se por descolonizar a psicologia; e desenvolver práticas
que pudessem efetivamente atender interesses populares, explicitando sua
dimensão ética e seu vínculo com as lutas populares para ampliação de direitos
sociais e políticos e para a democratização de políticas públicas (Montero,
2008; Freitas, 1996; Sawaya, 1996; Nepomuceno et al., 2009; Cidade et al.
2012; Gonçalves & Portugal, 2016).
O contexto histórico de seu surgimento é importante para compreender-
mos essas características. Nos anos setenta e oitenta do século XX, período de
surgimento e consolidação da disciplina, o continente encontrava-se assolado
por uma série de golpes militares e governos ditatoriais. Apesar da enorme
complexidade desse momento histórico, podemos observar sua relação com
uma configuração geopolítica mundial que envolveu a reafirmação de uma
ordem imperialista no continente e a repressão violenta aos partidos e movi-
mentos populares de esquerda. Dessa forma, como revelam os historiadores
do período, os movimentos sociais precisaram reorganizar-se após a brutal
repressão para voltar a promover atividades de organização, luta e resistência
em um cenário totalmente adverso e perigoso. Com os canais políticos tradi-
cionais bloqueados (dissolução e cooptação das instâncias de representação
formais como partidos políticos e sindicatos) e com os movimentos populares
14

perseguidos, os trabalhos de base precisaram ser reorganizados, e nesse sen-


tido, novos movimentos sociais e novos atores precisaram entrar em cena
(Sader, 1998; Gonçalves, 2010). Os trabalhos de educação popular tiveram
uma grande importância nesse cenário, como indicam os textos que relatam
a história do surgimento do campo (Lane, 1996; Góis, 2005).
A participação na atmosfera multifacetada de resistência política do
período organizou uma certa identidade do campo, distinta da que foi desen-
volvida em outros continentes. A delimitação desse conjunto de preocupações
fez com que suas bases estivessem menos ligadas a um objeto e método parti-
culares, e mais à formação de um conjunto de problemas, princípios e valores

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presentes na experimentação de novas práticas e investigações. Observando
de forma retrospectiva sua história, é possível afirmar que esteve articulada
desde o início a um movimento acadêmico e político de questionamento,
crítica e renovação na área da psicologia.
Um aspecto importante desse movimento foi a busca de novas formas
de pensar as relações entre a psicologia e a sociedade. Algumas questões
fundamentais voltaram a ser enfrentadas: como evitar reducionismos nas
explicações tanto do lado da sociologia como da psicologia? Como colocar a
psicologia a serviço das maiorias populares sem recair em um mero ativismo
político ou replicar formas tradicionais de atuação em novos lugares? (Freitas,
1998). Enfrentar essas perguntas de forma coerente significou determinar
novos rumos para a pesquisa e a prática. Essas questões estão presentes no
pensamento daquelas autoras e profissionais que marcaram o início da disci-
plina e são identificadas nos textos que analisam a história desse movimento.
As lutas sociais do período e os estudos marxistas são influências deci-
sivas no surgimento e desenvolvimento desse campo na América Latina. A
reorganização de movimentos de base para reivindicar acesso a direitos sociais
e políticos e para denunciar desigualdades e injustiças configuram novos
espaços de resistência e apoiaram o desenvolvimento de novas práticas comu-
nitárias. Ao mesmo tempo, a análise das consequências políticas e sociais
da luta de classes e da exploração no trabalho influenciou novas formas de
realizar atividades de pesquisa e de atuação profissional nesses contextos.
As lutas sociais e discussões que envolvem uma compreensão interseccional
dos processos de dominação, articulando o racismo estrutural em nosso país,
o sexismo, a LGBTfobia e o preconceito étnico também exerceram grande
influência sobre o desenvolvimento da área.
Quais são as consequências desse processo sobre um jeito de pensar a
prática da psicologia e a comunidade? Como discutiremos a seguir, a noção
de comunidade insere-se em um horizonte de luta política, de organização
de resistência contra processos de dominação e opressão. Isso envolve uma
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E ENRAIZAMENTO: diálogos entre a Psicologia Social
Comunitária e a Psicologia Ambiental Latino-Americanas 15

forma de compreensão dos vínculos e da interação social e uma forma de


compreensão da mediação de processos sociais mais amplos sobre fenômenos
locais e delimitados em termos de espaço e tempo. A noção passa a designar
também aquilo que ainda está em potencial, um horizonte de expectativas
aberto pelas práticas coletivas, passando também a abarcar um certo sentido
crítico e utópico de emancipação social. Esse conjunto de temas abre espaço
para a discussão de como os processos comunitários podem servir de base
concreta para trabalhos de conscientização, de elaboração de sofrimentos
sociais e de formação de espaços de atuação política contestatória.
A influência da teoria marxista sobre a psicologia social comunitária se
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apoiou no fato de que a primeira desenvolveu uma ampliação importante da


discussão meramente econômica do problema da opressão social. O conceito
de alienação abriu diversas possibilidades de incluir dimensões psicossociais
na reflexão sobre as transformações necessárias da organização social e polí-
tica. Nesse contexto de reflexão e prática, o conceito de comunidade ganha
uma significação importante, como mostram os estudos recentes de Michael
Löwy (1991, 2008), indicando que a comunidade se torna ao mesmo tempo um
espaço de luta no presente e orienta um horizonte de emancipação, apontando
de forma dialética as condições de superação da opressão. No entanto, para
que seja alcançada, é preciso que as experiências comunitárias possíveis no
presente sejam construídas de forma coerente com seus princípios políticos,
como a participação igualitária e autogestionária, e indiquem a partir de suas
experiências e contradições o caminho a seguir. Dessa forma, a noção de comu-
nidade assume um papel importante na reflexão e na práxis revolucionária.
O que está em jogo é sem dúvida uma discussão também sobre as estra-
tégias de luta e transformação social. De certa forma, os anos 70 e 80 são um
período em que se realiza uma autocrítica às atuações de lideranças e grupos
políticos vanguardistas (Sader, 1998). As estratégias de transformação social
não podem ser pensadas como se um grupo dirigente pudesse guiar as massas
para a revolução, mas como um processo de conscientização em espaços auto-
gestionários, onde as contradições sociais pudessem ser pensadas e trabalhadas
de forma cumulativa, retomando constantemente a questão da coerência entre
teoria e prática política. Espaços de educação popular e de trabalhos de base
passam a ser pensados como lugares importantes para a realização dessas
atividades e nesse contexto deseja-se desenvolver novas experiências comu-
nitárias que apoiam a contínua luta por transformações sociais emancipatórias.
Importantes aproximações foram feitas entre a psicologia social comunitária
e o campo da economia solidária também na tentativa de apoiar o desenvol-
vimento de experiências de geração de renda autogestionárias articuladas a
lutas sociais mais amplas (Martins, 2016).
16

A história da psicologia social comunitária revela essa complexa relação


da psicologia com a dimensão política e histórica da pesquisa e da atuação
profissional. Por um lado, busca romper com a suposta neutralidade cientí-
fica e aliar-se às lutas populares nos combates aos seus sofrimentos sociais e
políticos, e por outro, busca incorporar a reflexão sobre as mediações histó-
ricas, políticas e sociais, no estudo de seu próprio objeto. Tarefa complexa e
que faz com que não exista propriamente uma unidade conceitual e teórica
no campo, exatamente porque ela não pode deixar de vincular-se a diversas
correntes filosóficas e sociológicas para enfrentar as novas questões propostas
e porque assume a necessidade de elaboração de investigações interdiscipli-

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nares, nas quais muitas vezes perspectivas distintas são usadas para discutir
os mesmos fenômenos.
Desde o início da disciplina esteve mais ou menos presente a compreen-
são de que a luta contra a opressão forma o entendimento do que é uma
comunidade. Isso porque a experiência do comum não está associada apenas
a acolhimento e pertencimento, menos ainda a delimitação de bordas ou fron-
teiras, mas principalmente ao respeito pela participação plural das pessoas nos
espaços sociais, algo que representa a antítese de uma situação de opressão. A
discussão sobre o que é a política envolve a reflexão sobre as formas de luta
contra a violência e a injustiça. Uma tarefa importante para a área é buscar
continuamente refletir e explicitar como o conceito de comunidade foi capaz
de aglutinar e sintetizar essas intuições no campo da psicologia social.
A questão da mediação de estruturas sociais mais amplas nas experiências
comunitárias também acompanhou desde o início a disciplina, já que as formas
de participação sustentadas por grupos ou instituições dependem da maneira
pela qual o funcionamento de diversos aspectos da totalidade social incide sobre
o território e sobre os vínculos locais. É possível observar que estudos con-
temporâneos na área apontam para a necessidade de aprofundarmos os estudos
sobre essa complexa inter-relação entre processos sociais mais amplos, políticas
públicas e movimentos sociais (Rodriguez & Montenegro, 2016; Ximenes
et al., 2009). Balizada por questões políticas, seria possível afirmar de forma
geral que a noção de participação igualitária se torna um horizonte importante
de atuação e estudo. Acompanhando as lições de José Moura Gonçalves Filho
(1998; 2007), entendemos a igualdade como condição política, ou seja, como
igual direito à participação, à iniciativa e à fala, portanto, não significando de
forma alguma a homogeneidade das identidades. Pelo contrário, como afirma o
autor, é a igualdade política que permite a aparição de distintas vozes e distintos
rostos. A partir desses pressupostos, abre-se todo um caminho de investigação
sobre as formas de ação e participação social, e sobre suas relações com a saúde
e o sofrimento psíquico, uma vez que são observadas as mediações sociais e
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E ENRAIZAMENTO: diálogos entre a Psicologia Social
Comunitária e a Psicologia Ambiental Latino-Americanas 17

históricas desses processos, rompendo com o individualismo metodológico


presente em certas compreensões da vida psíquica.

1.2 Contextualizando as questões da Psicologia Ambiental

No campo da psicologia ambiental, é possível observar um caminho dis-


tinto que aos poucos vai se aproximando das questões trazidas pela psicologia
social comunitária. Por ter se desenvolvido no Brasil apenas no final dos anos
1990, a psicologia ambiental encontrou as estruturas políticas ditatoriais do
governo militar em franco declínio. Mas os problemas políticos e sociais do
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país seguiram: o Brasil estava entre as nações mais desiguais e violentas do


mundo (posição que ocupa até hoje), sendo parte importante dessa violência
praticada por agentes do Estado – neste sentido, as polícias militares herdaram
e aprimoraram as estruturas repressivas do governo ditatorial.
Porém, um problema novo, que começara a ser notado na década de 1960,
vinha ganhando importância, a ponto de ser reconhecido como o grande desa-
fio social do século XXI: a chamada crise ambiental. Apesar de a consciência
dos impactos ecológicos do capitalismo já se encontrar bem desenvolvida no
século XIX, a publicação, em 1962, do livro Primavera Silenciosa, de Rachel
Carson (2013), que apontava as graves consequências ambientais das atividades
econômicas das sociedades industrializadas, especialmente o uso de insetici-
das e pesticidas, é comumente apontada como a inspiração para o surgimento
de movimentos ambientalistas organizados ao redor do mundo. Em 1972, foi
publicado um relatório intitulado “Os limites do crescimento”, que apresentava
os resultados de pesquisas que demonstravam, no quadro das melhores práticas
científicas, que o crescimento econômico ininterrupto – utopia buscada por todas
as sociedades – era inalcançável devido a limites objetivos representados pelos
recursos naturais disponíveis no planeta. Surgiu a ideia de que, em oposição ao
contínuo crescimento econômico, as sociedades deveriam preocupar-se com a
sustentabilidade ambiental. Neste momento, muitos movimentos ambientalistas
contestavam fortemente a própria organização capitalista da produção e tinham
caráter revolucionário, defendendo transformações radicais na forma de nos
relacionarmos com o ambiente natural. No mesmo ano de 1972, foi realizada
em Estocolmo, Suécia, a primeira Conferência das Nações Unidas sobre o
Meio Ambiente Humano, na qual foi difundida a expressão desenvolvimento
sustentável, uma espécie de solução de compromisso entre o desenvolvimento
econômico e as preocupações com a sustentabilidade ambiental – curiosamente,
muitas pessoas entendem ambas as expressões como sinônimos, o que definiti-
vamente não são. Foi nesta conferência que se estabeleceu também o Programa
das Nações Unidas para o Meio Ambiente. Em 1981, o Brasil instituiu a Política
18

Nacional do Meio Ambiente por meio da Lei nº 6.938/81, que foi recepcionada
(ou seja, integrada) em 1988 pela Constituição Federal, amplamente inspirada
pela declaração promulgada na Conferência de Estocolmo.
A queda do Muro de Berlim, símbolo da Guerra Fria, em 1989, marcou
uma inflexão profunda na política internacional. A corrida armamentista entre
as superpotências (Estados Unidos e União Soviética) perdeu importância
na percepção coletiva, e ganhou prioridade a problemática ambiental. Em
1992, o Rio de Janeiro sediou a Conferência das Nações Unidas sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento, também conhecida como Cúpula da Terra.
Esta conferência apoiou a assinatura de vários acordos internacionais, entre

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os quais se destacou a Agenda 21, e alçou o Brasil à condição de protagonista
nas discussões sobre desenvolvimento e sustentabilidade. Na virada do milê-
nio, os principais cientistas sociais afirmaram a centralidade internacional das
questões ambientais (por exemplo, Giddens, 1991), e Castells (2018) chegou
a afirmar que os valores difundidos pelos movimentos ambientalistas torna-
ram-se socialmente dominantes.
Este conjunto de problemas marcou o momento em que, entre os anos
1990 e 2000, a psicologia ambiental começou a se desenvolver no Brasil,
mas o próprio campo surgiu muito antes disso, mais precisamente entre as
décadas de 1940 e 1950, no pós-II Guerra Mundial. A destruição massiva
das cidades durante a Guerra, especialmente europeias, entre outros fatores,
impôs a profissionais da arquitetura, do urbanismo e do planejamento urbano
em geral um desafio inédito, o de reconstruir cidades inteiras a partir do chão.
Não havia nessas áreas conhecimento sistemático sobre como fazê-lo – esses
profissionais raramente tinham enfrentado a tarefa de construir para gran-
des massas populacionais e não tinham recursos técnicos para prever como
a população se comportaria nos novos ambientes construídos. Voltaram-se
por isso para a psicologia, que tampouco havia estudado sistematicamente o
assunto. Edward Hall (1966) indicou que o ambiente físico era uma espécie
de dimensão oculta de nossa existência, da qual raramente estamos cons-
cientes, e por isso as ciências sociais haviam negligenciado seu estudo por
tantas décadas. O esforço para desenvolver conhecimento sobre o tema deu
origem à chamada “psicologia da arquitetura’’. Bonnes e Bonaiuto (2002)
explicam que nas décadas de 1950 e 1960 essa área nascente admitia uma
espécie de determinismo ambiental sobre o comportamento, ou seja, supunha
que havia uma relação de causa e efeito entre o ambiente e o comportamento
individual, de modo que a configuração do ambiente construído conduziria
por necessidade lógica a certos comportamentos. Em certo sentido, esta con-
cepção está presente, por exemplo, na construção de Brasília. O ambiente era
entendido em sentido físico, e não simbólico, e, especificamente, espacial, e
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E ENRAIZAMENTO: diálogos entre a Psicologia Social
Comunitária e a Psicologia Ambiental Latino-Americanas 19

não temporal. A filósofa Simone Weil (2001) refletiu esse espírito da época
ao discutir, em 1943, a necessidade de planejamento urbano com as seguintes
palavras: “Seria paradoxal deixar reunirem-se ao acaso as pedras que devem
decidir, talvez para muitas gerações, toda a vida social.” Podemos entender
essa ênfase talvez exagerada no ambiente físico – ao longo de muitas décadas,
o espaço físico foi negligenciado nos estudos sobre comportamento humano,
e agora a psicologia da arquitetura queria levar a descoberta da existência
desta relação às últimas consequências.
Nas décadas de 1960 e 1970, muitas mudanças ocorreram neste campo
de estudos. O mundo rural passou a ser estudado com mais atenção, as ciên-
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cias sociais passaram a ser diretamente recrutadas para sair dos laboratórios e
atuar sobre problemas sociais concretos, houve uma valorização das pesquisas
multidisciplinares e, fundamentalmente, os movimentos ecológicos e ambien-
talistas começaram a tornar-se centrais. A psicologia da arquitetura passou
a ser ocupada por profissionais oriundos da própria psicologia, e o resultado
foi a crescente adoção da expressão “psicologia ambiental” para designar esta
área do conhecimento. Houve um resgate da obra de pioneiros da psicologia
social, como Kurt Lewin, Bronfenbrenner, Barker e Tolman, que haviam dedi-
cado atenção ao ambiente em seus aspectos físicos, mas também simbólicos,
espaciais, mas também temporais. Esses autores entendiam que as pessoas e
os ambientes formam uma unidade, não sendo possível separar radicalmente
pessoas e ambientes – em muitos sentidos, as pessoas formam parte intrín-
seca do ambiente, tanto fisicamente, com seus corpos (como podemos notar
claramente em uma estação de metrô lotada), quanto simbolicamente, pois,
por exemplo, é muito diferente entrar em um ambiente desconhecido em que
encontramos pessoas hostis ou entrar no mesmo ambiente e encontrarmos
amigos de longa data. Assim, a ideia de um ambiente externo, separado das
pessoas, que seria a causa inescapável dos comportamentos das pessoas passa a
soar como algo cada vez mais ingênuo. A psicologia ambiental começa a dedi-
car-se ao estudo da percepção do tempo e a mostrar que um mesmo ambiente
pode interagir de formas muito diferentes com as pessoas, dependendo do
sentido que elas atribuem ao ambiente em que estão. Mas ela também passa
a estudar com afinco a crise ambiental e as relações entre os comportamentos
individuais e coletivos – descarte de lixo, consumismo, percepção sobre as
áreas verdes, entre outros – e o resultado potencialmente catastrófico desses
padrões comportamentais.
Ao desembarcar na América Latina na década de 1990, a psicologia
ambiental já está se tornando em todo o mundo uma psicologia da crise
ambiental, e aqui ela rapidamente se aproxima das preocupações da psicolo-
gia social comunitária latino-americana. As consequências da crise ambiental,
20

apesar de incidirem em todas as sociedades, recaem com mais intensidade nas


pequenas comunidades de baixa renda que dependem de sua relação direta com
o ambiente mais próximo para sua sobrevivência. Ao mesmo tempo, conforme
a psicologia ambiental passa a estudar não apenas o ambiente físico, mas os
sentimentos e cognições que indivíduos e comunidades dirigem aos lugares
em que moram e trabalham, vão ficando mais evidentes as consequências
psicológicas da violência que se exerce por meio da expulsão de camponeses
de suas terras por ação de grandes proprietários rurais, por meio da destruição
do equilíbrio ecológico que obriga famílias a mudarem em condições precárias
para grandes cidades, por meio da contaminação de rios e lençóis freáticos que

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levam ao adoecimento desses grupos, pela falta de moradia, pela destruição de
laços comunitários essenciais para a organização produtiva desses grupos, pelo
deslocamento forçado induzido pela construção de grandes obras de infraestru-
tura e pela guerra ou pelas tragédias e desastres ambientais (mineração, inun-
dações, deslizamentos de terras). A perda da terra está associada a epidemias
de depressão, homicídios, violência sexual, abuso de substâncias e suicídio.
A violência exercida contra essas comunidades expressa-se de forma central
por meio das transformações impostas ao seu entorno, ao seu ambiente, pela
lógica de acumulação do grande capital. Para essas comunidades, a luta contra
a crise ambiental é idêntica à luta contra a opressão.
Ao mesmo tempo, como afirmam Esther Wiesenfeld e Euclides Sánchez
(2002), o fim das ditaduras civis-militares na América Latina revela que
parte da crise ambiental no continente é devida à alienação desses grupos
das decisões tomadas pelos centros decisórios dos Estados. Como não são
ouvidas e suas necessidades não são consideradas, os agentes estatais são
cegos aos contextos em que vivem essas comunidades. As comunidades,
especialmente as de baixa renda, são as principais vítimas da crise ambien-
tal no continente e, ao mesmo tempo, sua participação direta e organizada
nas decisões políticas, a valorização dos laços comunitários com a terra, o
respeito às formas tradicionais de manejo dos recursos naturais e a preser-
vação dos vínculos comunitários organizados podem ser elementos centrais
no seu enfrentamento.
Daí se desenha um duplo programa para parte da psicologia ambiental
latino-americana: desenvolver teorias que permitam entender os vínculos entre
pessoas e ambientes na América Latina, ou seja, nesse contexto específico de
violência e opressão contra grupos que resistem à dissolução de laços comu-
nitários ou que buscam reconstitui-los; e desenvolver tecnologias sociais que
fomentem a participação direta e organizada desses grupos na luta contra a
degradação ambiental – seja na forma da perda dos laços simbólicos com os
lugares, seja na forma da destruição dos recursos naturais necessários à sua
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E ENRAIZAMENTO: diálogos entre a Psicologia Social
Comunitária e a Psicologia Ambiental Latino-Americanas 21

existência digna – e no fortalecimento dos vínculos socioambientais neces-


sários ao combate à crise ambiental.
O resultado deste processo é que o desenvolvimento das áreas da psi-
cologia social comunitária e da psicologia ambiental na América Latina con-
duziu historicamente a uma confluência e a um diálogo entre ambas, que se
apoia inicialmente na compreensão da realidade como simbólica (resultante
da práxis econômica, política e cultural) e no desenvolvimento conjunto da
noção de participação, temporalidade e lutas contra formas de dominação.
O par dialético dos conceitos de enraizamento e desenraizamento em certa
medida parece-nos condensar esse esforço e será tomado como fio condutor
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desse diálogo na próxima seção.

1.3 A dialética do enraizamento/desenraizamento nas experiências


de participação e relação com o socioambiente

Nesta seção iremos discutir por que a noção de enraizamento apresen-


ta-se como uma metáfora recorrente para abordar a relação entre um con-
junto de necessidades humanas e as condições sociais e ambientais para sua
realização e desenvolvimento. O emprego da expressão nos mais diversos
contextos culturais e acadêmicos revela o poder que o termo possui de evocar
experiências e reflexões desse tipo. Especificamente no contexto acadêmico
apresenta-se como uma poderosa noção heurística, capaz de condensar uma
forma de compreender a condição humana e sua intrínseca mediação histórica
e social. Como já havia explicitado José Moura Gonçalves Filho (1991), ela
expressa de forma condensada algumas necessidades fundamentais, como
a de participação, a de reconhecimento e de relacionamento com o sentido
histórico das experiências biográficas e coletivas. A visão de conjunto asso-
ciada à imagem do enraizamento tem esse poder de manter juntos aspectos da
nossa humanidade que as discussões muitas vezes separam por necessidade
didática e analítica.
A expressão desenraizamento também tem a capacidade de exprimir de
forma condensada certos aspectos da condição humana, mas desta vez desig-
nando os efeitos e situações de violência e opressão vivenciados por pessoas e
grupos. Também utilizada nos mais diversos contextos, pode expressar a dor
da imigração forçada, a violência dos processos de colonização e até mesmo
de forma mais geral, a experiência de alienação/reificação desencadeada pela
exploração da força de trabalho na economia capitalista. Essa força expres-
siva, intuitiva e imagética dos dois termos aponta um caminho interessante
de reflexão: qual é o sentido específico que assumem no campo da psicologia
comunitária e ambiental? Como podem inspirar pesquisas e atuações nesses
22

campos? Existem condições absolutas de enraizamento e desenraizamento na


vida social? Buscaremos discutir esses assuntos nesta seção.
Em psicologia social, a definição elaborada por Simone Weil exerceu
uma grande influência em pesquisas e práticas:

Um ser humano possui uma raiz por sua participação real, ativa e natural
na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do
passado e certos pressentimentos do futuro (Weil, 1979, p. 347).

Um dos grandes méritos dessa definição é relacionar as dimensões do

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espaço, do tempo e das possibilidades de participação em uma mesma visada.
Nessa definição, as três dimensões estão imediatamente relacionadas e são apre-
sentadas como aspectos de uma configuração social e histórica indivisa. Vamos
procurar acompanhar e desenvolver essa articulação proposta pelo termo.
O enraizamento é uma metáfora que expressa por um lado a forma pro-
priamente humana de relação como tempo, ou seja, a maneira pela qual o
passado mantém-se vivo no presente, alimentando e orientando a participação
e as atividades coletivas, sustentando projetos e expectativas de futuro. Ao
mesmo tempo, a metáfora da raiz tem uma forte dimensão espacial: expressa
a materialidade objetiva dos signos e símbolos que oferecem sustentação à
memória e à identidade dos indivíduos e grupos, e também indica a impor-
tância dos lugares na estabilidade e organização das interações. Expressa de
forma geral as formas materiais de inscrição do passado no tempo atual, e
que mediadas pelas ações, atividades, deslocamentos e trabalhos do presente,
projetam-se em novas transformações do mundo.
Quando pensamos no eixo do tempo, em primeiro lugar é importante
observarmos as distintas formas de relação das pessoas, grupos e institui-
ções com o passado. Seguindo aqui as indicações de Paul Ricoeur (2007),
é possível identificar três eixos importantes em relação a esse fenômeno: a
memória pessoal, a memória coletiva e a história dos grupos e sociedades,
esta última englobando formas ampliadas e institucionais de relação com o
passado histórico. Essas três dimensões estão em constante interação e se
influenciam mutuamente.
Vamos apresentar brevemente algumas características de cada um desses
eixos e como se relacionam. Conforme enfatizam diversas correntes da psico-
logia, a memória pessoal é fundamental na formação e desenvolvimento da
identidade biográfica. A nossa capacidade de relacionamento com o passado,
de lembrança de episódios, expectativas, projetos e promessas é fundamental
para lidarmos com o sentido de continuidade da vida. Apesar de todas as
contingências que podem afetar nossa existência, a memória pessoal apoia a
experiência de continuidade e integração no tempo.
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E ENRAIZAMENTO: diálogos entre a Psicologia Social
Comunitária e a Psicologia Ambiental Latino-Americanas 23

A memória pessoal não é apenas um fenômeno íntimo, algo que poderia


ser identificado como uma experiência estritamente subjetiva. A memória possui
uma importante dimensão intersubjetiva. Muitas das nossas lembranças depen-
dem de apoio intersubjetivo para se manter e se estabilizar. Exemplos cotidianos
não nos faltam: às vezes nos lembramos de acontecimentos ou experiências
importantes em conversas com amigos ou familiares, outras temos que lidar com
episódios marcantes do passado que sobrevivem mais pelos relatos dos outros
do que são propriamente rememorados a partir de imagens internas. O fato de
que nossas memórias pessoais se apoiam no encontro com outras pessoas já
indica a importância da segunda dimensão da relação com o passado: as práticas
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coletivas, as comemorações e os eventos sociais mantêm vivas as tradições de


um grupo e representam formas de celebrar um passado e uma cultura comuns.
A memória coletiva se refere portanto a essa dimensão dos quadros sociais
da memória, a essa experiência de um passado que vive e é transmitido nas
práticas coletivas. O sujeito dessa experiência é sempre um sujeito coletivo. A
terceira dimensão mencionada da relação com o passado refere-se à história
mais ampla e de longa duração dos grupos, instituições e da sociedade como
um todo, denotando o trabalho disciplinado de pesquisa e reflexão que acres-
centa à pretensão de fidelidade da memória ou de manutenção de formas de
tradição, o esforço compreensivo e explicativo das relações estabelecidas entre
o passado, o presente e o futuro. A experiência desta dimensão envolve a possi-
bilidade de pesquisa a partir de procedimentos definidos que ajudam a ampliar
o quadro explicativo das relações com um passado que supera o que pode ser
preservado por memória individual ou coletiva. A partir do momento em que
os documentos e estudos são publicizados, influenciando o debate público e o
ensino formal e informal, a dimensão da memória coletiva sofre suas diversas
influências. As três dimensões se articulam de forma complexa e importante nas
lutas sociais, ampliando o que podemos chamar, acompanhando Paul Ricoeur
(2007) e Koselleck (2006), o nosso campo de experiência.
Após essas breves considerações sobre as formas de relacionamento com
o passado, vamos abordar as relações entre o passado e o presente. O tempo
presente é um tempo acima de tudo de participação e atividade. Na vida de
cada um, é também o centro e o ponto de apoio a partir do qual se desdobram
e se articulam o passado e o futuro. O olhar para o passado muitas vezes se
realiza a partir de perguntas e indagações que surgem no presente, que ela-
boradas pela discussão coletiva, sustentam também a elaboração de projetos
de futuro. O presente é permeado pela experiência de uma “fé prática”, como
diriam os fenomenólogos, em nossa capacidade de inter-ação. O mundo não se
apresenta como um agregado de impressões sensoriais, mas como um campo
aberto à minha participação sob variadas formas. Quais são essas formas de
24

participação? Que dimensões da experiência pessoal se incorporam a elas?


São mediadas por quais tipos de interações e instituições?
Em relação à primeira pergunta, vamos nos orientar ainda por uma discus-
são feita por Paul Ricoeur (1996) sobre a fenomenologia das capacidades huma-
nas. Acompanhando as lições do autor, poderíamos afirmar que a experiência de
participação pessoal envolve de forma articulada nossas capacidades de falar,
agir, narrar e responsabilizar-se eticamente pelas nossas iniciativas. São todas
dimensões que se sobrepõem e se recobrem e são assim apresentadas separada-
mente mais por necessidades didáticas do que por apoio na experiência real de
participação. Todas elas possuem um desdobramento tripartite: cada uma delas

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apresenta um aspecto reflexivo (um desdobramento sobre si-mesmo), uma forma
própria de relação com outras pessoas (cada uma dessas capacidades implica
sempre formas de interação, nunca se realizam em isolamento) e são sempre
mediadas por instituições específicas (um contexto e um meio que organiza e
estrutura as trocas e interações). Essa discussão nos orienta em relação a uma
primeira aproximação à ideia de participação: avaliamos como os campos se
abrem às possibilidades de as pessoas falarem e agirem, elaborarem histórias
a respeito de si, dos grupos e das instituições de pertencimento, e também pela
forma como essas iniciativas são elaboradas em conexão com avaliações sobre
o que é justo e adequado, ou seja, a partir de considerações éticas e morais.
A orientação ética da participação já remete em si mesma à dimensão do
futuro. Quando empenho minha palavra e assumo compromissos com pes-
soas, grupos ou instituições, torno-me fiador de promessas que me engajam
em projetos e lutas coletivas, geralmente orientadas pelo que é considerado
desejável, justo e bom por uma coletividade. Toda experiência de partici-
pação envolve um horizonte pessoal e coletivo de expectativas, projetos e
esperanças. Essa experiência de projeção pessoal e coletiva não é um mero
atirar-se para o futuro, envolve um necessário e complexo diálogo entre os
eixos temporais. O futuro pode estar fortemente orientado pela expectativa
de ver redimida uma injustiça e um sofrimento de meus antepassados e do
meu grupo de pertencimento. Um problema no presente pode desencadear
uma investigação do passado que, agora compreendido, pode projetar um
futuro diferente. Como veremos adiante, em sociedades marcadas por pro-
cessos de dominação, as lutas organizadas no presente podem fazer o futuro
apresentar-se como um horizonte de superação das injustiças presentes e de
emancipação. Neste caso entendemos esse horizonte não como a projeção pura
e simples de um futuro imaginado por um grupo de militantes, mas um futuro
que pode ser construído a partir da análise das contradições e dos potenciais
não cumpridos e incubados pelas próprias condições sociais de existência.
Acreditamos que a noção de utopia pode e merece ser utilizada nesse contexto
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E ENRAIZAMENTO: diálogos entre a Psicologia Social
Comunitária e a Psicologia Ambiental Latino-Americanas 25

se não esquecermos as críticas já desenvolvidas pelo campo marxista ao termo,


ou seja, se buscamos evitar a compreensão idealista e voluntarista de trans-
formação e revolução social. Pode ser preservada se levarmos em conta que o
processo de emancipação social não ocorrerá mecanicamente, mas dependerá
também da imaginação coletiva de um futuro analisado à luz do passado e
do presente. As formas de imaginação utópica carregam esse momento de
negatividade do presente, e se não forem tomadas como formas totalitárias de
impor à realidade social seus esquemas, podem ajudar a orientar a dimensão
ética da práxis política. Nesse sentido, o aspecto positivo do termo significa
que ele é capaz de instaurar uma discussão política relacionada à construção
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de um futuro capaz de superar as contradições e opressões do presente.


Estas capacidades humanas de inter-ação se atualizam em diferentes espa-
ços sociais e instituições. Podem referir-se a atividades de cunho predominan-
temente econômico, político ou cultural, ainda que essas áreas se sobreponham
em grande medida. Quando pensamos na interconexão específica entre a ques-
tão política e econômica, como afirma José Moura Gonçalves Filho (1998),
a participação pode ser avaliada pela forma como se organiza efetivamente o
governo do trabalho e da cidade a partir de suas estruturas de poder específicas.
A noção de enraizamento expressa a complexa relação entre tempo e
participação, e expressa também a relação dessas necessidades fundamentais
com a produção social do espaço humano. Toda essa discussão sobre tempo e
participação poderia ser feita enfatizando a mediação espacial desse processo.
O passado se inscreve no presente através de signos, entendidos de forma
ampla, que podem ser pensados como o próprio espaço humano construído
e habitado. Em cada um dos espaços, o ambiente organizado apoia material-
mente a lembrança do passado, das estruturas presentes e dos projetos em
construção. Como sinais ou signos, apoiam e estabilizam a complexa teia
de interações humanas. Nas casas podemos encontrar objetos biográficos,
nas cidades convivemos com os espaços significativos, espaços da memória,
nas instituições encontramos toda uma arquitetura que serve para rememo-
rar experiências, posições e papéis sociais (Bosi, 1994). Por toda parte nos
deparamos com símbolos culturais preservando a memória de iniciativas,
instituindo espaços abertos à participação e à construção de projetos e de um
mundo que se mantém e se transforma simultaneamente.
Após esta sintética apresentação da noção de enraizamento no campo
da psicologia comunitária e ambiental, é preciso enfrentar essa importante
questão: a experiência de enraizamento pode ocorrer em sociedades marcadas
por processos de dominação, desigualdades e injustiças sociais? Existe uma
experiência pura de enraizamento ou de desenraizamento? Duas perguntas
importantes que buscaremos abordar de forma articulada e resumida.
26

A noção de dominação que utilizaremos é aquela apresentada por José


Moura Gonçalves Filho (1998, 2003, 2007) em seus textos sobre o problema
da humilhação social. Como definiu o autor, a dominação é um problema
político, refere-se ao impedimento de participação no governo do trabalho, da
cidade e das instituições de uma forma mais ampla (Gonçalves Filho, 1998).
Quando a organização do poder nesses espaços faz com que um grupo se sub-
meta às ordens e ao comando de outros, quando a prerrogativa de decisão está
na posse de representantes de um grupo em detrimento de outros, podemos
afirmar que há um processo de dominação em curso. Alguns exemplos podem
ajudar a compreender esse fenômeno: numa sociedade dividida em classes,

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os grupos que detentores dos meios de produção e seus representantes têm o
poder de decidir como organizar o trabalho de forma a aprimorar a explora-
ção dos trabalhadores; em uma sociedade que mantem o racismo estrutural,
herança direta do escravismo colonial, existe uma distribuição do poder e da
riqueza que privilegia as pessoas brancas e determina uma configuração de
exclusão e preconceito presente nas instituições; em uma sociedade estrutural-
mente machista, marcada pela instituição patriarcal, ocorre o mesmo fenômeno
em relação aos privilégios de poder masculinos. Isso significa que a leitura dos
processos de dominação envolve a compreensão da interseccionalidade dos
processos históricos de concentração de poder e riqueza na estrutura social.
Simone Weil (1979) descreveu a condição operária como uma condi-
ção profundamente desenraizadora. A partir de sua experiência de trabalho
como trabalhadora de algumas fábricas em Paris, percebeu que as atividades
de trabalho não envolviam participação criativa nas atividades e tampouco
participação política na definição do que seria feito e como. As atividades não
envolvem a apropriação de um campo de conhecimento, e nesse sentido não
sustentavam uma ligação com o passado e tampouco sustentavam projetos de
futuro. O processo de trabalho estava organizado de forma a garantir o aspecto
primordial da produção de mercadorias no capitalismo: a maximização dos
lucros. A racionalização contínua dos processos de trabalho faz com que as
pessoas se tornem partes de uma engrenagem mais complexa de produção de
valor. Isso representa uma forma de desenraizamento nos espaços de trabalho,
promovida pela estrutura mesma da produção capitalista.
Outro aspecto importante para discutirmos o desenraizamento encontra-se
no fato de que nossa época está marcada pelo número recorde de pessoas que
vivem ou viveram deslocamentos forçados. Os dados da ONU sobre o tema
indicam a gravidade do fenômeno. Perseguições religiosas e políticas, guerras,
desemprego, catástrofes ambientais são fatores sociais que explicam a neces-
sidade de pessoas e grupos abandonarem seus lares e cidades de origem. São
experiências que podem ser descritas sob o signo do desenraizamento: a ruptura
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E ENRAIZAMENTO: diálogos entre a Psicologia Social
Comunitária e a Psicologia Ambiental Latino-Americanas 27

com uma tradição cultural, o impedimento de participação nos locais de origem


e de chegada, o fechamento do horizonte de expectativas e de projetos de futuro.
A desigualdade de classes, o racismo e o machismo estruturais, a patolo-
gização da loucura, os deslocamentos forçados, determinam de forma absoluta
experiências de desenraizamento? É no enfrentamento dessa questão que
podemos adotar um raciocínio mais dialético sobre as relações entre enrai-
zamento e desenraizamento.
Nos casos mencionados, uma situação de desenraizamento completo
surge como uma ideia limite, pois é difícil imaginar um contexto de absoluta
impossibilidade de participação e de interação, de rompimento total da liga-
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ção com o passado e o futuro, ou de afastamento da cultura e ambiente de


origem. As situações de opressão nunca ficam sem respostas, e as iniciativas
de resistência organizadas coletivamente contra elas podem ser entendidas
como formas de luta contra o desenraizamento que já a mitigam de alguma
forma. Ainda que represente uma ideia limite, a utilização do termo é impor-
tante para denunciar a violação de direitos fundamentais e indicar o aspecto
ético das denúncias de situações de violência e injustiça social. Com isso
queremos dizer que ao analisar a exploração capitalista ou a violência da
migração forçada utilizando a expressão desenraizamento estamos analisando
um tipo de experiência fundamental que foi atacada nessa situação, sem que
isso signifique que esteja inteiramente ausente.
A exploração do trabalho no capitalismo envolve impedimentos de par-
ticipação, mas trabalhadores e trabalhadoras encontram formas de resistir e
enfrentar essa situação, de tal forma que um campo de lutas se estabelece
dentro e fora dos espaços de trabalho. As organizações de resistência envol-
vem necessariamente formas de participação e pertencimento, de elaboração
do passado e de projeções de futuro, nas quais uma importante dialética entre
enraizamento e desenraizamento se estabelece. No caso das migrações força-
das, muitas vezes os grupos encontram formas de preservar a ligação com sua
cultura original e de participar do novo espaço no qual se fixaram, negociando
novos projetos de futuro. A importância dos movimentos sociais que lutam
contra formas de desrespeito e injustiça está muitas vezes na experiência de
enraizamento que são capazes de sustentar a partir de suas práticas e ativida-
des comunitárias. Dessa forma, as pesquisas empíricas sobre o tema podem
justamente acompanhar essa dialética entre experiências de desenraizamento e
lutas mais ou menos organizadas contra elas, o que permite e sustenta alguma
forma de enraizamento. Trata-se de uma dialética importante de acompanhar,
que nos permite afirmar que não existe nunca uma experiência plena em cada
um dos polos, uma vez que a mediação das estruturas e situações de domi-
nação sempre a impedem, mas as respostas coletivas são formas de afirmar
28

que as pessoas nunca perdem sua condição de humanidade. Acompanhar essa


dialética pode ajudar a realização de uma crítica da sociedade, na medida que
os termos de análise são sua própria contradição interna, sua negatividade,
o que ainda está em potencial nas linhas de força contrárias às situações de
dominação. A noção de utopia assim entendida permite retirá-la do campo
imaginário e abstrato, reintegrando-a às lutas sociais como a perspectiva de
uma imaginação revolucionária capaz de compreender as contradições e as
mediações da totalidade nos projetos de transformação social.
A experiência de enraizamento tal como exposta até aqui deve ser enten-
dida como oposta à delimitação de fronteiras, à xenofobia e à intolerância de

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qualquer tipo. A noção de enraizamento tal como foi definida por Simone Weil
diz respeito a um direito humano fundamental, um direito de todas as pessoas,
e por isso representa a antítese dos processos de dominação e das ideologias
neo-fascistas. Quando um sistema político manipula um suposto sentimento de
pertencimento para exigir submissão de seus membros a líderes autoritários,
quando utilizado para justificar hierarquias e injustiças, ou quando a estrutura
social de um grupo se apoia em formas de colonização e exploração, estamos
diante da reiteração de mecanismos de manipulação, violência e opressão.
Como afirmou a própria Simone Weil, uma raiz implica sempre, além das
formas de participação igualitária, a troca de influências com outras culturas
e o respeito verdadeiro por elas, caso contrário se torna apego e xenofobia. A
noção de enraizamento envolve uma importante dialética entre reconhecimento
de si e reconhecimento da alteridade de grupos e pessoas. Caso o termo seja
associado a uma organização política que busque impedir a participação igua-
litária de seus membros, termina por apoiar a conformação de uma ideologia
que demanda homogeneização das identidades e perseguição ao diferente.
Após esta breve discussão sobre a noção de enraizamento e desenrai-
zamento, podemos nos perguntar: é possível falar de uma teoria do enrai-
zamento? Acreditamos que essa noção interpela as teorias constituídas no
campo da psicologia, e principalmente da psicologia social, sobre a forma
como pensam a relação entre temporalidade, espaço (território) e participação,
aspectos fundamentais de qualquer análise nesse campo. Dessa forma, ao
incorporar-se no corpo conceitual de teorias constituídas, permite o desenvol-
vimento de seus próprios fundamentos e o diálogo com pesquisas empíricas
a respeito de distintos temas.

1.4 Território e comunidade

Uma outra noção que aproxima a psicologia social comunitária e a psi-


cologia ambiental é a de território. Muitos autores consideraram ao longo do
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E ENRAIZAMENTO: diálogos entre a Psicologia Social
Comunitária e a Psicologia Ambiental Latino-Americanas 29

século XX que uma comunidade deveria estar localizada em um território


específico com o qual ela se identificasse. Tönnies (1995), um dos autores
clássicos nos estudos de comunidade, definiu a comunidade fundamentalmente
como um tipo de relação social: “Na comunidade, há uma ligação desde o
nascimento, uma ligação entre os membros tanto no bem-estar quanto no infor-
túnio. (p. 231-2)” Mas as pesquisas sobre comunidades desde logo destacaram
a territorialidade como um aspecto muito importante para a compreensão de
suas relações com o ambiente. Sjoberg (1987), por exemplo, afirma que “mui-
tos autores concordam que a comunidade tem um locus territorial específico,
geralmente limitado. E essa parece ser a maneira pela qual o termo é mais
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comumente usado pelos pesquisadores” (p. 229). E acrescenta: “A maioria dos


autores parte do pressuposto de que uma comunidade tem uma base territorial
específica” (Sjoberg, 1987, p. 229). Essa ênfase no território também aparece
nos estudos apresentados por Horkheimer e Adorno (1973), que apontam a
“cidade média”, vista como modelo para a sociedade mais ampla, como o
fenômeno empírico central sobre o qual se debruçaram os pesquisadores de
comunidades no início do século XX nos Estados Unidos.
Há aqui uma ênfase nas relações face a face como distintivas das rela-
ções comunitárias e uma concepção de território como uma região geográfica
delimitada, ou seja, entendida em sentido físico. Pode-se, porém, questionar
esse pressuposto à luz dos fenômenos recentes das comunidades virtuais e
dos movimentos sociais que operam em escala mundial, de que dão exemplos
significativos os variados grupos presentes nos Fóruns Sociais Mundiais. Da
mesma forma, grupos distintos formam-se em situação muitas vezes efêmera
para lutar contra problemas específicos, dissolvendo-se em seguida. O tipo
de relação que estabelecem pode ser bem-enquadrado na definição clássica
de comunidade, sem apresentarem vestígios reconhecidos de compartilha-
mento territorial. Tais fenômenos podem significar um limite histórico para
esta relação entre comunidade e território, indicando que, atualmente, ela não
é mais encontrada nas comunidades empiricamente observadas. Mas pode
ocorrer também que o conceito clássico de território deva ser revisto à luz
desses próprios movimentos e dos fenômenos mais recentes da globalização
e da mundialização, indicando uma relação mais ampla entre território e
comunidade que aquela suposta pelos autores clássicos.
A necessidade lógica da estabilidade na relação de uma comunidade com
seu território era um pressuposto largamente aceito até o período do pós-II
Guerra e que pode ser visto, por exemplo, na já apresentada discussão de
Simone Weil (2001) sobre o enraizamento, na qual ela vincula o enraizamento
a uma relação estável da comunidade com o lugar. No Brasil, é encontrado
no trabalho de Ecléa Bosi (1994), para quem “a vida de um grupo se liga
30

estreitamente à morfologia da cidade: esta ligação se desarticula quando a


expansão industrial causa um grau intolerável de desenraizamento” (p. 447).
Essas concepções, tanto de comunidade quanto de território, sofrem uma
profunda mudança com os fenômenos relacionados à globalização, marcada
por processos cada vez mais intensos pelos quais as relações sociais passam
a se dar através de enormes distâncias geográficas, que, muitas vezes, abar-
cam todo o globo. Giddens (1991) chama a esse processo de “desencaixe dos
sistemas sociais”, ou seja, o deslocamento “das relações sociais de contextos
locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de
tempo-espaço” (p. 24). Os lugares, em decorrência disso, desenvolvem para

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este autor um aspecto fantasmagórico pelo qual sua dinâmica passa a ser
definida por processos sociais ocorridos em outros lugares, mesmo a enormes
distâncias. Uma crítica social a este fenômeno pode ser encontrada em Milton
Santos (1997), que defendeu que havia uma crescente perda da autonomia
das regiões e uma consequente necessidade de estudar regiões específicas em
relação com o todo geográfico e social – não se pode mais compreender os
territórios específicos sem relacioná-los ao funcionamento global da sociedade.
Ianni (1997) chama este processo de desterritorialização: “A sociedade global
desterritorializa quase tudo o que encontra pela frente. E o que se mantém
territorializado já não é mais a mesma coisa, muda de aspecto, adquire outro
significado, desfigura-se” (p. 104-105), e aponta entre seus efeitos sobre os
indivíduos e grupos um sentimento de alienação e solidão que marca a psi-
cologia do ser humano moderno (Ianni, 1997, p. 100).
Pode-se ler tais comentários como uma crítica aos efeitos negativos
da desterritorialização sobre a identidade pessoal e coletiva, considerando
a territorialização como uma necessidade psicossocial fundamental. Mas
é necessário questionar se não sobrevive aqui uma concepção de território
como espaço geográfico delimitado, com ênfase em seus aspectos físicos,
e o pressuposto de que essa territorialidade é característica essencial das
relações comunitárias. A noção de território como uma “parcela geográfica
que serve de habitat exclusivo a um grupo humano” (Villar, 1987, p. 1227),
delimitado por fronteiras que podem ser geometricamente definidas, guarda
estreita relação com o surgimento e disseminação da forma do Estado-Nação.
Neste sentido, implica a dominação jurídico-política da terra com exclusão de
outros grupos ou indivíduos, ou seja, a propriedade exclusiva sobre a terra.
Segundo Milton Santos (2005, p. 255), “o território era a base, o fundamento
do Estado-Nação”. Tal concepção do território como espaço de dominação é
confrontada por Lefebvre (1991) com a concepção de território como apro-
priação. A apropriação tem um sentido mais simbólico, relativo à terra como
algo usado e humanizado:
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E ENRAIZAMENTO: diálogos entre a Psicologia Social
Comunitária e a Psicologia Ambiental Latino-Americanas 31

Pode-se dizer de um espaço natural modificado para servir às necessidades


e possibilidades de um grupo, que ele foi apropriado por aquele grupo.
Propriedade no sentido de possessão é, no máximo, uma precondição
necessária, e mais frequentemente um mero epifenômeno da atividade
de apropriação. (Lefebvre, 1991, p. 165)

Ou seja, não é necessário ter a propriedade ou excluir outros grupos para


que um lugar se torne o território de uma comunidade.
Milton Santos (2005), por exemplo, critica a noção clássica de território
herdada da Modernidade e propõe que se considere especialmente a noção de
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território usado, apropriado pela atividade humana: “o território são formas,


mas o território usado são objetos e ações, sinônimo de espaço humano, espaço
habitado” (Santos, 2005, p. 255). Uma mesma área geograficamente delimi-
tada pode ser apropriada de formas distintas e constituir, assim, diferentes
territórios. Milton Santos (2005) ainda considera que alguns lugares podem
servir tanto como espaços contíguos, com dinâmica fundamentalmente local,
quanto espaços em rede, cuja dinâmica é marcada por processos globais hege-
mônicos. O sentido de território, assim, mesmo preservando seu componente
físico, pode ser entendido de forma bastante ampla, como a maneira pela qual
um grupo se apropria do mundo e o interpreta, ou seja, como o quadro de
referência simbólica de um grupo:

É o uso do território, e não o território em si mesmo, que faz dele objeto


da análise social. Trata-se de uma forma impura, um híbrido, uma noção
que, por isso mesmo, carece de constante revisão histórica. O que ele tem
de permanente é ser nosso quadro de vida. (Santos, 2005, p. 255).

Haesbaert (2004a) também critica uma concepção demasiado estreita


de território, afirmando que neste fenômeno se opera continuamente uma
dialética entre propriedade (dominação) e apropriação (simbólica), de formas
historicamente variadas. Este duplo aspecto do território permite ao mesmo
tempo a existência de formas hegemônicas de controle do território e de
formas mais subjetivas, culturais-simbólicas. Isso concede ao território um
sentido muito mais complexo do que as concepções clássicas permitem prever:
“Como decorrência deste raciocínio, é interessante observar que, enquanto
‘espaço-tempo vivido’, o território é sempre múltiplo, ‘diverso e complexo’,
ao contrário do território ‘unifuncional’ proposto pela lógica capitalista hege-
mônica.” (Haesbaert, 2004a, p. 2). Parte daí sua noção de multiterritorialidade,
segundo a qual grupos ou indivíduos “constroem seus territórios na conexão
flexível de territórios multifuncionais e multi-identitários” (Haesbaert, 2004a,
p. 8). Mais que uma coexistência ou sobreposição de territórios, como ocorre
32

com grupos étnicos ou contraculturais no centro das grandes cidades, a multi-


territorialidade é entendida como um processo pelo qual indivíduos ou grupos
experimentam “vários territórios ao mesmo tempo” e, a partir daí, formulam
“uma territorialização efetivamente múltipla” (Haesbaert, 2004b, p. 344).
Não fica estabelecido definitivamente, a partir desta discussão, se o cará-
ter multiterritorial da vida coletiva humana é uma característica propriamente
contemporânea, como parecem propor Milton Santos e Octavio Ianni, ou se
é algo que acompanha as coletividades desde há muitos séculos, como indica
Haesbaert, autor que chega a defender que a organização territorial em rede
já estava presente no início do desenvolvimento das sociedades modernas.

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O caráter territorial das comunidades ganha novo sentido a partir dessas
propostas oriundas da geografia contemporânea. A base territorial do vín-
culo comunitário passa a ser entendida como resultado de formas comuns de
apropriação simbólica do mundo, e não como a coexistência face a face em
determinada região geográfica. Pode-se propor que vínculos comunitários
surjam e se fortaleçam a partir de territorializações quase apenas simbólicas,
como os diversos grupos que se organizam mundialmente em defesa do meio
ambiente, ou que as comunidades virtuais apoiadas pela disseminação da
tecnologia da informação e comunicação constituam de fato comunidades
territorializadas. O território de uma comunidade emerge dessas discussões
como seu quadro socioambiental amplo de referência, do qual a dimensão
física constitui apenas uma parte, cuja importância deve ser considerada a par-
tir do contexto socioambiental mais amplo em que a comunidade se organiza.
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E ENRAIZAMENTO: diálogos entre a Psicologia Social
Comunitária e a Psicologia Ambiental Latino-Americanas 33

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2. NOTAS SOBRE A PSICOLOGIA
NA AMÉRICA LATINA: epistemologia
e transformação social
Fernando Santana de Paiva

Apresentação
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No presente capítulo tenho por objetivo tecer algumas considerações sobre


as particularidades presentes no que fazer da Psicologia social latino-ameri-
cana, que vem se conformando ao longo das últimas décadas. Trata-se, no meu
entender, de uma perspectiva que vem sendo construída como alternativa a um
modelo hegemônico do saber psicológico que surgiu inicialmente nos países
do hemisfério norte. Argumentarei que temos edificado uma epistemologia
ativa e criativa em nosso continente, o que tem possibilitado a proposição de
uma práxis psicossocial ancorada no diálogo, na participação e tendo a trans-
formação social como um horizonte de ação científica e profissional. Saliento
por fim, que os saberes e práticas construídos por esse ramo da psicologia
apresenta-se como uma possibilidade concreta de imaginarmos outras formas
de fazer ciência em nosso campo, e com isto, favorecer a edificação de outros
mundos onde todas e todos sejam sujeitos protagonistas de suas histórias.

2.1 Ciência como uma prática histórica

O ato de elaborar perguntas e se inquietar frente ao mundo desconhe-


cido e a nós mesmos tem sido algo recorrente na história humana. É notória
a tentativa de se construir explicações sobre as relações que estabelecemos
com tudo aquilo que é desconhecido ou buscarmos soluções quando nos
deparamos com necessidades que precisam ser supridas. Assim, compreender
o movimento do planeta terra ao redor do sol e da lua, decifrar o fluxo dos
oceanos e produzir conhecimento para a cura de doenças ou mesmo para o
aperfeiçoamento da colheita, são alguns exemplos dos movimentos humanos
na busca por melhor entender o que passa a sua volta. Além disso, muito antes
do surgimento do microscópio, do telefone e mesmo da internet, havia, como
ainda hoje existe, uma preocupação com questões que versem sobre a condi-
ção da vida humana, as maneiras de se viver individual e coletivamente, bem
como a incessante necessidade humana de expressar-se a partir de símbolos,
palavras e construções.
40

Desde Sócrates, passando por Platão e Aristóteles, notamos uma ten-


tativa em se conhecer as influências da natureza nas relações humanas, por
meio da decomposição dos elementos físico-químicos que constituem nossa
existência. E com isto, observar e compreender como esta imbricada relação
entre homem-mundo-natureza determina o que estamos sendo como sujei-
tos individuais, sociais e políticos. Entre os pensadores helênicos se destaca
também uma posição em relação ao conhecimento, onde o importante não
era a proposição de alguma interferência no ritmo e na dinâmica dos objetos,
tampouco a descoberta de respostas que pudessem transformar radicalmente a
vida em sociedade. Tratava-se, sobretudo, de uma busca constante por indaga-

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ções que tivessem a finalidade de contribuir para o aperfeiçoamento moral dos
sujeitos em prol de uma vida mais justa e harmônica, dentro dos parâmetros
observados à época. Vale destacar que a escravidão e o machismo compunham
o universo tido como “harmônico” por estes e outros pensadores. Não caberia
ao conhecimento indagar sobre esta estrutura, mas se ocupar de perguntas de
natureza metafísica e realizadas especialmente por homens brancos e com
algum tipo de privilégio (Andery et al., 2014).
Realizando um salto histórico, ao considerarmos o período que confor-
mou a Idade Média (século V ao XV), em que o poder econômico, político e
cultural esteve submetido majoritariamente aos dogmas da igreja católica, o
conhecimento esteve fortemente marcado pela racionalidade mítico-religiosa.
Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, dentre outros, buscaram defender,
do ponto de vista ontológico e epistemológico, a importância de um saber que
tivesse como centralidade a ideia de Deus, reforçando, portanto, uma lógica
teocêntrica sobre os processos de compreensão a respeito do humano e do
mundo à sua volta. Seria a partir deste Ser onisciente, onipotente e onipresente
que tudo faria sentido, sendo o conhecimento um ato de iluminação divina e a
razão serviria como um apoio à busca pela verdade concedida por Ele, Deus.
E neste ponto, seria interessante uma pergunta: O que caberia aos homens
neste processo de produção do conhecimento?
Não estava em perspectiva a produção de um sujeito ativo e propositivo,
que tivesse a condição de conhecer para transformar a si e o mundo a sua volta.
As tentativas de se criar um desequilíbrio nesta estrutura mítico-religiosa, a
partir do questionamento sobre o movimento da vida, eram punidas e recha-
çadas com violência. Curiosamente, nos dias atuais, em pleno ano da graça
de 2023, convivemos ainda com segmentos que não apenas negam a ciência e
seu conhecimento, nos levando a certo obscurantismo que pensávamos haver
já superado, mas utilizam de uma retórica religiosa em interface com outras
matrizes discursivas, que tem impossibilitado, em muitos casos, o diálogo e
o exercício crítico do pensamento.
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E ENRAIZAMENTO: diálogos entre a Psicologia Social
Comunitária e a Psicologia Ambiental Latino-Americanas 41

Retornando à uma história, Pereira e Gioia (2014) salientam que em decor-


rência de uma alteração profunda nos modos de produção econômica da vida
que se observou no final do período medieval e que seguiu com o advento da
era moderna, cresceu a insatisfação de setores da sociedade com o aparato de
poder em voga e foi possível a progressiva valorização do humano como matriz
privilegiada para se chegar a uma explicação sobre o mundo. O iluminismo che-
gou a reboque de movimentos de expansão comercial e marítima e da ascensão
de novas vozes que emergiram no cenário social e político, que necessitavam
romper com o antigo regime de explicação e exploração do mundo.
Destaque ao período que vai especialmente dos séculos XVII ao XIX
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que caracterizou a emergência da burguesia, que à época foi considerada


um segmento revolucionário, pois atuara diretamente na transformação de
paradigmas que estruturavam a sociedade europeia. Indubitavelmente, um
marco desse período é o advento do capitalismo como modo de produção
e reprodução social, que alterou profundamente as maneiras de vivermos
no mundo que hoje conhecemos. A reorganização do mundo do trabalho,
que foi gradativamente passando de uma estrutura feudal, de subsistên-
cia e estática para uma racionalidade industrial, rotativa e com acentuada
divisão entre quem detém a força de trabalho e os meios de produção,
criaram também uma nova experiência do humano em relação ao mundo
e consigo próprio.
No bojo destas transformações de ordem econômica, política e cultural,
o papel da ciência moderna ganha relevo, não apenas como movimento de
contemplação humana, mas adquire status de necessidade para se melhor
compreender a natureza, a sociedade e o próprio humano no intuito de asse-
gurar certa estabilidade social e política, especialmente pelas vias da previ-
são e do controle. Afinal de contas, só podemos controlar aquilo que temos
a capacidade de prever! Ao menos esta é uma das fantasias funcionais da
racionalidade do homem moderno. Certamente é possível e necessário o exer-
cício do planejamento, mas nem tudo é passível de controle. Há sempre uma
imprevisibilidade no decorrer da vida e isto precisa ser considerado, inclusive,
no fazer científico.
Essa ideia de uma ciência de caráter mais tecnicista, em busca de resul-
tados, que se afastasse da filosofia como ato de reflexão se reforçou como
modelo ideal de produção do conhecimento durante este período, influenciando
assim um conjunto de disciplinas, que passaram a se ocupar das questões do
humano, desde a biologia, a física e a química, mas também a sociologia, a
medicina e a própria psicologia. Podemos dizer que somos herdeiros de um
movimento que buscara assegurar certo padrão de estabilidade para a ciência,
com o intuito de se afastar do passado mítico-religioso, e, ao mesmo tempo,
42

se associar ao projeto de poder em voga, que estava calcado na ética liberal,


burguesa, classista e colonizadora.
O modelo de ciência que mais expressa esse período é possivelmente
a escola positivista moldada por August Comte. Trata-se de uma tradição
científica que acreditava que a boa ciência seria realizada por cientistas
neutros, que não se envolvem ética e politicamente com o campo e os
objetos/sujeitos da pesquisa. Para tanto, tendem a valorizar sobretudo uma
ciência de natureza laboratorial, asséptica, com controle do que chamam
de variáveis e com a boa e velha conhecida ideia do distanciamento da/o
pesquisador/a em relação ao que/quem se pesquisa. A utilidade do conhe-

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cimento, dentro desta perspectiva, está na sua capacidade de favorecer
a organização e o progresso social, sem que sejam necessárias grandes
rupturas ou revoluções. As influências desta matriz de pensamento cientí-
fico podem ser notadas na própria bandeira brasileira que estampa a frase
“Ordem e Progresso”!
Nesse ponto, cabem mais duas questões: É realmente possível à/ao pes-
quisador/a assegurar a neutralidade no seu quefazer? Qual a posição ético-
-política que se esconde por trás desta suposta neutralidade?
A esse respeito, recorremos a Paulo Freire (1999), conhecido educador
popular brasileiro, que não aceitava a possibilidade de nos considerarmos
como seres neutros. A pessoa pode acreditar que é neutra, mas a suposta
neutralidade, nos lembra Freire (1999), revela uma omissão ou endossamento
da lógica dominante presente nas relações sociais e políticas. A ideia de um
saber neutro, ou seja, não determinado pela posição social, pelas ideias e
valores de quem o produz, em verdade, sustenta uma visão a-histórica acerca
dos processos humanos e ao mesmo tempo legitima ideologias que embasam
práticas de poder e dominação em sociedades como a que nos inscrevemos
no Brasil e nos demais países do continente latino-americano. Vale salientar
que a crítica à neutralidade não é uma crítica ao rigor metodológico, mas uma
reconfiguração sobre a compreensão do processo que envolve a produção do
conhecimento científico.
Nesta seara, ao longo da história, foi se produzindo uma ciência que
responde aos desígnios do seu tempo. Portanto, ao aplicarmos uma olhar
histórico-crítico sobre o percurso da ciência, não cabe uma visão que sustente
uma prática neutra e alheia à realidade social, econômica e cultural. Por outro
lado, a história é marcada por rupturas e continuidades, e, em meio ao poder
que visa dominar, explorar e espoliar, surgem também desejos insurgentes
e outras possibilidades de produção de conhecimentos localizados desde as
experiências dos povos subalternizados e que almejam uma ciência encarnada,
rebelde e libertária.
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E ENRAIZAMENTO: diálogos entre a Psicologia Social
Comunitária e a Psicologia Ambiental Latino-Americanas 43

2.2 Epistemologias do Sul e a produção de uma outra ciência

Nuestro Norte es el Sur é uma expressão cunhada pelo artista plástico


uruguaio Joaquim Torres Garcia que se reflete em uma de suas obras mais
conhecidas, o Mapa Invertido da América do Sul. A provocação realizada por
ele sinaliza o desejo de que nós, sujeitos do sul global, possamos nos cons-
cientizar de que não precisamos de um norte, que seja imposto por um outro
alheio a nossa vontade, que objetiva efetivamente adestrar nossa experiência
estética, ética e política. O artista uruguaio propõe a inversão de nosso mapa
nos forçando a ter como referência o Sul, ou seja, nós mesmos, tidos como
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artífices de nossa história.


E qual a relação que esta provocação estética possui com a produção de
uma outra maneira de se pensar e fazer ciência? Conforme já salientado, a
produção do conhecimento é histórica e socialmente determinada, e, portanto,
a prática científica está imersa em um contínuum de relações que expressam
uma dada realidade social em constante movimento. É importante salientar
que a realidade dos povos latino-americanos é atravessada por uma história
particular, que carrega as marcas da colonização na produção de nossas identi-
dades, modos de vida, que vão desde a diversidade cultural que nos conforma,
mas também na institucionalização da arbitrariedade, do autoritarismo e das
violências de ordens variadas.
Fanon (2005) e Quijano (2009) são enfáticos ao destacarem como os
efeitos da colonização devem ser objeto de análise e ação revolucionária por
todo aquele que almeja um conhecimento e uma prática emancipatória. É
fundamental que busquemos compreender em que medida nosso histórico
colonizador contribuiu para dividir o mundo entre civilizados e bárbaros,
evoluídos e selvagens, superiores e inferiores, e repercutiu fortemente na
constituição de nossas maneiras de nos dizermos como sujeitos individuais e
coletivos, de projetarmos nosso futuro e interpretarmos nosso presente.
Souza Santos (2009) considera que o experimento conhecido como ciên-
cia moderna se pautou na produção de saberes abissais, que correspondeu a
um processo de separação entre o Eu (superior) e o Outro (selvagem, mestiço
e inferior). Uma linha simbólica que é imersa na linguagem e favorece a sedi-
mentação de um ser/instituição que detém o poder e a capacidade de analisar
e dizer sobre o outro. Em nossa história de colonização, o outro somos nós! E,
portanto, o conhecimento produzido em nossa realidade foi sempre um saber
construído sob lentes, categorias, conceitos e teorias que versavam sobre o
modelo europeu, branco e pretensamente civilizado.
A gramática do conhecimento moderno, sob o rótulo colonizador, contri-
buiu para a adoção de um paradigma que determinou o que seria científico e
44

não científico. Assim, as experiências e os saberes produzidos pelos sujeitos


e grupos sociais colonizados, a partir do universo das crenças e das práticas
consideradas estranhas ao olhar “europeu”, foram tratadas como incompreen-
síveis, mágicas ou idólatras. Essa maneira de tratar o conhecimento do outro
exótico possibilitou mesmo a própria negação da natureza humana dos seus
agentes, especialmente indígenas e negros. A orgulhosa ciência, determinista
e positiva de finais do século XIX, classificou como “primitivos” aos povos
que não eram ocidentais, sobretudo os estranhos povos da América (Souza
Santos, 2009).
As ciências humanas e sociais foram importantes instrumentos na saga

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ibérica conquistadora, na medida em que o conhecimento produzido possi-
bilitou a constituição de perfis de subjetividades que sustentavam as relações
de dominação e exploração vivenciados em nosso continente. É o que Castro-
-Gomez (2000) denominou como a “invenção do outro”. Outro como o colo-
nizado: leia-se, os corpos negros e indígenas que eram lidos sob uma ótica de
dominação que nega, violenta e silencia. Souza Santos (2009) aponta ainda que
tendo como base uma divisão que separa aquele que sabe e produz verdades
e o outro que é tido como primitivo/inferior, observamos uma violência que
surge em razão da própria ciência e seu modo de descrever e predizer a vida
social. Ou seja, os saberes historicamente determinados foram empregados
politicamente para a negação de parte da humanidade de uns em detrimento
da manutenção e sustentação de poder e privilégios de outros.
Em Nuestra America os efeitos deste movimento foram percebidos tam-
bém a partir daquilo que Lander (2000) considera como a colonização do
pensamento que decorre da aventura sanguinária de colonização do mundo.
O experimento social que se produziu entre nós, categorizados como latino-a-
mericanos, estabeleceu uma espécie de lógica do Espelho Invertido, uma vez
que ao nos olharmos de frente, terminamos por nos deparar com a imagem
do homem branco, heterossexual e europeu. Ou seja, conformaram-se as
condições objetivas e simbólicas para que nossas identidades e subjetividades
fossem forjadas desde uma lente específica: colonizadora/dominadora.
A ciência que se produziu em meio a este cenário refletiu epistemolo-
gicamente a racionalidade colonizadora, violenta e opressora. Não à toa os
conhecimentos que serão produzidos no Brasil ainda durante o século XIX
contribuirão para legitimar uma concepção racista e de inferiorização dos
sujeitos e grupos sociais considerados mestiços, de ascendência negra e indí-
gena. Refiro-me, como exemplo, aos trabalhos da Escola baiana de Medicina,
com destaque para o psiquiatra brasileiro Nina Rodrigues, que em diálogo com
pesquisadores de outros pontos do norte global já salientava as inferioridades
que se notavam entre tais sujeitos brasileiros, contribuindo para uma análise
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E ENRAIZAMENTO: diálogos entre a Psicologia Social
Comunitária e a Psicologia Ambiental Latino-Americanas 45

que incorria no processo de patologização de determinados comportamentos


e mesmo a criminalização de certos sujeitos em virtude da mestiçagem. Algo
que ainda hoje observamos em algumas áreas do conhecimento, mesmo com
avanços observados nos debates em torno da igualdade, respeito e dignidade
para todo o ser humano.
Conforme nos adverte Fals-Borda (2014), a ciência não está para além
de quem a produz. Isto quer dizer que a/o cientista é também um sujeito
historicamente marcado, o que influencia diretamente as temáticas pesqui-
sadas, a capacidade de compreensão de determinados fenômenos e mesmo o
silenciamento ou negligência do conhecimento científico face a questões que
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porventura podem parecer de menor importância ou que não fazem parte do


rol de experiências de quem constrói este tipo de conhecimento. E por esta
razão, o encontro com a diferença e a possibilidade de novas vozes ecoarem
no mundo científico tem sido muito importante para a edificação de episte-
mologias ativas, criativas e propositivas. É o caso, na atualidade, das contri-
buições oriundas de campos como os estudos feministas, raciais, indígenas
e da diversidade sexual.
Nesse sentido, a despeito deste histórico opressor que caracterizou o uso
da ciência no projeto de dominação global, ao longo das últimas décadas,
temos acompanhado o surgimento de uma subalternidade resistente e criativa
que tem tentado produzir uma outra narrativa com/em/sobre os povos do sul.
Até mesmo a hegemônica compreensão ocidental do mundo tem sido ques-
tionada. Afinal de contas, existem diferenças nas experiências das pessoas que
vivem na América Latina, África e Ásia em relação ao padrão europeu/esta-
dunidense? Será mesmo que a vida humana se restringe a uma única maneira
de se viver no planeta? A edificação de uma epistemologia resistente e criativa
nos diferentes cenários subalternizados tem apontado para a necessidade de
alargarmos nossos horizontes de análises e compreensões sobre as diversas
formas humanas de produzir conhecimento e alternativas para nossas vidas.
A própria ciência pode se beneficiar com este movimento na medida em
que passe a incorporar novas maneiras de analisar e intervir sobre a realidade,
considerando diferentes pontos de vista, ampliando as vozes que podem e
devem ser ouvidas e partícipes do processo de falar sobre algo neste mundo.
Reside aí a ideia de uma ciência contra hegemônica e rebelde que efetivamente
pode abrir fissuras em estruturas rígidas que têm sido empregadas ao longo
de nossa história para controlar e dominar, e não efetivamente empregar o
conhecimento como ferramenta necessária para a emancipação. Em meio
a este grande movimento, a Psicologia tem se modificado enormemente ao
longo das últimas décadas e constituído um saber próprio e concatenado com
as necessidades e desejos da população latino-americana.
46

2.3 Psicologia latino-americana e seu compromisso com a


transformação social

Em plena pandemia da covid-191, as já enormes desigualdades estruturais


de nosso continente se aprofundaram. De acordo com a Comissão Econômica
para a América Latina e o Caribe (CEPAL), a pobreza extrema terá chegado
ao nível mais alto desde o ano 2000, que é considerada a forma mais intensa
de escassez de bens para se viver, na qual nem as necessidades básicas são
asseguradas. Estima-se que 12,5% da população viva sob estas condições
neste momento, o que representa um a cada oito latino-americanos. Ademais,

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33,7% da população está atualmente vivendo em condições de pobreza, e isto
significa que o total de pessoas pobres chegou a 209 milhões no ano de 2020,
o que representa 22 milhões a mais do que em 2019.
Em um relatório intitulado A Distância que nos une, a Oxfam (2017)
aponta que no Brasil, os 5% mais ricos detêm a mesma fatia de renda dos
demais 95% restantes da população. Como ilustração a este escárnio, de
acordo com o referido relatório, uma mulher trabalhadora que ganhe um
salário mínimo mensal levaria 19 anos para receber aproximadamente o que
um super-rico ganha em um único mês, o que representa uma das maiores
desigualdades socioeconômicas do globo. Esses números podem variar de
acordo com as agências que os calculam, e, portanto, a Unafisco Nacional
(2020) chega mesmo a denunciar que há uma extrema desigualdade na distri-
buição da renda que gera riqueza patrimonial no Brasil, o que pode evidenciar
uma superconcentração de renda em um estrato que representa apenas 0,1%
da população do País.
Vale ainda ressaltar que nosso continente, incluindo o Brasil, é assolado
com elevadas taxas de violências destinadas a públicos diversos, mas com
destaque para os corpos negros e indígenas, assim como as mulheres e a
população LGBTI+. O racismo em suas diferentes nuances e o patriarcado
que contribuem para a organização racial-sexual da vida, pela vida da domi-
nação e da opressão, são dilemas que se expressam no cotidiano dos sujeitos,
grupos e movimentos sociais representantes das classes subalternas. O próprio
Estado 2é muitas vezes o responsável por violentar tais sujeitos, como se pode

1 Até o início de julho de 2023, a América Latina contabilizou mais de 2 milhões de óbitos decorrentes do novo
coronavírus (covid-19). No Brasil, neste mesmo período, mais de 700 mil pessoas já haviam perdido suas
vidas em razão do vírus. Trata-se de uma grave crise de saúde pública, econômica e humanitária que tem
provocado alterações drásticas na organização de nossas sociedades e que perdurará ainda nos próximos
anos, com o acentuamento da pobreza e das desigualdades sociais.
2 Durante a escrita do presente texto, ocorreu no dia 06/05/21, uma operação policial na comunidade do
Jacarezinho, Zona Norte do Rio de Janeiro. Essa ação tem sido considerada como um verdadeiro massacre
patrocinado pelo governo do Estado do Rio de Janeiro, e contabilizou até o presente momento a morte de
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E ENRAIZAMENTO: diálogos entre a Psicologia Social
Comunitária e a Psicologia Ambiental Latino-Americanas 47

notar a partir de operações do aparato da segurança pública, que tem realizado


um verdadeiro extermínio da juventude negra em nosso país, sob o lema de
“guerra às drogas”.
Indubitavelmente, face a esse cenário de crise social, política e humani-
tária que vivemos, consideramos pertinente nos perguntarmos: O que a Psi-
cologia tem a ver com tudo isto? Será que a psicologia ainda é conivente com
o poder colonizador que se expressa em nossas experiências como sujeitos e
coletividades? Em alguma medida a Psicologia pode contribuir para a supe-
ração das condições que violentam e espoliam os povos do nosso continente?
De acordo com Pavon-Cuellar e Mentinis (2020), no decorrer do século
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XX, a Psicologia calcou sua produção de conhecimento a partir de modelos


explicativos, que possuem estreita relação com o padrão de homem preco-
nizado pela sociedade burguesa e capitalista. As concepções sobre sujeito,
subjetividade, comportamento, crenças, atitudes, dentre outras categorias
psicológicas, permaneceram circunscritas a um certo tipo ideal de homem e
como ele deve viver em sociedade. Conforme já advertira Marx, o capitalismo
não cria necessariamente uma mercadoria para o sujeito, mas um sujeito para
a mercadoria. E assim, dentre algumas estratégias exitosas de exercício do
poder, nada mais efetivo talvez do que se valer da produção de um conheci-
mento que possa sustentar certo padrão de sociedade e de humano que seja
funcional aos interesses e deleites de uma classe social dominante, econômica,
cultural e subjetivamente. Afinal de contas, como manter uma ordem social
sem o acordo tácito dos sujeitos que a compõe?
A produção de um saber específico sobre os sujeitos que constituem o
tecido social no âmbito das sociedades capitalistas, tem contribuído para a
criação de técnicas que incidem sobre as subjetividades pela via da resignação,
conformismo, individualismo, fantasias e ideologias pelas quais a Psicologia
pode contribuir na medida em que se ocupa de adaptar/mudar o sujeito sem
preocupar-se em contribuir para transformar a sociedade na qual ele se insere.
Ademais, no decorrer de nossa história, a psicologia no continente latino-a-
mericano foi caudatária do projeto colonizador, e propiciou ferramentas teó-
rico-metodológicas muito efetivas destinadas à patologização e o controle de
sujeitos considerados anormais, não docilizados e insurgentes (Pavón-Cuellar
& Mentinis, 2020). Portanto, é importante salientar que a Psicologia foi alheia
e mesmo míope às necessidades da população latino-americana durante um
longo período de sua história (Cuellar, 2017; Pavón-Cuellar, 2017).
Ainda a esse respeito, temos de nos lembrar, assim como Martín-Baró
(2017), que a Psicologia nasceu nos contextos europeu e norte-americano,
28 pessoas, sendo considerada a ação policial mais letal da história do Estado. https://brasil.elpais.com/
brasil/2021-05-07/maioria-dos-mortos-na-chacina-do-jacarezinho-nao-era-suspeita-em-investigacao-que-
-motivou-a-acao-policial.html
48

e que o conhecimento psicológico aplicado no cenário latino-americano foi


durante muitas décadas importado de maneira a-crítica para nossa realidade
social tão particular. É o que Martín-Baró (2017) denominou de ‘mimetismo
científico’. Não se trata de negar a vasta produção científica e profissional
desenvolvida em diferentes países do norte global, mas também não se pode
simplesmente reproduzir e/ou transpor para nosso contexto, aquilo que se
produz em outra realidade social, cultural e econômica sob pena de incorrer-
mos em uma violência epistemológica (Teo, 2010).
Em meio a este cenário, alguns questionamentos foram essenciais,
como o realizado pelo próprio Martín-Baró (1997), que nos advertira sobre

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a importância de pensarmos no carácter do conhecimento produzido pela
Psicologia. Afinal de contas ele serve para que? Para quem efetivamente
trabalhamos? O que almejamos produzir historicamente com nossa prática
científica e profissional?
Face a este histórico em que os saberes da Psicologia estiveram mais
a serviço do poder e dos interesses das classes dominantes e distantes das
necessidades das classes subalternas, observamos, em especial a partir dos
anos 60, mas principalmente durante as décadas de 70 e 80 do século XX, a
emergência de perspectivas críticas no âmbito da psicologia produzida em
nosso continente, que paulatinamente passaram a se ocupar com mais efetivi-
dade das mazelas, desigualdades e opressões que assolam nosso povo. Dentre
os diferentes movimentos de contestação que passaram a existir não apenas
no cenário latino-americano, mas também na Europa, uma reconfiguração
da práxis psicológica culminou na proposição de novas articulações teórico-
-metodológicas, bem como um maior questionamento sobre as implicações
ético-políticas de nosso quefazer sobre a realidade social.
De acordo com Montero (2004) podemos compreender a Psicologia
latino-americana como um movimento que engloba diferentes ramos das
Psicologias3 desenvolvidas em nosso continente. Como resposta à crise da
psicologia, e, em especial da psicologia social, emergiu em nossa reali-
dade sociopolítica e cultural perspectivas como a Psicologia Comunitária,
a Psicologia da libertação, a Psicologia crítica e a Psicologia política. Em
meio a esse movimento de contestação, que passou a se preocupar com a
produção de uma ciência psicológica voltada para compreender a realidade
social na qual estava inscrita, observamos a tentativa de se construir uma

3 Em razão dos limites do próprio texto, gostaria apenas de ressaltar que ao me referir ao termo “Psicologia
latino-americana” no singular, não estou tratando de um campo único e fechado, mas avalio a necessidade
de assumirmos que coexistem diferentes psicologias latino-americanas, com distintas orientações teórico-
-metodológicas e mesmo ético-políticas. Entretanto, avalio que existem algumas características construídas
historicamente que são convergentes em meio às possíveis diferenças e é exatamente estes aspectos que
procuro, de maneira limitada, explorar nesta seção do texto.
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E ENRAIZAMENTO: diálogos entre a Psicologia Social
Comunitária e a Psicologia Ambiental Latino-Americanas 49

nova epistemologia, ou seja, uma nova maneira de se produzir conhecimento


que rompesse com os desígnios da chamada ciência hegemônica, de matriz
positivista, asséptica e alheia às relações ideológicas de poder e domina-
ção. Ganha relevo uma psicologia de vertente crítica, propositiva e que vai
assumindo a necessidade de um fazer científico que tenha como horizonte
a transformação das condições objetivas e subjetivas da vida dos sujeitos
com os quais atuamos.
Nesse contexto, é importante destacar os profícuos diálogos que pas-
saram a ser realizados com teorias e práticas emergentes à época em nosso
continente, como a pedagogia da libertação de Paulo Freire, a teologia da
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libertação e as experiências das comunidades eclesiásticas de base, além do


diálogo estabelecido com a sociologia crítica ou militante de Orlando Fals
Borda. Ademais, a paulatina integração de experiências que estavam em anda-
mento pelo continente contribuiu para fortalecer os parâmetros de um quefazer
científico contrário às perspectivas tradicionais da área, além de realizar um
trabalho de crítica rigorosa à própria Psicologia.
As/os precursores do que se convencionou chamar de uma Psicologia
social latino-americana (Lane & Sawaia, 1995; Montero, 2010; Martín-Baró,
2017) são uníssimos em afirmar que será a partir de nossa realidade é que
conseguiremos construir com/em relação aos sujeitos, nossas práticas, méto-
dos e teorias que possam propor alternativas ao abismo social em que nos
inscrevemos. E esta tem sido talvez uma das marcas de algumas psicologias
latino-americanas produzidas, pois de acordo com Montero (2010), se existe
algo que distingue uma certa psicologia (social) latino-americana, é sua incli-
nação para a crítica e sua prática que visa a transformação social.
Montero (2001) destaca ainda a necessidade de não perdermos de vista
as dimensões da ética e da política presentes na práxis científica. Ética se
expressa nas relações que se constroem entre os seres, vistos como sujeitos
dialógicos e que podem construir alternativas para suas vidas. Portanto, está
em jogo aqui a necessidade de coproduzirmos relações e encontros éticos em
nossas intervenções profissionais. E isto significa o reconhecimento do outro
como protagonista de sua vida e como potencialmente capaz de criar e alterar
os caminhos impostos pelo projeto de dominação e exploração em voga.
Certamente isto nos leva a pensar nas relações que estabelecemos entre
pesquisadores e sujeitos da pesquisa. Fals Borda (2014) contribui com este
debate na medida em que propõe uma relação dialógica e que envolva os
sujeitos, grupos e movimentos sociais na produção de uma ciência que seja
rebelde. Isso significa a adoção de uma perspectiva que não se acomoda
face a realidade injusta e desigual que vivemos no âmbito das sociedades
capitalistas de carácter periférico, como é o caso da América Latina. A
50

importância da ciência é justamente a construção de conhecimentos que


possam ser empregados como ferramentas para processos de transformação
da vida social.
Nesse sentido, a produção do conhecimento apresenta também uma
dimensão política, e esta deve ser explicitada, na medida em que almejamos
interferir nos rumos das sociedades em que nos inscrevemos. Se eximir desta
responsabilidade, acomodando-se sob o escudo da neutralidade e se conci-
liando com o projeto colonizador ainda em marcha, mesmo que travestido
de outros nomes como globalização, é a mera reprodução de um novo/velho
neo-positivismo ou outros modismos acadêmicos, que porventura ainda insis-

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tem em permanecer entre nós, que apostam na ordem e no progresso como
ethos de existência, o que certamente favorece o bem-estar de alguns poucos
em detrimento do sofrimento de muitos (Montero, 2001).
E nessa direção, a Psicologia social latino-americana, guardadas as par-
ticularidades encontradas em cada país do continente, tem assumido o com-
promisso político de construir uma práxis científica que não apenas propicie
a contemplação ou descrição do que se passa em/com as pessoas. Há uma
intencionalidade no quefazer profissional que possa transformar nossa capa-
cidade de compreender o mundo e a nós mesmos, ao passo que empreguemos
o conhecimento produzido como um motor de superação da ordem instituída
e do poder asfixiante. Ganha relevância o estudo de fatores psicossociais que
contribuam para que os sujeitos possam exercer de maneira mais consciente
e ativa o controle sobre seus ambientes, comunidades, visando a construção
de alternativas aos problemas que os afligem
O sujeito do conhecimento é efetivamente o sujeito da vida real, inserido,
preferencialmente, nas comunidades periféricas e/ou que apresentam em seus
corpos as nuances da dominação e da exploração. O método de produção do
conhecimento empregado reconhece os saberes populares e institui a participa-
ção e o diálogo como elementos centrais do processo de feitura das pesquisas
e práticas interventivas. Ou seja, conforme salientado acima, ganha importân-
cia a dimensão dialógica no processo que envolve pesquisadores e sujeitos
da investigação, o que nos leva a contestar o poder da/do pesquisador/a em
produzir um conhecimento que seja considerado único, sem o envolvimento
daqueles sobre quem está se falando. A ideia de uma ciência psicológica feita
por um eu que fala sobre o outro foi e deve continuar sendo definitivamente
contestada. E se o projeto colonizador-capitalista instituiu a racionalidade de
um saber único, estável e universal, a psicologia latino-americana tem sido
capaz de romper com esta marca, tornando-se eminentemente interdisciplinar,
ou seja, um conhecimento que se produz no encontro entre os diferentes. A
leitura unidisciplinar é vista como insuficiente para dizermos algo sobre as
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E ENRAIZAMENTO: diálogos entre a Psicologia Social
Comunitária e a Psicologia Ambiental Latino-Americanas 51

experiências plurais, diversas e ao mesmo tempo singulares dos sujeitos com


os quais trabalhamos.
Um elemento que tem sido muito valorizado na produção de conhe-
cimento é justamente a reflexividade, que é a capacidade de examinarmos
constantemente o que realizamos, e com isto, possibilitar um processo de
revisão constante sobre o nosso quefazer. Portanto, devemos ter a capacidade
em compartilhar o protagonismo das ações com os sujeitos, grupos e movi-
mentos sociais com os quais atuamos. É necessário também que tenhamos
responsabilidade por aquilo que desenvolvemos, o que exige de nós a recusa
das fake news, dos pensamentos mágicos e das saídas fáceis. Tampouco será
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prudente buscarmos guarita na apresentação impessoal de dados, gráficos,


discussões estéreis e a entrega impessoal de resultados de investigações que
pouco sentido possui para as pessoas e comunidades (Montero, 2004).
Wiesenfeld (2014), ao analisar mais especificamente o campo da Psicolo-
gia Comunitária, considera que devemos almejar a redução das inequidades e
nutrir o desenvolvimento teórico e metodológico com base em práticas contex-
tualizadas, e retroalimentá-las com os conhecimentos produzidos de maneira
dialógica e participativa. É o que temos observado como uma característica
central nas diferentes experiências realizadas por psicólogas e psicólogos do
nosso continente, onde se busca abordar os problemas psicossociais pela via da
participação e da autogestão, assim como a integração dos saberes científicos
e populares, e a vinculação entre teoria e prática. Nessa perspectiva acredito
que podemos dizer que temos desenvolvido ao longo das últimas décadas uma
outra epistemologia e uma ação crítica e criativa que tem potencial para nos
libertar de cânones científicos apregoados e cristalizados em outras latitudes,
climas e cores, que ao longo da história foram responsáveis por imobilizar e
retaliar processos de subjetivação e consciências de contestação.
A Psicologia social latino-americana não é unívoca, pois expressa a plura-
lidade de pensamentos e possibilidades de agir frente ao mundo, sendo também
atravessada pelas condições concretas sob as quais os trabalhos são desenvolvi-
dos nos diferentes países do continente. A despeito de possíveis diferenças, há
possivelmente um desejo que nos une, que é a realização de ações que estejam
cada vez mais sintonizadas com os anseios e os sonhos das pessoas concretas,
que a despeito das intempéries da vida, seguem sendo capazes de projetar
um outro mundo para si e para o outro. A superação do capital/capitalismo
e de toda e qualquer racionalidade que nos apequene e não favoreça nossa
potencialização como sujeitos da nossa história, também são horizontes que
devem, a meu ver, guiar nossos passos. A psicologia social latino-americana
e os campos com os quais ela estabelece diálogo podem continuar sendo boas
apostas para seguirmos caminhando nesta e em outras direções.
52

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3. FATALISMO, PERSPECTIVA DE
FUTURO E ELABORAÇÃO DO DESTINO:
reflexões sob a ótica das populações
marginalizadas na América Latina
Antonio Euzébios Filho
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

O fatalismo é um conceito que atravessa a Psicologia Social Comunitária


e a Psicologia Ambiental Latino-Americana, especialmente, quando se ocu-
pam em compreender as relações de poder presentes nos processos grupais, a
construção dos processos identitários e da consciência política, a elaboração
da memória histórica, o entendimento do presente e do futuro, entre outros
aspectos que se ligam ao tema.
Qual a ideia que temos sobre o nosso destino? E quais as repercus-
sões desta ideia nas ações, sentimentos e comportamentos das pessoas e
grupos? São estas as questões que o conceito de fatalismo em Martín-Baró
buscam elucidar.
Para Martín-Baró (1998), o fatalismo é um fenômeno psicossocial que
se materializa nas três dimensões (ideias, sentimentos e comportamentos),
conformado em uma noção estática de destino, em um sentimento de perple-
xidade e resignação frente às desigualdades sociais, contribuindo, finalmente,
para fragilizar o tecido social que liga o sujeito ao grupo e/ou comunidade,
desmobilizando politicamente as classes populares.
Abaixo, reproduzimos o quadro elaborado por Martin-Baró (1998) que
resume as ideias, sentimentos e comportamentos fatalistas.

Quadro 1 – Elementos mais característicos do fatalismo latino-americano

Ideias Sentimentos Comportamentos

• Conformação e submissão;
• Resignação frente ao próprio
• A vida está predefinida; • Tendência a não fazer esforços
destino;
• Minha própria ação não pode mudar para mudar a realidade, tendência
• Não se deixar afetar nem se
este destino fatal; à passividade;
emocionar pelos sucessos da vida;
• Um Deus distante e todo poderoso • Presentismo, sem memória do
• Aceitação do sofrimento
define o destino de cada pessoa; passado e sem planificação do
causado;
futuro;

Fonte: Retirado de Martín-Baró (1998, p. 79, tradução nossa).


56

O fatalismo, segundo Martín-Baró, é um fenômeno psicossocial intima-


mente ligado ao papel da religião na sociedade – como instituição associada
ao poder e ao Estado, não necessariamente como sinônimo de fé1 – e seu
papel na conformação de um destino fatal, guiado por um Deus distante e
todo poderoso. Como diz o próprio autor:

O fatalismo supõe a mitologia das forças históricas como natureza ou como


Deus. Como aponta Freire (1970, 63), “no mundo mágico ou mítico em
que a consciência oprimida se encontra, especialmente o camponês, quase
imerso na natureza, encontra no sofrimento, produto da exploração a que

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está sujeito, a vontade de Deus, como se fosse o criador desta “desordem
organizada”. A alienação da consciência no fatalismo é perpetuada por
referência a símbolos absolutos, inalcançáveis e imutáveis, o que envolve
até mesmo a manipulação ideológica da simbologia cristã. (Martín-Baró,
1998, p. 97. Tradução nossa)

Como podemos notar, o fatalismo se manifesta como uma ideia mística


acerca de um destino pré-determinado por uma entidade inatingível, que se
sobrepõe à própria materialidade da vida. O fatalismo também se manifesta
em uma visão presentista, que dificulta a capacidade de planejamento de
futuro, que altera a perspectiva temporal e desfigura a memória histórica de um
grupo e/ou comunidade. O fatalismo cria barreiras para acessar os caminhos
que ligam o passado ao presente, dificultando o planejamento de um futuro
melhor, que produza esperança e união.
Para Martín-Baró (1998), o fatalismo é um fenômeno fundado nas estru-
turas de um modo de sociabilidade que, se criou determinadas condições
históricas de mobilidade social e econômica, se esforça muito (com relativo
sucesso) para ter controle sobre quem pode e quem não pode usufruir desta
mesma mobilidade: é importante lembrar que as fronteiras entre classes sociais
e as hierarquias, embora muitas vezes complexas, são bem demarcadas no
capitalismo. Assim, é necessário compreender o fatalismo como uma ferra-
menta ideológica do capital, que atua no convencimento de que o privilégio
da mobilidade social e econômica é para poucos e somente é alcançado por

1 Martín-Baró (1985), de uma forma geral, apoiado na Teologia da Libertação, entende que a consciência
religiosa se manifesta de duas maneiras: (1) como fé intimista e milagreira; (2) por uma fé libertadora. A
primeira está associada ao fatalismo e se manifesta como consequência do individualismo burguês, a
segunda se revela pela fé em um mundo melhor, como uma utopia que representa um processo de cons-
cientização, uma práxis política oriunda do reconhecimento das relações de poder, violentas e segregatórias
produzidas pela sociedade. A fé intimista e milagreira está associada à religião como uma instituição ligada
ao poder político da classe dominante. A fé libertadora é relacionada com uma espiritualidade que se liga à
materialidade, manifestada como luta por justiça social. Para uma discussão a respeito, consultar o mesmo
Martín-Baró (1985).
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E ENRAIZAMENTO: diálogos entre a Psicologia Social
Comunitária e a Psicologia Ambiental Latino-Americanas 57

meio do esforço pessoal. O fatalismo atua para convencimento de que há


os fracassados e vencedores no mundo, de que há os predestinados, o povo
eleito, e aqueles que simplesmente devem se conformam com o destino. Deus
quis assim.
Martín-Baró (1998) pontua, ainda, que o fatalismo deve ser compreen-
dido desde uma perspectiva latino-americana, considerando as especificidades
do processo de dominação no continente, a história de colonização violenta,
de apagamento de tradições culturais, entre outras veias abertas da América
Latina. Com a preocupação de contextualizar o entendimento sobre o fata-
lismo, o autor se apoia na Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire para ilustrar
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a condição de opressão no cenário latino-americano.

Paulo Freire (1970) mostrou o papel desempenhado pelo fatalismo como


parte da ideologia dos oprimidos. Os oprimidos se encontram imersos em
uma realidade de despossessão e impotência que lhes é apresentada como
uma situação limite que não podem superar. Nestas condições, não sendo
capaz de compreender as raízes de seu estado, sua consciência adota uma
atitude fatalista, transformando a história em natureza. Além disso, diante
deste destino fatal, o oprimido interpreta sua impotência como prova de
que lhe falta valor pessoal, em contraste com a figura poderosa do opressor
a quem tudo parece possível; daí que o oprimido experimenta uma atração
irresistível pelo opressor, que se torna seu modelo de identificação, e diante
destes imperativos ele mostra uma docilidade quase total. (Martín-Baró,
1998, p. 96. Tradução nossa)

A relação entre opressor e oprimido não é apenas retratada sob a ótica da


dominação econômica, mas da submissão cultural e de “atração irresistível”
(Martín-Baró, 1998, p. 96) ao modo de vida do opressor, trazendo repercus-
sões na desconstrução da identidade sociopolítica das classes populares e
na elaboração de uma imagem depreciativa de si mesmo e dos outros igual-
mente marginalizados.
O fatalismo se alimenta de um cenário de perplexidade e desorientação
em relação ao futuro, de desfiguramento de um horizonte de mudança social,
quando os grupos de resistência estão fragmentados, quando as perspectivas
de melhoria no futuro são difíceis de serem elaboradas. Sem passado e sem
futuro, o sujeito do presente vê a desigualdade econômica ser confirmada
na sua própria vida imersa na pobreza e na luta pela sobrevivência. A des-
valorização social da própria existência do oprimido se confirma na falta de
respeito em relação à garantia de seus direitos básicos, no olhar que rebaixa e
reduz o sujeito marginalizado ao fracasso, na piada jocosa sobre sua condição
social, por exemplo, na desqualificação da cultura tradicional de um povo
58

marginalizado, na produção da invisibilidade social e da relação instrumental


com o fracassado.
Na ideologia liberal, um fracassado não merece respeito, talvez pena.
É na melhor das hipóteses, vítima do assistencialismo – prática, diga-se de
passagem, que não altera relação de poder: o fracassado, neste caso, é assistido
em uma condição específica, que não altera de maneira alguma sua condição
social, mas que se manifesta como ajuda, um favor, não como direito. Um
favor que configura uma relação de dependência e dominação entre quem doa
e quem recebe. O assistencialismo, portanto, não combina com emancipação
(Euzébios Filho, 2020) e por isto também o fatalismo se manifesta no bojo

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de práticas assistencialistas.
Como dito anteriormente, o fatalismo é um fenômeno que atua, justa-
mente, no convencimento de que o sujeito é por si mesmo um fracassado.
Este fracassado, quando não duramente reprimido pelas forças do Estado, é
concebido como sujeito passivo da caridade. Em todo caso, ele é dominado
e reduzido à condição de fracasso.
O fatalismo como ideologia tem uma função prática: contribuir para a
dominação das classes populares, produzindo um sentimento de impotência
e aceitação passiva de um futuro trágico destinado aos marginais, pobres e
miseráveis, que contrasta com o mundo cheio de possibilidades desta “figura
poderosa do opressor a quem tudo parece possível” (Martín-Baró, 1998, p. 96).
As noções de mérito, merecimento e justiça se configuram a partir da noção
de fatalidade. Assim, a naturalização das condições de opressão e exploração
dão materialidade para a ideologia do fatalismo.

A aceitação ideológica do fatalismo é uma aceitação prática da ordem


social opressiva. O fatalismo constitui um poderoso aliado do sistema
estabelecido em pelo menos dois aspectos cruciais: a) ao justificar uma
postura de conformismo e submissão às condições sociais impostas a todos
como se fosse um determinismo da natureza, poupa às classes dominantes
a necessidade de recorrer aos mecanismos de coerção repressiva, faci-
litando assim o domínio social; b) ao induzir um comportamento dócil
diante das exigências dos que estão no poder, contribui para o reforço e
reprodução da ordem existente. Assim, ao facilitar a opressão e reproduzir
as condições de dominação social, o fatalismo das maiorias populares
canaliza os interesses das classes dominantes; ou seja, articula em sua
própria psique os interesses que as mantém alienadas e bloqueiam sua
humanização. (Martín-Baró, 1998, p. 96. Tradução nossa)

É importante mencionar que a “aceitação ideológica do destino” (Mar-


tín-Baró, 1998, p. 96) não deve ser creditada ao sujeito isolado. Como busca-
mos deixar claro, o fatalismo é um fenômeno que deve ser contextualizado,
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E ENRAIZAMENTO: diálogos entre a Psicologia Social
Comunitária e a Psicologia Ambiental Latino-Americanas 59

compreendido em uma perspectiva histórica, levando em conta os processos


de dominação colonialista dos povos originários da América Latina e dos res-
quícios da escravidão e da violência da sociedade neocolonial. Ser dominado
e rebaixado econômica, cultural e socialmente, portanto, não é resultado de
uma opção individual. Trata-se de uma imposição de quem faz as regras do
jogo: as classes dominantes.
Inserido em um cenário de injustiça estrutural, como afirma Martín-Baró
(1996), o fatalismo é ainda reforçado nos processos de socialização: na família,
na escola, na igreja, nas relações comunitárias e no mundo do trabalho. Nestes
espaços, argumenta o autor, é que se constroem, inclusive, uma relação de
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dependência emocional entre o oprimido e o opressor, o vencedor e o perdedor,


quem manda e quem obedece.
A escola, família e igreja são espaços onde se reproduzem os valores
correspondentes ao modo de sociabilidade capitalista: a docilidade frente aos
valores liberais, a aceitação passiva do sistema de mandos – como se vê, por
exemplo, na naturalização da relação entre os gêneros feminino e masculino,
cristalizados na família nuclear burguesa – a construção da imagem do “bom
trabalhador”, do “bom filho de Deus”, entre outras especificações do “cida-
dão de bem” (denominação, aliás, tão comum no Brasil atual, utilizado pela
extrema-direita para designar um cidadão conservador).
Para Martín-Baró (1998), são nos processos de socialização que se esta-
belecem mediações entre os indivíduos e as estruturas da sociedade, respon-
sáveis pelo modelamento de estilos de vida, de internalização de valores e
normas sociais, sendo, neste sentido, também espaços difusores do senso
comum – que, como afirmou Guareschi (2000), constituem-se o terreno fértil
da ideologia dominante.
As reflexões sobre o fatalismo na literatura têm sido cada vez mais
amplas e atualizadas. Há pesquisas que retratam este fenômeno na realidade
brasileira, como é o caso, por exemplo, do estudo de Rosa (2020), que analisou
a dialética entre o fatalismo e a resistência política. A autora demonstra, ainda,
que o fatalismo está associado a questões concretas ligadas à condição mate-
rial de vida dos camponeses (a população alvo de seu estudo): a destruição
gradativa da agricultura familiar, explica, contribuiu para empobrecimento
e invisibilidade dos camponeses, assim como para o enfraquecimento da
identidade coletiva desta população, muito ligada ao vínculo com a terra e
à produção artesanal para sobrevivência. A alteração no modo de produção
familiar gerou alterações no tecido social, o que vem trazendo dificuldades
para projeção de uma perspectiva melhor para o futuro.
Para Cidade e Ximenes (2012), o fatalismo se manifesta nos jovens da
periferia de uma grande cidade brasileira em atitudes fatalistas sustentadas
60

pela crença no sucesso como resultante do esforço individual e da vontade


divina, descrença nas instituições sociais, silenciamento e distanciamento
emocional diante de situações desagradáveis e incômodas.
Por seu turno, o estudo de Cidade et al. (2018), que validaram a escala
multidimensional de fatalismo para contextos de pobreza rural no Brasil, indica
quatro dimensões deste fenômeno: (1) pessimismo e desesperança; (2) atribui-
ção do fracasso a causas internas; (3) o destino compreendido como uma ques-
tão do acaso, de sorte e de azar; (4) a ideia de controle divino sobre o destino.
Há também pesquisas, como a de Sánchez (2005), que estabelecem uma
relação entre o fatalismo e os círculos de violência em contextos urbanos na

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Colômbia. Novamente, o fatalismo aparece associado à fragilização de teci-
dos sociais que produzam solidariedade e tragam estabilidade e esperança.
No mesmo país, Llanos et al. (2009) associam a violência materializada em
mortes, perdas materiais e desenraizamento comunitário com o aumento da
passividade e do conformismo de uma população que teve suas casas expro-
priadas pelo Estado. Estas e outras pesquisas revelam contextos sociopolíticos
que favorecem ideias, sentimentos e comportamentos fatalistas.
O fatalismo aparece, ainda, como um recurso adaptativo na obra de
Martín-Baró, especialmente, quando o autor discute os impactos psicossociais
da guerra civil (Martín-Baró, 1998; 2000). Para suportar a dor, o medo e os
traumas presentes em um cenário de guerra, como ocorreu no contexto da
ditadura civil-militar em El Salvador (país onde o autor viveu por décadas),
as pessoas e grupos sociais, muitas vezes, naturalizam a violência e a desi-
gualdade social. Isso ocorre, segundo o autor, especialmente quando não há
resistência popular.
Vale destacar a produção de Martín-Baró (2000) sobre o Trauma Psi-
cossocial, que para o autor é uma ferida coletiva associada a três aspectos:
violência, mentira institucionalizada e polarização social. Para superar este
fenômeno, mesmo que parcialmente, é necessário elaborar coletivamente
um plano de fuga, um horizonte ético-político de superação das condições
estruturais que acompanham este trauma. Contudo, na ausência do que o
autor denomina de prática e solidariedade de classe, as explicações fatalistas
sobre o destino e diante das injustiças sociais podem se configurar como uma
resposta predominante ao trauma.
A dimensão adaptativa do fatalismo é discutida, sob outra ótica, por
Blanco e Díaz (2007), com a identificação de duas manifestações deste fenô-
meno: o fatalismo coletivista e individualista. O primeiro se manifesta como
visão de mundo compartilhada por um determinado grupo social, especial-
mente, em sociedades totalitárias. O segundo aparece mesmo como recurso
dos indivíduos isolados, que, sem laços que os unem a uma coletividade e
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E ENRAIZAMENTO: diálogos entre a Psicologia Social
Comunitária e a Psicologia Ambiental Latino-Americanas 61

sem perspectiva de melhorias nas condições de vida, recorrem ao indivi-


dualismo liberal para suportar o destino, que é então naturalizado e justifi-
cado internamente.

Incerteza, insegurança, resignação, conformidade, apatia: todas estas


formas de enfrentar a realidade nos colocam, sem dúvida alguma, na
égide do fatalismo. Atualmente este fenômeno nos é apresentado com
uma dupla face: primeiro, como uma estratégia de adaptação (uma espé-
cie de racionalização germinada com mecanismos de defesa freudianos),
a contingências aleatórias, a ameaças incontroláveis de origem mais ou
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menos inconclusiva (a destruição do meio ambiente, a ameaça do terror


fanático, o desemprego, a exclusão, etc.). Esta cara de fatalismo não é
nova, mas tem a particularidade de ter começado a se tornar visível de
uma forma teimosa em sociedades altamente desenvolvidas. Ao lado disso,
o fatalismo continua a mostrar sua face mais tradicional, a de resignados
da aceitação resignada e passiva de um destino irremediável que emana
de alguns, de um destino irremediável que emana de alguma força natural
ou de alguma vontade sobrenatural (p. 552. Tradução nossa).

Para os autores, ao mesmo tempo em que o fatalismo contribui para


acirrar o individualismo e o isolamento sociopolítico, também é um sintoma
da fragilidade de um tecido social que já não é mais capaz de produzir soli-
dariedade e um horizonte de mudança social.
Os estudos sobre o fatalismo demonstram a complexidade deste fenô-
meno, que vai muito além do “politicamente alienado”, como se diz popu-
larmente. Eles nos permitem arriscar uma definição de três modalidades de
expressão do fatalismo: resignado, adaptativo e reacionário.
O fatalismo resignado se manifesta quando se predominam comporta-
mentos, ações e sentimentos que indicam um modo de aceitação passiva do
destino, quando o sujeito ou grupo se apegam, objetiva e afetivamente, a uma
ideia mística de futuro, uma aceitação acrítica da versão oficial da história,
quando internalizam uma visão depreciativa da sua própria classe, origem
social ou comunidade. Vive-se o imediato e o cotidiano na luta pela sobre-
vivência. É uma condição próxima daquilo que Freire (2001) denominou de
consciência dominada.
O fatalismo adaptativo é um recurso psicossocial voltado não necessaria-
mente para aceitação da realidade e do destino, mas para suportar as condições
de opressão e exploração. Neste sentido, o fatalismo adaptativo pode estar
associado ao Holskamp (2016) denominou de capacidade restritiva de ação.
Para Holskamp (2016), o indivíduo isolado reduz sua capacidade de
enfrentamento das mazelas sociais e econômicas, que, restando muito pouco
a fazer sozinho, tem de se conformar e se adaptar a um acontecimento que
62

ultrapassa sua vida privada. O sujeito, quando se associa a uma rede de apoio e
de resistência ético-política, potencializa sua capacidade de ação para enfrenta-
mento de temáticas que só se resolvem coletivamente: o desemprego, a fome,
a violência estatal, o preconceito, o racismo, entre outras mazelas estruturais
produzidas pelo modo de sociabilidade capitalista.
Na ausência de um horizonte ético-político capaz de mobilizar poli-
ticamente sujeitos e grupos marginalizados, perde-se a perspectiva de um
futuro melhor. O fatalismo resignado caracteriza-se pela aceitação passiva
da tragédia de um futuro acabado, como obra de um Deus ou do mercado.
O fatalismo adaptativo, ao contrário, se não se traduz necessariamente na

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aceitação passiva, mas, principalmente, na adaptação para a sobrevivência.
Nestas condições, até pode-se aceitar versões alternativas à história oficial,
pode-se entender quem é o opressor e o oprimido, mas não se tem forças para
lutar contra o poder estabelecido. Para suportar esta “ferida” na qual o coletivo
político não é capaz de estancar, recorre-se ao individualismo e à busca por
melhores condições particulares de vida e de trabalho.
O fatalismo reacionário também se manifesta como um comportamento
adaptativo, mas é um fenômeno coletivo que emerge quando sujeitos ou
grupos sociais conservadores sentem-se afrontados em seus valores mais
fundamentais, se apegam a um grupo homogêneo para se proteger contra o
medo do diferente e de isolar politicamente. A defesa dos valores tradicionais
da família – ou da terra, família e propriedade - por exemplo, ilustra esta
modalidade de fatalismo. Não há apenas uma naturalização da ordem social
e econômica, mas a defesa ativa de uma concepção naturalizada da história,
do modo de sociabilidade, dos seus valores e fundamentos econômicos. Neste
caso, paradoxalmente, a naturalização da realidade opressora convive com
uma intencionalidade política: manter as coisas como elas estão, como Deus
quis, como prega o mercado.
Para finalizar, é necessário ainda tratar do fenômeno antagônico ao fata-
lismo: a conscientização. Nesta direção, Oliveira, Moreira e Guzzo (2015)
refletem sobre a dialética do que Martín-Baró (1998) chamou de situação
limite: uma situação insuportável de exploração, violência e opressão que
pode gerar não apenas comportamentos, ideias e sentimentos fatalistas, mas,
paradoxalmente, também pode produzir resistência e conscientização.
Oliveira et al. (2015) nos lembram que o fatalismo e a conscientização
devem ser compreendidos dialeticamente e não como duas dimensões anta-
gônicas e absolutas. Ainda assim, é patente lembrar que a conscientização
indica um outro caminho: a decodificação das relações de poder, a desna-
turalização do destino fatal e o agrupamento das pessoas em torno de um
objetivo comum: combater a injustiça e lutar por um futuro melhor (Freire,
2001; Martín-Baró, 1996).
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E ENRAIZAMENTO: diálogos entre a Psicologia Social
Comunitária e a Psicologia Ambiental Latino-Americanas 63

A conscientização se define como um processo de elaboração da memó-


ria histórica, de reconhecimento das injustiças ocorridas no passado para
planificação de um futuro diferente, mais justo e igualitário. É um fenômeno
que, necessariamente, pressupõe uma ação coletiva, que transforma a iden-
tidade individual em identidade social, que olha criticamente para a desva-
lorização social da imagem de si mesmo e dos outros igualmente oprimidos,
que aproxima os vínculos entre o indivíduo, grupos e classe social. É um
fenômeno que altera a noção de temporalidade e de destino (Freire, 2001;
Martín-Baró, 1996).
Entre um destino imutável e a possibilidade de alterar o futuro, entre a
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fragmentação e a consolidação do tecido social, entre a desfiguração e o resgate


da memória histórica, entre a construção da imagem do fracassado e a contex-
tualização crítica da noção de fracasso, o fatalismo e conscientização são duas
faces de uma mesma moeda: a dura realidade dos povos latino-americanos.
64

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4. O PROTAGONISMO INDÍGENA NA
PROMOÇÃO DE DIÁLOGOS COM
A UNIVERSIDADE E A LUTA PELO
TERRITÓRIO TRADICIONAL
Patrícia Moura Fernandes Silva1
Rafaela Waddington Achatz2
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Danilo Silva Guimarães3

Apresentação

Neste capítulo, discutimos o papel do serviço Rede de Atenção à Pessoa


Indígena (IPUSP-PSE), sua abrangência e seus limites na colaboração ao
enfrentamento de vulnerabilidades psicossociais que ameaçam as comunidades
indígenas. Este capítulo, assim como o desenvolvimento dos projetos da Rede,
tem como base o dialogismo teórico-metodológico amplamente discutido no
âmbito do Construtivismo Semiótico-Cultural em Psicologia. Os projetos da
Rede e este texto foram desenvolvidos a partir da construção de iniciativas em
coautoria entre indígenas e não indígenas. Com isso, pretendemos contribuir
para o desenvolvimento de conceitos e técnicas psicológicas mais sintoni-
zadas com as múltiplas realidades indígenas. A apresentação dos projetos e
das experiências acumuladas ao longo dos anos subsidia a discussão sobre a
relevância da Universidade pública e seus programas de extensão, com foco
nas práticas de cuidado e fortalecimento do protagonismo e autonomia das
comunidades indígenas. Considerando os processos de genocídio e etnocídio
empreendidos pelo Estado e pelas elites, sustentamos que essas vulnerabi-
lidades psicossociais estão intimamente relacionadas às questões políticas e
ambientais. Por exemplo, defendemos que um trabalho focado em aspectos
psicossociais deve levar em conta fatores como o racismo estrutural, disputas
territoriais, mudanças ambientais, violações de direitos humanos básicos e
assim por diante.

[...] A sentença que a doutora já fez, que fica inclusive uma coisa assim
meio por cima, mas a gente já dá pra entender que querem, vão querer

1 Psicóloga e especializanda em Psicologia Hospitalar pelo HCFMUSP.


2 Psicóloga e mestranda em Psicologia Clínica na Universidade de São Paulo.
3 Professor no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Bolsista de Produtividade em pes-
quisa do CNPq.
68

tirar a gente de lá. Então essa é a nossa luta, pela uma garantia digna
dos nossos filhos e também para os nossos parentes. Por isso que nós
devemos de reaproximar desse mais diálogo com o governo do estado,
do município, para que não haja esse enfrentamento; acho que esse não
é o nosso objetivo, nosso objetivo é ter uma luta sadia. (Cacique Alcides
Mariano Gomes, em entrevista ao portal G1, no dia 22/01/2016)4

A fala de Alcides, cacique da Tekoa Paranapuã, aldeia Mbya Guarani,


foi transcrita a partir de uma entrevista concedida ao G1 durante um protesto
de indígenas que fechou a Ponte Pênsil de Japuí, em São Vicente/SP, no dia

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22 de janeiro de 2016. A comunidade encontra-se em uma região de sobrepo-
sição com o Parque Estadual Xixová-Japuí, embora tenha sido protagonista
de uma retomada indígena do local há mais de 12 anos. Quando escrevemos
este texto, residiam na comunidade cerca de 10 famílias, que estavam amea-
çadas por um pedido de reintegração de posse. Tomamos a fala do cacique
como ilustração da relação conflituosa dos povos indígenas do Brasil com o
Estado, que os leva a empreender uma “luta” visando assegurar os seus direitos
garantidos pela Constituição Federal de 1988 e por tratados internacionais dos
quais nosso país é signatário (cf. Convenção 169 da OIT). O cacique propõe
a busca por um diálogo efetivo com as instâncias governamentais como uma
saída “sadia” para o impasse, na medida em que compreende a necessidade
de assegurar para seus filhos e parentes uma vida digna e a possibilidade de
viver bem em seu próprio território, de acordo com o nhandereko, modo de
vida Mbya Guarani.
No que diz respeito ao processo de construção de relações dialógicas
no contexto interétnico, a antropóloga Susan Rasmussen (2011) é bastante
clara ao afirmar que “as rotas para a construção de entendimentos mútuos e
colaborativos não é direta ou transparente” (p. 161). A saber, no diálogo inter-
cultural, há sempre lacunas nos entendimentos, equívocos e erros de tradução
(cf. Viveiros de Castro 2004). No entanto, estas opacidades comunicativas e
equívocos tradutivos inerentes à situação intercultural não impedem a cons-
trução colaborativa de sentidos e ações. Partindo dessa constatação e com
a ajuda de ferramentas teórico-metodológicas desenvolvidas no âmbito do
construtivismo semiótico-cultural em psicologia (cf. Simão, 2010; Guima-
rães, 2011, 2016, 2020), a Rede de Atenção à Pessoa Indígena (serviço que
se iniciou no Departamento de Psicologia Experimental do Instituto de Psi-
cologia da USP e, atualmente, recebe contribuições de outros departamentos
e unidades da USP) desenvolve serviços voltados às comunidades indígenas
do Estado de São Paulo. Em nosso trabalho, nos deparamos com implicações
4 Disponível em http://g1.globo.com/sp/santos-regiao/noticia/2016/01/indigenas-de-sao-vicente-protestam-
-contra-decisao-da-justica.html, acesso em 7 maio 2021.
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E ENRAIZAMENTO: diálogos entre a Psicologia Social
Comunitária e a Psicologia Ambiental Latino-Americanas 69

psicossociais relacionadas a inúmeras violações de direitos que atingem as


comunidades atendidas. Consideramos que tais violações estão relacionadas
ao incremento de sofrimentos psicológicos de diversos tipos, diante dos quais
temos testemunhado a força e resistência das comunidades que continuam
a desdobrar tradições milenares dos povos Guarani para re-existir e superar
esses sofrimentos.
Neste capítulo, apresentamos a metodologia de trabalho da Rede de Aten-
ção à Pessoa Indígena, cujo objetivo é contribuir para o enfrentamento de vul-
nerabilidades psicossociais juntamente com pessoas e comunidades indígenas,
apoiando-se em uma constante reflexão sobre os fundamentos teóricos das
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metodologias de intervenção no âmbito da psicologia cultural (cf. Simão, 2010;


Guimarães, 2016, 2020). Em seguida, apresentamos alguns resultados dos traba-
lhos da Rede, compreendendo, especificamente, os primeiros cinco anos de seu
surgimento e consolidação como serviço do IPUSP, de 2012 a 2016. Por fim,
discutimos esses resultados à luz de um desafio enfrentado pelos movimentos
indígenas Brasileiro, o Projeto de Emenda Constitucional 215 (PEC 215), e
que foi tema de grande centralidade no período aqui retratado. Esta PEC pro-
põe transferir ao Congresso Nacional a competência da demarcação das terras
tradicionalmente ocupadas pelos indígenas e a ratificação das demarcações já
homologadas. Nas considerações finais, refletimos sobre o papel da extensão
universitária na mediação de possíveis diálogos entre maiorias excluídas da
sociedade, fomentando a participação de pessoas e grupos cujas vozes e pontos
de vista têm sido sistematicamente silenciados e invisibilizados.

4.1 Fundamentos teórico-metodológicos

O serviço Rede de Atenção à Pessoa Indígena parte da perspectiva dia-


lógica como pressuposto teórico e metodológico para construção de conhe-
cimento no campo do Construtivismo Semiótico-Cultural em psicologia. O
dialogismo teórico e metodológico pressupõe que qualquer relação com o
outro precisa contemplar a sua dimensão de alteridade, irredutível às categorias
estabelecidas por qualquer conhecimento prévio que possamos ter desse outro
(cf. Simão, 2010; Marková, 2016). Portanto, a atenção psicossocial se dá com
a construção de iniciativas em coautoria, valorizando o espaço das trocas e a
colaboração entre os diferentes participantes do processo. Compreendemos ser
relevante o reconhecimento das diferentes posições culturais e sustentamos a
possibilidade de coexistência dessa diferença, que não deve ser substituída pela
busca de uma comunalidade fusional, embora o estabelecimento da relação
colaborativa e de coautoria demande, em algum momento, a construção de
um ritmo comum para as trocas dialógicas (cf. Guimarães, 2015).
70

Nossas ações baseiam-se nas recomendações aos psicólogos no trabalho


com populações indígenas (CRP/SP, 2010) e em diretrizes do Ministério da
Saúde5, segundo as quais a atenção deve se pautar pelo apoio e respeito à
capacidade das comunidades indígenas, com seus valores, modos de organiza-
ção, de expressão e de produção de conhecimento, para identificar problemas,
mobilizar recursos e criar alternativas para a construção de soluções para as
demandas levantadas. Consideramos, ainda, que estabelecer o diálogo inte-
rétnico e interdisciplinar é importante na construção de referências para uma
atuação do psicólogo mais afinada com a situação social focalizada.
Em nossos estudos, e na prestação de serviços às comunidades aten-

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didas pela Rede Indígena, temos encontrado evidências de que o enfrenta-
mento das vulnerabilidades psicossociais dos indígenas no Brasil depende da
possibilidade de que haja respeito ao processo de autoafirmação étnica das
pessoas, promoção de fóruns para o diálogo interétnico equitativo entre os
saberes indígenas e a sociedade brasileira como um todo, além da promoção
da visibilidade da cultura indígena que permanece ativa e presente no mundo
contemporâneo. Parte dos resultados selecionados das atividades realizadas
segundo essa metodologia são detalhados a seguir.

4.2 Percurso da Rede Indígena de 2012 até final de 2015

A Rede Indígena, foi inserida no organograma dos serviços prestados


pelo Instituto de Psicologia/USP no primeiro semestre de 2015, como resul-
tado de um processo gradual de inserção da temática indígena na formação
dos estudantes de graduação e pós-graduação em psicologia e áreas afins. O
processo que tem conduzido o alcance desse objetivo nos remete ao ano de
2011, quando solicitamos ao Programa Aprender com Cultura e Extensão,
bolsas de estudo a estudantes que pudessem se interessar em desenvolver o
projeto então denominado Rede de Atenção à Pessoa Indígena.
O projeto inicial estava articulado às atividades de ensino e à linha de
pesquisa “Problemas Teóricos e Metodológicos da Psicologia: Construtivismo
Semiótico-Cultural’’, que subsidiaram aquela formulação. Iniciamos o pro-
jeto com a participação de uma estudante da graduação em psicologia, que
contribuiu para o processo progressivo de estabelecimento da confiança e da
abertura dos indígenas em contexto urbano e áreas demarcadas do município
de São Paulo, necessárias à explicitação das vulnerabilidades psicossociais
enfrentadas por suas comunidades.
Realizamos a escuta de relatos expressos em rodas de conversas pro-
movidas nas comunidades, acompanhamento de práticas tradicionais de

5 Ministério da Saúde, Portaria nº 2.759, de 25 de outubro de 2007.


COMUNIDADE, TERRITÓRIO E ENRAIZAMENTO: diálogos entre a Psicologia Social
Comunitária e a Psicologia Ambiental Latino-Americanas 71

intervenções em saúde e práticas pedagógicas nas escolas em que estudam


alunos indígenas. Proporcionamos a construção conjunta com os indígenas
de atividades que visaram fomentar o diálogo reflexivo sobre a situação da
saúde, garantia de direitos, demarcação de terras, fortalecimento da cultura
tradicional e educação diferenciada, tendo em vista a melhoria nas condições
de vida das pessoas pertencentes às comunidades. O foco do trabalho, no pri-
meiro ano de sua realização, esteve centrado nas comunidades Mbya Guarani,
Tekoa Krukutu e Tekoa Tenondé Porã, localizadas na região de Parelheiros,
São Paulo/SP e também nas comunidades Tekoa Pyau e Tekoa Ytu, localizadas
no bairro do Jaraguá, São Paulo/SP.
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Nesse período, organizamos um evento no Instituto de Psicologia, deno-


minado “Psicologia e Povos Indígenas: Saberes e práticas em diálogo”, que
contou com pessoas das quatro comunidades acima mencionadas, além de
participantes de diversas áreas do Brasil ligados ao trabalho com populações
indígenas: educadores, profissionais de saúde, estudantes indígenas etc.
A partir do primeiro evento organizado, recebemos o convite de lideran-
ças indígenas da Tekoa Pyau (Jaraguá/SP) para contribuirmos na organização
de um novo encontro, envolvendo lideranças de diversas comunidades do
Estado de São Paulo (Litoral Sul, Vale do Ribeira e Capital), para que fossem
discutidas questões relacionadas aos direitos indígenas de atendimento dife-
renciado à saúde, educação diferenciada, demarcação de terras. A colaboração
nessa tarefa nos permitiu aprofundar nossa compreensão das vulnerabilidades
psicossociais que ameaçam as comunidades indígenas.
O encontro, que contou com o fomento da PrCEU-USP e apoio do
CRPSP, aconteceu em setembro de 2013, quando o projeto já contava com a
participação de quatro estudantes de graduação. Os estudantes compareceram
ao evento e fizeram anotações dos temas abordados nas falas dos participantes.
Os dados anotados foram importantes para a produção de um Relatório, de
forma colaborativa com os participantes indígenas (Huvixa Kuery Nhembo’a
Ty, 2013), que sistematizou a discussão.
Também em setembro de 2013, tivemos a oportunidade de contribuir
com o fomento da PrCEU-USP para a realização do I Encontro Nacional dos
Estudantes Indígenas, que aconteceu na UFSCAR com a participação de gra-
duandos de 26 universidades de todo o Brasil, pertencentes a 50 etnias distintas
(ENEI, 2013). Ainda, ao longo do segundo semestre de 2013, realizamos o
Curso de Difusão Cultural Psicologia e Povos Indígenas: Noções Introdutórias,
que contou com a participação de diversos especialistas na área, incluindo
alguns indígenas, como docentes e palestrantes de uma turma composta por
19 estudantes, dentre psicólogos, profissionais da área da educação, saúde e
assistência social, estudantes de graduação e indígenas. Finalmente, nesse
72

período promovemos, em parceria com a SP Escola de Teatro e com fomento


da PrCEU-USP, o Ciclo de conferências da Residência Teatral Sonata Fan-
tasma Bandeirante, com a participação de pesquisadores, artistas e indígenas
em um contexto de intensas trocas interdisciplinares.
No ano de 2014, desenvolvemos um conjunto de materiais de referência
para rodas de conversa temáticas nas comunidades indígenas: encarte sobre
a vida e atuação comunitária de Marta Guarani, indígena que representou
as mulheres brasileiras na ONU nos anos 90; encarte sobre a Lei Maria da
Penha e encarte sobre a vida de Sepé Tiaraju, importante referência histórica
do povo Guarani.

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No segundo semestre do ano de 2014, com a entrada de novos estudantes
de graduação no projeto, priorizamos a realização de fóruns sobre a Presença
Indígena em São Paulo, avançando nas demandas da comunidade quanto à
promoção da visibilidade da tradição indígena ainda presente em nossa cul-
tura contemporânea. Os fóruns aconteceram no Instituto de Psicologia/USP,
abertos à participação da comunidade acadêmica e da comunidade externa.
Todo o registro audiovisual está disponível on-line, pelo serviço de IPTV-USP.
Como desdobramento das rodas de conversa com as mulheres indígenas
na Tekoa Pyau, iniciadas em 2013 com a colaboração das estudantes vincula-
das ao Serviço, emergiu a proposta de um trabalho com os jovens indígenas da
comunidade, envolvendo a produção de um vídeo no qual os jovens dialoga-
vam com os anciãos, tirando dúvidas sobre a tradição e cultura Mbya Guarani.
Os vídeos foram gravados e encontram-se em processo de transcrição para
posterior edição. Em 2014 trabalhamos, ainda, na elaboração de um portal na
internet para abrigar os conteúdos produzidos pelas atividades acadêmicas de
ensino, pesquisa e extensão vinculadas ao grupo de pesquisa em Psicologia
Cultural e à Rede Indígena. Adicionalmente, foram realizados encontros na
comunidade para o planejamento do segundo Huvixa Kuery Nhemboaty, que
aconteceu em janeiro de 2015.
No início do ano de 2015, a partir de uma demanda da comunidade indí-
gena Tekoa Tangará, localizada no município de Itanhaém/SP, iniciamos o
suporte ao projeto de Turismo de Base Comunitária, iniciado pela comunidade.
A comunidade tem a proposta de receber escolas para a formação de alunos e
professores em relação à temática da História e Cultura Indígena, em atenção
à Lei 11.645/086. Nossa atuação consistiu, ao longo daquele ano, na realização
de rodas de conversa que visavam estruturar, junto com a comunidade, um
roteiro de visitas, avaliar a implementação desse roteiro, produção de um
material de divulgação do projeto para escolas da região e colaboração na

6 Essa lei passou a incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e
Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E ENRAIZAMENTO: diálogos entre a Psicologia Social
Comunitária e a Psicologia Ambiental Latino-Americanas 73

descrição do projeto para anuência da FUNAI. Conseguimos realizar todas


essas etapas do trabalho com a participação dos estudantes, bolsistas e volun-
tários. Em outubro de 2015, a comunidade recebeu, como parte do seu projeto
de turismo educacional e ecológico, a visita de pesquisadores participantes do
evento internacional Semiotic-Cultural Constructivism Workshop, que orga-
nizamos no IPUSP com apoio da PrCEU-USP, da FAPESP (processo número
2015/08152-0) e do Niels Bohr Centre of Cultural Psychology (Universidade
de Aalborg, Dinamarca).
Ao longo do ano de 2015 construímos, junto com jovens da Terra Indí-
gena do Jaraguá, propostas de trabalho envolvendo a música e o teatro. No
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que diz respeito às atividades envolvendo a música, os estudantes trabalha-


ram, especialmente, com jovens do povo Mbya Guarani que estavam ela-
borando composições autorais e formaram o grupo de RAP ‘Oz Guarani’.
Como desdobramento das atividades, os indígenas fizeram apresentações
no Centro Cultural São Paulo, participaram do Agosto Indígena (organizado
pela Secretaria Municipal de Educação) e foram premiados pela Câmara dos
Vereadores de São Paulo (Prêmio Jovens em Destaque). No âmbito das ati-
vidades envolvendo o teatro, os indígenas discutiram com os estudantes a
possibilidade de se trabalhar técnicas de improviso baseadas em psicodrama
e teatro do oprimido.
A partir do final de 2015 equipe da Rede Indígena passou a mobilizar
um maior número de pessoas, e, com isso, ampliou o número de atividades
realizadas, envolvendo projetos de pesquisa em âmbito de Iniciação Científica
e projetos de extensão relacionados à prestação de serviços às comunidades
indígenas, segundo estratégias de produção audiovisual, música, teatro, per-
macultura e produção de textos.

4.3 Sem a terra, a gente não é nada


[...] Sem a nossa terra, nós não temos vida, sem a nossa terra, nós também
não temos tradição, sem a nossa terra também, nós não temos cultura,
então, às vezes, sem a terra, a gente não é nada (Cacique Alcides Mariano
Gomes, em palestra ministrada no 4º Fórum A presença Indígena em São
Paulo, realizado no IPUSP, no dia 13/11/2014).

A fala acima é do Cacique Alcides Mariano Gomes, o mesmo autor da


fala que selecionamos para abrir o artigo. Ela foi proferida durante um dos
fóruns organizados pela Rede Indígena (IPUSP-PSE) e remetem às mes-
mas questões que levaram ao protesto no início de 2016 em São Vicente/SP,
demonstrando o entrelaçamento de seu caminho com as nossas atividades
de extensão. Alcides soube dos fóruns por uma psicóloga conhecida sua e,
74

da primeira vez, veio espontaneamente para São Paulo para participar e se


fazer ouvir. Da segunda vez, o convidamos para que tivesse a oportunidade
de ministrar uma palestra e pudéssemos ter acesso a maiores detalhes sobre
as condições de vida de sua comunidade.
Na sua fala o vínculo com a terra é marcante: tradição, cultura e vida
estão fundadas no território tradicional. O “bem-estar” psicossocial de um
povo indígena se mostra indissociável de seu território (que não apenas possi-
bilita o sustento, mas que também é por eles considerado sagrado). Para além
da situação de instabilidade em que a comunidade Mbya Guarani vive no
Parque Estadual Xixová-Japuí, piorada com o pedido de reintegração de posse,

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a questão da terra, expressa por Alcides, diz respeito a um estado de exceção
de direitos que os povos indígenas enfrentam historicamente no Brasil.
A Proposta de Emenda à Constituição 215 (PEC 215), cujo relatório foi
aprovado no final de 2015 por uma Comissão Especial da Câmara Federal, era,
naquele momento, o exemplo mais emblemático dessa situação de constante
violação. Tal emenda visa transferir do Poder Executivo para o Poder Legis-
lativo a decisão final na demarcação das Terras Indígenas (TIs), e possibilitar
que TIs já regularizadas sejam revisadas. Para os indígenas a proposta está
em contradição com os inúmeros direitos fundamentais por eles conquistados,
como o direito à consulta prévia (estabelecido na Convenção 169 da OIT, da
qual o Brasil é signatário) e de proteção aos direitos adquiridos em cláusulas
pétreas da Constituição Federal. Ademais, fere o princípio da separação de
competências entre os poderes ao atribuir função administrativa a um Con-
gresso sujeito às vicissitudes ideológicas de interesse de parte da população
detentora de recursos econômicos e posições de poder (por exemplo, a ban-
cada ruralista financiada pelo agronegócio é a principal interessada nessas
alterações à constituição). A perspectiva de quebra dos direitos já pactuados
entre os indígenas e a sociedade brasileira amplia a situação de instabilidade
e constante sensação de ameaça vivida pela comunidade.
Porém, a emenda não é a única fonte de violações recentes sofridas pelos
indígenas em relação às suas terras. A partir de dezembro de 2015 o Governo
Federal passou a trabalhar na formulação de uma Medida Provisória que visa
regulamentar o artigo 231 da Constituição Federal, de modo a permitir a
exploração das TIs mediante o pagamento de royalties para os povos com as
suas terras afetadas. Os indígenas se preocupavam com a possibilidade de essa
proposta permitir a instalação de grandes projetos de mineração, hidrelétricas
entre outras obras de infraestrutura sem consulta prévia desde que os povos em
questão sejam “recompensados” com uma quantia financeira (cf. entrevista do
Cacique Raoni à rádio Estadão em 2 de dezembro de 2015). A não participação
tanto dos povos afetados quanto da FUNAI no processo de construção da MP
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E ENRAIZAMENTO: diálogos entre a Psicologia Social
Comunitária e a Psicologia Ambiental Latino-Americanas 75

também os preocupava. Ou seja, ao mesmo tempo em que a fala de Alcides


aponta para o interesse de diálogo da parte dos indígenas, denuncia que não
é esse o modo de operar vigente pelas instâncias governamentais.
A PEC 215 e a MP dos royalties eram temas associados à enorme vul-
nerabilidade psicossocial sentida e enfrentada pelas pessoas e comunidades
indígenas. Elas colocavam em risco a sua diversidade étnica e cultural, pois
tratavam a terra como propriedade privada, ignorando as suas dimensões cul-
turais e significados próprios da espiritualidade indígena. Cabe destacar que as
vulnerabilidades sentidas e enfrentadas naquele período não foram superadas
e se intensificaram no momento de escrita do presente texto. Com a pandemia
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da covid-19, por exemplo, há uma percepção de que o estado brasileiro não


é apenas omisso, mas também contribui para a propagação do vírus. Há pelo
menos três tipos de situação em que isso vem acontecendo: profissionais de
saúde que acabaram levando o vírus às aldeias, mineradores e posseiros que
aumentaram as invasões durante a pandemia e pessoas indígenas que acabam
sendo contaminadas na busca por assistência emergencial nas cidades7.
Tendo em vista as ameaças constantes à vida e ao futuro dos povos
indígenas, a Rede Indígena (IPUSP-PSE) atua em um campo de tensões. Os
projetos e ações junto aos indígenas sempre esbarram em questões políticas
relacionadas à luta pelo território. A equipe interage com as angústias decor-
rentes das incertezas em relação às demarcações das terras das comunidades
indígenas e, por meio de ações que estão na esfera da extensão universitária,
oferece suporte para que essas pessoas possam fortalecer o seu protagonismo
diante das ameaças sofridas. Nesse percurso, o trabalho da escuta é fundamen-
tal, configurando-se como uma forma basal de acolhimento e sensibilização
da comunidade acadêmica em relação às demandas que emergem em nossas
atividades. A Rede concebe ainda, que as codeterminações do sofrimento,
nesse contexto, transbordam o campo das lutas pelo território, envolvem difi-
culdades nas políticas públicas de saúde indígena, tensões na interação das
aldeias com as comunidades do entorno, o preconceito e o racismo, a questão
da visibilidade da presença indígena no contexto urbano, os esforços para o
fortalecimento das tradições, a juventude que cresce “entre dois mundos”,
questões específicas das vivências das mulheres indígenas, entre muitos outros
aspectos que interagem de forma complexa.
Os projetos, construídos por indígenas em parceria com grupos de estu-
dantes e supervisão docente, partem da escuta dos sentidos e significados que
as pessoas indígenas conferem a seus sofrimentos contemporâneos. Neste
ensejo, a construção dos fóruns sobre a Presença Indígena em São Paulo foi

7 Cf. plataforma de monitoramento da situação indígena na pandemia do novo coronavírus (covid-19) no


Brasil, feita pelo Instituto Socioambiental e disponível em https://covid19.socioambiental.org/.
76

uma oportunidade que nos propiciou aprendizados no encontro com o cacique


Alcides da Aldeia de Parapuã, dentre outros indígenas convidados.

4.4 Em conjunto e em paralelo

O tema da PEC 215 marcou significativamente as ações da Rede, em seus


anos iniciais. Embora o tema continue em discussão no Congresso Nacional, a
Rede Indígena, atualmente, diversificou seus âmbitos de ação e a PEC não tem
a mesma centralidade nos debates atuais, em que as comunidades enfrentam
outros agravos, como aqueles decorrentes da pandemia da covid-19.

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A psicologia tem atuado de maneira cada vez mais frequente junto às
populações indígenas na atenção básica à saúde, promovida em equipamentos
vinculados aos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), na compreen-
são das especificidades culturais dessa população em contextos educacionais,
na compreensão de vulnerabilidades psicossociais decorrentes do processo
sócio-histórico latino-americano colonial e pós-colonial, bem como na formu-
lação de políticas públicas para a promoção e articulação social em contextos
interculturais. Embora seja crescente a participação da psicologia, os desafios
para uma atuação criteriosa e cuidadosa neste âmbito ainda são grandes. Um
dos aspectos que intensificam os desafios enfrentados pela psicologia em sua
aproximação com os povos indígenas diz respeito à relevante necessidade de
letramento intercultural dos profissionais e pesquisadores da área.
O trabalho realizado pela Rede Indígena coloca a comunidade acadê-
mica em contato com os efeitos de violações históricas e atuais sofridas pelas
comunidades indígenas atendidas. Dentre os efeitos dessas violações, perce-
bemos o progressivo apagamento de diversos e complexos modos de vidas e
visões de mundo (culturas e cosmovisões), ao mesmo tempo em que busca-
mos contribuir para a elaboração dos significados das marcas deixadas nos
corpos e nas narrativas pessoais com as quais entramos em contato. Quando
as pessoas não têm asseguradas as possibilidades de viver os valores de sua
própria tradição, tornam-se mais vulneráveis, dado que internalizam os inten-
sos conflitos emergidos no campo social sem condições para uma elaboração
consistente dos mesmos. A resistência às constantes ameaças à sobrevivência
das comunidades indígenas—diante da insuficiência de políticas públicas
para efetivação de direitos fundamentais, das experiências de preconceito e
invisibilidade da presença indígena na sociedade brasileira, e do questiona-
mento dos direitos já assegurados como resultados de lutas pregressas—só é
possível porque muitas comunidades, apesar de tudo, ainda têm conseguido
manter costumes e práticas sustentáveis que servem de referências “para geri-
rem os processos de educação, promoção da saúde, economia, alimentação,
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E ENRAIZAMENTO: diálogos entre a Psicologia Social
Comunitária e a Psicologia Ambiental Latino-Americanas 77

apropriação de saberes e escolhas quanto ao que pretendem construir para as


futuras gerações” (ABRASME, 2014).
Com a implementação de projetos da Rede Indígena, pudemos compreen-
der que a extensão universitária é uma das formas pelas quais a sociedade pode
se aproximar das comunidades, favorecendo no seu processo de resistência.
A Universidade é um espaço que catalisa trocas de conhecimentos em vias de
mão dupla, permitindo que conhecimentos produzidos na academia cheguem
à sociedade e que os saberes construídos no campo social possam dialogar
com as práticas acadêmicas. É desse contato que podemos concretizar ações
e projetos que efetivamente contribuem para a melhoria da qualidade de
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vida das pessoas. É também por essa via que a produção de conhecimento
acadêmico é revigorada, dando visibilidade àquilo que está latente. Assim,
percebemos que a formação dos estudantes universitários se alinha com as
mais novas ideias em circulação, seja no âmbito acadêmico, seja nos outros
espaços de organização social.
Compreendemos, ainda, que cuidados devem ser tomados para que a
parceria entre a universidade e a sociedade não se efetue na forma de um
assistencialismo. Quando se trata do diálogo com maiorias sistematicamente
excluídas, o papel da psicologia não deve ser confundido com a formulação
especializada de respostas prontas aos problemas identificados. As práticas
de cuidado psicológico, que a Rede Indígena valoriza na extensão universitá-
ria, envolvem um balanço entre a presença implicada do cuidador—ou seja,
seu envolvimento e participação ativa nas reflexões e encaminhamentos de
projetos em coautoria com a comunidade atendida—e a presença reservada,
isto é, sua capacidade de “renúncia à sua própria onipotência e à aceitação
de sua própria dependência” (Figueiredo, 2007, p. 21). Portanto, lidar com as
pessoas indígenas envolve lidar com sofrimentos e frustrações que são também
as do agente cuidador. Nesse campo, elaboramos nossos recursos pessoais
para que o protagonismo da comunidade possa se dar, colaborando com a
construção de projetos e buscando maneiras de, em conjunto e em paralelo
com as pessoas e comunidades indígenas8, contribuir para uma transforma-
ção social capaz de produzir espaços de diálogos equitativos entre pessoas e
tradições culturais distintas.

Talvez um dia o Juruá [homens brancos] perceba que é importante apoiar


a questão indígena não porque somos bonitinhos, coloridinhos ou porque
usamos peninhas e temos criancinhas pintadinhas, mas por uma questão
de sobrevivência de todas e todos. Podem acusar os indígenas de tudo

8 Para uma maior compreensão da expressão “em conjunto e em paralelo”, veja a fala de Mariano Fernando
(liderança Mbya Guarani da aldeia Rio Silveira, Bertioga/SP), publicada no livro Psicologia e Povos Indígenas
(CRPSP, 2010).
78

quanto é tipo de coisa, mas os povos indígenas são as únicas pessoas


aqui no Brasil que respeitam a natureza de fato. Basta digitar no Google
“territórios indígenas no Brasil” para visualizar, rapidamente, os territó-
rios indígenas, sempre verdes, no meio do mato, sem áreas descampadas,
sem áreas queimadas, apesar do que diz o governo atual, que os indígenas
cansaram de ficar olhando para as estrelas. (Guarani, 2020, p. 19).

Agradecimentos

Agradecemos à equipe da Rede de Atenção à Pessoa Indígena (IPUSP-

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-PSE) que, desde 2012, vem colaborando para a efetivação dos serviços pres-
tados. Agradecemos também à PrCEU-USP e ao Instituto de Psicologia da
USP pelos apoios concedidos.
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E ENRAIZAMENTO: diálogos entre a Psicologia Social
Comunitária e a Psicologia Ambiental Latino-Americanas 79

REFERÊNCIAS
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5. COMUNIDADES QUILOMBOLAS:
possibilidades de habitar o corpo
negro e viver no território
Saulo Luders Fernandes1
Jáder Ferreira Leite2
Alessandro de Oliveira dos Santos3
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A emergência das comunidades quilombolas no Brasil passa por um


processo histórico que parte desde as lutas coloniais até as resistências con-
temporâneas. Apresentam-se como territórios negros que buscam por meio
de seus modos de vida a emergência de ações políticas que vão de encontro
ao racismo estrutural e cotidiano que circulam na sociedade brasileira. Deba-
ter os territórios quilombolas é colocar em pauta os conflitos étnico-raciais
presentes em nossa história. Conflitos estes, como afirmam Santos et al.
(2012), que tentam anular as expressões negras, seus processos culturais,
subjetivos e políticos, em uma proposta de miscigenação ao branco euro-
peu, que no percurso histórico da nação, torna-se referência como modo de
vida hegemônico.
No Brasil já foram reconhecidas mais de 3.200 comunidades quilombo-
las. Este processo avançou após 2003 com o Decreto 4887 que possibilitou
maior autonomia no processo de autorreconhecimento e organização política
das comunidades. Porém, mesmo com os avanços apresentados nos reconhe-
cimentos das comunidades, elas sofrem com a negligência quanto à titulação
de suas terras e seus territórios, já que temos no Brasil apenas 219 comuni-
dades com suas terras tituladas, o equivalente a 7% do total de comunidades
quilombolas certificadas no país (Fundação Cultural Palmares, 2020).
O território quilombola não se expressa apenas como um lugar qualquer,
mas encontra-se como espaço vivo, manuseado, nutrido por experiências
coletivas e habitado por corporeidades que fazem dele território. Assim, o
presente texto busca refletir sobre a presença dos corpos negros e suas rela-
ções de expressão neste território. Entendemos que estas corporeidades não
são produções abstratas e muito menos universais, mas habitam lugares que
singularizam as experiências dos corpos negros. Como aponta Fernandes

1 Professor do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Alagoas. Professor do Programa de Pós-


-Graduação em Psicologia (PPGP) UFAL.
2 Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
3 Professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).
82

(2014), para os povos tradicionais o território é vivido e entendido enquanto


instância produtiva dos modos de viver desses grupos. É nele que os sentidos
sobre a realidade são forjados, que suas experiências coletivas são construídas
e que seus corpos podem ser habitados: pela natureza, pelas cosmovisões, pela
experiência coletiva, pela vida política, pelos conhecimentos tradicionais e
pelas práticas cotidianas.
Para compreendermos estes corpos como produção na relação com o
território, temos que realizar uma crítica inicial à psicologia, alinhados às
reflexões de Silva (2017), ao afirmá-la como uma ciência que se construiu
historicamente de forma desterritorializada, na compreensão das experiências

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humanas como um constructo abstrato e universal suspendido da realidade
que os sujeitos e coletivos vivem. Ou quando esteve territorializada o fez a
partir da realidade eminentemente urbana no bojo da modernização e ancorada
nos dilemas vividos por habitantes das grandes cidades.
Essa presunção universal e abstrata da psicologia apresenta-se de forma
falaciosa quando adentramos as matrizes do pensamento psicológico e suas
teorias clássicas, as quais apontam para um modelo de humano geopolitica-
mente localizado no hemisfério norte: de processos subjetivos constituídos
em referência ao homem branco europeu. Portanto, estas teorias e matrizes
de pensamento ao se pretenderem universais aliam-se a uma compreensão
hegemônica moderna de humanidade, que tem nos ditames das hierarquias
raciais e coloniais as bases para sua formação (Guimarães, 2017).
Dizemos, com isso, que as matrizes da psicologia moderna alicerçam
parte de sua constituição em referências colonialistas. Referências essas que
atuam de modo a colonizar outras formas de ser, pensar e agir, ao exigir dos
modos diversos de expressão subjetiva um mesmo lugar de produção hege-
monicamente marcado por recortes raciais e de gênero subsumidos à supre-
macia branca e ao patriarcado colonizador. Como afirma Quijano (2014), a
colonialidade expressa-se como uma continuidade dos processos coloniais de
poder atualizados na realidade presente, a qual não findou com a emancipação
das colônias, mas se aprofundou, aliado ao capital mundial, às relações de
exploração, às hierarquias raciais e às opressões de gênero.
Ainda de acordo com Quijano (2014), a modernidade teve sua formação
alicerçada nas lógicas da colonialidade do poder, ambas constituem as faces
de uma mesma moeda, na qual as racionalidades modernas balizam suas
constituições por meio das hierarquizações raciais entre grupos, e com base
nestas hierarquias produzem uma concepção de humanidade: civilizada, racio-
nal e superior, frente a outras tantas cosmovisões e humanidades afirmadas
como primitivas, irracionais e inferiores. A produção do conceito de raça fará
emergir, assim, corpos destituídos de humanidade, inferiorizados, ilegítimos,
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E ENRAIZAMENTO: diálogos entre a Psicologia Social
Comunitária e a Psicologia Ambiental Latino-Americanas 83

justificando, desse modo, as inúmeras e históricas práticas de exploração,


aniquilamento e opressão como marca do projeto colonial.
Essa concepção humana presente no projeto político da modernidade,
debatida em tratados e discursos filosóficos, erige-se nas colônias por meio
da violência, da morte e da exploração de um outro diferente, que ao não se
encontrar como semelhante a este humano ocidental, pode e deve ser usurpado
para a promoção da riqueza (Fanon, 1968).
A continuidade da exploração colonial, dita como colonialidade, não irá
atuar apenas nas produções políticas e econômicas do viver, sua racionalidade
reverbera nos modos de ser, de como as pessoas vivenciam suas experiências
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no mundo; e nos modos de saber, nas formas como os sujeitos e coletivos,


diante das experiências de violência colonial, conhecem a realidade que os
cerca: “[...] a colonialidade organiza múltiplas camadas de desumanização
dentro da modernidade/colonialidade” (Maldonado-Torres, 2018, p. 42). Neste
sentido, podemos afirmar que há três dimensões que configuram os processos
de subjetivação coloniais nos territórios quilombolas: a) a colonialidade do
poder, as lógicas políticas e econômicas de exploração das terras e dos corpos
colonizados; b) a colonialidade do saber, a destituição do colonizado enquanto
um sujeito capaz de conhecimento; c) a colonialidade do ser, a captura dos
modos de experienciar o tempo e o espaço específicos de cada grupo racial,
na tentativa de submissão do sentir, do ver e do viver suas experiências às
lógicas de uma supremacia branca ocidental.
Para Fanon (1968), esta experiência moderna/colonial de subjugação é
aglutinada na vida e no corpo, do que ele vai chamar de “os condenados da
terra”: os povos, os grupos e os coletivos que viveram o processo de coloni-
zação e a experienciam atualmente nos lastros de sua violência. Para Fanon
(1968), o olhar branco ocidental atribui a estes povos o lugar de condenados
da terra. Construiu uma ficção histórica sobre a vida de outros que supos-
tamente passam a existir após a descoberta de suas terras e a exploração de
suas vidas, sendo eles constituídos enquanto objetos a serem conquistados e
dominados. Como afirma Maldonado-Torres (2018), nesta ficção ocidental,
aos condenados não cabe o conhecimento, pois estes são objetos também
descobertos, sem história e sem vida, que devem aprender a viver com quem
pretensamente lhes atribuiu um nome e um olhar. Um olhar autorreferente e
eurocentrado que impossibilita a humanidade de quem é visto.
Este ato de denominar quem é o outro e lhe direcionar o olhar não é uma
simples ação de atribuição de elementos ou característica, mas pode ser com-
preendido como um dos exercícios da dominação que, ao olhar, esquadrinha,
controla e delimita, por hierarquias raciais e de gênero, quem seria este outro.
Como em Robinson Crusoé, de Defoe (2012), que ansiava em suas andanças
84

na ilha onde naufragara a presença de outra pessoa; mas quando este encontro
se torna possível, o outro é capturado aos olhos de Crusoé como objeto dócil e
incapaz. Esta docilidade e incapacidade vai ser objetivada no outro pelo nome
que lhe foi atribuído, ‘sexta-feira’, em homenagem ao dia em que Crusoé o
encontrou: “Primeiro, dei-lhe a saber que seu nome seria Sexta-Feira, o dia
em que eu tinha salvado a sua vida; dei-lhe este nome em memória da data.
Ensinei-lhe também a me chamar de “amo”, dando a entender que era este o
meu nome” (Defoe, 2012, p. 177).
Em Crusoé fica nítido o exercício da colonialidade do olhar, no qual
o outro é tornado objeto de captura, salvo das penúrias de um mundo inci-

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vilizado, e neste processo objetivado como aquele que pode ser nominado,
manuseado e instrumentalizado aos mandos do amo. Há no ato de olhar, como
afirma Ferreira e Hamlin (2010), a produção de uma cisão entre o sujeito e o
objeto, a promoção de uma distância que dispõe o outro, agora objetificado,
ao manejo dos conhecimentos de quem olha: “Ver, nesse contexto, significa
a possibilidade de controlar. Ser visto significa a iminência de ser destruído –
pois tornar-se objeto e ser destruído aqui significam a mesma coisa” (Ferreira
& Hamlin, 2010, p. 816).
Esta política do olhar nas comunidades quilombolas se expressa em
uma política da guerra e da destruição, na qual o olhar branco eurocentrado
reivindica para si a dignidade dos que ele explora, na reificação de uma lógica
colonialista que afirma: para que eu exista o outro deve morrer; ou para que
eu exista o outro deve ser subjugado. Como afirma Dussel (1994, p. 8):

De todas maneras, ese Otro no fue “des-cubierto” como Otro, sino que
fue “en-cubierto” como “lo Mismo” que Europa ya era desde siempre.
De manera que 1492 será el momento del “nacimiento” de la Moderni-
dad como concepto, el momento concreto del “origen” de un “mito” de
violencia sacrificial muy particular y, al mismo tiempo, un proceso de
“encubrimiento” de lo no-europeo.

A existência do branco ocidental, aliada às lógicas do capitalismo global,


condiciona a sua ontologia à dominação do outro como coisa, mercadoria,
objeto. Este processo subjetivo político está alicerçado na racionalidade his-
tórica da conquista. Racionalidade esta que atua como um dos processos de
dominação às vidas negras e em suas comunidades, e que se estendem à pro-
dução da branquitude como o ato da conquista e da violência sobre o outro.
Diferente do pressuposto cartesiano moderno/colonial que supunha, nas
metrópoles do velho mundo, a existência do sujeito pelo ato da razão, na famosa
consideração filosófica “penso logo existo”, nas terras coloniais o dito é outro, o
“ego” da razão é cambiado para o “ego” conquistador, “conquisto logo existo”:
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E ENRAIZAMENTO: diálogos entre a Psicologia Social
Comunitária e a Psicologia Ambiental Latino-Americanas 85

La “Conquista” es un proceso militar, práctico, violento que incluye dialéc-


ticamente al Otro como “lo Mismo”. El Otro, en su distinción, es negado
como Otro y es obligado, subsumido, alienado a incorporarse a la Tota-
lidad dominadora como cosa, como instrumento, como oprimido, como
“encomendado”, como “asalariado” (en las futuras haciendas), o como
africano esclavo (en los ingenios de azúcar u otros productos tropicales)
(Dussel, 1994, p. 41).

Portanto, é por meio do exercício político do olhar objetificador e pela


operação da conquista que os corpos negros e seus territórios são reificados.
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Porém, um olhar ambíguo que ora os vê como natureza imanente e potente,


corpos idílicos perdidos no tempo; ora como obra inacabada, selvagem e inci-
vilizada. Ambas as compreensões desumanizam e objetificam estes corpos,
que vistos como parte da natureza, ou produtos de vidas irracionais, devem ser
domesticados para que possam ascender ao progresso e à civilidade. Este papel
falacioso e violento, da ficção ocidental, fica encarregado aos brancos, como
sujeitos capazes de guiar a vida destes povos ao desejado projeto civilizatório.
Assim, a desumanização das pessoas negras e de seus territórios passa
pela assimilação de seus corpos como parte da natureza, em um processo de
animalização de suas vidas, na hipervalorização de suas capacidades físicas,
bem como a hipersexualização de seus corpos (Fanon, 2008). A animalização e a
hipervalorização traz consigo, na ideologia da supremacia branca, a incapacidade
cognitiva destes povos de exercerem atividades intelectuais. Tal prerrogativa é
balizada nas hierarquias raciais que justificam a exploração e subjugação desses
grupos para as tarefas braçais e trabalhos que requeiram força física.
O olhar objetificador faz parte do projeto civilizatório ocidental, que
almeja a produção de corpos instrumentais destituídos de intelectos, percep-
tos e afectos. Corpos feitos mercadorias, utensílios à manutenção da ordem
colonial e do capitalismo global. A esta compreensão de corpos instrumen-
tais, Mbembe afirma (2014, p. 76): “[…] o Negro é antes de todo o resto um
corpo – gigantesco e fantástico –, um membro, órgãos, uma cor, um odor,
carne humana e carne animal, um conjunto inaudito de sensações”. Um corpo
inaudito é um corpo aparentemente sem memória, que é forjado em tentativas
de nunca se ouvir soar, ou de nunca se ouvir falar. O corpo negro é um corpo
presente, que está em todos os espaços, porém ocupando dentro do sistema
moderno lugar de objeto, ou mesmo de uma aparição, que quando presente
assombra e assusta, mas que ao mesmo tempo é destituída de sentidos, com-
preendida como sem razão e vista como não humana.
No processo de conquista dos territórios coloniais os corpos negros e seus
territórios não foram descobertos, mas foram encobertos (Dussel, 1994) pelo
olhar da supremacia branca aliada às lógicas patriarcais, que buscaram marcar
86

e desmembrar as vidas singulares e coletivas desses sujeitos e povos. Esses


desmembramentos não se verteram apenas sobre os corpos, mas se acentuam
pelos processos de desenraizamentos e deslocamentos forçados vividos pela
população negra com a afrodiáspora africana e seus desdobramentos na for-
mação dos quilombos brasileiros (Nascimento, 2006).
Trata-se de um ato de profunda violência, uma vez que para a população
negra e quilombola a vida coletiva na relação com o território é base para
suas produções cotidianas, amparam a significação de si e suas concepções
de ser sujeito no mundo. Deslocar forçadamente estes sujeitos é desfigurar
seus corpos e suas vidas, que são significados na relação com a coletividade e

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germinados no vínculo com a terra e seu território; é produzir efeitos de uma
desarticulação de seus próprios corpos, um despedaçamento de suas memó-
rias, histórias e a fragmentação de seus conhecimentos. Esta desvinculação da
coletividade ao território gerou um esfacelamento de seus perceptos e afectos
(Mbembe, 2014) diante de outro mundo e da realidade que lhe foi imposta.

5.1 A insurgência do corpo como território

Mesmo diante destas tentativas de desumanização, de desarticulação,


de invisibilidade e de despedaçamento, as comunidades quilombolas resis-
tem aos algozes da dominação. Em nenhum momento desta história suas
memórias foram apagadas, elas permanecem de forma insurgente nas vidas
cotidianas e nos coletivos organizados em luta, que articulam, atualizam e
corporificam suas experiências em vários momentos da história e no dia a
dia dos quilombos.
Estas forças insurgentes são sinergias moventes na história do Brasil: nas
lutas campesinas pelo direito à terra; nas insurreições quilombolas do passado
e na reafirmação destes territórios no presente; na resistência indígena à opres-
são e nas lutas pela retomada de suas terras; na marcha das feministas negras,
que denunciam a negligência dos direitos à população negra e afirmam seu
lugar como protagonistas de processos políticos. Estas forças possibilitam uma
subversão do olhar, como aponta Mbembe (2014), agora afirmando a supre-
macia branca como uma fantasia criada pelo ocidente, por meio dos processos
de profunda exploração e violência estrutural sobre outros povos do mundo. A
supremacia branca, ao olhar insurrecto, torna-se uma ficção moderna/colonial
forjada pela violência ou “[...] como já dissera Aimé Césaire, uma propensão
irracional para assassinar” (Mbembe, 2014, p.87). Para Mbembe (2014), os
povos colonizados nunca foram dominados, eles viveram e vivem condições
de dominação, o que os faz insurgentes e capazes de recriar suas vidas, de
ocupar seus territórios e de habitar seus corpos.
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E ENRAIZAMENTO: diálogos entre a Psicologia Social
Comunitária e a Psicologia Ambiental Latino-Americanas 87

Esta força insurgente é intensificada nas comunidades quilombolas no


encontro e na luta destes povos pela terra e pela autonomia de seu território.
A terra para estas comunidades torna-se um espaço de rearticulação das vidas
e das memórias despedaçadas ao longo desta história de violência. Uma terra
que ao ser reabitada física, simbólica e subjetivamente torna-se território de
expressões e recriações políticas coletivas e singulares. Como afirma Silva
(2017), o território é uma experiência concreta e cotidiana, não se apresenta
como expressão abstrata de um lugar, mas um espaço usado e vivido que
converge nele variados atores sociais.
Para as comunidades quilombolas a retomada, retorno e apropriação do
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território torna-se lugar de encontro como sujeitos políticos, como espaço


capaz de fazer emergir suas histórias e memórias, mesmo diante das tenta-
tivas historicamente impostas destas reminiscências ao esquecimento. Elas
são reativadas e ganham expressão viva na experiência concreta, coletiva e
cotidiana do território comum, cerne para a experiência viva no quilombo.
A terra retomada como luta política, tornada território coletivo de ocupa-
ção das vidas e das experiências quilombolas, apresenta-se como um disposi-
tivo potente de rearticulação dos corpos, não como expressão individualizada
e cindida, mas como um território ocupado e um corpo habitado. Habitar
este corpo/território é povoar a si mesmo enquanto uma instância vivida com
muitos outros entes: humanos, não humanos, espirituais, naturais e coletivos.
É a relação destas vidas com o território quilombola que permite a pro-
dução do corpo como uma nova morada, um lugar vivente de afetos e per-
ceptos que possibilitam a leitura de si, do outro e do lugar como parte de uma
experiência de resistência entre corpos e afetações coletivas (Nascimento,
2006). Esses corpos e as afirmações de suas potências sobre o território pro-
põem projetos de vida para além do poder colonial, como afirma Galindo e
Milioli (2017), como corpos abertos, que habitam as fronteiras entre a proposta
imposta pelo poder colonial e os outros diversos modos de vida trazidos e
reinventados na afrodiáspora.
Na vida cotidiana das comunidades quilombolas as lutas contra as lógicas
da dominação produzem corpos abertos ao território, como espaço capaz de
refazer e atualizar as experiências políticas e as histórias partilhadas entre
as gerações. Há nas comunidades quilombolas um campo de composição
entre o corpo e o território que permite a esta população a retomada de suas
reminiscências, e com elas a afirmação de suas histórias como corporificação
das expressões de resistência (Nascimento, 2006). Expressões estas que se
construíram historicamente na capacidade de as comunidades quilombolas
habitarem mundos dissonantes e fazerem da fronteira lugar de criação coletiva
contra a lógica colonial/moderna.
88

A composição entre corpo e território, produzida nos cotidianos das


comunidades quilombolas, permite questionar as tentativas de colonização
do pensamento propostas pela ficção colonial. Estes corpos experienciados
como territórios vivos retiram do plano metafísico a suposta subjetividade
universal, agora corporificada em experiências de afirmação de vidas negras
territorializadas nos quilombos.
Este ato de corporificação do território e de territorialização do corpo
permite uma rearticulação de vidas e histórias que foram despedaçadas, mas
que agora são vividas enquanto território coletivo incorporado. Este processo
produz afetos capazes de recriar as narrativas e histórias das comunidades qui-

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lombolas, bem como criam alternativas para enfrentar os esquadrinhamentos,
a morbidez e o automatismo impostos pela sociedade moderna:

Por tudo isto o quilombo representa um instrumento vigoroso no processo


de reconhecimento da identidade negra brasileira para uma maior auto-afir-
mação étnica e nacional. O fato de ter existido como brecha no sistema em
que negros estavam moralmente submetidos projeta uma esperança de que
instituições semelhantes possam atuar no presente ao lado de várias outras
manifestações de reforço à identidade cultural (Nascimento, 2006, p.125).

Considerações finais

Para além de uma crítica à suspensão dos processos subjetivos no ter-


ritório, ao falarmos das expressões dos corpos e comunidades quilombolas,
adentramos também uma problemática moderno/colonial que se apresenta
também à psicologia. Uma psicologia moderna que, na pretensão de construir
suas bases epistêmicas em um humano universal, desterritorializa as expe-
riências subjetivas e alinha suas produções teórico-metodológicas a tentativas
de colonização do pensamento dos povos colonizados.
As expressões do corpo no território presentes nas comunidades qui-
lombolas apresentam-se como produções capazes de romper este projeto
colonizador moderno: na encarnação das experiências cotidianas e na ter-
ritorialização dos processos subjetivos dos povos negros afrodiaspóricos.
As relações entre o corpo negro e o território quilombola trazem questões
que possibilitam uma reposição da psicologia para além de uma ciência
integrante do projeto moderno/colonial: 1- retira o caráter abstrato e univer-
salizante dos processos subjetivos, agora compreendidos como experiências
vividas no cotidiano e corporificadas no território; 2- sustenta os saberes
quilombolas como produções localizadas e corporificadas, na afirmação das
comunidades como sujeitos e coletivos de conhecimento capazes de narrar
suas próprias histórias.
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E ENRAIZAMENTO: diálogos entre a Psicologia Social
Comunitária e a Psicologia Ambiental Latino-Americanas 89

Assim, para construirmos uma psicologia que se pretende aliada às


comunidades quilombolas devemos propor ao menos dois deslocamentos: o
primeiro, como afirma Silva (2017), que busca territorializar as experiências
subjetivas retirando seus aspectos universalizantes, para compreender seus
processos na relação com a vida cotidiana e seus atores sociais; e o segundo é
compreender o corpo como força viva capaz de resistir às tentativas de coloni-
zação do pensamento impostas pelo projeto moderno/colonial (Fanon, 1968) .
Compreender a articulação entre a expressão do corpo e do território
presentes nas comunidades quilombolas é produzir conhecimentos que bus-
cam lutar contra a pretensa cisão produzida pela racionalidade moderna, que
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ao almejar a colonização do pensar, segmenta as experiências vividas pelos


povos e comunidades de seus territórios e corpos. Assim, afirmar os modos de
vida presentes nas comunidades quilombolas, como corpos territorializados e
territórios incorporados, é base para a construção de uma psicologia que des-
mistifica o caráter metafísico da subjetividade e que compreende a realidade
das comunidades quilombolas como experiências vivas e encarnadas. Não
mais como objetos de conhecimento e tampouco terras a serem descobertas,
mas enquanto alternativas comunitárias possíveis ao projeto de dominação
moderno/colonial ainda arraigado em nossos territórios.
90

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estado e laicidade: psicologia social e enfrentamentos em tempos de exceção


(pp. 301-314). ABRAPSO.
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ÍNDICE REMISSIVO
A
América Latina 9, 10, 13, 14, 19, 20, 21, 36, 39, 45, 46, 49, 53, 55, 57, 59

C
Colonização do pensamento 44, 88, 89
Comportamentos 18, 19, 45, 55, 60, 62
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Comunidades indígenas 11, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 75, 76, 77, 96
Comunidades quilombolas 81, 84, 86, 87, 88, 89, 90
Condições de vida 61, 71, 74
Corpos negros 44, 46, 81, 85

F
Fatalismo 11, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65

N
Noção de enraizamento 11, 21, 25, 28

P
Pandemia 46, 75, 76
Psicologia ambiental 9, 10, 17, 18, 19, 20, 21, 28, 35, 55
Psicologia comunitária 3, 21, 25, 33, 35, 37, 48, 51
Psicologia latino-americana 39, 46, 48, 49, 50, 51
Psicologia social 9, 10, 11, 13, 15, 16, 17, 19, 21, 22, 28, 33, 34, 35, 36, 48,
52, 55, 90, 91, 95, 96, 97
Psicologia social comunitária 9, 10, 13, 15, 16, 17, 19, 21, 28, 33, 34, 35,
36, 55, 95

R
Rede de atenção à pessoa indígena 11, 67, 68, 69, 70, 78, 96, 97

S
Sentimentos 20, 55, 60, 62

V
Vulnerabilidades psicossociais 11, 67, 69, 70, 71, 76
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SOBRE OS AUTORES
Alessandro de Oliveira dos Santos
Professor Doutor no Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do
Instituto de Psicologia da USP onde desenvolve atividades de ensino, pes-
quisa e extensão na área de intercultura e raça-etnia com ênfase nos temas:
vulnerabilidade, preconceito e discriminação, direitos humanos, planejamento
em saúde, tecnologias de intervenção psicossocial. Foi professor na Fundação
Escola de Sociologia e Política de São Paulo (2004-2010), professor visitante
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

nos Programas de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de


Rondônia (2016-2017) e Universidade Federal do Pará (2017) e no Teresa
Lozano Long Institute of Latin American Studies, College of Liberal Arts, Uni-
versity of Texas-Austin (2018). Colabora com o Programa de Pós-Graduação
em Sociedade e Fronteiras da Universidade Federal de Roraima, o Programa
de Pós-Graduação em Ciências da Sociedade da Universidade Federal do
Oeste do Pará, o Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade
Federal do Amazonas e com o Centro de Estudos das Relações de Trabalho
e Desigualdades (CEERT).

Antonio Euzébios Filho


Psicólogo formado pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (2005).
Concluiu o Mestrado (2007) e o Doutorado (2010) pelo programa de pós-
-graduação em Psicologia da PUC-Campinas. Tem experiência na área da
Psicologia Social, Psicologia Escolar e Educação, atuando principalmente
em contextos educativos e comunitários. Atualmente é professor assistente
doutor do Instituto de Psicologia da USP e do programa de pós-graduação
em Psicologia Social – Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia
Social e do trabalho. Desenvolve estudos de temáticas como: trauma psicos-
social, participação política e psicologia e políticas públicas. É membro do
Observatório do Trauma Psicossocial.

Bernardo Parodi Svartman


Possui mestrado (2004) e doutorado (2010) em Psicologia Social e do Tra-
balho pela Universidade de São Paulo. Tem experiência docente na área de
Psicologia com ênfase em Psicologia Social Comunitária e Psicologia do
Trabalho. Realizou experiências de assessoria a movimentos sociais, organi-
zações autogestionárias e ao sindicato de metalúrgicos do ABC paulista, na
área da saúde do trabalhador. Atualmente investiga os movimentos sociais da
cidade de São Paulo, suas organizações comunitárias e formas de enfrentar o
sofrimento gerado pelos fenômenos da reificação e desenraizamento.
96

Danilo Silva Guimarães


Indígena de ancestralidade Tikmu’un, Maxakali, psicólogo, professor do Ins-
tituto de Psicologia da USP, onde coordena o programa de pós-graduação em
Psicologia Experimental. Coordena também o serviço Rede de Atenção à Pes-
soa Indígena, que abriga a Casa de Culturas Indígenas do IPUSP. Desde 2012
tem mantido diálogos com pessoas e comunidades indígenas de São Paulo,
buscando aprofundar articulações com a Universidade na direção de objetivos
comuns, baseados em concepções e práticas de cuidado em saúde. As ações
promotoras de saúde, por sua vez, pressupõem a existência de ambientes onde
sejam respeitados e protegidos os direitos civis, políticos, socioeconômicos

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


e culturais das pessoas.

Fernando Santana de Paiva


Doutor em Psicologia pela UFMG. Professor de graduação e pós-gradua-
ção (mestrado e doutorado) do departamento de Psicologia da UFJF. Coor-
denador e pesquisador do Núcleo Sujeitos, Política e Direitos Humanos
(NUPSID) da UFJF.

Gustavo Martineli Massola


Possui graduação em Psicologia pela Universidade de São Paulo – Instituto de
Psicologia (IP-USP, 1997), mestrado em Psicologia Social pela Universidade de
São Paulo (IP-USP, 2001) e doutorado em Psicologia Social pela Universidade
de São Paulo (IP-USP, 2005). Atualmente é professor do Instituto de Psicologia
da Universidade de São Paulo. É orientador de doutorado no programa de Pós-
-Graduação em Psicologia Social do IP-USP. Coordena o Convênio Acadêmico
Internacional entre a Universidade de São Paulo e a Universidade Popular
Autônoma do Estado de Puebla – México. É editor da revista Psicologia USP
e membro da diretoria da Associação Brasileira de Editores Científicos de Psi-
cologia. Atua principalmente nos seguintes temas: psicologia socioambiental,
constituição psicossocial da identidade, psicologia social, e controle social.

Jáder Ferreira Leite


Doutor em Psicologia Social pela URFN (2008). É professor dos cursos de
Graduação e Pós-Graduação em Psicologia da UFRN. Atualmente é mem-
bro da diretoria da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Psicologia/ANPEPP (biênio 2021/2022). Bolsista de produtividade em Pes-
quisa 2 – CNPq.

Patrícia Moura Fernandes Silva


Bacharela e psicóloga formada pelo Instituto de Psicologia da USP (2019).
Especialização em Psicologia Hospitalar pelo HC-FMUSP (2022) em área
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E ENRAIZAMENTO: diálogos entre a Psicologia Social
Comunitária e a Psicologia Ambiental Latino-Americanas 97

específica de Nefrologia e Hemodiálise, Experiência em atividades de pesquisa


e extensão universitária na “Rede de Atenção à Pessoa Indígena”, serviço do
Instituto de Psicologia ligado ao Departamento de Psicologia Experimental,
sendo então bolsista do Programa Aprender com Cultura e Extensão (2016).
Realizou intercâmbio acadêmico para a Universidad de la Republica (2018),
como Bolsista do Programa de Mobilidade Internacional Santander.

Rafaela Waddington Achatz


É mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Univer-
sidade de São Paulo (USP), com coorientação no Programa de Pós-Graduação
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

em Antropologia Social da USP. É bacharela em Psicologia pela Universidade


de São Paulo (2013/2018). Integrante da Rede de Atenção à Pessoa Indígena,
serviço oferecido pelo Instituto de Psicologia da USP; do Grupo de Pesquisa
Ambiente, Diversidade e Saúde, da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ); do
Grupo de Pesquisa em Etnologia, Linguística e Saúde Indígena (ETNOLINSI),
ligado ao PPGA-UFBA e do Fórum sobre Violações de Direitos dos Povos
Indígenas (FVDPI), ligado à Associação Nacional de Direitos Humanos, Pes-
quisa e Pós-Graduação (ANDHEP). Também é colaboradora do Programa de
Psiquiatria Social e Cultural (PROSOL) do Instituto de Psiquiatria do Hospital
das Clínicas na USP (IPq-HC/FMUSP). Temas de estudo: Saúde indígena,
etnologia, psicanálise, etnopsiquiatria e psicologia cultural.

Saulo Luders Fernandes


Doutor em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo. Professor
adjunto do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Alagoas. Pro-
fessor vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universi-
dade Federal de Alagoas. Realiza pesquisas e projetos na área de psicologia
social com ênfase na luta pela garantia de direitos às comunidades tradicionais
do semiárido.
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SOBRE O LIVRO
Tiragem não comercializada
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 12,3 x 19,3 cm
Tipologia: Times New Roman 10,5 | 11,5 | 13 | 16 | 18
Arial 8 | 8,5
Papel: Pólen 80 g (miolo)
Royal | Supremo 250 g (capa)



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Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

 

   
      
   
           
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ISBN 978-65-251-4801-4

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


INSTITUTO DE PSICOLOGIA 9 786525 148014

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