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Artigo

“CARIAPÉ”: UM CASO DE PADRONIZAÇÃO DE ERRO EM


ARQUEOLOGIA

Robert L. Carneiro** Resumo


Através dos escritos de Betty J. Meggers
e Clifford Evans, “cariapé” ficou estabele-
cido na literatura arqueológica como o
nome das cinzas de uma casca de árvore
rica em sílica, largamente utilizada por ín-
dios amazônicos como tempero da cerâ-
mica. Mas a grafia “cariapé” é um erro; a
forma correta é “caraipé”. Evidência é apre-
sentada para provar isso e a fonte do erro
é então demonstrada.

Palavras-chave: Cariapé/ Caraipé, cerâmi-


ca, arqueologia amazônica.

Abstract
Through the writings of Betty J. Meggers
and Clifford Evans, “cariapé” has become
established in the archaeological literature
as the name of the siliceous bark ash used
widely by Amazonian Indians to temper
their pottery. But the spelling “cariapé” is
an error; the corre ct form is “caraipé”.
Evidence is presented to prove this, and
the source of the error is then traced.

Traduzido por Denise Pahl Schaan (Universidade Federal do Pará).


**
Artigo originalmente publicado no Journal of the Steward Anthropological Society, vol. 6, n. 1, p. 71-75,
1974. Traduzido por Denise Pahl Schaan (Universidade Federal do Pará).
***
Curador do American Museum of Natural History, New York (USA).

Revista de Arqueologia, v.22, n.1, (jan-jul.2009): 9 - 13, 2009 9


CARNEIRO, R. L.

Keywo rds: Cari apé/ Cara ipé, cera mics , artigo Ceramics, no volume 5 do Handbook
Amazonian archaeology. of South American Indians, escrito antes
de ele ter sido influenciado pelo uso feito
Muitas tribos indígenas da Amazônia por Meggers e Evans, Willey escrevia o
temperam sua cerâmica com cinzas obti- termo corretamente, pois na página 143
das através da queima da casca de uma de seu artigo ele escreveu: “Provavelmente
árvore do gênero Licania. Essa casca con- o antiplástico mais comum usado na flo-
tém pequenos cristais de sílica que, livres resta tropical são as cinzas ricas em sílica
da matéria orgânica que os circunda, pro- da casca da árvore caraipé”. Mais de 20
porciona um excelente material para tem- anos mais tarde, entretanto, escrevendo
pero. O nome agora comumente utilizado no volume sul americano de sua Intro-
por arqueólogos sul americanos para esse duction to American Archaeology, encon-
tempero é “cariapé”. Escrito dessa forma, tr am os Wil le y tã o di sp os to a se gu ir
o termo parece ter sido usado primeiro por Meggers e Evans que ele também agora
Betty J. Meggers, em 1948, em seu artigo chama esse tempero de casca de árvore
The Archaeology of the Amazon Basin, no de “cariapé” (Willey 1971: 404).
Handbook of South American Indian - vol. Aqui, então, temos um caso claro de
3 (Megg ers, 1948: 160). Desde aque la uma “padronização do erro” na ciência.
data, Meggers e seu companheiro, Clifford Até agora simplesmente afirmei que a
Evans, têm usado “cariapé” repetidamen- grafia “cariapé” é incorreta. Agora gosta-
te em suas publicações, como, por exem- ria de demonstrar isso e, então, indicar
plo, em ArchaeologicalInvestigationsat the como o erro parece ter surgido. A primeira
Mouth of the Amazon (Meggers e Evans, prova a ser analisada é que “cariapé” não
ocorre na literatura publicada antes do uso
1957: 81) e em Archaeol ogica l Inve sti-
fei to por Megg ers e Evan s, enq uanto
gations in British Guiana (Meggers e Evans
“caraipé” aparece. Se observarmos as fon-
1960: 130, 168, 224, 310). tes do século XIX, como Richard Spruce e
Porém, referir a esse tempero de cas- Henry Walter Bates, por exemplo, encon-
ca de árvore como “cariapé” é um erro. A tramos seu uso atestando que a forma
grafia correta do termo é “caraipé”. Mes- correta é “caraipé”. Após uma visita a uma
mo assim, tem sido tão grande a autorida- aldeia indígena próxima de Belém do Pará,
de de Meggers e Evans que seu erro vem Spruce escreveu: “mostraram-me então a
sendo copiado sem questionamento pelos cerâmica com caraipé, que (...) era feita
arqueólogos sul americanos que vieram de partes iguais de uma argila fina (...) e
depois deles, e é, hoje, normal na literatu- de ca sc a de ca ra ip é ca lc in ad a (. .. )”
ra. Mesmo Donald Lathrap, que desafiou (Spruce, 1908: 12). E Bates observou so-
Meggers e Evans em diversas questões bre a cerâmica feita pelos habitantes de
relativas à pré-história Amazônica, silen- Santarém: “para que os vasos possam re-
ciosamente aceitou a grafia “cariapé” (ver, sistir à queima, a casca de uma certa ár-
por exemplo, Lathra p, 1970: 155, 156, vore, chamada caraipé, é queimada e mis-
182). turada com a argila, o que confere tenaci-
O exemplo mais impressionante de to- dade ao vaso (Bates 1892: 199).
dos, entretanto, sobre quão decisivamen- Com relação às fontes mais recentes,
te Meggers e Evans afetaram seus cole- encontramos o botânico Paul Le Cointe
gas nessa matéria, se encontra nos escri- (1947) que em seu dicionário sobre as
tos de Gordon R. Willey. Em 1949, em seu plantas úteis da Amazônia, tem um verbe-

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“Cariapé”: um caso de padronização de erro em arqueologia.

te ch am ad o “c ar ai pé ”, ma s ne nh um uma casca de árvore rica em sílica), e


“cariapé”. E o Pequeno Dicionário Brasi- partículas finas de quartzo moído. Uma ex-
leiro da Língua Portuguesa (Lima 1951) planação do tempero de cariapé é mais
apresenta somente “caraipé”. bem dada por uma citação direta: (...)”. E
O caso para a cor reç ão da escrita eles prosseguem citando uma passagem
“caraipé” está estabelecido sem nenhuma do artigo de Linné de 1931, traduzindo-o
dúvida pela etimologia da palavra. Assim ao inglês. Reproduzo aqui essa passagem,
como muitas plantas e animais brasileiros, exatamente como aparece em Meggers e
o nome comum para a árvore da qual a Evans:
casca rica em sílica é obtida é de origem
Usualmente é dito que a casca é tirada da
Tu pi -G ua ra ni . Co ns ul ta nd o Ru iz de árvore cariapé. Esse nome me parece ser
Montoya, em seu Vocabulario y Tesoro de uma designação comum para várias plan-
la Lengua Guarani, ó mas bien Tupi pare- tas, como, por exemplo, Bignoniacea, o gê-
ce claro que “caraipé” é derivado de “cará”, nero Moquilea e Licania utilis, Turiuva, etc.
Desafortunadamente, nossas fontes não são
‘destro’ (=útil?) + ipê, ‘casca de árvore’ explícitas a respeito da espécie da árvore
(Montoya 1876:89, 176). em questão (...) (Linné, 1931:206-207).
Todas as evidências, então, convergem
para mostrar que a escrita “cariapé” é um Então, imediatamente após essa pas-
erro, e que a forma correta é “caraipé”. Mas sagem, Meggers e Evans novamente ci-
como esse erro surgiu, em primeiro lugar? tam Linné, desta vez a partir de Technique
Meggers e Evans, eles próprios nos dei- of South American Ceramics:
xaram uma pista sólida para a resposta.
A casca é queimada, e a partir disso é moí-
Anteriormente ao seu próprio trabalho da e misturada à argila. A queima é feita com
na área, o maior especialista em cerâmi- o propósito de remover os componentes or-
ca am az ôn ic a er a Si gv al d Li nn é. A gânicos que, de outra forma, iriam diminuir
monografia de Linné (1925), The Techni- a durabilidade dos vasos durante a queima
(Linné, 1925:38).
que of South American Ceramics, apresen-
tava uma análise detalhada da produção
Agora, se Meggers e Evans citaram a
de cerâmica na América do Sul. Alguns
primeira passagem corretamente, então o
anos mais tarde, em um artigo, intitulado
erro inicial na escrita é de Linné. Mas eles
Contrib ution a l’étude de la Céramique não copiaram corretamente. Se examinar-
Sudaméricaine, publicado na Revista del mos o original, encontramos que Linné
Instituto de Etnología de La Universidad escreveu “caraipé”, não “cariapé”. Além
Nacionalde Tucumán, Linné (1932) expan- disso, se lemos o restante da página 38
diu certas partes de seu trabalho prévio, da monografia de Linné de 1925, da qual
com base em novos dados e posteriores Meggers e Evans citaram a segunda pas-
análises laboratoriais. sagem, encontramos, novamente, Linné
Meggers e Evans, tinham, é claro, fa- escrevendo “caraipé”, não “cariapé”.
miliaridade com o trabalho de Linné, e em O que parece ter acontecido foi isso:
seu Archaeological Investigations at the aparentemente, por não estarem familiari-
Mouth of the Amazon, basearam-se nele. zados com o termo “caraipé” quando pela
Descrevendo o antiplástico de “Camaipí primeira vez o encontraram nos escritos
Plain”, um tipo de cerâmica encontrado no de Linné, Meggers e Evans o transcreve-
ter rit óri o do Ama pá, ele s esc rev era m ram incorretamente. Além disso, parece
(1957: 81): “Tempero: Cariapé (cinza de que nunca checaram sua transcrição, e

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CARNEIRO, R. L.

então falharam em descobrir o erro. E ha- corrigir um erro tão óbvio. O mesmo cui-
vendo ocasião de referir a esse tipo de dado meticuloso que guia arqueólogos em
tempero muitas vezes desde então, eles suas escavaçõe s deveria ser regra em
repetiram e, portanto, agravaram seu erro. matérias de terminologia. Dou-me conta,
Mais ainda, os arqueólogos sul america- é claro, que para algumas pessoas essa
nos que os seguiram eram limitados em questão pode parecer, quase literalmen-
seu conhecimento da etnologia e botâni- te, uma questão menor, e, portanto, não
ca Amazônica, ou tão intimidados pela au- valeria a pena o trabalho de retificá-la. A
toridade de Meggers e Evans que falha- esses eu diria que, se os padrões de cor-
ram em questionar a grafia do termo. Logo, reção científicos são relaxados em uma
a maneira incorreta “cariapé” gradualmen- instância, certamente serão relaxados em
te se tornou estabelecida na literatura. outras. E os arqueólogos devem valorizar
Uma questã o final permanec e: esse altamente a acurácia científica para dei-
erro está tão arraigado agora para ser cor- xar sem correção um pequeno erro, uma
rigido? Acho que não. Ou, pelo menos, eu vez que esse tenha vindo à tona.
detestaria acreditar que é muito tarde para

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