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«Obrigado, meu Pai, por revelares aos pequeninos


o que escondeste aos sábios e aos inteligentes.» RENÉGIRARD
Depois, os sábios e os inteligentes vingaram-se: à força
de pisarem os Evangelhos, fizeram deles uma pilha
de excertos e bocados demasiado heteróclita para significar
fosse o que fosse ...
Mas não será sua a última palavra! René Girard pensa,
tal como Simone Weil , que os Evangelhos são uma teoria
do homem antes de ser uma teoria de Deus. Um mapa
EU VIA
das violências, onde o orgulho e a inveja encerram
a humanidade.
Descobrir esta teoria do homem e aceitá-la é dar vida
aos grandes temas evangélicos relativos ao mal, esquecidos
SATANÁS
CAIR DO c~u
e abandonados pelos crentes-de Satanás ao Apocalipse.
É, de igual modo, ressuscitar a ideia da Bíblia como sendo
toda ela profética de Cristo.
Assim, os Evangelhos, longe de serem «Um mito semelhante
a todos os outros» , tal como se repete a bel-prazer desde há
dois séculos, seriam a chave de toda a mitologia do passado,
e do futuro, da história inaudita que nos espera.
Perante a ruína de todos os pensamentos modernos,
serão as Santas Escrituras as únicas a ficarem de pé?
COMO UM RAIO
RENÉ GIRARD nasceu em Avignon no Natal de 1923, é doutorado
em Filosofia e ensinou durante muito tempo na Universidade de Stanford,
onde ainda reside. Os seus livros são estudados e traduzidos
no mundo inteiro.
É considerado pela maioria dos filósofos contemporâneos
como "º Hegel do Cristianismo».

~
I SBN 972-771-622-9
AG
217

LJ ,. , , GIE
VOI (P)
(2 02] CRENÇA ERAZÃO
00
CRENÇA ERAZAO

1. CRENÇA E RAZÃO
Guy lAw rtlies
2. AS SEREIAS DO IRRACIONAL
Dominique Terré-Fomaccinri
3. A SlNCRON1ClDADE, A ALMA E A CIÊNCIA
H. Reeves / M. Cnzenave / P. Solie / K. Pribram / H.-F. Etter / M.-L. Von Franz
4. COSMOS E ANTHROPOS
Erro/ E. Harris
5. O COMBATE DA RAZÃO
Manuel de Diég11ez
6. TR~ MENSAGEIROS PARA UM SÓ DEUS
Roger Ama/dez
7.,P,ÓS-MODERN1SMO, RAZÃO E RELIGIÃO
Ernest Gellner
8. A PRESENÇA DO PASSADO
Rupert Slie/drake
9. A CIÊNCIA E A ALMA DO MUNDO
Micliel Cázenave
10. AS RAÍZES DA RELIGIÃO
Henri Hatzfeld
11 . PÓS-MODERN1SMO E ISLÃO
Akbar S. Alimed
12. O ISLÃO POLÍTICO E CRENÇA
Mnxime Rodinso11
13. AS FESTAS DE DEUS
Guy Deleury
14. CREDO
Hans Kiing
15. A FÉ E A RAZÃO
Nay/a Faro11ki
16. NO QUE EU ACREDITO
/acques Gaillot
17. O PERDÃO TRANSFIGURADO
/eari IA!fitte
18. A ENC!CUCA ESCONDIDA DE PIO Xl
Georges Passelecq / Bernard S11c/1ecky
19. COSMOS E THEOS
Erro/ E. Harris
20. COMO UM RELÃMPAGO RASGANl:x) A NOITE
Dalai-lAma
21. PARA ALÉM DOS DOGMAS
Dalai-lAma
22. JESUS E BUDA
Marcus Borg / Jack Kornfield
23. QUE ISLAMlSMO AÍ AO LADO?
François Burgot
24. DEUS E O B/G BANG
Daniel C. Matt
25. JESUS E BUDA
Odori Vallet
26. PARA ALÉM DO BJG BANG
Willem B. Drees
27. HUMANISMO, FRANCO-MAÇONARIA E ESPIRJTUALIDADE
Claude Saliceti
28. DARWIN, TEILHARD DE CHARDIN
Jacques Arnould
29. O FEMININO DO SER
A1111ick de Souze11elle
30. A TEOLOGIA DEPOIS DE DARWIN
Jacques Amou/d
31. A GRANDE DEUSA
Jean Markale
EU VIA SATANÁS
32. UM CRISTIANISMO DE FlITURO
Paul Va/adier
33. O EVANGELHO DE UM UVRE-PENSADOR
Gabriel Ri11glet
CAIR DO CÉU
34. RACIONALIDADE E RELIGIÃO
RogerTrigg
35. PACIFICAR O ESPíRITO
Dnlni-l.Amn
COMO UM RAIO
36. EM BUSCA DA DEUSA-MÃE
Lym1 E. Roller
37. CONCEITOS DE DEUS
(Lucas 10,18) *
Keit/1 Ward
38. E O HOMEM CRIOU A BfBUA
André Paul
39. EU VIA SATANÁS CAIR DO CÉU COMO UM RAIO
René Girard

• Todas as traduções dos textos bíblicos presentes nesta obra tiveram como referência
a Bíblia Sagrada, nova edição papal, traduzida das línguas originais com uso crítico
de todas as fon tes an tigas pelos Missionários Capuchinhos, Lisboa. (N . T.)
,,

RENÉGIRARD

EU VIA SATANÁS
CAIR DO CÉU
.COMO UM RAIO

Biblioteca Padre Vaz

Título original: Je vois Satan tomber comme l'éclair 11111111111111111111111111111111111111111111111111


Autor: René Girard 20170681
Eu via satanás cair do céu como um rai o
© Éditions Grasset & Fasquelle, 1999
Direitos reservados para a língua portuguesa
INSTITUTO PIAGET
Av. João Paulo II, lote 544, 2. 0 -1900-726 LISBOA • Te!. 21 8316500
E-mail: piaget.editora@mail.telepac.pt
Colecção: Crença e Razão, sob a direcção de António Oliveira Cruz
Tradução: Vasco Farinha
Capa: Dorindo Carvalho
Paginação: Isabel Balsa
Im pressão e acabamento: Rama - Artes Gráficas, Lda.
Depósito legal: 188 691 / 2002
ISBN: 972-771-622-9

Nenhuma parte desta publicação pode ser rep rod uzida ou transmitida por
qualquer processo electrónico, mecânico ou fotográ fico, incluindo fo tocópia, INSTITUTO
xerocó pi a o u g ra vaçã o, se m auto ri za ção pré vi a e esc rita d o edito r. PIAGET
1.

Aos nwus 11dos


Olivin t' Mnttlit'I~
]t'ssit', Dn 11 iellt', Dnvid e Pt>ta
Gabriel/e, Vi rgin in e Rel1l!e

FAJE
20170681
INTRODUÇÃO

Lenta mas irresistivelmente no planeta inteiro, esmaece o domí-


nio do religioso. Entre as espécies vivas, cuja sobrevivência o nosso
mundo ameaça, é preciso contar as religiões. As mais pequenas
estão mortas desde há muito tempo, as maiores passam por um
momento menos bom do que aquilo que se diz, mesmo o indomável
islão, mesmo o inumerável hinduísmo.
Nalgumas regiões, a crise é de tal forma lenta que pode ainda
negar-se a sun existência sem demasiada inverosimilhança, mas
por pouco tempo. A crise acontece por todo o lado e por todo o lado
se acelera, embora com ritmos diferentes. Começou nos países há
mais tempo cristianizados e é ai que está mais avançada.
Os nossos sábios e os nossos ernditos esperam, desde há séculos,
o desaparecimento do cristianismo e, pela primeira vez, ousam afir-
mar que chegou a hora. Entrámos, afirmam com solenidade, ainda
que de um m.odo pouco insípido, na fase pós-cristã da história
humana.
Certamente, muitos observadores faz em uma interpretação
dife ren te da situação actua l. Todos os seis meses, predizem um
«regresso do religioso». Agitam o espectro dos fundam.enta lismos.
Mas es tes movimentos mobiliza1n apenas ínfimas núnorias . São
reacções desesperadas à, em toda a parte, crescente indiferença reli-
g10sa.

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Os comparativistas anticristãos não perde111 nunca 11ma opor-
A crise do religioso é, realm en te, um dado f undamen tal do
tunidade de comparar a l.'ucaristia cristã a festins canibais. Longe
nosso tempo. Pnra se lhe encontrar o começo é preciso remontar à
de excluir estns compnrnções, a linguagem dos Evnng1:'/hos refere-
wúficnçiio primeira do planeta, às Grandes Descober tas, tal vez
as: «Quem niio comer n minha carne e não beber o meu sangue, diz
mais atrás aindn , n tudo o que impele n inteligência humana para
Jesus, não terá n vida eterna .» A acreditar em ]afio, que as cita,
as comparações. ,
O co111pnrativis1110 selvagem age im piedosame nte por toda a estas palavras nterroriznrmn de tal modo os discípulos que muitos
parte e enfrenta todns ns religiões, mas ns mais vulneráveis são, fug iram para não mnis voltarem (6, 48-66).
com todn a evidência, as 111nis intransigen tes e em particular a que Em 1926, A. N . Whitehead deplora va «n falta de distin ção
faz assentar n snlvnçiio de todn a Humanidade 110 suplício de um clnra en tre o cristianismo e ns grosseiras extra vagâncias dns velhas
jovem judeu desconhecido há dois mil anos em ]ern salém. Para o religiões tribais» («Christianity lacks a clear-cut separation
cristianismo, jes us Cristo é o único redentor: «niio há debaixo do from the crude fancies of the older tribal religions» ).
céu qualquer outro nome dado aos homens que nos possa salvar» O teólogo protestante Rlldolfo Bult111an11 dizia aberta111ente que
(Actos 4, 12). o relato evangélico se parece demasiado com todos os mitos de morte
A feira moderna das religiões submete a con vicção cristã a umn e de ressurreição pnra não ser um deles. Apesar dl.' tudo, preten-
árdua proun. Durante quatro ou cinco sérnlos, viajantes e etn ó- dia-se crente, resol11tnmente apegado a um cristianismo puramente
logos lan çara m grande quantidade, a um plÍblico cnda vez mais «existencial », desembnraçndo de tudo o que o Hom em moderno
curioso, cadn vez mnis céptico, descrições de mitos arcaicos mais des- considera como inacreditável «na era do automóvel e dn electricidade».
concertantes pela sun familiaridade do que pelo se u exotismo. Para extrair do seu in vólucro mitológico n nbstrncçiio de quinta-
Já no Império Roman o, alguns defen sores do paganismo viam -essência cristii, B11ltmann praticava uma operação cirúrgica bap-
na Pni:rão e nn Ressurreiçiio de Jesus Cristo um muthos análogo tizada Entmy thologisierung ou des mis tificação . Suprimia
ao de Osíris, Á tis, Adónis, Ormuz, Dioniso e outros heróis e heroínas impiedosamente do seu credo tudo o que lhe lembm va a mitologia.
dos mitos ditos de morte e ressurreição. Considerava esta operação como objectiva, imparcial e rigorosa. Na
A condenaçiio, muitns vezes colectivn, de uma vítima vê-se em realidade, conferia não só nos automóveis e n electricidade, mns tam-
todo o lado, e em todo o lado res ulta n11rnn renpnriçiio triunfal dessn bém à mitologia, um verdadeiro direito de veto sobre n revelação cristã.
mesma vítima ressuscitndn e divinizada. O que, nos Evangelhos, mais lembra os mortos e as reaparições
Em todos os rnltos arcaicos, os ritos comemoram e reprodu zem mitológicas dns vítimas únicas, é a Paixão e a Ress urreicão de
o mito f undador no imolarem vítimas h11mn11ns ou animais subs- Jesus Cristo. Poderá desmistificar-se o Domingo de Páscda sem
tituídos à vítima original, da qual os mitos nnrrnm n morte e o aniquilar o cristianismo? A acreditar em São Paulo, não: «Se Cristo
regresso triunfal. Em 1'egra gera l, os sacrifícios ncnbnm numa refei- não ressuscitou, é vã a vossa fé ... » (Coríntios, 15, 17).
ção tomada em. conwm. Animal ou humana, é sempre a vítima que
faz as despesas do banquete. O canibalismo ritual não é «umn *
invenção do im peria lismo ocidental », é um dado f undamental do * *
religioso arcaico. Apesar do seu ardor, o comparativisino dos velhos etnólogos
Sem aprovar a violência dos conq11istadores, compreende-se nunca ultrapassou o estado impressionista. À procura frenética das
sem difiwldade a impressiio que lhes fnzimn os sacrifícios astecas.
semelhanças, a nossa época pós-colonial, por razões de ordem inte-
Viam nisso uma paródia diabólica do cristianismo.

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lectual, assim como de oportunismo político, substituiu uma glorifi- menos não direc tamen te. O mrn raciocínio incide sobre dados
cação, não menos frenética, das diferenças. Esta troca parece consi- puramente humanos, refere-se à antropologia do religioso e não à
derável, mas, na realidade, não tem a menor im portância. teologia. Assenta no simples bom senso e apela apenas para evi-
Dos milhares de pés de erva de uma pradaria pode dizer-se quer dências manifestas.
que são todos se111ellwntes quer que são todos diferentes. As duas Para começar, é preciso que nos reconciliemos, senão com o
fórmulas são equivalentesl. velho método comparativo, pelo menos com a ideia de compara-
O «pluralismo », o «m11lticulturalismo» e as outras recen tes çiio. O que os fracassos do passado demon straram foi a impotência,
varia ções do relativismo mode rno es tão f undamen talm ente de não do princípio compara tivista, mas do uso com um único propó-
acordo com os velhos etnólogos comparativistas, mas tornam imí- sito que dele f izeram, na viragem do sécu lo XIX para o século xx, os
teis as negações brutais do passado. É se111 grande esforço que pode- velhos etnólogos anti-religiosos.
mos en tu siasmar-nos com a «originalidade » e a «criatividade» de Devido à sua hostilidade ao cristianismo, estes inves tigadores
todas as culturas e religiões. baseavam-se exclusivamente nos mitos. Tratavam os mitos como
Nos dias de hoje, tal como dantes, a maioria dos nossos contem- objecto~ _conhecidos, aos quais se esforçavam por reduzir os Evan-
porâneos sen te a comparação do cristianismo a 11111 núto como uma gelhos supostamente desconhecidos, pelo menos por aqueles que os
evolução irresistível e irrevogável, pois fa z-se valer do único tipo de to111ava111 por verdadeiros. Dizia-se que se os crentes tivessem feito
conhecimento que o nosso mundo ainda respeita, a ciência. Mesmo 11 111 uso correcto da sua ra zão, teriam reconhecido a natureza
se a natureza mítica dos Evangelhos ainda não foi demonstrada mítica da sua crença.
ci-en-ti-fi-ca-men-te, diz-se que o será mais tarde ou mais cedo. Es te método pressupunha 11111 domínio da mitologia que, na
rc'alidade, estes etnólogos nii.o possuiam. Eram incapazes de definir
Estará tudo isto verdadeiramente certo? com exactidão o que entendiam por mítico.
Para não volta r a cair-se nes te impasse, há que volta r atrás e
Não só não está certo, com.o é certo que o não está. A compara- partir da Bíblia e dos Evangelhos. Trata -se, não de proteger a tradi-
ção dos textos bfblicos e cristãos a mitos é um erro fácil de refu tar. ção judaico-cristã e, de imediato, dar por demonstrada a sua singu-
O carácter irredutível da diferença judaico-cristã pode ser demons- laridade, mas, pelo contrário, começar por singularizar todas as
trado. É esta demonstração que constitui o essencial do presente parecenças entre, por um lado, o mítico e, por outro lado, o btblico e
livro. o evangélico.
Peran te a palavra «demonstração » toda a gente vai aos arames, Graças a uma série de análises que incidem, em primeiro luga r,
os cris tãos ainda mais depressa que os ateus. Em caso algum, sobre textos bíblicos e cristãos, na primeira parte do presente ensaio
dizem os primeiros, os princípios da fé poderiam. ser objecto de uma (cap itulas 1-111) e, em seguida, sobre os mitos, na segunda parte
de m.ons tração. (capítulos I V- VII/), esforço-me por nwstrar que, por detrás de todas
Mas quem es tá a fa lar de f é religiosa? O objecto da minha as aproximações e comparações, não há nada, há uma realidade
demonstração nada tem a ver com os princípios da fé cristã, pelo extratextual . Há um «referente », conw dizem os lingu istas, e é
quase sempre o mesmo, é o mesnw processo colectivo, é um fenó-
1 Sobre as relações entre as teses do presente ensa io e o «diferencialismo» meno de m.ultidões específico, um acesso de violência mimética,
contemporâneo, ver Andrew McKenna, Viole11ce nnd Difference, Uni versity of unânime, que se produz nas comunidades arcaicas no paroxísm.o de
lllin o is Press, 1992.
um certo tipo de crise social. Se for verdadeiramen te unânime, esta

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violência põe sempre fim à crise que n preade, reconciliando n Longe dr? semn mais ou menos equivalentes, tal como se é, for-
con111nidnde contra umn vítima rínica , não per tinente, o tipo de çosamente, tentado a pensar se se confiar nas sr?melllanças do pró-
vítimn n que, com 11111 tom fn mi/iar, chnmnmos «bode expiatório ». prio acontecimento, os rela tos bíblicos e eva ngélicos distinguem-se
Lonae de minimizar ns semelhan çns entre, por um Indo , os dos relatos míticos tão radical e decisivamente quanto possível.
mitos e~ por outro lado, o j11dnico-cristão, mostro ~ue iio ain~a Os rf!latos míticos retratam. as vítimas dn violência colectiva
mais espr?ctarnlares do que pen snvnm os 7..'r:'il10s r?tnologos. A v10- como rnlpados. Siio simplesmente falsos, ilusórios, mf!n tirosos. Os
lêncin central dos mitos arcaicos é bnstnn tr? nnnloga à que se encon- relatos bíblicos e f!va ngélicos retratam estas 111esmas vítimas como
tra cm 11111itns narracões bíblicas e, sobretudo, à Paixiio de Cristo. inocentes . São essencialmente exactos,Jiáveis e verídicos.
Na 111nior parte d~s casos, é w11a espécie de linchamento espon- Em rL'gra geral, os relatos míticos são directamentr? indecifrá-
tâneo que se d~senrola no mitos, e ter-se- in , se111 dúvida , r~produ­ veis, demasiado fantásticos para serem legíveis. As comunidades
zido contrn Cristo, sob n formn de um npedrejnmento, se Pilatos, a que os elaboram nada mais podem. fa zer a não ser transfigurá-los:
fim de r?vitar a sublevação dn pop11lnçiio amea çadora , não tivr?sse são unanimemente iludidas por um contágio z iolento, por uma
ordenado a crucificaçiio «/eaa/ » de Jesu s. exalta ção' miméticn que as persuade da wlpabilidade do seu bode
É preciso ver, penso, e111 toda s as violências míticas e bíblicas, expiatório e, assim, as reconcilia contra ele. É esta reconciliação
nconteci111e11tos reai- cujn recorrência está re/acio11ndn , em todas ns que dese ncadeia, num segundo tempo, a divinização da vítima ,
rnlturas, com a universalidade de 11111 certo tipo de co11f!ito entre os vista como responsável da paz por fim encontrndn.
homens, as rivalidades miméticas, n que Jesu s Cristo chama escân- É pelo facto de ns comunidades míticas niio compreenderem
dalos. o que lh es sucede que os seus relatos parecem indecifrá ve is.
Na minha opiniiio, esta seq11ê11cia fenom enal, este ciclo mimético, Efectivamente, os etnólogos nunca conseg11ira111 decifrá-los, nunca
reproduz-se continuamente, a um rit mo mais 011 menos rá~id~, n~s deram conta da ilusão s11 scita da pela unanimidade vio!e11 ta porqui>
comunidades arcaicas. Para a identificar, os Eva11gelhos sao 111d1s- não começam por discernir, por detrás da violêncin mítica, .o fenó-
pensáveis, pois só neles es te ciclo estn descrito deform'a inteligível e meno de multidão.
a sua natureza é explicada. Apenas .os textos btblicos e evangélicos permitem vencer esta ilu-
Infelizmen te, nem os sociólogos , que se afastam por sis tr?m.a dos são porque os próprios autores a ultrapnssaram . Quer na Bíblia
Evangelhos, nem, parndo:rnl111ente, os teólogos, sempre predispos- hebraica quer na Paixão, dão representações, exactas no essencial, de
tos a favor de qualquer uisiio filosófica do Homem, têm o espírito
fenómenos de multidiio muito análogos aos dos mitos. Inicialmente,
/ivrr? o suficiente para suspeitarem dn importância antropológica do
seduzidos e enganados pelo contágio mimético, tal como os autores
processo esclarecido pelos Evnngell10s, a exa ltação mimética contra
dos 'mitos, os autores btblicos e evangélicos foram, finalmente,
uma vítima única. desenganados. Esta experiência única torna-os capazes de aperce-
Até à data, apenas o anticristianismo recon.hecf!u que o processo,
ber, por detrás do contágio mimético que os desencaminhou junta-
que se produz em inúmeros mitos, se produz também na crucificação
mente com o resto da multidão, a inocência da vítima.
de Jesus. O anticristianismo via nisto um argumento a favor da sua
tese. Na realidade, longe de confirmar a concepção mítica do cristia- Tudo isto se torna manifesto a partir do momento em que se
nismo, es te dado comum, es ta acção comum, uma vez compreen- compare aten tamen te a um mito tal como o de Édipo um relato
dida, pennite revelar a divergência crucial, nunca antes assinalada bfblico tal como a história de José (capitulo IX) 011 os relatos da
(a n~o ser por Nietzsche), entre os mitos r? o cristianismo. Paixão (capítulo x).

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Para se Jazer um uso verdadeiramente efica z dos Evangelhos, é
*
preciso ainda um olhar livre de preconceitos modernos a respeito de
* *
certas noções evangélicas, injustamente desvalorizada s e desacre-
ditada s pela crítica com pretensões cientificas, em particular, nos Como se vê, a minha análise não é religiosa, mas con verg~ para
Evangelhos Sinópticos, a noção de Satanás, ou seja o Diabo no 0 religioso. Se estiver correcta, as suas consequências religiosas são
Evangelho de João. Este personagem desempenha, no pensamento incalculáveis.
cristão sobre os conflitos e sobre a génese da s divindades mitológi- O presente livro constitui, em última instância, aquilo a que se
cas, um papel-chave ao qual n identificação do mimetismo violento chama va, outrora, uma apologia do cristianismo. Longe de dissi-
permite Jazer justiça . 11111/ar este aspecto, reivindico-o sem hesitar. Esta defesa «antropo-
Os mitos invertem, sistematicamente, n verdade. Inocentam os lógica » do cristianismo nada tem a ver, seguramente, nem com as
perseguidores e castigam as vítimas. São sempre enganadores por- velhas «provas da existência de Deus», nem com o «argumento
que são eles próprios enganados e, com a diferença dos discípulos ontológico», nem com o sobressalto «existencial» que abalou com
de Emaús após a Ressurreição, nada nem ninguém vem alguma brevidad& a inércia espiritual do sérnlo xx. Toda s estas coisas são
vez esclarecê-los. excelentes no seu tempo e espaço, mas, do ponto de vista cristão,
Retratar a violência colectiva de forma exacta, tal com.o o Jazem apresentam o grande inconveniente de não terem qualquer relação
os Evangelhos, é negar-lhe o valor religioso positivo que lhe confe- com a Cruz: são mais deístas do que especificamente cristãs.
rem os mitos, é contemplá-la no seu horror puramente humano, Se a Cruz desm.itifica qualquer mitologia mais efica zmente do
moralm.ente culpado, é libertar-se da ilusão mJtica que, ou bem que que os automóveis e a electricidade de Bultmann, se nos desemba-
transforma a violência em acção louvável, sagrada, porque útil à raça de ilusões que se prolongam indefinidamente nas nossas filo-
comunidad~, 011 bem que a abandona completamente, tal como o faz sofias e ciências sociais, não podemos renunciá-la. Longe de estar
nos nossos dias a investigação científica à mitologia. para sempre fora de moda e ultrapassada, a religião da Cruz, na
A singularidade e a verdade que a tradição judaico-cristã rei- sua integridade, é uma valiosa pérola cuja aquisição justzfica mais
vindica são pe1jeitamente reais, mesmo evidentes, sob o aspecto que nunca o sacrifício de tudo o que possuímos.
antropológico. Para se apreciar a for ça da tese, ou a sua fra-
queza, não basta a presente introdução, há que ler a demonstração
inteira. É na terceira e última parte deste livro (capítulos IX- XIV)
que a singularidade absoluta do cristianismo, não apesar mas por
causa da sua sim.etria pe1feita com a mitologia, é plenamente con-
firmada . Ao passo que a divindade dos heróis míticos resulta da
ocultação violenta da violência,_a divindade que se atribui a Cristo
funda-se na força reveladora das suas palavras e, sobretudo, da sua
morte livremente consentida , qu e torna manifesta , não só a
sua própria inocência, mas tam.bém a de todos os «bodes expiató-
rios » do mesmo tipo.

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19
·· . PRIMEIRA PARTE

O CONHECIMENTO BÍBLICO
DA VIOLÊNCIA
I

É PRECISO QUE O ESCÂNDALO


ACONTEÇA

Um exa me atento mostra que exis te, na Bíblia e nos Evan-


geliLo , mna concepção original e desconhecida do desejo e
dos seus conflitos. Para se apreender a sua antiguidade, pode
remontar-se ao relato d a Queda no Génesisl, ou à segunda
metade do Decálogo, inteiramente consagrado à proibição
da violência contra o próximo.
O mandamentos seis, se te, oito e nove sã o tão simples
quanto breves, proíbem as violências mais graves por ordem
da ua gra vidade:
Não ma ta rás.
Não cometerás adultério.
Não ro ubarás.
ão dirás falso tes temunho contra o teu próximo.

O décimo e último mandamento tem a última palavra


obre os que o precedem, pela sua ex tensão e objec to: em vez
de proibir uma acção, proíbe um desejo:
Não cobiçarás a casa do te11 próximo, não cobiçarás a mulher do
teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, m~m o seu boi,
nem o seu jumento, nem coisa algwna q_ue lhe pertença.
(Ex 20, 17)

1 R. Schwager, Bm11c/ie11 wir einen Siindenbock, Ko e!, Munique, 1978, p. 89;


Jean-Mic hel Oughourlian, U11 111ime 11 0 111111<' désir, G ra e t, 1982, pp. 38-44.

23
precise:_ acha r~se que os homens ~ê~ uma na tmal inclinação
Sen1 serem ve rd ad eira m ente en gan osas, a tra duções
para nao deseiarem os bens d~ proximo.
moderna s lançam os leitores para urna falsa pista. O verbo Basta reparar em duas cnanças ou em dois adultos que
«cobiçar» sugere que deve tratar-se aqui de um desejo fora disputam entre si uma ,bugiganga para se compreender que
do comum, um d esejo p erv erso reserva d o aos p ecadores este pos tulado é fa lso. E o postulado op os to, o único realista,
empedernidos. Mas o termo hebreu traduzi~ o por «cobiçar» obre o qual assenta o décimo mandamento do Decáloao.
significa muito simples mente «d esejar». E o mesmo que Se os indivíduos têm t.~11a natural inclinação p ara desej a-
d esign a o d esejo d e Eva p elo frut o p roibido, o desejo do r~m o que ~s seus próxi~os_gossuem, ou mesmo simples-
pecado original. A ideia de que o Decálogo consagraria o seu mente d eseiam , ex is te n o seio d os grup os human os uma
supremo mandamento, o mais ex tenso de todos, à p roibição tendência m uito for te ara os conflitos causadores de riva li-
de um desejo marginal, reservad o a urna minoria , é pouco d_ade. Se não fosse contrariad a, ~s t a tend ência ameaçaria,
verosímil. No décimo mandamento, deve tra tar-se do desejo permanentemente, a harmonia e mesmo a sobrevivência de
de tod os os homens, d o desejo puro e simples. todas as coinunidades.
Se o Decálogo p roíbe o desejo mais fre quente, não mere- Os desejos ca usad ores de rivalidade são tanto mais temí-
cerá ele a cen sura que o mt.mdo moderno na sua quase una- veis quanto t~m t~nd ência para se tornarem mais fo rtes reci-
nimidade dirige às p roibições religiosas? Não sucumbirá o proca mente. E o princípio da licitas:ão mais alta que aoverna \
décimo mandamento a es ta enorme e gra tuita vontade de este tipo d e conflito. Existe aqui um fe n óm en o tã~ b an al
proibir, a es te ódio irracional à liberdade, que os pensadores tão conhecido de todos, tão contrário à ideia de que somo~
m odernos re p rova m ao religioso em ge r al e à tr adição aquilo que querem os ser, tão humilhante p or conseauinte
judaico-cris tã em p articular? que preferimos afas tá-lo d a nossa consciência e faze~ com~
Antes d e sentenciarmos as p roibiç ões de «inutilmente se nã.o e~ is ti sse, sempre sabendo, pertinentemente, que existe.
repressivas», antes de repetirmos, ex tasiad os, a fó rnnila que Esta mdife rença ao real é um luxo que as pequenas sociedades
os «a contecimentos d e Maio d e 68 » to rnaram famosa: «é arcaicas não podiam oferecer a si mesma s.
p roibido proibir », convém que nos interroguem os sobre as O legislador qu e p roíbe o _d~o d os bens d o p róximo
implic ações d o desejo d efinido no d écim o mandamento, o esforça ~ se por resolver o problema número um d e qualquer
\desejo dos bens do próximo. Se este desejo é o mais comum comurudade humana: a violência interna.
de todos, que seria se, em vez de ser proibido, fosse tolerado
e mesmo encorajado? *
A guerra seria perpétua no seio de todo os grupos huma- * *
nos, d e tod os os sub grup os, de tod as as fa mílias. A p orta
Ao. le.r-se o décimo mandamento tem-se a impressão de
/ fic aria amplamente aber ta ao fa moso pesa delo de Thomas
. e assi.stir ao processo intelectual d a sua elab oração. Para
H obbes, a /Hta de todos contra todos. imp e d~r os homens de lutarem entre si, o legislad or procura,
Para se p ensar que as proibições culturais são inúteis, tal
em pnmeu ? lugar, p roibir-lhes tod os os obj ectos que não
corno repetem sem muito reflectir os dem.agogos da «moderni-
param de disputar e cuj a lista decide fazer. Porém, depressa
dade», é preciso que se adira ao individualismo mais descome-
s: apercebe que esses objectos são muito numerosos e que
dido, aquele que pre supõe a autonomia total dos indivídua,s,
nao pode enumerá-los tod os. Assim, interrompe o processo,
quer dizer a autonomia dos seus desejos. Por outras p alavras, é
~ 25
24
renuncia a evidenciar os objectos sempre em mudança e o aparecimento de ~ival parece confirmar o funda-
vira-se para aquilo, ou melhor, para aquele que está sempre mento do desejo, o imenso valor do....:Pbjecto desejado. A imi-
presente, o próximo, o vizinho, o ser de quem se deseja, tação torna-se mais forte no próprio seio da hostilidade, mas
como é claro, tudo o que lhe pertence. · os rivais fazem tudo o que podem para esconder aos outros
Se os objectos que desejamos pertencem sempre ao pró- e à si mesmos a causa desse reforço.
ximo, é, com toda a evidência, o próximo que os torna desejá- A recíproca é verda~a. Ao imitar o seu desejo, dou ao
veis. Em consequência, na formulação da proibição, o próximo meu rival a impressão de que tem boas razões para desejar o
deve suplantar os objectos e, efectivamente, suplanta-os no que deseja, para possuir o que possui, e a intensidade do seu
final da frase, que já não proíbe objectos enumerados um a desejo aumenta. .
um, mas tudo o que lhe pertence. Enl. reara aeral a osse tran uila enfra uece o deseJO. Ao
0 0 I -
O que o décimo mandamento esboça, sem o definir de dar um rival ao meu modelo, resti~10-lhe de ªlguma maneira
maneira explícita, é uma «revolução copérnica» na inteligên-
0 desejo que me provoca. Dou Lun modelo ao meu próprio
cia do desejo. Julga-se que o desejo possa ser objectivo ou sub- modelo, ê o espectáculo do meu desejo reforça o seu no pre-
jectivo, mas, na realidade, baseia-se num outro que valoriza ciso momento em que, ao opor-se a mim, reforça o meu. Um
os objectos, o terceiro que está mais perto, o próximo. Para se horn.em cuja pl.ulher eu cobiço, por exemplo, teria talvez,
manter a paz entre os homens, há que definir a proibição em com o tempo, deixado de a desejar. O seu desejo estava morto,
função desta atroz constatação: o róximo é o modelo dos e ao dar pelo meu, que está vivo, renasce ...
nossos desejos. É a isto gue cham; o desejo mimético. A natureza mimética do desejo explica o habitual mau
funcionamento das relações humana s. As nossas ciência s
* sociais deviam ter em conta Lun fenómeno que se impõe qua-
* *
lificar de normal, mas obstinam-se a ver na discórdia qual-
.. O desejo mimético nem sempre é conflitual, mas assim quer coisa de acidental e de imprevisível, por conseguinte,
acontece com frequência, e isto por razões que o décimo impossível de levar em consideração no estudo da cultura.
mandamento torna evidentes. O objecto que desejo segundo Não só somos cegos à rivalidades miméticas no nosso
o exemplo do meu próximo, p3etende ele conservá-lo para mtmdo, mas sempre que celebramos a força dos nossos dese-
si, reservá-lo para seu próprio uso e não abrirá nl.ão dele sem jos, glorificamo-los. Felicitamo-nos por h·azermos dentro de
l.~üa. O meu desejo será contrariado, mas, em vez de se resig- nós tun desejo que tem «a expansão das coisas infinitas», mas t J
nar e se virar para um outro objecto, vai, nove vezes em dez, não vemos o que dissimula esse infinito, a_idolatria do pró- /1

insurgir-se e reforçar-se, imitando mais que nLmca o desejo ximo, que está forçosamente associada à nossa própria idola-
do seu modelo. · tria, mas com a qual não consegue viver em harmonia.
9t J1' -:J \ A oposição exaspera o desejo, sobretudo quando provém Os inextricáveis conflitos que resultam da noss dupla \
~ ~~ daquele ou daquela que inspira esse mesmo desejo. Se não idolatria são a principal fonte da violência humana. Estamos'-'
provém de início, provirá mais cedo ou mais tarde, pois se a tanto mais destinados a dedicar ao nosso próximo uma ado-
imitação do desejo próximo gera a rivalidade, esta, por sua ração que se transforma em ódio quanto mais desenfreada-
vez, gera a outra. mente procuramos adorar-nos a nós próprios, quanto mais

26 27
acreditamos ser «individualis ta » . É para pôr fim a tudo isto
que o Levítico contém. o famoso mandamento: «Ama o teu *
próximo como a ti me mo», ou seja, não o ames nem mais * *
nem n1enos do que a ti mesmo. Se se examinar as proibições das sociedades éi.rcaica.s à
A 1 A rivalidade dos d e~ejos tende não só a ~gudizar-se, ~1as, luz do décimo mandamento, constata-se que, sem serem tão
' ·· \ ao fazê-lo, espalha-se a sua volta, transmite-se a terceiros, lúcidas como es te último, se esforçam por proibirem, tam-
J tão ávidos de falsa infinidade quanto nós próprios. bém elas, o desejo mimético e as suas rivalidades.
A principal fonte d violênci a entre os homens é a riva li- As proibições aparentemente mais arbitrárias não são o
dade mimética. Não é acidental, mas também não é o fruto fruto de uma qualquer «netrrose », nem do ressentimento de
de um «in tinto de agressão» ou de urna «pulsão agressiva ». \ elhos rabugentos, preocupados apenas em impedir que os
As ri va lidades miméticas podem tornar-se de tal modo
jovens se divirtam. Por princípio, as proibições nada têm
intensas que os rivais se de consideran1 reciprocamente, rou-
de caprichoso ou de mesquinho, assentam numa intuição
bam Õsbens um do outro, subornam as respectivas mulheres
análog'a ·à do Decálogo, mas sujeita a todo o tipo de confu-
e, finalmente, não recuam sequer p erante o assassfruo.
Acabo de mencionar mai s uma vez, o leitor tê-lo-á notado, sões.
des ta vez na ordem inversa do Decálogo, as quatro maiores Muitas leis arcaicas, nomeadamente em África, matam
violências proibidas p elos quatro mandamentos que prece- todos os gémeos que nascem na comunidade, ou apenas um
dem o décimo, os já citados no início deste capítulo. de cada par. Esta regra é absurda, sem dúvida, mas não prova
Se o Decálogo consagra o se u último m.andamento à proi- de modo algum «a verdade do relativismo cultural». As cultu-
bição do desejo dos bens do próximo, é porque nele reco- ras que não toleram os gémeos confundem a sua parecença
nhece, lucidamente, ore ponsável pelas violências proibidas natural, de ordem biológica, com os efeitos «indiferenciado-
\ pos quatro mandamentos que o antecedem. res» das rivalidades nliméticas. Quanto mais estas rivalida-
Se deix ássemos d e desejar os bens do próximo, nunca des se agudizam, rn.ais os papéis de m.odelo, de obstáculo e
nos tornaríamos culpados d e as a sínio, nem de adultério,
nem de roubo, nem de falso tes terntm.h o . Se o décimo man-
damento fosse respeitad o, tornaria supérfluos os quatro que
mintética. -
de imitador se tornam. intermutá veis no seio da oposição

Em s uma, ~ 112.edida que o antagonismo se agrava, os


o precedem. antagonistas, _earadoxalmente,_parecem-se cada vez mais
Em vez de começar pela causa e de continuar pel~s conse- um com o outro. Opõem.-se tanto mais implacavelmente
quências, tal como faria uma exposição filosófica, o Decálogo s <)I 1)
quanto a sua oposição apaga as diferenças reais que antes os 1
seg ue a ordem inversa. Primeiro, ocupa-se do que é mais separavam. A inveja, o ciúme e o ódio uniformizam aqueles ..;:::
:rrgente: para afastar a violência, proíbe os actos vi.ol~nto ~. Em que opõem, mas, no nosso mundo, estas paixões recusam ser ~ .1.
seguida, interessa-se p ela causa e descobre o deseJO inspirado pensadas em hmção da s semelhanças e das identidades que
1 pelo próximo. É, portanto, isto o que proíbe, mas apenas o
pode fazer na medida em que os objectos desejados são legal-
não param de gerar. Só têm ouvidos para a celebração enga-
nosa das diferenças, a que alastra como nunca nas nossas
mente posstúdos por um dos rivai ão pode desencorajar
sociedades, não que as diferenças reais sejam maiores, mas
todas as rivalidades de desejo.
porque desaparecem.

28
29
* nem 0 Filho desejam de uma forma ávida, egoís ta. Deus
* * «ilumina quer os maus quer os bons». Dá aos homens sem
A revolução que o décimo mandamento anuncia e pre- contar, sem marcar entre eles a mínima diferença. Deixa que
para desenvolve-se nos Evangelhos. Se Jesus nunca fala em as más ervas cre sçam juntamente com as boas até ao
).·
termos de proibições e sempre em termos de modelos e de momento da colheita. Se imitarmos o desinteresse divino,
imitação, é porque leva até ao fim a lição do décimo manda- nunca a armadilha das rivalidades miméticas nos apanhará.
mento. Não é por narcisismo que nos recomenda que o imi- É por esta razão que Jesus diz também: «Pedi e ser-vos-á
temos, é para nos afastar das rivalidades miméticas. dado ... »
Sobre o que é que deve incidir exactani.ente a nossa imi- Quando Jesus declara que, longe de abolir a Lei, a cum-
tação de Jesus Cristo? Não pode ser sobre os seus modos ou pre, formula urna consequência lógica do seu ensinamento.
hábitos pessoais: nunca isso é dito nos Evangelhos. Jesus tam- A finalidade da Lei é a paz entre os homens. Jesus nunca
bém não propõe uma regra de vida ascética no sentido de despreza a Lei, mesmo quando esta toma a forma de proibi-
Thomas Kem.pis e da sua célebre Imitação de Jesus Cristo, por ções. AÔ contrário dos pensadores m<;>dernos, sabe muito
muito admirável que esta obra seja. O que Jesus nos convida bem que, para se impedir os conflitos, é E ciso começar_pelas
a imitar é o seu próprio desejo, é o impulso. que o guia a ele, proibições.
Jesus, em direcção ao objectivo que fixou para si: parecer-se Porém, o inconveniente das roibições é que não des_eru-
tanto quanto possível com Deus Pai. penham o seu papel de um modo satisfatório. O seu carácter
O convite para imitar o desejo de Jesus pode parecer obretudo negativo, São Paulo vi-o bem, acende em nós,

I paradoxal, pois Jesus não pretende possuir um desejo pró-


prio, um desejo «mtüto seu». Contrariamente ao que nós
próprios fazemos, Jesus não pretende «ser ele próprio», não
forçosamente, a tendência mimética para a transgressão.
A melhor maneira de prevenir a violência consiste não em ~~'""'°'
V'I' ff'J?,,.,
proibir objectos ou até mesmo o desejo causador de rivali- .. ~
.
f' •
se vangloria de «apenas obedecer ao próprio desejo ». O seu dade, tal como faz o décimo mandamento, mas em fornecer • " t> "'
- propósito é tornar-se a imagem erfeita de Deus. Assim, con- aos homens o modelo que, em vez de os arrastar para as
sagra todas as suas forças à imitação do Pai. Ao convidar-nos rivalidades miméticas, os protegerá delas. Muitas vezes acre
para o imitarmos, convida-nos para imitarmos a sua própria ditamos imitar o verdadeiro Deus e, na realidade, fazemo-lo
imitação. apenas com falsos modelos de autonomia e invulnerabili-
Longe de ser paradoxal, este convite é mais razoável do dade. Assim, longe de nos tornarmos autónomos e invulne-
que o dos nossos gurus modernos. Estes convidam-nos a ráveis, votamo-nos às rivalidades inexpiáveis. O que aos
fazer o contrário daquilo que eles próprios fazem ou, pelo nossos olhos diviniza estes modelos é o seu triunfo nas riva-
menos, pretendem fazer. Todos eles pedem aos discípulos que li~a~es miméticas cuja violência nos dissimula a insignifi-
imitem nele o grande homem que não imita qualquer outro. canCia.
Pelo contrário, J~s convida-nos a fazermos o que ele próp.!io Longe de surgir num universo isento de imitação, o man-
faz, a tornarmo-nos, tal como ele, um imitador de Deus Pai. damento de imitar Jesus dirige-se a seres imbuídos de mime-
- Porque é que Jesus se vê a si mesmo e ao Pai como ~s tis~o. Os não cristãos julgam que, para se converterem,
melhores modelos para todos os homens? Porque nem o Pai sena preciso renunciarem a uma autonomia que todos os

30 31
I
homens possuem naturalmente, uma autonomia da qual Esta imita~~º _faz-se muitas vezes sem que aquele que
Jesus pretenderia privá-los. Na realidade, a partir do mo- imita e o que e 1mltado se apercebam. Não é apenas 0 desejo
mento em gue imitamos Jesus, descobrimos que somos imi- que imitamos aos que tomamos para modelos, é um grande
tadores desde sempre. A nossa aspiração à autonomia fazia número de comp~rt~mentos, atitudes, conhecimentos, pre-
com que nos rebaixássemos diante de seres gue, mesmo que conceitos, preferenoas, etc., no seio dos quais a imitação
não fossem. piores que do nós, nem por isso deixam de ser mais carregada de consequências passa, com frequência,
maus modelos naquilo que podemos irn.itá-los sem cairmo despercebida.
com eles na armadilha das rivalidades inextricáveis. A {uuca cult:ira verdadeiramente nossa não é aquela em
A autonomia que acreditamos estar sempre à beira que nascemos, e a cultura da qual imitamos os modelos na
de conquistar, ao imitarmos os nossos modelos de força e de idade em que é maior o nosso poder de assimilação mimética.
prestígio, não é mais do que um reflexo d as ilusões projecta~ Se o seu desejo não fosse mimético, as crianças não escolhe-
das pela nossa admiração por eles, tanto menos conscient riam~ forçosamente~ para modelos os seres hmnanos que as
do seu mimetismo quanto mais ffiÍlTlética . Quanto mais somo rodeiam~ a Humarudade não teria linguagem, nem cultura .
«orgulhosos» e «egoístas», mais nos subjugan10s aos modelo Se o desejo não fosse mimético, não seríamos abertos ao
que nos esmagam. humano nem ao divino. É, necessariamente, neste último
domínio que a nossa incerteza é maior e a nossa necessidade
* de modelos mais intensa. .
* * , O desejo ~nimético faz-nos escapar à animalidade. É, em
Mesmo que o mimetismo do desejo humano seja nos, re poi'.savel pel~ melhor e pelo pior, pelo que nos faz
grande responsável das violências que nos oprimem, não de_ cer aba ixo do arnmal, assim como pelo que nos eleva
p9de concluir que o desejo mimético é mau. Se os nosso aoma dele. A.§ nossas intermináveis discórdias são t _
parti.da d a nossa liberdade.
0 '1.1..ra
desejos não fossem miméticos, fixar-se-iam. para sempre e
objectos predeterminados, seriam uma forma particular d
instinto. Os homens não seriam capazes de mudar de desej *
mais do que as vacas num prado. Sem desejo mimético nã
haveria liberdade nem humanidade . O desejo mimético Se a rivalidade mimética tem um papel essencial nos
intrinsecamente bom. Evangelhos, como é que, objectaria o leitor, Jesus não nos avisa
O Homem é wna criatura que perdeu uma parte do se a seu respeito? Na realidade, avisa-nos, mas não 0 sabe-
instinto animal para aceder àquilo que se chama o desej mos_. Quando o que ele diz se opõe às nossas ilusões, não 0
Uma vez satisfeitas as suas necessidades naturais, os home ouvimos.
desejam intensamente, mas não sabem exactamente o qu As p~la~ras que designam a rivalidade mimética e as suas
pois nenhum instinto os guia. Não têm desejo próprio. O pr co~sequencias são o substantivo skandalon e o verbo skandali-
prio do desejo é não ser próprio. Para desejarmos verdadeir zezn. Nos Ev~ngelhos sinópticos, Jesus consagra ao escân-
mente, temos de recorrer aos homens que estão à nos_ dalo um _ensinamento tão notável pela sua extensão como
volta, temos que lhes imitar os desejos. pela sua intensidade.

32 33
Tal como o termo hebreu que Jesus traduz, «escândalo » que n ão é habitual em si: «Se a tua mão ou o te~ pé são para
significa não Lm1 desses obstáculos vulgares que se evitam ti ocasião de pecado2, lança-os para longe de t1 [... ] se o teu
com facilidade apó e ter esbarrad~ com ele uma primeira olho é para ti ocasião de pecado, arranca-o e lança-o para
vez, ma s um obstáculo paradoxal quase impossível de se longe de ti .» (Mateus, 18, 8-9).
evitar: com efeito, quanto mais o escândalo nos causa Os freudianos fazem uma interpretação puramente sinto-
re ulsa, mais nos atrai. O escandalizado m.ortifica-se com mática da palavra escândalo. O seu preconceito hostil im-
tanto mais ardor quanto m ais mortificado foi anteriormente. pede-os d e reconhecerem nesta ideia a definição autêntica
Para se compreender este esh·anho fenómeno, bas ta reco- daquilo a que chamam «compulsão de repetição».
nhecer nele o que acabo de descrever, o comportamento dos Para tornarem a Bíblia psicanaliticamente conecta, os tra-
rivais miméticos que, ao proibirem-se mutuamente o objecto dutores recentes, ao que parece mais intimidados por Freud
que invejam, reforçam cada vez mais o seu duplo desejo . Ao do que pelo Espírito Santo, esforçam-se por eliminar todos
fazerem, sis tematicamente, o contrário um do outro para os termos censurados pelo dogmatismo contemporâneo.
fugirem à sua inexorável rivalidade, voltam sempre a esbar- Substituem por eufemismos insípidos o admirável «obstá-
rar contra o obstáculo fascinante que cada tll11 deles é, dora- culo», por exemplo, das antigas Bíblias, a única tradução que
vante, para o outro. capta a dimensão repetitiva e «viciante» dos escândalos.
Os escândalos e o falso infinito da rivalidade mimética Jesus não ficaria surpreendido ao ver o seu ensinamento
são uma só coisa. Segregan\ em quantidades crescentes a in- desprezado, pois não tem qualquer ilusão quanto à maneira
veja, o ciúme, o ressentimento, o ódio, todas as mais nocivas como a sua mensagem será recebida. À glória que vem de
toxinas, não só para os antagonistas iniciais, mas para todos Deus, invisível neste mundo terreno, a maior parte das pes-
aqueles que se deixam fascinar pela intensidade dos desejos soas prefere a que vem dos homens, a que multiplica os
causadores de rivalidade. escândalos à sua passagem. Esta consiste em triunfar nas
Na escalada dos escândalos, cada represália provoca uma rivalidades miméticas militares, políticas, económicas, des-
nova, mais violenta do que a anterior. Se não se lhe puser portivas, sexuais, artísticas, intelectuais ... e mesmo religiosas,
termo, a espiral resulta, necessariamente, em vin anças em com frequência organizadas pelos poderosos deste mLmdo.
cadeia, fusão perfeita de violência e mimetismo. A frase: «é preciso que o escânda lo aconteça», nada tem a ver
A páiavra grega skandalizein vem de Lm1 verbo que signi- com a fatalidade antiga ou com o «determinismo científico».
fica «coxear». Com que é que se parece lll11 coxo? A 1m1 indi- Considerados individualmente, os homens não estão obriga-
víduo que segue como a sua sombra um obstáculo invisível toriamente votados às rivalidades miméticas, mas, por causa
no qual não pára de tropeçar. do grande número de indivíduos que contêm, as comLmida-
«Infeliz aquele por quem chega o escândalo!» Jesus reserva des não podem escapar-lhes. A partir do momento em que
o seu mais solene aviso aos adultos que arrastam as crianças acontece o primeiro escândalo, este concebe outros e o resul-
para a prisão infernal do escândalo. Quanto mais inocente e tado são crises miméticas que não i2âram de se alastrar e a~avar.
confiante é a imitação, mais facilmente se escandaliza, mais
se é culpado de abusar dela.
-
2 Na sua obra, o a utor utiliza o termo «escandalizar», ao passo que na Bíblia que
Os escândalos são de tal modo temíveis que, para nos serviu de referência para a tradução a expressão usada é «ser ocasião de pecado»,
prevenir contra eles, Jesus recorre a um estilo hiperbólico pelo que, tratando-se de uma citação, op tei por ser fiel a esta última. (N. T.)

34 35
II

O CICLO
DA VIOLÊNCIA MIMÉTICA

Ainda favoráve l a Jesus no momento da sua entrada em


Jerusalém, a multidão volta-se, subi tamente, contra ele e a
hostilidade torna-se de tal forma contagiosa que se propaga
aos mais diversos indivíduos. O que predomina nos relatos
da Paixão, sobretudo nos três primeiros Evangelhos, é a uni-
formidade das reacções entre as testemunhas, é a omnipo-
tência do colectivo.
Nos Evangelhos, todos os temas conduzem à Paixão. Os
escândalos desempenham um papel dentasiado impor tante
para escaparem a es ta lei de convergência em direcção à cru-
cificação. Por estranhas que pareçam uma à outra à primeira
vista, tem de haver urna relação entre es tas duas formas de
mimetismo violento.
Pedro é o exemplo mais espectacular de contágio mimé- 1
tico. O seu amor por Jesus não está em causa, é tão sincero '
quanto profundo. No entanto, a partir do momento em que
o apóstolo é mergulhado num meio hostil a Jesus, não conse-
gue evitar imitar a sua hostilidade. Se o primeiro dos discí-
pulos, a pedra sobre a qual será fundada a Igreja, sucumbe f)
à pressão colectiva, como pode pensar-se que à sua volta a
Hwnanidade média irá resistir?

37
É neste ponto, apercebo-me agora, que a resistência às análi- putavam entre si. Mutuamente exasperados pelo obstáculo
ses apresentadas por Raymtmd Schwager1 e por mim mesmo vivo, o escândalo que cada um é doravante para o outro, os
é mais forte. Em The Joy of being wrong2, James Alison quali- sósias miméticos esquecem o objecto da sua querela e voltam-se,
fica de «transcendental»_a antropologia mimética; e o que com a ira no coração, w1s contra os outros. Doravante, é con-
esta denominação sugere é a dificuldade que temos em aper- tra o seu rival mimético que cada indivíduo se encarniça.
ceber o que, no entanto, foi já revelado nos Evangelhos. Longe de destruir a reciprocidade das relações humanas,
Será que é preciso rentmciar à antropologia mimética em este tipo de rivalidade torna-a mais perfeita que nunca, no
nome de uma certa teologia? Haverá razões para ver na sentido das represálias, é claro, e não das trocas pacíficas.
associação contra Jesus a obra de Deus Pai que, tal como as . \ Quanto mais os antagonistas desejam diferenciar-se, mais "
divindades da Ilíada, mobilizaria os homens contra o seu idênticos se tornam. J::. identidade cumpre-se no ódio ao idên-
Filho para cobrar deste último o preço que os primeiros não tico. É este momento paroxísmico que encarnam os gémeos
podem pagar? Esta interpretação é contrária ao espírito e ao ou os iqnãos da mitologia, tais como Rómulo e Remo. É o que '
texto dos Evangelhos. chamo confronto de sósias.
Nada há nos Evangelhos que possa sugerir que Deus é a Enquanto que, no início, os antagonistas ocupam posi-
causa da associação contra Jesus. O mimetismo é suficiente. ções fixas no seio d~ conflitos cuja animosidade garante a
Os responsáveis da Paixão são os próprios homens, incapazes es tabilidade, à medida que se obstinam, mais o jogo dos
de resistirem ao contágio violento que os afecta todos quando escândalos os transforma numa multidão de seres intermutá-
um impulso mimético fica ao seu nível, ou, pelo contrário, veis. Nesta massa homogénea, os impulsos miméticos já não
quando ficam ao nível desse impulso. Não é necessário invo- encontram qualquer obstáculo e propagam-se a toda a velo-
car o sobrenatural para se explicar isto. ~ransformação do cidade. Esta evolução favorece as reviravoltas mais estra-
todos-contra-todos _que fragmenta as comtmidades num todos- nhas, os agrupamentos mais inesperados.
-contra-11111 que as reagrupa e as unifica não se limita apenas A princípio, os escândalos parecem rígidos, constante-
, ao caso de Jesus. Em breve, veremos outros exemplos. mente fixados no mesmo antagonista, para sempre separa-
dos tms dos outros pelo ódio recíproco, mas, nos estados
* avançados desta evolução, produzem-se substittúções, trocas
* * de antagonistas. Os escândalos tornam-se «oportunistas».
Para se compreender como e porquê o mimetismo que Deixam-se fascinar sem dificuldade por um outro escândalo
divide e fragmenta as comunidades se transforma de súbito cuja força de atracção mimética é superior à sua. Em suma,
num mimetismo que as reagrupa e as retmifica contra uma os escandalizados afastam-se do seu adversário inicial, do
ímica vítima, é preciso examinar a forma como evoluen: tS qual pareciam inseparáveis, para adaptarem o escândalo dos
conflitos miméticos. Para lá de um certo limite de frustraçã_p, seus vizinhos.
os antagonistas já não se contentam com os objectos que dis- O que determina a força de atracção dos escândalos é o
número e o prestígio daqueles que conseguem escandalizar.
1 Brn11che11 wir einen Siindenbock, Kosel, Munique, 1978. Os pequenos escândalos têm tendência para desaparecerem
2 Crossroad , Nova Iorque, 1998. nos maiores e estes, por sua vez, vão contam.inar-se mutua-

40 41
mente até que os mais fortes absorvam os mais fracos. Há Os escândalos entre os indivíduos são os muitos poucos
1 ur:1a concorrência mimética dos escândalos, que prossegue que fazem o muito da violência colectiva. Assim, pode falar-se
ate ao momento em que ganha o escândalo mais polarizador. de um impulso mimético que, contra a mesma vítima, jLmta
Nesta altura, toda a comtmidade está mobilizada contra um numa única aliança todos os escândalos não há rntúto inde-
único e mesmo indivíduo. pendentes uns dos outros. Tal como um enxame de abelhas
Na Paixão, esse indivíduo é Jesus. Isto explica porque é em volta da sua rainha, os escândalos aglutinam-se conh·a a
que Jesus recorre ao vocabulário do escândalo para se desia- vítima única, e em torno dela.
. , b
nar a s1 proprio enquanto vítima de todos e para designar A força que solda os escândalos entre si é urna repetição
todos aqueles que se polarizam contra si. Exclama: «Felizes de mimetismo . A palavra escânda lo dá a impressão de se
aqueles para quem não sou un1a causa de escândalo. » Haverá, aplicar a coisas muito diferentes, mas, na realidade, trata-se
ao longo de toda a his tória cristã, uma tendência dos pró- sempre dos diversos momentos de um {mico processo mimé-
prios cristãos para escolherem Jesus como escândalo de tico, ou deste processo na sua totalidade.
reserva, uma tendência para se perderem e se misturarem na Quúi'to mais o~ escândalos pessoais se tornam sufocan- ;
multidão dos perseguidores. Por consequência, para São tes, mais a vontade de os mergulhar num qualquer grande
Paulo, a Cruz é o escândalo por excelência. Pode observar-se escâ ndalo se a_podera do uscandalizad9s. Vemo-lo muito
que o simbolismo da cruz tradicional, o cruzamento da s bem nas paixões ditas políticas, ou no frenesim de escân-
duas traves, torna visível a contradição interna do escândalo. dalo que se assenhoreou do mundo actualrnente globali-
Os próprios discípulos não são excepção à comum lei. zado.
Quando Jesus se torna escândalo universal, todos eles são Quando um escândalo muito sedutor fica ao seu alcance,
i!'11luenciados, em graus diversos, pela hostilidade universal. os escandalizados são irresistivelmente tentados a gravitar à
E por esta razão que, um pouco antes da Paixão, Jesus lhes sua volta.
dirige, no vocabulário do escândalo, um aviso especial para A condensação de~ dos os escândalos separados num
os prevenir das fraquezas que os esperam, para lhes suavi- único escândalo é o 12aroxisrno de um _processo que começa 1 ((\[;
zar os remorso , talvez, no momento em que compreende- com. ~ desejo mimético e as suas rivalidades. Ao multiplica- \ ~ ~rt <

rem a infâmia do seu mimetismo individual e colectivo: «Vós rem-se, estas suscitam urna crise mimética, a violência de v
sereis todos escandalizados por minha causa. » todos-contra -todos, que acabaria por aniquilar a corntmidade )
. E~ta frase não significa, simplesmente, que os discípulos se, no fim de contas, não se transformasse, espontânea e arti-
ficarao perturbados e em sofrimento por causa da Paixão. ficialmente, num todos-contra-um, graças ao qual se refaz a
Quando Jesus diz qualquer coisa que parece banal, há que mudade da comLmidade.
desconfiar. Neste caso, tal corno noutros, devemos dar à
palavra «escândalo» o seu forte significado mimético. Jesus *
previne os discípulos de que irão todos sucumbir mais ou * *
menos ao contágio que se apodera da multidão, de que A vítima de um im ulso mimético é escolruda pelo pró-
todos participarão um pouco na Pn.ixão do lado dos perse- prio mir~!i.smo , é substituída a todas as outras vítimas que a
guidores. multidão poderia ter escolhido se tudo se tivesse assado de

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maneira diferente. As substituições produzem-se de forma *
espontânea e invisível, em favor do boato e do furor por * *
todo o lado difundido . ( o caso de Jes us, a que voltarei Reconhecer o que há de típico, mesmo de banal, na cruci-
mais à frente, intervêm outros factores que não nos deixam ficação permite compreender-se um dos temas de Jesu s que
vê-lo como uma vítima do acaso, no sentido em que o são a é a se1nelhança entre a su a própria morte e as perseguições de
maior parte das vítimas do mesmo género) . numerosos profetas antes de si.
Pila tos é um adminis trador com experiência suficiente Ainda nos nossos dias, são muitas as pessoas que pen-
para compreender o papel das substittúções no assunto que sa m que, se os Evangelhos comparam a morte de Jesus com
lhe é pedido que regule. Por sua vez, os Evan gelhos com- a dos profetas, o fazem com o único propósito de estigmati-
preendem esta compreen ão e fazem-nos partilhá-la no famoso zar o povo judeu. Era o que já supunha, como é evidente, o
episódio de Barrabás. A preocupação romana da legalidade anti-semitismo .m edie val, pois assenta va, tal como todo
sugere a Pilatos que este não entregu e Jesu s, por outras pala- o anti-sen:).itismo cristão, numa incapacidade para compreen-
vras, que não ceda à multid ão. Pilatos n ão deixa de com- d er a vérdadeira natureza e a exemplaridade infinita da
preender também que a multidão não se acalmará sem uma Paixão. H á mil anos, numa época em que a influência cris tã
vítima. É p or es ta razão que lhe oferece uma compensação: não penetrai;a ainda de uma forma muito profunda; este erro
prop õe-lhe entregar à m or te Barrabás em troca de Jesus. era mais perdoável do que o é actualmente. A interpretação
Do ponto de vista de Pilé'I tos, Barrabá apresenta a vanta- anti-semita ignora a real intenção dos Evangelhos. É, com
gem de estar já legalmente condenado. A sua execução não toda a evidência, o mimetismo que explica o ódio das multi-
cons tituirá uma alteração da legalidade . A principal preo- dões contra os seres exce cionais, tais como Jesus e todos o~
cupação de Pilatos não é impedir a mor te de um inocente, profetas, nãÜa pertença étnica ou religiosa. ,
mas limitar tanto quanto possível as desordens que arriscam Os Evangelhos sugerem que existe em todas as comuni-
prejudicar a sua reputação de administrador nas altas esferas dades, e não apenas na comunidade judaica, mn processo
imperiais. mimético de rejeição do qual os profetas são as vítimas pre-
O facto de a multidão recusar Barrabás não significa de ferenciais, um pouco como todos os seres de excepção, os indiví-
modo algum que os Evangelhos acusam todo o povo judeu duos que não são como os outros, pelas razões mais diversas.
de sentir por Jes u s um ódio inexpiáve l. Duran te muito As ví timas podem ser estropiados, enfermos, despoja dos,
tempo favorável a Jesus, depois hesi tante, a multidão apenélS desfavorecidos, indivíduos mentalmente atrasados, mas tam-
.- acusa uma hos tilidade resoluta ao paroxismo da Paixão e bém grandes inspirados religiosos, tais como Jesus ou os pro-

- esta diversidade de atitudes é bas tante característica das


m ultidões miméticas. Uma vez a tingida a unanimidade, a
multidão vira-se contra a vítima que en1erge do processo e
fetas judeus, ou ainda, nos nossos dia s, grandes artistas
ou grandes pensadores. Todos os ovos têm tendência para
rejeitarem, sob um pretexto ou outro, os indivíduos g~e esca-
rej eita qúalquer troca. Passou a hora das substitwções e s;;m-1 pam à sua concepção do normal e do aceitável.
a da violência unânime. É isto que Pilatos compreende. Se compararmos a Paixão com os rela tos das violências
Quando vê que a multidão recusa Barrabás, entrega Jesus de sofridas pelos profetas, constatamos que, com efeito, nos
imediato. dois casos, são sempre violências quer directamente colecti-

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vas quer de inspiração colectiva. A semelhan ça assinalada por Herodíade. João Bap tis ta repreende Herodes pela ilegali-
Jesus é perfeitamente real, e veremos em breve que não se dade do casamento com a mulher do seu irmão. Herodíade
linüta às violências descritas na Bíblia. Encontra-se os mes- deseja vingar-se, mas Herodes protege João Baptis ta . Para o
mos tipos de vítimas nos mitos. obrigar a agir contra sua vontade, a mulher amotina contra
Portanto, há que interpretar de maneira muito concreta a 0 seu inimigo a muJ tidão dos convidados do grande banquete
frase de Jesus sobre a analogia entre a sua própria morte e de aniversário do seu marido.
a dos profetas. Para se confirmar a interpretação realista que A fim de es timular o mimetismo do grupo e de o trans-
proponho é preciso comparar a Paixão, não apenas às vio- formar em matilha sanguinária, Herodíade recorre à arte que
lências contra os profetas judeus no Antigo Testamento, nlas os Gregos tinham por mais mimética de todas, por mais apta
também, nos próprios Evangelhos, à morte daquele que a mobilizar contra a vítima os participantes num sacrifício, a
estes consideram como «o último dos profetas», João Baptista. dança. Herodíade faz dançar a própria filha e a pedido da
dançarina, manipulada pela mãe, os convidados, unânimes,
* exigem a .cabeça de João Baptista.
* * As semelhanças entre este relato e a Paixão são notáveis e
não pode ser-lhes imputada urna espécie de plágio. Os dois
Se João Baptista for um profeta, a sua morte violenta, textos não sã0 «dobletes» um do outro. Os detalhes são total-
para «verificar» a doutrina de Jesus, deve assemelhar-se à mente diferentes. É o seu mimetismo interno que os torna
morte violenta deste último. Assim, deveria encontrar-se nela parecidos, representado de forma tão poderosa e original
o impulso mimético e os outros traços essenciais da Paixão. num caso conl.o no outro.
E, efectivamente, encontramo-los. É sem custo que se cons- Assim, no plano antropológico, a Paixão é mais típica do
tata que todos os traços estão nos dois Evangelhos que con-
que ú1;i~a: ilustra o. tema 1:11..ais, i~1-portante ~a antrop. ologi_a )
têm o relato da morte de João Baptista, os dois mais antigos, evangehca: o mecarusmo vit1mano que apazigua as comuru-
Marcos e Ma teus. dades humanas e lhes devolve, pelo menos provisoriamente,
Exactamente como a crucificação, o assassínio de João a tranquilidade.
Baptista não é directamente colectivo, mas de inspira ão
rolectiva. Em ambos os casos, há unl soberano, o (mico habili- *
tado a decretar a morte e que, finalmente, o faz, não obs- * *
tante o seu desejo pessoal de poupar a vítima, Pilatos de um O que descobrimos nos Evangelhos, quer na morte de João
lado, Herodes do outro. Nos dois casos, é por razões miméti- Bap tista quer na de Jesus, é um processo cíclico de desordem
cas, para não se opor~ a uma multidão violenta, ~1e o sobe- e de reposição da mesma que culmina e termina num meca-
rano renuncia ao seu próprio desejo e ordena a execução da nismo de unanimidade vitimária. Emprego a palavra «me-
vítima. Do mesmo modo que Pilatos não ousa opor-se à mul- canismo» para significar a natureza automática do processo
tidão que reclama a crucificação, Herodes não ousa opor-se e dos seus resultados, assim corno a incompreensão e mesmo
aos seus convidados que reclamam a cabeça de João Baptista. a inconsciência dos participantes.
Em ambos os casos, tudo resulta de uma crise mimética . Pode, igualmente, identificar-se este mecanismo em cer-
No caso do profeta, é a crise do casamento de Herodes com tos textos bíblicos. Os mais interessantes, sob o aspecto do

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processo vitimário, são aqueles que os próprios Evangelhos estrada, para o maior de todos os monarcas, me parece um
comparam com a vida e a morte de Jesus, aqueles que nos pouco mesquinho, um pouco acanhado . .
contam a vida e a morte do persona gem nomeado o Servo Um dos tema do SegLmdo Isaías é o fim do exílio babiló-
de Jeová ou o Servo sofredor. . nio, felizmente terminado pelo famoso édi to de Ciro. Mas
O Servo é um grande profeta de que trata a p~rte, do livro outros ternas se entrelaçam com o do regresso, em particular
de Isaías que começa no capítulo 40, em geral atnbu1d~ a um os temas do Servo de Jeová, que acabo de mencionar.
autor independente, o Segundo Isaías ou Deutero-Isaias. ~s Mais do que em trabalhos levados a cabo com um d eter-
passao-ens que evocam a vida e a morte deste profeta sao minado objectivo, o texto que citei faz pensar numa erosão
sllfici;ntemente distintas das que as envolvem para poder- geológica, há que reconhecer nele, penso eu, uma represen-
mos ao-rupá-las em quatro partes separadas que lembram tação imao-in ada das crises miméticas cujo traço essencial,
quatro grandes poemas, os cantos ~o ~ervo de Jeová.
0
, sabemo-lo, é a perda das diferenças, a transformação dos
o começo do capítulo 40, o pnme1ro do Segundo Isa1as, indivíduo ~ em sósias, ct0o confronto perpétuo destrói a cul-
não faz parte dos seus cantos, mas, nalguns aspectos, p arece- tura. o n osso texto assimila este processo ao desmorona-
-me que a eles deve ser ligado: mento d as montanhas e ao enchim.ento dos vales numa
região monta,n hosa. Da mesma form a que as rochas se trans-
Uma voz grita:
fornrnm em areia, o povo transforma-se numa massa amorfa
«Prepara i no deserto
incapaz de ouvir «a voz que grita no deserto», sempre pronta,
11 111 caminho para o Senhor,
aplanai na es tepe uma es trada para o nosso Deus. em contrapar tida, a aparar as alturas e a assorear as proftm-
dezas, para permanecer à superfície de todas as coisas, para
Todo o vale seja alterado,
· toda a colina e toda a montanha sejam abaixadas, rejeitar a grandeza e a verd ade.
Por muito inquietante que seja es te aplainamento das
todos os cumes aplainados,
e todos os terrenos escarpados sejam nivelados! diferenças, esta imensa vi tória do superficial e do tmiforrne,
Então a glória de Deus manifestar-se-á, o profe ta inclui-a nas suas preces por causa da contrapartida
e todas as criaturas juntamente a veriio, formi davelmente positiva que prepara, uma Epifania deci-
siva de Jeová :
porque a boca do Senhor falou. »
(Is 40, 3-5}
Então a glória de Deus manifestar-se-á,
Neste nivelamento, neste abaixamento universal, os exe- e todas as criaturas juntarnente a verão,
getas modernos vêem uma alusão à cor:~trução de uma porque a boca do Senhor fa lou. _
estrada para Ciro, o rei da Pérsia, que perrmtm que os Judeus
voltassem a Jerusalém. Esta Epifania é aqui profetizada. Realiza-se, com toda a
Certamente, a explicação é razoável, mas um pouco evid ência, doze capítulos mais à frente, no assassínio colec-
superficial. O texto fala de nivelamento, é ~ert~, mas n~o o ti vo que põe fim à crise, o assassínio do Servo sofredor.
faz com superficialidade. Faz disso urna c01sa tao grandiosa Apesa r da sua bon ade e do se u amor pelos homens, o
que, limitar-lhe o efeito mesmo da construção de urna grande Servo não é um amado dos seus irmãos e, no quarto e último

48 49
III

SATANÁS

Para se confirmar a presença nos Evangelhos daqui lo a


que chamo b «ciclo mimético», é preciso abordar uma noção,
ou melhor um personagem muito desdenhado nos nossos
dias, mesmo pelos cristãos. Os Evangelhos sinóp ticos refe-
rem-se-lhe pelo seu nome hebreu, Satanás. O Evangelho de
João chama-lhe Diabo, nome grego.
Na época em que, guiados pelo teólogo alemão Rudolfo
Bultmann, todos os teólogos actua lizados «desmitologi-
zavam » as Escri ttuas energicamente, não faziam sequer ao
príncipe deste mundo a homa de o inscreverem no seu pro-
grama . Apesar do seu considerável papel nos Evangelhos, o
cristianismo moderno pouco o leva em conta.
Se examinarmos as proposições evangélicas sobre Satanás
à luz das nossas análises, apercebemo-nos de que não mere-
cem o esquecimento em que caíram.
Tal como Jesus, Sa tanás procura fazer-se imitar, mas não
da mesma forma, não pelas mesmas razões. Quer, acima de
tudo, seduzir. O Satanás sedutor é o único de quem o mundo
moderno se digna lembrar-se tm1 pouco, para brincar à sua
cus ta, como é óbvio. ·
Também Satanás se propõe como modelo para os nossos
desejos, e é mais fácil imitá-lo do que a Cristo, com toda a

53
evidência, pois aconselha-nos a abandonarmo-nos a todas a mundana. Em suma, Pedro convida Jesus a tomá-lo por
nossas inclinações, a despeito da moral e das suas proibições. modelo do seu desejo . Se Jesus se afastasse de seu Pai para
Se escutarmos este muito amável e muito moderno pro- seguir Pedro, ambos depressa cairiam na rivalidade mimé-
fessor, entimo-nos, primeiro, «libertos», mas esta impressão tica e o destino do Reino de Deus deixar-se-ia cair em querelas
não dura, pois, se escutarmos Satanás, ficamos privados de irrisórias.
tudo o que protege do mimetismo conflitual. Em vez de nos Pedro faz-se, aqui, semeador de escândalos, o Satanás
advertir contra as armadilhas que nos esperan1, Satanás faz- que desvia de Deus os homens, em proveito dos modelos de
-nos cair nelas; aplaude a ideia de que as proibições «para rivalidade. Satanás semeia os escândalos e colhe a ternpe -
nada servem » e que a sua transgressão não comporta qual- tade das crises miméticas. Para ele, é a ocasião de mostrar
quer perigo. aquilo de que é capaz. As grandes crises conduzem ao ver-
dadeiro mistério de Satanás, ao seu mais desconcertante
O cantinho no qual Sataná nos lança é largo e fácil, é a
poder, que é o de se expulsar a ele próprio e de restabelecer
grande auto-estrada da crise mimética, mas eis que, entre
a ordem rlas comunidades humanas.
nós e o objecto do nosso desejo, surge mn obstáculo inespe-
O texto essencial a respeito da expulsão satânica de Satanás
rado e, mistério dos mistérios, quando pensávamos ter dei-
é a resposta de Jesus às pessoas que o acusam de expulsar
xado Satanás muito a trás de nós, é ele quem nos barra o
Satanás por Belzebu, o príncipe dos demónios:
caminho, ou um dos seus demónios. ·
É a primeira das inúmeras metamorfoses de Satanás: ·º Como pode Sntnnns exp ulsn r Sntnnn -? Se um rein o se dividir
sed utor do início depressa se tran forma num adversário con.trn si mesmo, tnl reino niio pode perdurnr; e, se umn cnsn se
dividir contrn si mes mn, tnl cnsn niio pode subsistir. Se, portanto,
rebarbativo, um mais sério obstáculo do que todas as proibi-
Sntnnns se levnntn contrn si próprio, estri dividido , e niio podern
ções ainda não transgredida s. O segredo desta lastimável subsistir; é o seu fim .
metamorfose é fácil de descobrir. O segundo Satanás é a con- (Me 3, 23-26)
versão do modelo mimético em obstáculo e em rival, é a
génese dos escândalos. Acusar um exorcista rival de expulsar os demónios por
Porque ele próprio deseja o que nos leva a desejar, o nosso intermédio de Satanás, devia ser banal naquela época. Muitas
modelo opõe-se ao nosso desejo. As im, para além da trans- pessoas deviam repeti-la maquinalmente. Jesus quer fazer
gressão, desenha-se um obstáculo mais coriáceo do que todas com que se reflicta nas suas implicações. Se for verdade que
as proibições, inicialmente dissimulado pela própria protec- Satanás expulsa Satanás, como é que se faz, como é possível
ção que facultam estas últimas enquanto forem respeitadas. es ta habilidade?
Não sou o único a assimilar Satanás aos escândalos, é o Longe de negar a realidade da auto-expulsão satânica, o
próprio Jesu numa veemente apóstrofe a Pedro: «Afas ta-te, texto afirma-a. A prova de que Satanás possui este poder é
Satanás, porque és para mim um escândalo .» afirmação frequentemente repetida de que está perto do seu
Pedro provoca esta altercação ao reagir de forma nega- fim. A queda para breve de Satanás, profetizada por Cristo,
tiva ao primeiro anúncio da Paixão . Decepcionado por aquilo e o fim do seu poder de auto-expulsão são uma coisa só.
que toma como a resignação excessiva de Jesus, esforça-se Quer em Mateus quer em Marcos, em vez de substittúr o
por lhe incutir o seu próprio desejo, a sua própria ambição seglmdo Satanás por um pronome e de dizer: «Como é que

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evidência, pois aconselha-nos a abandonarmo-nos a todas as mundana. Em suma, Pedro convida Jesus a torná-lo por
nossas inclinações, a despeito da moral e das suas proibições. modelo do seu desejo. Se Jesus se afastasse de seu Pai para
Se escutarmos este muito amável e mLúto moderno pro- seguir Pedro, ambos depressa cairiam na rivalidade mimé-
fessor, sentimo-nos, primeiro, «libertos», mas esta impressão tica e o destino do Reino de Deus deixar-se-ia cair em querelas
não dura, pois, se escutarmos Satanás, ficamos privados de irrisórias.
tudo o que protege do mimetismo conflitual. Em vez de nos Pedro faz-se, aqui, semeador de escândalos, o Satanás
advertir contra as armadilhas que nos esperam, Satanás faz- que desvia de Deus os homens, em proveito dos modelos de
-nos ca.ir nelas; aplaude a ideia de que as proibições «para rivalidade. Satanás semeia os escândalos e colhe a tempes-
nada servem» e que a sua transgre são não comporta qual- tade das crises miméticas. Para ele, é a ocasião de mostrar
quer perigo. aquilo de que é capaz. As grandes crises conduzem ao ver-
O caminho no qual Satanás nos lança é largo e fácil, é a dadeiro mistério de Satanás, ao seu mais desconcertante
grande auto-estrada da crise mimética, mas eis que, entre poder, que é o de se expulsar a ele próprio e de restabelecer
nós e o objecto do nosso desejo, surge um obstáculo inespe- a ordem .nas comLm.idades humanas.
rado e, mistério dos mistérios, quando pensávamos ter dei- O texto essencial a respeito da expulsão satârúca de Satanás
é a resposta de Jesus às pessoas que o acusam de expulsar
xado Satanás muito atrás de nós, é ele quem nos barra o
Satanás por Belzebu, o príncipe dos demórúos:
caminho, ou um dos seus dernórúos. ·
É a primeira das inúmeras metamorfoses de Satanás: o Como pode Sntnnns exp11/snr Sntnnn · ? Se um reino se dividir
sedutor do início depressa se transforma num adversário contrn si mesmo, tnl reino niio pode perd11rnr; e, se 11111n cnsn se
rebarbativo, um mais sério obstáculo do que todas as proibi- dividir contrn si mesmn, tnl cnsn niio pode s11bsistir. Se, portanto,
Sntnnrís se levnntn contrn si próprio, está dividido, e niio poderá
ções ainda não transgredidas. O segredo desta lastimável subsistir; é o seu fim.
metamorfose é fácil de descobrir. O segLmdo Satanás é a con-
{Me 3, 23-26)
versão do modelo mimético em obstáculo e em rival, é a
génese dos escândalos. Acusar mn exorcista rival de expulsar os demórúos por
Porque ele próprio deseja o que nos leva a desejai~ o nosso intermédio de Satanás, devia ser banal naquela época. Muitas
modelo opõe-se ao nosso desejo. Assim, para além da trans- pessoas deviam repeti-la maquinalmente. Jesus quer fazer
gressão, desenha-se um obstáculo mais coriáceo do que todas com que se reflicta nas suas implicações. Se for verdade que
as proibições, inicialmente dissimulado pela própria protec- Satanás expulsa Satanás, como é que se faz, como é possível
ção que facultam estas últimas enquanto forem respeitadas. esta habilidade?
Não sou o úrúco a assimilar Satanás aos escândalos, é o Longe de negar a realidade da auto-expulsão satârúca, o
próprio Jesus numa veemente apóstrofe a Pedro: «Afasta-te, texto afirma-a. A prova de que Satanás possui este poder é
Satanás, porque és para mim um escândalo. » afirmação frequentemente repetida de que está perto do seu
Pedro provoca esta altercação ao reagir de forma nega- fim. A queda para breve de Satanás, profetizada por Cristo,
tiva ao primeiro an{mcio da Paixão. Decepcionado por aquilo e o fim do seu poder de auto-expulsão são Lm1a coisa só.
que toma como a resignação excessiva de Jesus, esforça-se Quer em Mateus quer em Marcos, em vez de substituir o
por lhe incutir o seu próprio desejo, a sua própria ambição segtmdo Satanás por um pronome e de dizer: «Como é que

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Satanás se expulsa a si mesmo?», Jesus repete o nome, Satanás:
de _rersu~~ir q~e dev: um dos seus nomes mais antigos,
«Como é que Satanás expulsn Satanás?» A oração interrogativa
~1ais tradicionais. Ele e o arnsador do herói no livro de Job,
de Marcos transforma-se numa oração condicional, mas a
JLmto de Deus e mais ainda j1mto do povo. Ao transformar
fórmula continua igual: «Satanás expulsa Satanás ... »
urna comunidade diferenciada numa multidão histérica
A repetição da palavra Satanás é mais eloquente do que o
seria a sua substituição por l.ll11 pronome, mas não é o gosto Sata~~s engendra os mitos. Ele é o princípio de acusação sis~
pela bela linguagem que o inspira, é o desejo de sublinhar ternatica que surge do mimetismo exa perado pelos escân-
o paradoxo fw1damental de Satanás: um príncipe da ordem da!os. Quando a infeliz vítima fica completamente isolada,
ao mesmo tempo que da de ordem. pnvad~ de defensores, nada pode protegê-la da multidão
O Satanás expulso é aquele que fomenta e exaspera as enfureoda. Todos podem fazer cair a sua ira sobre ela sem
rivalidades miméticas ao ponto de transformar a comuni- terem que temer a mínima represália.
dade numa fornalha de escândalos. O Satanás que expulsa é . ~rn~ única vítima parece pouco para todos os apetites de
essa mesma fornalha quando atinge o ponto de incandes- v10lencia. que converge1n sobre si, mas, nesse n1ornento a
cência suficiente para desencadear o mecanismo vitimário. commüaade em nada mais pensa a não ser na sua destr~li­
A fim de impedir a destruição do seu reino, Satanás faz da sua ção. A~sirn, a vítima substitui todo aqueles que se opunham
própria desordem, no seu paroxismo, um meio de se expul- entre si, um. pouco antes, em mil e um escândalos di semina-
sar a si mesmo. dos aqui e ali e que se uniram todos contra um ímico alvo.
É este extraordinário poder que faz de Satanás o príncipe Como, na con:unidade, já ninguém tem outro inimigo,
deste mundo. Se não pudesse proteger o seu domínio dos u:_na ~ez persegmda, expulsa, aniql.lilada a vítima, a multi-
atentados que ameaçam destrui-lo, e que são, essencialmente, dao ve-se sem hostilidade, privada de inimigo. Havia apenas
os seus, não merecia o título que os Evangelhos lhe conferem um e ~esern~~raçou-se dele. Pelo menos provisoriamente, a
não com ligeireza. Se fosse puramente destruidor, havia cornl.ll1ldade Jª não se~te ódio nem ressentimento a respeito
muito tempo que Satanás teria perdido o seu domínio. Para d_: quem quer que se1a, sente-se purificada de todas as ten-
se compreender o que faz dele o mestre de todos os reinos soes, de todas as divisões, de todas as fragmentações.
deste mundo, é preciso levar à letra o que diz Jesus, a saber, Os perseguidores não abem que a sua concórdia, assim
que a desordem expulsa a desordem, por outras palavras, corno a sua anterior discórdia, é obra do mimetismo; acredi-
que Satanás realmente expulsa Satanás. Foi executando esta tam terem de se haver com um ser perigoso, maléfico, de
proeza nada banal que soube tornar-se indispensável e que o quem a comunidade tem de se libertar. Nada é mais sincero
seu poder continua a ser muito grande. do que o seu ódio.
Corno compreender esta ideia? Voltemos ao momento em O todos-contra-um mimético ou mecanismo vitimário tem
que a comunidade dividida, no paroxismo do processo P?rtanto, a ~spantosa, a espectacular, mas logicamente expli~
mimético, refaz a sua múdade contra uma única vítima que cavel propriedade de restituir a calma ao seio da coml.mi-
se torna o escândalo supremo porque toda a gente, mimeti- dade,_ de tal modo perturbada um instante antes que nada
camente, a torna por culpada. parecia capaz de a apaziguar.
Satanás é o mimetismo que persuade a comunidade Apreender este mecanismo como coisa de Satanás é com-
inteira, unânime, de que a culpabilidade é real. É a esta arte preender que a fórmula de Jesus: «Satanás expulsa Satanás»

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tem uma significação precisa, explicável racionalmente, guardião. O procurador receava uma revolta que, graças à
define a eficácia do mecanismo vitimário. É a este meca- crucificação, não se produziu.
nismo que o grande sacerdote Caifás faz alusão quando diz: O suplício transforma a multidão ameaçadora nun1
«Mais vale que morra um único homem e que pereça todo público de teatro antigo ou de cinen1a moderno, tão cativado
um povo. » pelo espectáculo sangrento como os nossos contemporâneos
As quatro narrações da crucificação fazem-nos, portanto, pelos horrores hollywoodescos. Uma vez saciados desta vio-
assistir ao desenrolamento de mn mecanismo vitimário. A se- lência que Aristóteles qualifica de catártica, pouco importa se
quência, já o disse, assemelha-se aos inúmeros fenómenos real ou imaginária, todos os espectadores voltam sossegada-
análogos dos quais Satanás é o encenador. mente a suas casas para dormirem 9 sono dos justos.
A prova de que a Cruz e o mecanismo de Satanás são um A palavra catarse começou por significar a «purificação»
só é dada pelo próprio Jesus quando diz im~diatamente oferecida pelo sangue derramado nos sacrifícios rituais.
antes da sua prisão: «Chegou a hora de Satanás. » E preciso que Estes são.,ª ' repetição deliberada, vê-lo-emos em breve, do
não se veja nesta frase uma fórmula retórica, uma maneira processo descrito na Paixão, por outras palavras, do meca-
pitoresca de sugerir o carácter repreensível daquilo que os nismo satânico. É exactamente de exorcismo que se trata no
homens vão fazer a Jesus. Tal como todas as outras frases debate que dá a Jesus a ocasião para se interrogar sobre a
evano-élicas
o
a respeito de Satanás,, esta tem uma significação expulsão satânica de Satã.
precisa e mesmo quase «técnica». E uma das frases que desig- Os Evangellios fazem-nos ver que as comunidades huma-
nam na crucificação um m.ecanism.o vitimário. nas estão sujeitas a desordens que voltam de tempos a tem-
A crucificação é um daqueles momentos em que Satanás pos e que podem ser resolvidas por fenómenos de multidão
restaura e consolida o seu poder sobre os horn.ens. A passa- unânime, quando satisfeitas certas condições. Esta resolução
o-em do «todos-contra-todos» ao «todos-contra-um mimé- enraíza-se no desejo mimético e nos escândalos que transtor-
ºtico» permite ao príncipe deste mundo prevenir a destruição
nam sempre as comunidades.
total do seu reino, ao acalmar a cólera da multidão e ao resti-
O ciclo mimético começa com o desejo e com as rivalida-
tuir a tranquilidade indispensável à sobrevivência de toda a
des, desenvolve-se pela multiplicação dos escândalos e pela
comunidade humana. crise mimética e resulta, finalmente, num mecanismo vitimá-
Assim, Satanás pode sempre voltar a pôr ordem sufi-
rio que é a resposta à questão colocada por Jesus: «Corno é
ciente no mundo, de forma a prevenir a destruição total do
seu bem sem se privar durante muito tempo do seu passa- que Satanás expulsa Satanás?»
tempo favorito, que é o de semear a desordem, a violência e Certas lendas medievais e contos tradicionais contêm
ecos da concepção evangélica de Satanás. Neles, vê-:-se um
a infelicidade entre os homens.
A morte de Jesus frustra o cálculo satânico, veremos em homem amável, generoso, sempre pronto a satisfazer de
breve porquê, mas, no imediato, tem exactamente os efeitos favores os homens em troca de muito pouco, é o que se julga.
esperados por aquele que a provocou. Pode constatar-se nos A sua única reclamação é que urna alma, e apenas urna,
Evangelhos que tem, na multidão, o efeito tranquil~zador fique para si reservada. Há alturas em que reclama a filha do
que Pilatos, precisamente como Satanás, espera dela. E apre- rei, mas, muitas vezes, pouco lhe importa . O primeiro que
ciável do ponto de vista da pax romana da qual Pilatos é o aparecer serve tão bem como a mais bela das princesas.

58 59
Os primeiros ouvintes de Jesus estão . , d .
A exigência parece modesta, quase ínfima em comparação fim de contas um po Jª escan ahzados, no
Se os ' uco corno os nossos contemporâneos:
dos benefícios prOinetidos, mas a ela o misterioso cavalheiro
não pode renunciar. Se não for satisfeita, instantaneamente
fi se Deus o vosso Pai, vós amar-Me-íeis pois de De use, que
1

todos os dons do generoso benfeitor se esvanecem., e ele com É que eu não. vim de Mim · pro'p110,
,· mas ;Ol
r. .
Ele que M[E11 saí
- ·e venho.
eles. Só pode ser Satanás, está claro, e, para o pôr em fuga,
p ar, que motwo
P - não
. entendeis a M1" · nlw lmguagem?
. . e envwu.
basta não lhe ceder à chantagem.. Existe aqui uma alusão o;querwo podeis ouvir a Minha palavra! .
bastante clara à omnipotência do mecanismo vitimário nas Vos sois filho s de um pa l· q11e
. e, o D.zabo e quereis. cumprir os desejos
sociedades pagãs e à sua perpetuação sob formas veladas,
muitas vezes atenuadas, nas sociedades cristãs. Ele foi assassino desde o princípio
. - se manteve na[do
e nao vosso pai.
verdade,

*
Quando profere a mentira fala do
.. . '
l~po1:que,ne~e não há verdade.
que 1e e propno, porque também
* * [é mentiroso e pai da mentira.
Podemos ver em tudo isto uma antropologia do desejo . (8, 42-44)
mimético, crises que dele resultam e fenómenos de multidão
Aos que se definem como seu d . ,
que põem fim a estas crises ao criarem um novo ciclo mimé- que o seu pai não é nem Abraã~ ~scipulos, Jesus responde
tico. Esta antropologia está presente no Evangelho de João rnam, mas o Diabo A - d . em Deus, tal como afir-
. razao este JUlo-a t , 1
onde, tal como já disse mais atrás, Satanás é substituído pelo pessoas têm por pai· D ia
. b o porque sao !? mend o e. cara. Estas
e 0
que querem realizar e - d . os eseJOS do Diabo
Diabo. · · nao os eseJOS de D T
Num dos discursos que atribui a Jesus, João intercala Diabo corno modelo dos seus desejos. eus. ornam o
uma pequena quinzena de versículos nos quais se encontra O desejo de que Jesus fala ass t . . .
tudo o que analisámos nos Evangelhos sinópticos, mas sob quer do Diabo quer de D T en a, por _isso, na mutação
uma forma de tal modo elíptica e condensada que suscita deseJ·O mimético n . eus. rata-se aqrn exactamente do
a mais pura acepçã 0 d -
ainda mais incompreensão que as proposições dos Evangelhos uma vez as noções d p . a expressao. Mais
' e ai e modelo 1 d .
sinópticos que tenho vindo a analisar. Apesar das diferenças humano, por falta de um ob"ecto . ' ao _qua , o . eseJO
consegue renunci·ar· sa-o J, que lhe sep propno, não
de vocabulário que a fazem parecer mais dura, a doutrina de e , urna so.
João é a mesma que a dos sinópticos. Deus e Satanás são os dois «ar ui d .
corresponde à ·, d · . q mo elos» cup oposição
O texto de João é condenado com frequência pelos nossos que J3 escrevi, entre os modelos
contemporâneos como supersticioso e vindicativo. Defende se tornam, para os seus discí ul , ~ue_ nW1ca
nada deseJ·arn de forn , "d p os, obstaculos e nvais, pois
mais uma vez, sem deferência, é verdade, mas sem hostili- 1a a vi a e conco . 1
cuja avidez se repercute ime . d.iatarnenterrencia'
nos e os
· modelos
· d
dade, as consequências para os homens do mimetismo con- transformando-os de . . , seus imita ores,
primeiros versículos d1rnoediato em obstaculos diabólicos. Os
flitual. . _ nosso texto são p t .
Neste discurso, Jesus · dialoga com pessoas que se con- ruçao explicitamente rn· ' t" d '. or anto, urna defi-
, irne ica o deseJO e d -
sideram ainda seus discípulos, mas que vão, em breve,
d ai resultam para a Humanidade. as opçoes que
abandoná-lo porque não compreendem o seu ensinamento.

61
60
Se os modelos que os homens escolherem não os orienta- De quando em quando, os homens leva m até ao fim a
rem na bon direcção, não conflitual, por intermédio de realização dos desejos do seu pni e recaem no todos-contra-
Cristo, a maior ou menor prazo expõeul-nos à indiferenciação -lm1 mimético. o momento em que Jesus faz as afirmações
violenta e ao mecanismo da vítima única. É isto que é o que comentamos, o mecanismo que outrora mobilizou os
Diabo no texto de João. Os filhos do Diabo são os seres que caimrústas contra Abel e, em seguida, milhares de multidões
se deixam apanhar no cerco do desejo causador de rivali- contra milhares de vítimas, está no ponto de se reproduzir
dnde e que, na sua ignorância se tornai::n os joguetes da vio- contra si.
lência mimética. Tal como todas as vítimas deste processo, Imedia tamente após estas afirmações fundamentais,
«não sabem o que fazem » (Lucas 23,34). o texto afirma que o Diabo «não se manteve na verdade».
Se não imitarmos Jesus, os nossos modelos tornam-se O que faz dele nosso príncipe, ou nosso «pai », é a falsa acusa-
pnra nós os obstáculos vivos que nos tornamos parél eles. ção, é a condenação injusta de uma vítima inocente; em nada
Descemo juntos a espiral infernal que conduz às crises se baseia .d.e real, nada de objectivo, mas nem por isso deixa
miméticas generalizadas e, atrás de uma coisa vem outra, ao de se fazer acreditar unarúmemente em virtude do contáaio
. 1 o
todos-contra-um mimético. Esta consequência inexorável v10 ento. A primeira significação de Satanás na Bíblia, volto
explica o seguimento iulediato do texto, él alusão súbita ao a lembrnr, a sjgrúficação do livro de Job, é a do acusador pú-
assassínio colectivo: blico, a do procurador num tribunal.
O Diabo é forçosamente mentiroso, pois, se os perseglü-
Desde a origem [o Diabo] foi um homicida. dores soubessem a verdade, a saber a inocência da vítima
não poderiam libertar-se da sua violência às custas desta'.
Se o leitor não se reportar ao ciclo mimético, também O mecanismo vi timário só funciona devido à ignorância
aqui não irá compreender. Terá a impressão de urna ruptura daqueles que o fazem funcionar. Acredi tam estar na verdade
arbitrária, inexplicável, entre esta frase e as que a precedem. quando, na realidade, estão na mentira.
Na realidade, a sucessão dos temas é perfeitamente lógica: O «que é próprio» ao Diabo, de onde vêm as suas men-
corresponde às etapas do ciclo mimético. tiras, é o mimetismo violento que nada tem de substancial.
João atriblü o todos-conh·a-urn mimético ao Diabo porque O Diabo não tem uma propriedade estável, nada de próprio
lhe atribl.ú já o de ejo responsável pelos escândalos. Poderia ao ser. Para adql.úrir urna aparência de ser, tem de parasitar
também atribuir tudo isto aos homens e, por vezes, fá-lo. é'IS criaturas de Deus. Todo ele é mimético, que é o mesmo
O texto de João é l.m1a nova defirúção ultra-rápida, mas que dizer inexistente.
completa, do ciclo mimético. Em nós e à nossa volta, os O Diabo é o pai da mentira ou, em certos manuscritos,
escândalos proliferam e, mais cedo ou mais tarde, impelem- dos «mentirosos», pois as suas violências enganadoras reper-
-nos para os impulsos miméticos e para o mecarúsrno vitimá- cutem-se de geração em geração nas culturas humanas, as
rio. Sem o sabermos, fazem de nós cúmplices dos assassínios quais continuam a ser tributárias de algum assassírúo funda-
unârúmes, tanto mais enganados pelo Diabo quanto ignora- dor e dos ritos que o reprod uzern.
mos a nossa cumplicidade, que não tem consciência de si O texto de João escandaliza aqueles que não distinguem
própria. Imaginamo-nos virtuosamente estranhos a qualquer a alternativa que supõe, assim como a não distingl.úriam os
violência. primeiros interlocutores de Jesus. Muitos acreditam ser fiéis

62 63
No entanto, esta impressão é ilusória. Se considerarmos uma
a Jesus, mas, actualmente, dirigem aos Evangelhos críticas
a um~ as_p~o~osições que analisei, e se compararmos 0
superficiais, revelando desta forma que continuam submissos
Satanas smopt1co ao Diabo joanino, vemos sem custo que
às rivalidades miméticas e à sua escalada violenta. Quando
a doutrina é coerente e que a passagem de um vocabulário a
não se vê que a escolha entre os dois arquimodelos, Deus e
outro não a afecta.
Diabo, é inevitável, já se escolheu o Diabo, o mimetismo con-
L~nge de ser demasiado absurda para merecer a nossa
flitual. atenç~o, o tema evangélico contém um saber incomparável a
As virtuosas indignações modernas contra o Evangelho
respeito das relações entre os homens e as sociedades que
de João não têm objecto. Jesus diz a verdade aos seus interlo-
delas_n:sultam. Tudo o que disse sobre Satanás adapta-se na
cutores: escolheram o desejo causador de rivalidade, e as
perfe1ça? com o que, anteriormente, a análise dos escândalos
suas consequências serão, a loío.go prazo, desastrosas. O facto nos havia permitido formular.
de Jesus se dirigir a judeus é bastante menos importante do . Quando. o tumulto causado por Satanás se torna dema-
que acreditam aqueles que só pensam numa coisa: provar siado gran.de, ele próprio, exactamente tal como o escândalo,
que os Evangelhos são culpados de anti-semitismo. A pater- s~ tr~sforma de algum modo no seu próprio antídoto; sus-
nidade diabólica, no sentido que Jesus lhe dá, não pode ser o ota o imp_ulso mimético e o todos-contra-um reçonciliador, e
monopólio de um povo em particular. a tranqrnhdade retorna à comunidade.
Após a definição nun<ética de desejo, o texto de João dá-nos A grande parábola dos vinhateiros homicidas faz trans-
uma fulgurante definição das consequências desse mesmo parecer claramente o ciclo mimético ou satânico. Todas as
desejo, o assassínio satânico. A impressão de malevolência v~zes q~1e o propriet~rio da virlha· envia um mensageiro aos
que este texto produz deve-se à incompreensão do seu con- vmhate1ros, esse env10 desencadeia entre eles uma crise que
teúdo, que nos foz pensar numa série de insultos gratuitos. resol:em pondo-se todos de acordo contra o mensageiro
É um efeito da nossa ignorância, muitas vezes repleta de hos- ur:an:~emente expuls~. E~te acordo tmânime é o impulso
tilidade preconceituosa a respeito da mensagem evangélica. m~m:~co. Cada expulsao v10lenta é o desenlace de um ciclo
É o nosso próprio ressentimento que projectamos no cristia- m1met1co. O último mensageiro, é o Filho, expulso e assassi-
nismo. Para além dos interlocutores imediatos de Jesus, que nado da mesma forma que todos os anteriores enviados.
são, inevitavelmente, judeus, é a Humanidade inteira que, tal . Esta par~~ola confirma a definição da crucificação que já
como sempre nos Evangelhos, é visada. dei. O suphoo de Jesus é um exemplo, entre tantos outros
d~ ~ec_anis~o ;itü~1á~io. O que faz com que o ciclo de Jesu~
* se3a llillCO ;o.ao e a v10lencia, é a identidade da vítima: o Filho
* * de Deus. E ª.~ui que está o essencial, do ponto de vista da
O Satanás dos Evangelhos sinópticos e o Diabo do Evan- nossa redençao, com,o ~ óbvio, mas por mtúto negligenciar-
gelho de João significam o mimetismo conflitual, o meca- mos a _base antropologica da Paixão, perdemos a verdadeira
nismo vitimário incluído. Pode tratar-se quer do processo na te~~ogia da Encarnação que necessita da antropologia evan-
sua totalidade, quer de um único momento. A palavra dá gehca para se ftmdamentar.
aos exegetas modernos, cegos para o ciclo numético, a impres- As noções de ciclo mimético e de mecanismo vi timário dão
são de significar tantas coisas diferentes que já nada sigiufica. um conteúdo concreto a uma ideia de Simone Weil, segundo

64
65
.· de Deus» uma imitar esse ser de uma forma ciumenta, grotesca, perversa,
mo antes de serem. urn.a «teoua ' . , tão contrária quanto possível à imitação recta e dócil de Jesus.
a qual, mes _ t . do Homem», uma antJo-
. Ev"''10-elh.os
teo 1ogw, os ,._.o sao Lu11a « eona - Satanás é imitador, repito-o, no sentido causador de rivali-
pologia. dade do termo. O seu reino é uma caricatura do Reino de
Uma vez que
º desenca ddeamento do mecanismo vitimá-
d . . o Satanás que expulsa Deus. Satanás é o macaco de imitação de Deus.
. .d o auo-e da esor en,, e
Afirmar que Satanás não exis te, recusar-lhe o ser, tal
rio co1no e con1 e o , . d ~ t·co ao Sataná que fo-
ordem e mesmo i en i como faz a teologia cristã, é dizer, entre outras coisas, que o
e restab e1ece a , d J Satanás expulsa Sa-
rnenta desordem: a formula e esus, « . cris tianismo não nos obriga a ver nele «um ser que existe
tanás», é insubstituível. -' . e do mundo, o seu melhor realmente ». A interpretação que reconhece em Satanás o
O maior segredo do pnno~ . . . é o todos-con- mimetismo conflitual permite que, pela primeira vez, não
. t lvez o seu uruco recurso,
truque de magia , ª . .
t" mário é a unanimidade se mininuze o príncipe deste mundo sem o dotar de um ser
tra-um mimético ou mec~111smo v1 ~ ·d' m restabelece a pessoal .que a teologia tradicional, com razão, lhe recusa.
mimética que, no paroxismo da esor e ' No's Evangelhos, os fenómenos miméticos e vitimários
ordem nas comunida~~s ld1uman~~d.o-itação que, até à revela- poden1 organizar-se a partir de duas noções diferentes: a pri-
Graças a esta espeoe e pres i lo , meira dest,a s noções é um princípio impessoal, o escândalo.
. . . - ' re ficou dissimulada e que, ate a
ção iudaica e cnsta, sen P , t no próprio seio A segunda é este personagem misterioso a quem João chama
. da o esta actua 1inen e, Diabo e os Evangelhos sinópticos, Satanás.
um certo ponto, ain ' _ f · ·n:u'lada as comu-
- ez que nao 01 ass1 ' Os Evangelhos sinóp ticos contêm, já vimos, um discurso
da sua revelaçao, uma v , dem muito relativa
devem a Sa tanas a or de Jesus sobre o escândalo, mas nenhum discurso sobre
nidades humanas _ re em dívida para com
ue usufruem. Portanto, estao semp , . . Satanás. Em contrapartida, a literatura de João não contém
~le ~~~~fsº~~a\~:~:;~ ~~~e~~".;!7!;,s ;:'~dsprópr;~ qualquer discurso sobre o escândalo, mas contém. um sobre
o Diabo, aquele que acabo de examinar. O escândalo e Satanás
írito de arroganoa e e nva i
Deus imita, mas com um ~sp . etuar o seu reino durante a são, flmdamentalmente, a mesma coisa e, no entanto, pode
dade pelo poder. Co~~eguiu perp , temporização de observar-se entre ambos importantes diferenças. O peso
maior parte da histona humana, . graças a homens marca o principal das duas noções distribui-se de maneira diferente.
Deus, da qual a missão de Jesus J~mto dos d , ")arte da No escândalo, a tónica incide sobre o processo conflitual no
. O reino de Sa tanas correspon e a f , . . seu início, sobre as relações entre os indivíduos, por conse-
começo do fim . . t , de Cristo a que e mte1-
história humana que se hca par~ ras vitimário' e pelas falsas guinte mais do que sobre os fenómenos colectivos, ainda que
ramente governada pelo mecarusmo estes não estejam ausentes, já o vimos. Esboça-se o ciclo
mimético, mas não é tão claramente desenhado como no
div~d:a~::pção mimética de Satanás permi~e aodNovo ~es~ caso do Satanás sinóptico e do Diabo joanino. O mecanismo
. M l m apel à medida a sua un
tamento conferir ao ª u p t lógico que faria deste vitimário é sugerido, mas não verdadeiramente definido .
ortância sem lhe dar o peso on o Penso que a partir de um único escândalo, seria difícil
P , ·e de deus do Mal.
personagem um~ espec_i for pelos seus próprios meios, chegar-se a uma explicação completa do mecanismo vitimá-
Longe de «cnar» seia 0 que · d or Deus ao rio e da significação antropológica da Cruz. Todavia, é o que
Satanás só se perpetua ao parasitar o ser ena o p '

67
66
faz Paulo, quando define a Cruz corno o escândalo por exce-
lência. Se não se recorrer ao ciclo mimético para o interpretar,
este discurso é parcialmente ininteligível.
Pelo contrário, no caso da expulsão satânica de Satanás, o
ciclo mimético é verdadeiramente encerrado, o círculo é,
de facto fechado, pois o mecanismo vitirnário está definido de
modo explícito.
Mas por que é que Satanás não aparece como um prín-
cipe impessoal, à semelhança dos escândalos? Porque repre-
senta a consequência principal dos mecanismos vitimários,
a emergência de uma falsa transcendência e as numerosas
divindades que a representam; Satanás é sempre alguém. É isto
o que os capítulos que se seguem vão permitir compreender. SEGUNDA PARTE
)

O ENIGMA DOS MITOS


RESOLVIDO

68
'
/
IV

O HORRÍVEL MILAGRE
DE APOLÓNIO DE TIANA

A polónio de Tiana era um guru famoso do século 11 depois


de Cristo. Nos meios pagãos, os seus milagres passavam por
mLúto superiores aos de Jesus. O mais espec tacular é, decerto,
a cura de uma epidemia de pes te na cidade d e Éfeso. Pos-
SLúmos LLma sua narração graças a Filos trato, escritor grego
do século seguinte e autor de Vie d 'Apoflonius de Tyanel.
Os Efésios não conseguiam livrar-se da epidemia. Após
muitos remédios inúteis, dirigiram-se a Apolónio que, por
meios sobrenaturais, apareceu em suas casas num piscar de
olhos e lhes anLmciou a CLua imediata:

«Hoje mesmo, vo u pôr fim à epide mi a que vos op rim e.» Com
es tas palavras, conduziu o povo inteiro ao tea tro, ond e se
erg uia uma in1agem do de us protector. AI, viu uma espécie de
mendigo que piscava os olhos corn o se fosse cego e que traz ia
uma bolsa qu e continl1a uma côdea de pão. O homem, ves tid o
de farrapos, tinJ1a qualquer coisa de repugnante.

l Fia v iu s PhiJ ostra tus, Tire Life of Apolloni1ts of Tynnn , tire Epistles of Apol/011i11s
nnd tire Trentise by E11sebi11s, com uma tradu ção inglesa d e F. C. Conybeare
(Ca mbridge, Harvard University Press, 1912), Loeb Classica l Library, livro 4,
ca p. 10).
\

71
Enquanto dispunha os Efésios à volta deste, Apo~ónio disse-lhes: *
«Apanhen1 tantas pedras quanto possam e atirem-nas a este * *
inimigo dos deuses». Os Efésios perguntaram-~e 9ue preten-
dia ele com aquilo. Escandalizavam-se com a ideia de mata- Por fantástica que seja a sua conclusão, o relato de Filostrato
rem um desconhecido manifestamente miserável que lhes é demasiado rico em pormenores concretos para ser inven-
rogava e suplicava que tivessem piedade dele. Insistindo, tado na totalidade.
Apolónio impelia os Efésios a atirarem contra ele, a impedi- O milagre consiste em desencadear um contágio mimé-
rem-no de se afastar. tico tão poderoso que acaba por polarizar toda a população
Quando alguns deles seguiram o conselho e se puser~m a ati-
rar pedras ao mendigo, este, cujos olhos pestaneiantes o da cidade contra o infeliz mendigo. A recusa inicial dos Efésios
faziam parecer cego, lançou-lhes, subitamente, ;u.11 olhar é o único raio de luz neste texto tenebroso, mas Apolónio faz
penetrante e mostrou os olhos cheios de fogo . ?~ Efesios com- tudo o que pode para o extinguir, e consegue-o. Os Efésios
preenderani então que enfrentavani um demomo e apedreia- começam a apedrejar a sua vítima com uma raiva tão grande
ram-no com tanta vontade que as pedras formaram um grande que acaban'l por ver nela o que Apolónio lhes pede: o autor
túmulo à volta do seu corpo.
Após um breve momento, Apolónio convidou.-os a retirarem de todos os males, o «demónio da peste», do qual precisam
as pedras e a verem o animal selvagem que tinham matado. livrar-se para curar a cidade.
Uma vez destapada a criatura à qual haviam lançado ?s seus Para descrever o comportamento dos Efésios, depois de
projécteis, constataram que não se trat~va de tm1 mendigo. ~o começado o apedrejamento, somos tentados a recorrer a
seu lucrar, havia um animal que pareoa nm molosso, mas tao uma expressão moderna seguramente feia, talvez por causa
grand~ quanto o maior dos leões. Estava .ali, à sua vista, redu-
da sua exactidão, a de descarregar. Quanto mais os Efésios
zido a papas pelas suas pedras e a vomitar ~spnma tal como
fazem os cães enraivecidos. A tendendo a isto, ergueu-se a obedecem ao seu guru, mais se transformam numa multi-
estátua do deus protector, Héracles, no mesmo sítio onde o dão histérica e mais conseguem descarregar no infeliz men-
mau espírito havia sido expulso 2 . digo.
Surge-nos ainda uma outra expressão clássica, tão feia
Aqui está o horrível milagre que, se o auto_r fosse cristã~, como a primeira e igualmente exacta: é a metáfora do abcesso
decerto o acusaríamos de caluniar o paganismo! Mas F1- de fixação, muito empregada na época áurea do comparati-
lostrato é um pagão militante, muito decidido a defende.r a vismo religioso.
reliaião dos seus antepassados. O assassínio do mendigo Ao canalizar em direcção a um alvo universalmente
par~ce-lhe susceptível de elevar a moral dos seus correligioná- aceite o contágio violento que provocou entre os Efésios,
rios de reforçar a sua resistência ao cristianismo. No plano Apolónio satisfez um apetite de violência que demora a
que' diríamos «mediático», não se enganava. O seu livro t:ve despertar e que só desperta para se apaziguar a. golpes d~
um sucesso tão grande que Julião, o Apóstata, voltou a po-lo pedra contra a vítima designada pelo guru. Quando já des-
em circulação no século rv, no âmbito da sua última tentativa carregaram bastante, quando o abcesso de fixação já desempe-
para salvar o paganismo. nhou o seu papel, os Efésios descobrem que estão curados
da epidemia.
2 Foi 0 professor Eduardo Gonzales que me chamou a atenção para este texto Há ainda uma terceira metáfora, que desta vez não é
e agradeço-lhe por isso. \ moderna mas, sim, antiga, que é a de catarse ou pmificação,

72 73
que Aristóteles emprega para descre v~r º.efeito das tr a~é ­ *
dias nos espectadores; significa, em pnmeiro l.u gar, º.efeito * *
que tem nos participantes dos sacrifícios rituais, das imola-
Os Evangelhos ensinaram-nos que o motor das violências
çõe sangrentas. .. .
colectivas são as, rivalidades colectivas. Se o apedrejamento
O mila are contém elTt si todo um ensinamento propna-
º . . do mendigo de Efeso pertencer à mesma ca tegoria de fenó-
mente religioso que nos escaparia se o tivéssemos por imagi-
menos que él Pélixão, devemos encontrnr na narração de
nário. Longe de ser um fenómeno aberrante, estr~nho a tudo
Fi1ostrato, senão tudo o que encontrámos m1 Paixão, pelo
0 gue sa bemos sobre o universo grego, o apedreia,mento do
menos indicações suficientes que facilitarão e justificarão o
mendigo lembra certos dados religiosos mmto ~lassKos, º,s paralelo com os Evangelhos.
sacrifícios de plwrmakoi~ por exemplo, verdadeiros as~ass1-
Com efeito, as indicações es tão lá. Mesmo antes da mirra-
ruos colectivos de indivíduos análogos ao mendigo de Efeso.
ção do apedrejamento miraculoso, Apolónio es tá num porto
Voltarei a eles em bre\l't!.
rnarítim9 com alguns fiéis e o espectáculo de um navio a
O pre tígio de Apolónio é tanto mais ~irustro quanto não
partir inspira-lhe notáveis observações acerca da ordem e da
deve ser totalmente u surpado. O apedrepmento passa por
desordem nas sociedades. Apolónio vê na tripulação de um
miraculoso porque põe fim aos lamentos dos Efésio~. Mas,
navio uma comurudade cujo êxito ou fraca sso depende da
diriam vocês, é de peste o que aqui se trata. Co~o e que .º natureza das relações entre os seus membros:
assassíruo de Lm1 mendi go, por unânime que se1a, podena
curar urna epidemia de peste? Se u111 único membro dessa co munidade neglige ncia sse a sua
Estamos num mLmdo em que a palavra «peste» se emprega tarefa ... , a viagem acabaria mal e todos encarnariam eles mesmos a
tempes tade. Pelo co ntrário, se forem animados po r uma salutar
muitas vezes num sentido que não é estritamente médico.
em11laçiio, se rivalizare111 apenas na eficácia, cada u111 deles no rn111-
Quase sempre a palavra comporta uma dimensão social. Até primento da sua tarefa, garnntiriio a segurança do navio; o tempo
ao Renascimento, em qualquer lado onde surgissem as «ver- con tinuará bom e a na vegaçiio se rá fácil . Ao dominar em-se a
dadeiras» epidemias, estas perturbavam a relações so~iai.s. si mes mos, os marinheiros obteriio os mes mos resu ltados que se
Em qualquer parte onde as relações são pertur~a~a~, a ideia Posídon , o deus que torna o mar propício, VPlasse, constantemente,
por eles3.
de epidemia pode surgir. A confusão é tanto mais facil quanto
tão conta giosa é uma «peste» como outra .
Se Apolónio tive se intervindo num contexto de peste Em suma, rivalidades há-as boa s e má s. Há a salutar
bacteriana, o apedrejamento não teria tido influência sobre .a emulação dos homens que «rivalizam apenas na eficácia,
«epidemia ». O astucioso guru devia ter-se informado e s_ab~a cada um deles no cumprimento da sua tarefa », e as rivali-
que a cidade estava tomada de tensões internas susceptive1s dades prejudiciais dos que «não se dominam a si mesmos».
de se descarregarem no que nós mesmos chamamos um bode Longe de contribuir para o bom funcionamento das socieda-
expiatório. Esta quarta metáfora designa uma vítima de troca, des, estas rivalidades sem freio enfraquecem-nas. Aqueles
um inocente subs tituído aos antagorustas reais. Mesmo antes que a elas se entregam encarnam a tempestade.
do milagre propriamente dito, há na Vida de Apolónio de Tiana
uma passa gem que confirma a nossa .conjectura. 3 Op. cit., li vro 4, cap. 9.

74 75
Não são os inimigos do exterior que corrompem associe- não encontram nele 0
dades, são as ambições desmedidas, as concorrências desen- sobretudo, em demonstrque procura-?1. Eusébio empenha-se,
freadas, que dividem os homens em vez de os unirem. têm de sensacional N ar qude os nulagres de Apolónio nada
Filostrato não define os conflitos miméticos de forma tão · unca a opta para den ·
truoso apedrejamento _ ' unciar o mons-
longa e intensa como o faz Jesus .no seu discurso sobre os ramos dele. Do mesm' oas endtoaçoes de indignação que espe-
escândalos, mas é, com toda a evidência, do mesmo tipo de reduz o debat .mo . o que. os par t'd ' · do guru
1 anos

conflito que fala, e fá-lo com uma competência que não deixa e a uma nvahdade mi 't· '
de milagres. Ao lê-1 me ica entre fazedores
margem para dúvidas. o, compreende-se melh ,
Jesus procura desviar a nossa at - d or por que e que
Já sugeri mais atrás que a peste de Éfeso não é bacteriana. ,
E usebio ençao os milagres f ·
nunca define d d . que azia ...
É uma epidemia de rivalidades miméticas, escândalos que se . ver a eiramente a o . -
oal entre Apolónio e Je F e pos1çao essen-
cruzam entre si, uma luta de todos contra todos que, graças sus. rente aos aped ·
está nos antípodas de Apolónio. E re;ament~s, Jesus
à vítima seleccionada pela astúcia diabólica de Apolónio, se
transforma «miraculosamente» num todos-contra-um reconci-
liador. Ao adivinhar o mal de que sofrem os Efésios, o guru
ramente .ó que faz saltar o:
tudo o que,pode para os im edir m ~e~ d: os ~uscitai~ faz
olh~sEuseb1? nao diz verdadei-
estabelecer as diferenças entre os d . do leitor m~d.ern?. Para
suscita, às custas de um pobre diabo, uma violência da qual ponto, é preciso compara mil ms mestres espmtua1s neste
espera um efeito catártico superior ao dos vulgares sacrifí- , r o « agre» ma . d
nio com um texto que nada t d . qwna o por Apoló-
cios, ou das representações trágicas que, sem dúvida, eram cujo apedre1·amento Jes . emd e nuraculoso, o da mulher
representadas, no século II da nossa era, no teatro de Éfeso. us impe e:
A ideia de ver nesta advertência contra as rivalidades Entretanto os escriba.:,,~ o-Jtanseus
' J ::,
· trouxei·a li1
nhada em adultério e d . d - m- e uma mulher apa-
miméticas uma introdução ao milagre parece-me tanto mais , epo1s e a colocarem · d·
Mestre, esta mulher fo . I d no meio, issemm-lhe:
verosímil quanto os dois textos se seguem sem a mínima Moisés na Lei ma11do i ap~n w a em flagrante adultério. Orn
transição. A passagem que acabo de citar precede de ime- . ' ' · u-no::, apedre1ar t ·- li . '
dizes? » Isto diziam ele.: pa1·a li ' a1::, mu 1eres. E tu , que
diato o capítulo consagrado ao apedrejamento miraculoso, J 1e armarem uma . '/ d fi'
de que O arnsar. Mas Jesus Í11 ·1· d S , LI a a, a im de terem
, L inan . o- e pos-se a e·.
que longamente citei no início deste capítulo. com o dedo. Como persisti ·s, . ' :>uever no chão
::, em em mterroaá Lo e S
O apedrejamento é um mecanismo vitimário, igual à -li1es: «Quem de vós est. . - ~ - , rgueu- e e disse-
.wei ::,em pecado se1a o · ·
uma pedral» E inclina /1 d S ' prn11e1ro a /ançar-lhe
Paixão e mais eficaz ainda sob o aspecto da violência, pois é ' o- e novamente re -
chão. Eles porém quando . t . , wmeçou a escrever no
completamente unânime e a comunidade julga de imediato ' , · 1s o ouviram foram · d
começar pelos mais velhos fi. , , sa111 . o um a um, a
ter-se livrado da «epidemia da peste». nuava ali no meio fe-i1s '.e icoSu so j~sus com a mulher, que conti-
. ::, e1gueu- e e disse lhe· M li
eles ? Ninauém te conde110117 El - . « u wr, onde estão
0
· » a respondei · N. ,
* «Nem Eu te condeno volve li J
li- 1e esus Vm e do·
. '· " mg uem, Senhor. »
t - tornes
' · 1avan e, nao
1

* * a pecar. » ·

Consciente dos danos que a Vida de Apolónio de Tiana cau- Un B 3-11)


sava ao cristianismo, Eusébio de Cesareia, o primeiro grande
Ao contrário dos Efésios ue -
historiador da Igreja, amigo e colaborador de Constantino, pacífico desfavorável q d' n? começo, estao de humor
escreveu uma crítica deste livro, mas os leitores modernos ' ao ape re;ament l · -
leva a mulher adúltera a J , o, a mu tidao que
esus esta de humor combat·IVO.

76
77
Os Efésios não conseguem tomar, friamente a decisão de
Em ambos os textos, toda a acção gira à volta de um pro- . . u·
massacrarem um d os seus iguais,
· . por rruseravel,
. , ' reptianante0
blema que apenas a frase de Jesus torna explícito, enquanto, e ms1gn icante que fosse .
pelo contrário, rnmca é claramente formulado por Filostrato, . Os ~rgwnentos que ju tificam esta recusa têm a sua con-
o da primeira pedra. vtraparhda - na ,frase
. de Jes us. Encontram . · A
a equivalencia, desta
No «milagre» de Apolónio, a prirneira pedra é, de modo ~z, na_o nas últimas palavras, mas nas primeiras: «Quem de
visível, a principal preocupação do guru, uma vez que ne- dvos eshver . sem pecado.e ... » o s Efes1os
' · nao
- se arrogam 0 direito
nhum efésio consegue decidir-se a lançá-la. E com facilidade A e assassmarem, fnarn.ente, uma criatura humana à qual nada
se nota esta preocupação, mesmo que nunca se torne explí- tem a apontar. e e

cita. Apolónio acaba por resolver a dificuldade no sentido Ef' ~aradalcan~ar o seu objectivo, Apolónio tem de distrair os
que pretende, mas precisa de se esforçar como o bom diabo es1os a acça? que lhes pede que cometam; procura fazê-los
e~quecer a realidade física do aprede1·amento Com .
que é. Também Jesus triunfa sobre as dificuldades com as d1 A · "d' · uma o-ran-
quais é confrontado, mas, em sentido contrário ao do guru, i oquençià n icula, dentmcia no mendigo um «inimio-~ dos
d:uses». Para tornar possível a violência há que tornar demo-
faz.recair a sua influência contra a violência.
ruaco aquele de quem se quer fazer urna vítima. E por fim
Na única frase da sua intervenção, Jesus menciona, expli-
citamente, a primeira pedra, põe nela a tónica ao referi-la em ~~'_:1d~onseg"".', obtém o que d.eseja: a primeira ped:a. Uma :e~
.
tida ' Apoloruo
. A pode dornm descansado. Esta' 0o-ar-i..a a par-
último lugar, de modo a prolongar o seu eco por tanto tempo . ui
para a v101encia e para a mentira. Os mesmos Efésios ue
quanto possível, poder-se-ia dizer, na memória dos que o
ouviram: «Quem de vós estiver sem pecado seja o primeiro a /an-
um mome~to a~1tes, se compadeciam do mendigo, dão pro~as'
n~ emulaçao violenta, de tm1a instigação tão co tr , · ,
at t d · · · 1 n ana a sua
'
çar-l11e uma pedra! » Sempre céptico e orgulhoso do seu cepti-
iu L e micia que a nossa surpresa iguala a nossa tristeza
cismo, o leitor moderno suspeita de um efeito puramente ono-e
. o de ,ser purar. 1:en te re t,onca,
· a primeira pedra é deci-·
retórico: a primeira pedra é proverbial. Lançar a pedra, lan- siva p~rque e a mais difícil de lançar. Mas o que é qt e f
çar a primeira pedra: ora aí está uma daquelas expressões ser Q assimdtã 0 difí 0 v· p orque e, a uruca
, . que não tem um i modelo.a az
que toda a gente repete. ' l . uan o _Jesus profere a sua frase, a primeira pedra é o
Tratar-se-á aqui, verdadeiramente, de um simples efeito u ti;no ~bstaculo que se opõe ao apedrejamento. Ao chamar
de linguagem? É preciso não esquecer que é o texto que lemos, a a ençao para ela, ao mencioná-la expressamente Jesus faz
a história da mulher adúltera salva do apedrejamento, que o que pode para reforçar este obstáculo para o ' .f. .
tornou a primeira pedra proverbial. Se, ainda nos nossos Quanto mai ' magru icar.
d- s aque 1es que pensam lançar a primeira pedra se
dias, esta frase se faz ouvir por todo o lado, em todas as lín- a~ co.nt~ da responsabilidade que assumiriam ao fazê-lo
guas dos povos cristianizados, é por causa deste texto, certa- mais hipoteses há de que ela lhes caia das mãos. '
mente, mas também pela sua extraordinária pertinência, . T~r~mos, verdadeiramente, necessidade de um modelo
justamente sublinhada pelo paralelismo entre os dois relatos. munetico para un:a ª,cção tão simples como lançar pedras?
Quando Apolónio ordena aos Efésios que atirem ao men- A prova de que sim e a resistência dos Efésios. Não e'
digo as pedras que lhes pedira que apanhassem, esta brava certeza ' co m um espmto , · h ostil ao venerado guru que Filostrato, com
gente recusa-o e Filostrato tem a simplicidade de nos confes- nos revela as suas dificuldades.
sar, não só esta recusa, mas os argu,mentos que a justificam.

79
78
Uma vez lançada a primeira pedra, graças aos encoraja- fenómenos de multidão, antigos e modernos. É por esta
mentos de Apolónio, a segunda segue-se bastante d~press_a razão que a imagem da primeira pedra continua viva4.
devido ao exemplo da primeira; a terceira surge mais rapi- Apolónio tem de obter de um ou de outro dos Efésios,
damente ainda, pois tem dois modelos em vez de um, e pouco importa qual, que atire a primeira pedra, mas sem
assim sucessivamente. Quanto mais se multiplicam os mode- atrair demasiada atenção sobre ela, e é exactamente por isso
los, mais se precipita o ritmo do apedrejamento. que foge a mencioná-la de uma forma expressa. Dá, por-
Salvar do apedrejamento a mulher adúltera, tal c~~o f~z tanto, provas de duplicidade. Cala-se por razões simétricas
Jesus, impedir o impulso mimético no sentido d~ v1~lenoa, e inversas às que levam Jesus a referir a primeira pedra ex-
é abrir um outro sentido inverso, um impulso nao v10lento. pressamente, a dar-lhe tanta ressonância quanto possível.
A partir do momento em que o primeiro indivíduo recusa A hesítação inicial e o enfurecimento final dos Efésios são
apedrejar a mulher adúltera, abre caminho para um ~egundo demasiado característicos do mimetismo para não se pensar
e assim sucessivamente. Por fim, é todo o grupo gmado por que as d_uçis narrações estão em conformidade quanto à
Jesus que abandona a sua intenção de apedrejamento. dinâmica', ou melhor quanto à «mimética» do apedreja-
Os dois textos opõem-se tanto quanto possível pelo seu mento. Para favorecer a violência colectiva, há que reforçar a
espírito e, no entanto, parecem-se de um i~10~~ es~ranho. sua inconsciê:rcia, que é o que faz Apolónio. Pelo contrário,
A sua independência recíproca torna mmto s1gruficativa esta para desencorajar essa mesma violência, é preciso levar-lhe
semelhança. Fazem-nos compreender melhor o dinamismo alguma luz, apresentar toda a verdade. É o que faz Jesus.
das multidões que não deve1Tt ser definidas apenas pela sua
violência ou pela sua não violência, mas, sim, pela imitação, *
pelo mimetismo. * *
O facto de a frase de Jesus continuar a desempenhar para Tal .c omo muitas frases memoráveis, a de Jesus não se
nós um papel metafórico universalmente compreendido, caracteriza pelo tipo de originalidade que o mundo moderno
num mundo em que o apedrejamento ritual já não existe, aprecia, aquele que é exigido aos seus escritores e artistas,
sugere que o mimetismo ainda é tão poderoso nos dias ~e a saber a originalidade no sentido do nunca dito, nunca
hoje como no passado, mas sob formas, em geral, meno_s v1~­ ouvido, da novidade a qualquer preço. A resposta de Jesus
lentas. O simbolismo.da primeira pedra continua a ser inteli- ao desafio que lhe é lançado não é original neste sentido.
gível porque, mesmo se o gesto físico do apedrejamento já Jesus não inventa a ideia da primeira pedra, vai buscá-la à
não existe, a definição mimética dos comportamentos per- Bíblia, inspira-se na sua tradição religiosa. A nossa «criati-
manece tão válida como o era há dois mil anos. vidade» desencarnada quase nunca resulta em verdadeiras
Para o imenso e indubitável papel que o mimetismo obras-primas.
desempenha na cultura humana, Jesus não recorre aos t~r~os
abstractos, sem os quais quase não conseguimos passar, lilllta-
4 Ver a minha interpretação deste mesmo tex to de João em Q11nnd ces c/1oses
ção, mimetismo, mimese, etc. Basta-lhe a primeira pe_dra. E~ta commenceront, Paris, Arléa, 1994, pp. 179-186. Ver, também, R. Girard, Ln
única expressão permite-lhe significar o verdadeiro prin- Vittimn e ln folln , traduzido e editado por Giuseppe Fornari, Treviso, San ti
cípio, não só dos antigos apedrejamentos, mas de todos os Quaranta, I 998, pp. 95-132.

80 81
O apedrejamento legal, por muito arcaico que seja, não ~e
assemelha em momento algum ao assassínio arbitrário a mesma sorte que ela. Este princípio encontra-se em todas
maquinado por Apolónio. A Lei prevê o a_pedrejamento p~ra as ~ociedades arcaicas. Dizem-nos os Evangelhos que, no
delitos bem determinados e, porque receia as falsas denun- penado que antecede a crucificação, Jesus escapa a várias
cias, para as tornar mais difíceis, obriga os delatores, que tentativas de apedrejamento.
devem ser, no mínimo, dois, a lançarem-lhes eles mesmos as Nem sempre terá a mesma sorte. Acabará ele mesmo por
duas primeiras pedras. . desempenhar o papel do mendigo de Éfeso, por sofrer 0
Jesus transcende a Lei, mas no próprio sentido da Lei, ao suplício reservado aos piores dos piores do Império Romano.
basear-se no que a prescrição legal comporta de mais hl~In~o, Entre ele e o mendigo há uma semelhança na morte e tam-
de mais estranho ao mimetismo da violência, a obngaçao bém urna outra antes da morte, uma semelhança que se con-
imposta aos dois primeiros acusadores de l~nç~~em as duas cretiza no comportamento de um e de ouh·o perante a multidã~
primeiras pedras. A Lei priva de modelos mimeticos os dela- ameaçadora.
tores. Ante~ de responder aos que lhe pediam a sua opinião
Uma vez lançadas as primeiras pedras, toda a comuni- sobre a. obrigação de se apedrejar aquela mulher, inscrita na
dade deve seguir-se. Por vezes, para manter a ordem_ nas Lei de Moisés, Jesus inclina-se e começa a escrever no chão
sociedades arcaicas, não há outro meio a não ser o mime- com o dedo. ·
tismo violento, a unanimidade mimética, à qual a Lei recorre
_Na _minha opinião, não é com a intenção de escrever que
sem hesitar, mas também tão prudente e parcimoniosamente se mclma; escreve porque se inclinou. Inclinou-se para iludir
quanto possível.
o olhar daqueles homens com os olhos raiados de sangue.
Jesus entende por bem transcender os preparas violen~os
Se Jesus lhes tivesse devolvido o olhar, os homens sobreex-
da Lei, de acordo, neste ponto, com uma boa parte do JU-
citados não veriam o seu olhar tal como era na realidade ·
daísmo do seu tempo, mas age sempre no sentido do dina-
transformá-lo-iam num espelho da sua própria cólera: seri;
mismo bíblico e não contra este.
o seu próprio desafio, a sua própria provocação o que leriam
* no olhar de Jesus, por pacífico que fosse, e sentir-se-iam pro-
* * vocados por sua vez. O confronto já não poderia ser evitado
e, provavelmente, teria corno consequência o que Jesus se
O episódio da mulher adúltera é um dos raros ~xitos com
esforçava por impedir, o apedrejamento da vítima. Assim,
uma multidão violenta. Este êxito faz sobressair os seus
Jesus evita até a mais pequena sombra de provocação.
numerosos fracassos e, sobretudo, está claro, o papel da mul-
tidão na sua própria morte. Quando Apolónio pede aos Efésios que se armem com
No episódio evangélico da mulher apanha~Q. em fl~­ pedras e que se disponham em círculo à volta do mendigo,
grante delito de adultério, se a multidão não se tivesse dei- este reage de urna maneira que lembra o comportamento de
xado convencer por Jesus, se o apedrejamento houvesse Jesus perante a multidão irritada. Também ele não quer dar
acontecido, Jesus teria arriscado ser também ele apedrejado. aos ameaçadores a impressão de que os desafia. O seu desejo
Falhar o salvamento de uma vítima ameaçada de morte de se fazer passar por cego, mesmo se, no princípio, é exclu-
colectiva, ficar sozinho do seu lado, é correr o risco de sofrer sivamente "«profissional », corresponde, parece-me, ao gesto
de Jesus quando desenha na terra.

82
83

/'
V
Logo que começam a chover pedras, o mendigo já não
pode esperar escapar fingindo não ver o que se passa à sua MITOLOGIA
volta. A sua manobra falhou. Por isso, já não hesita em olhar
para o que o rodeia, enquanto espera em vão descobrir no
muro dos agressores a brecha que lhe permitiria fugir.
No olhar de animal acossado que o mendigo lhes dirige,
os Efésios apercebem uma espécie de desafio. Apenas nesse
instante julgam reconhecer na sua vítima o demónio que
Apolónio inventou. A cena confirma e justifica a prudência
de Jesus:
Q11n11do nlgun s deles ... se pust'rnm n ntirnr pt'drn s no mendigo, es tt',
cujos olhos pestnn ejnntt's o fn zimn pnrt'Ct'r cego, lnnçou-111es, subi-
tnmente, um o/lrnr penetrnnte t' mostrou os o/11os cheios de fo go.
Os Efésios compree ndernm entiio q11e t' 11frt.> 11tnvnm um demónio .. . m · Od milagre
. . de, A po 1orno
, · consiste
· em converter uma epide-
i~ e nv~h~ades miméticas numa violência tmânime cu·
O apedrejamento do mendigo leva, forçosamente, a pen- efe~to
sooa~ vê~~ :;:r:;:~lª~!~~~
«catartico» devolve a tranquilidad . ' JO
sar na crucificação. Finalmente, Jesus é derrotado por um en tre os Efésios. A cidade inteira
efeito mimético análogo ao apedrejamento do mendigo. um· sma 1 sobrenatural e ' para co ru·irmar a sua interpr t -
O efeito que logrou inverter no caso da mulher adúltera, no
seu caso, não consegue evitá-lo. É o que entende, à sua ma-
~~rac~üosa,dpara t?r~ara oficial, supõe uma interven;ã~ç~~
l ' erac
t ' es, o eus mais mdicado para o papel, mna vez que lª .,
neira, a multidão rernúda jt.mto da cruz; troça da impotência a es a, r~presentado pela sua estátua, no teatro onde decorre
de Jesus para fazer por si mesmo o que fizera por outros: «Ele,
~a~~~~t;:r;:e;to. d~m vez de c~ndenarem a agressão crimi-
que salvou outros, não pode salvar-se a si mesmo!» ·1 :n. igo, as autondades municipais atestam 0
A Cruz é o equivalente do apedrejamento de Éfeso. Dizer nu agre e Apoloruo faz figura de grande homem.
que Jesus se identifica com todas as vítimas é dizer que o no Atendendo a qtie o d eus nao - teve qualquer intervenção
faz, não só com a mulher adúltera ou com o Servo sofredor, caso, este
. . . apego ao pagarusmo . o f'ioal
. parece-nos u
mas com o mendigo de Éfeso. Jesus é o malogrado mendigo. pouco .artihoal
, . Poré m, o ape1o ao religioso não arbitrário no
. m
seu pfrm~1pio. Entre o apedrejamento fomentado por Apolónio
enomenos- em torno
easosafiru'dad . . o sagrado arcaico surgiu /
d os quais
es sao reais.
de Muitos
A 1, são . os mitos. com mn per fl ,
i analogo ao do milagre
r h po orno, , mas a vwlê ·
noa, mesmo nos casos em que o
com o realismo já m d d
me amento e reconhecível não é em
'. regra geral, descrita
o erno e um Filostrato. Nos textos lite-

85
84
rários, As Metamo1joses de Ovídio, por exemplo, a prolifera- cido pelo~ Ev~ngelhos e pela noção de ciclo mimético tal como
ção de elementos fantásticos esconde o horror de um espec- os tres pnmeiros capítulos deste livro salientaram.
táculo que nunca é verdadeiramente representado com o No ~aroxi~mo da crise, a violência Lmânime toma início
mesm.o sentido da narração de Filostrato. Em n::wtos nutos que nos parecem ser os mais arcaicos e que.
Os mitos começam quase sempre por um estado de na. minha opinião ' 0 ç ao e f ec t.ivamente, a unanimidade'
desordem extrema. A maior parte das vezes, este caos não se v10le1~ta apresenta-se c~mo uma investida em massa, mais
pretende «original». Não raro, pode detectar-se por detrás sug.enda .do que propnamente descrita, e que se encontra
dele uma espécie de desconcerto ou de incompletude, seja ~mto evi,dente, manifesta, nos rituais. Estes reproduzem de
na comunidade, na atureza ou no Cosmo. ~rma visIVel, . ~esde logo se suspeita porquê, a violência Lmâ-
O que perturba a paz é, con1 frequência, uma «epidemia» rume e reconciliadora do mecanismo vitimário.
mal definida, análoga à do apedrejamento de Éfeso. Também O protagonista nos mitos arcaicos é a comwtidade inteira
pode ser, explicitamente, um mal-estar social, um conflito transformada
. . ",em multidão violenta · Se JU
· 1ga estar ameaçada
cujo carácter mimético é sugerido pelo considerável papel, por um mdividuo isolado, muitas vezes um estrano-eiro
nos mitos, dos gém.eos ou irmãos inimigos. O conflito também mass~cra de um modo espontâneo o visitante. Encon~ra-s~
pode dar-se entre mil e uma outras entidades mais ou menos estle tipo ~e ~io~ência em plena Grécia clássica, no sinistro
fabulosas: monstros, astros, montanhas, quase não importa o cu to de Dioruso.
quê, mas estas entidades opõem-se e chocam entre si de um ?s agressores precipitam-se como um {mico homem sobre
modo simétrico, tal como fazem os sósias miméticos. a vitima . A histeria colectiva é tal que se comportam literal-
Em vez de desordem nos começos dos mitos, pode tratar-se ~~nte, como predadores. Conseguem atacar feroz~ente a
também de uma interrupção das hmções vitais causada por vlt1ma, retalham-na literalmente com as mãos com as U11h
uma espécie de bloqueio, de paralisia. Claude Lévi-Strauss com os dentes,
, . como se a cólera ou o medo 'dec up 1·1casseas,a
viu muito bem este aspecto dos começos míticos, todavia sua força fisica. Por vezes, devoram o cadáver.
sem reparar na ligação com q violência. f ~ara designar e.st~ violência súbita, convulsiva, este puro
Pode tratar-se também de de astres mais vulgares: fome, e~on~eno de multidao, a língua francesa não tem um termo
inundações, secas destruidoras e outras catástrofe& naturais. ~ropno. A palavra que nos vem à boca é um americanismo /
Em todos os casos, pode resumir-se a situação inicial em ter-
mos de uma crise que faz pesar sobre a comunidade e o seu
linchamento.
At~nde~do_às inúmeras variantes do assassútio colectivo
sistema cultural uma ameaça de destruição total. ou ~e mspiraçao colectiva nos mitos e nos textos bíblicos, ao
Esta crise é quase sempre resolvida pela violência, e mesmo
~eal~s~o ~e algumas descrições e também aos ritos, uma
se esta não é colectiva, são-no as suas ressonâncias. A única
mte1p1etaçao puramente «simbólica»: a invocação de um qual-
grande excepção é a violência dual entre dois irmãos ou
quer
1 fantasma,. o «fantasma do corpo r·et a lha d o», por exem-
gémeos inimigos, triLmfando um sobre o outro. Há sempre
p .º' para explicar todas estas cenas de violência, parece-me
alusão a um mimetismo, conflitual e desagregador antes da
ditada por um preconceito sistemático contra o real e rejeito-a
violência, reconciliador e Lmificador depois dessa mesma vio-
serr; a menor hesitação, apenas por causa do impasse em que
lência e graças a ela. Tudo isto só é visível à luz das análises
esta, desde há séculos, o estudo da mitologia.
anteriores, à luz do milagre de Apolónio, ele próprio esclare-

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-- - -~--

. h t de mãos vazias tem um ulteriormente, de tudo aquilo a que chamamos «sistema judi-
Uma vez que o lmc amen o - eri- cial», é a unanimidade violenta do linchamento espontâneo,
iderável nos mitos arcaicos, por que nao exp .
pap el Cons · l' · a de uma vio- não premeditada, que restabelece, espontaneamente, a paz e
mentar a hipótese mais simples, mais ogica, tAnea que, por intermédio da vítima, dá a esta p az uma signifi-
lência real análoga, Ir\ªs ainda mais selvagem e espon a ' cação religiosa, divina.
d · t de Efeso 7
ao ape re1amen o nfl.to. s miméticos são reais e que resul- A partir do momento em que a vítima é morta, termina a
Uma vez que os co i - crise, restabelece-se a paz, cura-se a peste, apaziguam-se os
tam, regularmente, em .violên~ia ~~~e~~~~~ P~~ ~:an~~o~~:~: elementos, recua o caos, o bloqueado desbloqueia- se, o
que, por detrás da maior par e ' incompleto completa-se, o indiferenciado diferencia-se.
l? , A metamorfose do malfeitor em benfeitor divino é um
rea Se os linchadores retalhavam a vítima c~m as suas pro- fenómeno simultaneamente prodigioso e rotineiro, enquanto
. - viam estar desarmados. Se tivessem armas,
pnas maos, de. _ fnham é porque pensa- que, na maior parte dos casos, os mitos nem sequer a assina-
ter-se-iam servido delas. Se nao ~s i ' .do por razões lam. Aquel~. que, no princípio do mito, se fazia linchar por-
- recisavam. Se se tivessem reum . que se acreditava que destruía o sistema totémico, eis que,
vam que nao p lh um visitante, e as coisas
pacíficas, talvez para aco erem na conclusão, preside à reconstruçao deste mesmo sistema
tivessem azedado ... ou à construção cle um outro novo. A violência m1ânime trans-
formou o malfeitor em benfeitor divino de forma tão extraor-
* dinária e, todavia, vulgar, que a maior parte dos mitos nada
* * dizem desta metamorfose. Está subentendida.
. d t ho vindo a falar: o
As violências colectivas e que en . _ d J _ Tudo se explica quando compreendemos que, no fim des-
apedrejamento de Éfeso, a Paix~o, a da:ci:i~~~: ta~b~:, tes mitos, a unanimidade violenta reconciliou a comunidade

B~p~:~:~-!::~50°0~:~~:,:0~~:~s, ;,,Lritos lincharnen-


e é à vítima já «culpada », já «responsável» pela crise, que se
atribui o poder reconciliador.
~o;vespontâneos. Estes devem ~orresponder a ~:~'-~eº~ Assim, a vítima transfigura-se duas vezes: a primeira vez,
méticos múito vigorosos que nao se deparam ' lera se in- de forma negativa, maléfica; a segunda vez, de maneira posi-
obstáculo legal, institucional. Onde quer ~ue a co . 'ta tiva, benéfica.
ndeie estala o pânico e toda a comunidade s: precipi Acreditava-se que a vítima falecera, mas tinha que estar
c:ra a ;iolência, por um efeito de contágio U:sta~~aneo'. . viva, pois reconstruíra a comunidade imediatamente depois
p Nas sociedades privadas de um sistem~ 1udicial, a ~di~- de a ter destruído. Ela é imoral e, por conseguinte, divina.
- . ex lode sob a forma de linchamento. ~ms Portanto, é preciso pensar que também os mitos reflectem,
naçao contagiosa p dalidade arcaica da 1us- embora de maneira confusa e mais transfigurada, o processo
Gernet vê no linchamento uma mo
. 1 re é melhor do que n ada ver, certamente, ma,s,. na que os Evangelhos nos permitiram assinalar e que fomos, em
~:nh;:rnião, este investigador inverte o yrocesso g~et~~~· seg1-úda, encontrar no apedrejamento de Éfeso.
Vê apenas o ponto de partida do religioso rrutico e, sem uvi ' Este processo é, com certeza, característico dos mitos em
geral. Os mesmos grupos humanos que expulsam e massa-
, . p · Flammarion, 1982. cram os indivíduos para quem as suspeitas convergem, mime-
1 Louis Gernet, Droit et instit11tions e11 Grece nnt1q11e, a n s,

89
88
- d á-los uando já estão apaziguados O assassínio t.:mânime não se transfigurou o bas tante para
ticamente, poem-se a a or q·1· volto a dizê-lo, só pode ser divinizado. É por esta razão que não surge qualquer
.1. d
e recono ia os.
o que os recono ia,
· . . de todos os seus medos divindade nova. Vê-se muito bem o que falta a este apedre-
· - a vítima pnm.eiro,
ser a pro1ecçao n ., ' t reconciliados com todas jamento para gerar um deus. Se o motor das transfigurações,
e em seauida,
I 0
quando lª se sen em a violência colectiva, fosse mais poderoso, teria divinizado o
as suas esperanças. , tº dos arupos humanos mendigo.
São as desordens caractens icas o . for-
Nas mitologias, os deuses curadores manifestam-se sem-
ao aarnvareffl-se cada vez mais,
q ue , paradoxalmente, meio ee o . f .
de arranprem or mas
de oraani-
o pre, em primeiro lugar, sob aparências que se assemelham
0
necem aos homens da vi·olência paroxística e ao nosso milagre. Para começar, são sempre demónios res-
1 modo sur 00 em ·
zação que d e a gum f m voltar a paz às custas ponsáveis pela doença que curam depois.
- fº
lhe poem im. s m ,
o r chamentos aze a- por que figuram com.o Se, afinal, estes deuses passam por capazes de curarem as
,. d . · · da E esta a raz . 0
da vitima iviruza . . 1idades as recordam doenças que transmitem aos homens, é porque a violência
. . d t divindade e as comur
epifanias es a f. irados a que chamamos mitos. exercida contra si, no estado em que apenas parecem malé-
nos seus rela tos trans igt.: ficos, contagiosos, demoníacos, tem t.:m1 efeito reconciliador
* análogo ao do apedrejamento, só que mais poderoso. É o
* * «abcesso de fixação » muito eficaz que é divinizado.
. 1 d A olónio de Tiana não As vítimas que suscitam mais terror na primeira fase sus-
No apedrejamento miracu oso e P _ estamos longe de citam mais alívio e harmonia na segt.:mda. Transfiguraram-se,
dº · dade nova m.as nao
aparece qualquer ivm . 'd. é visto como um ser portanto, duas vezes, repito-o, mas não é o caso do mendigo
uma apançao· - destas ' pois o men igo . de Éfeso.
, · d peste
sobrenatural, o d emoruo a . . os não reconhecem a No mito de Édipo, o papel do deus Apolo é um bom exem-
Após o apedrejamento, os~ as~assm a velhice e plo de dupla transfiguração. É este o deus que passa por en-
o de aparencia humana que e
sua vítima. O pouc . d t 'do acabam as pedras por o viar a epidemia e castigar os que albergam em suas casas
. , . -o lhe haviam es nn '
a m1sena na .- edre·ar porque é monstruoso, um criminoso abominável, um filho parricida e incestuoso.
fazer. O malogrado nao ~e faz ap J t Os Efésios lan- Inicialmente, Apolo não é mais do que wn «demónio da peste».
. taz dele um mons ro.
é o apedre1amento que f, . e o cadáver do mendigo Uma vez expulso Édipo, Tebas fica curada. Apolo recompen-
çaram as pedras com tanta una qu sou a obediência dos Tebanos e põe fim a uma chantagem
ficou «em papas». . tação: 0 monstro é tão doravante sem objecto. Dado que Apolo é ele próprio a peste,
Adivinha-se no autor uma 11esi_ , tm leão é mais LLm para lhe pôr fim, basta-lhe afastar-se.
1- o entanto nao e L '
grande com um eao e_, n . , ' omo monstro, Filostrato No milagre de Apolónio, Héracles controla o apedreja-
1
cão. Para o tornar n1ais resp~itave o cfazem os cães enraive- mento do mendigo exactamente como Apolo controla a
fá-lo vomitar espuma, « t~ ~o~ d pouco impressionante, expulsão do herói no mito de Édipo. Apolo continua a ser
cidos»' mas a transfiguraçao e am a . nte para dissimular indispensável neste último exemplo, apesar do facto de o
. t d masiado transpare ·
pouco convmcen e, e . d pobre esboço de herói, ao contrário do mendigo, ser ele próprio um pouco
a triste verdade. Trata-se aqm apenas e um
divinizado. Mas parece que não o é suficientemente para
mito ...

91
90
· ·sso o mito da qual mais vale não se suspeitar a existência para glorificar
. . .nh estrutura sagrada e, para 1 '
consolidar soz1 ª° . e > a um grande deus
recorre, tal como faz o nosso «ml1agr > '
os mitos como fazem os modernos. Para preservarem as suas
ilusões neopagãs, abandonam textos demasiado reveladores,
preexistente, Apolo. . f mais forte no milagre de tais como o apedrejamento de Apolónio.
Se o poder transhgur~dor_ odsse diao viria a sua divi- Filostrato descreve o apedrejamento de uma maneira
, d oru.zaçao o men o
Apolónio, apos a em . ão dissimularia o horror da demasiado hones tamente realista para não nos esclarecer
nização. A segunda transhgu_raç . t em vez de um fenó-
,
cena. Tenamos u
m verdadeiro m1 °'
relatado por Filostrato.
sem querer acerca do processo, pelo qual, paradoxalmente,
se deixa enganar. Não h á qualquer razão para se pensar que
meno incompleto, bastardo, ~ , ·s do que um pálido este escritor seja particularmente sádico e que difira muito
l ' ·o nao e ma1
O milagre de Apo om , ter ane' mico inacabado, que dos seus correligionários; continua ligado à religião ancestral
· é este carac ' ,.
esboço de mito, ~1.aS ra a inteliaência das géneses rruh- e não a vê tal como ela é. Torna os recursos manifestos sem
lhe dá o extremo mteress: pa d . ºomentos distintos uma os identificar ele mesmo, e o horror que a sua narração nos
- d ompoe em ois m d
cas. A narraçao ec . . t d1· tos se apresenta e inspira surprêendê-lo-ia, sem dúvida, profundamente.
· t s propnamen e '
génese que, !'ºs rru o cta ue arece indecifrável. . Na sua imaginação religiosa, o grande Pã não está total-
uma forma tao compa
. .
? ,.
q_
fia rraçao e a uru.ca
presente em Filostrato, mente morto. Nãp é o acaso que faz do deus das multidões
A pnmeua trans ot f camos horrorizados. violentas o símbolo de toda a mitologia . É do seu nome que
. , 1 , por isso mesmo que i ,
a única v1sive ' e e , letarn.ente ausente, e e vem a palavra «pânico». Este deus não perdeu, sobre o autor
. ção esta comp
A segtmda trans figur~ . de o auxílio de Héracles. de A Vida de Apolónio de Tiana, todo o seu poder de encanta-
para remediar esta ausencial que se ~=m uma primeira alusão mento2.
A primeira frase do re a to con
ao deus: d erguia *
[Apolónio] conduziu o povo inteiro ao teatro, on .e se * *
uma imagem do deus protector.. .
Por que é que os Evangelhos, na sua definição mais com-
Não mais se fala do deus até mesmo ao final do relato: pleta do ciclo mimético, recorrem mais a um personagem
, d.o deus· pro-. chamado Satanás ou Diabo do que a um príncipe impessoal?
.1 , l ergueu-se a estat11a
Atendendo [ao m1 ag 7 e ' '( de 0 mau espírito lrnvia Penso que a principal razão é que o verdadeiro manipulador
tector, Héracles, no mesmo sz zo on do processo, o sujeito da estrutura no ciclo mimético, não é o
sido expu lso. sujeito humano que não se dá conta do processo circular no
- Héracles enquadram toda a história e qual se insere, mas o próprio mimetismo. Não há um verda-
As duas mençoes a - 1. . O verdadeiro autor do deiro sujeito fora do mimetismo e é isso que, no fim de contas,
· ·f açao re ig1osa .
conferem-lhe a s1gru. 1C d dec1.diu exercer a sua significa o título de príncipe deste mundo que se reconhece
d f ·f é 0 eus que .
milagre, em e m1 ivo,_ 'd " de um grande inspuado: nesta ausência de ser que é Satanás.
ftmção protectora por mterme io
Apolónio de Tiana. . . 1 não é um mito completo,
2 Jea n-Pierre Dupuy, Ln Pnniq11e, Paris, Les empêcheurs de penser en rond,
O apedrejamento muacu oso ·meira a mais escondida, 1996.
. uma metade apenas, a pn
mas, sim, e'

92 93
VI
Satanás nada tem de divino, mas não é possível falar-se
dele sem se fazer alusão a qualquer coisa de essencial que já SACRIFÍCIO
mencionei de maneira breve no capítulo a ele consagrado e
que nos interessa ao mais alto grau: a génese das divindades
arcaicas e pagãs.
Mesmo que a transcendência satânica seja falsa, privada
de qualquer realidade no plano religioso, no plano mundano
os seus efeitos são inegáveis e formidáveis. Satanás é o sujeito
ausente das estruturas de ordem e desordem que resultam
das relações conflituais entre os homens e que, no fifft de con-
tas, organizam e desorganizam estas relações.
Satanás é o mimetismo na sua força mais secreta, o apare-
cimento das falsas divindades no seio das quais nasce o cris-
. G:a~as ao ~~lento
de Filostrato, a violência dos Efésios
tianismo.
Falar do ciclo mimético em termos de Satanás permite
aos Evangelhos dizerem ou sugerirem, acerca das religiões
~:.;.n~:~~s:';,º~~~n::; compai~ão
.
de pela sua vítima, mos;,:
erno que nao podemos escamot , 1
entendidas pelo cristianismo como falsas, mentirosas e ilusó- Po~ multo entusiastas que sejamos em relação aos mito:ª~ão~
rias, muitas coisas que não podem ser ditas na linguagem fe~t=:~~l~;~~~~~:t;i::nder 0
papel da unanimidade' vio-
dos escândalos. A cnaçao . - d sagrado arcaico antiao é
Os povos não inventam os seus deuses, divinizam as fruto de um irnp0 . , . ' o ' , con1 certeza,
0
suas vítimas. O que impede os investigadores de descobri- . L11 so rrumetico e de um mecanismo vitimário

rem esta verdade é a sua recusa de apreenderem a violência no sentido que os Evangelhos permitem deflili . ·r As .
dades · d · comuru-
real escondida nos textos que a descrevem. A recusa do real d ~p;z1gua ~s e reconciliadas pelas suas vítimas estão
é o dogma número um do nosso tempo. É o prolongamento s~::~: o consoentes da sua impotência para o fazerem
e a perpetuação da ilusão mítica original3. , . ' em, s:rn1a, modestas de mais para atribuírem a si
propnas o mento da sua reconciliação. Procuram o d
as reconciliou , eus que
agora lhes fa ,beque so pode ser a vítima que lhes fez mal e
z em.
f No · milagre de Apolónio ' ª expenenoa ·~ . não é intensa 0
:~z~~en~: ~ara s.uscitar a segunda transfiguração. É por esta
1
q preoso recorrer a um deus do panteão tr d . . 1
para tornar . 0 mila gre sustentavel. , a ic10na
Se a experiência mimética
fosse
. tmais forte , ' os pe rsegw·d ores atnbuiriam
. a sua libertação
3 Para toda s as questões leva ntadas por este capítulo e para exemplos de d irec
l ' f.arnente a
d . . vítima 1 .
' que acumu ana os papéis de demónio
mitos interpretados «mimeticamente», ver Richard ). Golsan, René Girnrd ma e ico e e d1vmdade benéfica.
nnd Mytll, Garland Publishing, Nova Iorque e Londres, 1993.

95
94
fece a segunda apresento, longe de escandalizar seja quem for, capta-se de
Quando a força transfigurad~ra ~n rqa~~ é a' mais precá- modo tão evidente que não só se recomenda como é obrigatória.
~ · f d parecer a primeira,
transferencia az esa d demoníaco e dissimula
. f , ·1 d s duas Escon e o *
ria, a mais ragi a . .ue Filos trato nos obriga a contem-
aos olhos dos homens o q ~ dalos no malogrado men- * *
. - de todos os escan .
plar: a proi~cç~o . , . base do religioso no seu conJ'-mto. A partir das anteriores análises, pode comparar-se a génese
digo, a violencia mim:hca, ~ . . do ara a violência no sen- dos mitos e dos seus sucedâneos tardios às actividades de
Filostrato não esta sensibihz~ . p os obriga a estar. Esta um vulcão actualmente extinto.
, ca histonca n
tido em que a nossa epo , é um dos problemas Quando estava em actividade, o vulcão gerava mitos
. . . d t- hocante para nos,
insensibihda e, ao e . d compreender melhor. «verdadeiros», mas a lava e o fumo que dele saíam eram táis
que as nossas análises nos a1u am a que era impossível alguém debruçar-se sobre a cratera para
ver o que se passava no interior.
*
* * ·o apedrejá~ento de Éfeso é obra deste mesmo vulcão
ferência do sagrado arcaico explica numa época mais tardia. Está ainda incandescente, ma~ arre-
Penso que a dupla trans . ·tos dos mitos. No princí- fecido o sufiêiente para que alguém se possa aproximar dele.
, . e caracteriza mui d Não está completamente estéril, mas já só produz mitos trun-
a ruptura 1ogica qu lfei· tor perigoso e na a
,. , t"d como um ma
pio destes, o heroi~ e : o . d deixá-lo incapaz de fazer cados, amputados do melhor de si próprios, limitados às trans-
. A , violencia destina a a - ferências hostis. O mendigo de Éfeso nunca se toma objecto
mais . . posa lf "tor surge na cone 1usao,
t
1 es_e_ mesmo ma ei ' de adoração. O apedrejamento miraculoso apenas gera um
qualquer ma' ue esta mudança seja alguma
como salvador divmo, sem q . da No fim destes pequeno demónio medíocre.
. d t ' mesmo assina 1a · ,
vez jus tifica ~ O\.~ ~ ~ vidamente divinizado, preside a O relato de Filostrato surge-me, assim, como um precioso _
mitos, o malfeitor_ irncial, dt 1 e se acredita ter destruído «elo perdido» entre, por um lado, as transfigurações mitoló-
reconstrução do sistema cu tl.~~ ;u de uma projecção hostil, gicas plenárias, directamente indecifráveis, e, por outro lado,
na fase inicial, quando_ er~ .º 1ec o a caça às bruxas medievais cujo parentesco com a mitologia
quando era o bode expiaton_o. de «onírico», de «fantasma- propriamente dita se torna evidente à luz de Filostrato e dos
Antes, tratava-se o religioso criação lúdica». Na Evangelhos.
1 t elebra-se a sua «
g órico». Actua. men ·e, mundiale . . -se muito do tipo de Em ambos os casos, viu-se uma violência colectiva que faz
1 aproxima
realidade, a mito ogia b. t as violênd.as colectivas em o objecto de rnna interpretação errada, governada pela ilusão
efabulação de que foram_ o 1ec ~ bém um pouco na Idade unânime dos perseguidores. Perante os mitos, deixamo-nos
todas as sociedades arcaicas, eân::s ocasionados por calami- enganar pelas transfigurações que já não são capazes de o
Média na altura dos grandes p A 't. as de então eram os fazer no caso da caça às bnixas. Perante as persegl.úções que
t negra s vi im
dades tais como a pese . . os enfermos os margi- se estendem no nosso l.miverso histórico, por distantes que es-
·udeus, os 1eprosos, os estrangeiros,
. .
'
l u'dos dos nossos dias.
. tejam no tempo, compreendemos com facilidade que as víti-
J , o dir-se-1a os exc '- .
nais de todo o gener ' . . t nsfiguração mítica é amda mas são reais e forçosamente inocentes. Compreendemos
Nos fenómenos mediev~1sF~ r~ato e a desmitificação que que seria não só estúpido, mas também culpado, negar esta
mais fraca do que no texto e os '

97
96
r-nos cúmplices da caça às mas muito enfraquecidos, repito-o, nos fenómenos do mú-
realidade. Não queremos torna -o mais poderosa do pro- verso cristão, aqueles que qualificamos de «históricos». Cer-
. t logia é uma versa f tamente, quanto mais envelhecem as divindades, mais a sua
bruxas. A mi o 1 .d ntificamos mlúto bem o un-
cesso transfigurador do _gua i e . no nosso mundo, já só dimensão maléfica se esbate às custas da dimensão benéfica,
a às bruxas, p01s, mas ficam sempre vestígios do demóruo original, da vítima
cionamento na ca Ç . nf ecida incapaz de gerar
. de 'una forma mwto e raqu ' colectivamente massacrada.
ft:moona ..
verdadeiros mitos. ·eflectem as grandes con- Se nos contentarmos em repetirmos os chavões habituais
Se examinarmos os textos que r tramos o ciclo mimético, sobre os deuses olímpicos, nada mais vemos do que a sua
. · facilmente encon .
vulsões me d ievais, . d a violência colectiva e, majestade e serenidade. Em regra geral, na arte clássica, os
a crise, as acusações este~e~!ip~eª:~ifania religiosa. É sem elementos positivos encontram-se já em primeiro plano, mas
P or vezes, ainda um ein nao . ·s referenciais de selec-
.cientifica os smai P . .
por detrás deles, mesmo no caso de Zeus, está sempre aquilo
dificuldade que se i . ·tos dos heróis e divm- a que chamamos com uma complacência um pouco simpló-
ção vitimá ria que ca!act.enzal m ~~i os critérios de selecção ria as «trav'e ssuras» do deus. Toda a gente se põe de acordo
. l ' ·cas Sao igua men ' ,
dades mito ogi . ' nferrnidades de todos os generos, as para «desculpar» as ditas travessuras com um sorriso sagaz-
do pharmakos grego, as e - sni.os critérios que levam mente cúmplice, um pouco como se tratasse de um presi-
, . ciais Sao estes me
taras psiquicas e so . . , vel m.endigo para o seu ape- dente americano apanhado em flagrante delito de adultério.
Apolónio a escolher um misera
As travessuras de Zeus e dos seus colegas são apenas, garan-
drejamento «miracu~oso» . d. t fazem parte da mesma tem-nos, «pequenas sombras na sua grandeza divina».
Os mitos propnamente . i os to de Apolónio, os fenó- Na realidade, as «travessuras» são os traços de crimes
família textual que o apedreiamen ·nda a Paixão de
·evais de caça às bruxas ou ai ... análogos aos de Édipo e outros bodes expiatórios divirúza-
menos me i d
dos, são parricídios, incestos, fornicações bestiais e outros
Cristo. . ~ . lectiva são inteligíveis em pro- crimes horríficos, ou seja acusações típicas da caça às bruxas
Os relatos de violencia co f. -ao de que são objecto.
. au de trans ignraç . que são uma obsessão permanente para as multidões arcai-
P orção inversa ao gr . t s e 0 menos transhgu-
. ados são os mi o cas, e mesmo para as modernas, à procura de vítimas. As
Os mais trans figur . , ·ca narração a reve1ar
, Paixão de Cnsto, a t:ffil . «travessuras» são o essencial do divino arcaico.
rado de to d os e a . .d de violenta, o contágio mi-
até ao fim a causa da t:ma.rui:u .ª . Os historiadores da Idade Média - graças a Deus! - recusam
· tismo da violencia. negar a realidade da caça às bruxas. Os fenómenos que des-
mético, o mime . , ue a mitologia mais nobre em
Em st:una, o que afumo,e q. tem a ver com a mesma codificam são demasiado numerosos, inteligíveis, bem do-
aparência, a dos deuses ohrr:pic~s, do mendigo de Éfeso ou cumentados, para alimentarem, pelo menos até aqlú, a fúria da
génese textual que ~ demoruzaçao desrealização que se apoderou dos nossos filósofos e mitólo-
das bruxas medievais. 1 . , caça às bruxas parece gos. Os historiadores continuam a afirmar a existência real
· - 0 da mito ogia ª das vítimas massacradas pelas multidões medievais: lepro- .
A aproximaça _ estética e cultural com
isa da veneraçao . sos, judeus, estrangeiros, mulheres, enfermos, marginais de
escandalosa por cal . . escândalo não resiste a
nmeira mas o todo o género. Seríamos não só ingénuos, mas também cul-
q ue envo1vemos a P
- , ·a das duas es 1
' tn: turas Em ambos os casos,
·
uma comparaçao sen . dos da mesma maneira, pados, se nos achássemos incapazes de afirmar a realidade
trata-se dos mesmos dados orgaruza

99
98
t de que todos os «relatos)) são nuo da linguagem, o nosso «elo perdido » torna manifesta
destas vítimas, sob o pretex o dade não existe, etc. uma continuidade real, portadora de mna inteligibilidade ver-
. · , ·os>) que a ver
forçosamente «imagman , 'b s medieval são reais, por dadeira, que não se deixa enclausurar nos compartimentos
Se as vítimas da caça as ruxa estanques dos antigos e modernos classificadores. Os famo-
· s dos mitos 7
que não o senam a . , 1 .os de descobrirem a verdade sos métodos linguísticos são muito apreciados porque subs-
O que impede º.s rr:ito og d t refa mas o seu excessivo tituem a pesquisa da verdade pelos pequenos divertimentos
não é a dificuldade mtnnsec~ .ª a d''liª desde há séculos estruturalistas.
. A · ·dade Classica que . .
respeito pela nhgw d miverso arcaico no seu O apedrejamento de Éfeso não é um mito propriamente
1 nte / se esten e ao l . -
e que, actua me . .d t 1 sobretudo anticrista dito e, no entanto, com a ajuda dos Evangelhos, acaba de nos
, ·d logia antioo en a e, ' ·
conjunto. E a i eo . .f _ das formas míticas cu1a sugerir sobre a natureza e a génese dos mitos e das divinda-
q ue impossibilita a demish icaç:o des uma hipótese que se situa no prolongamento directo do
. · - , d ravante possivel. .
descodificaçao e, 0 ' d' em que os investiga- texto, uma l:iipótese difícil de rejeitar se de facto procurar-
, ·A eia que espero o ia
E com impaoen .t têm de se haver com os mos a verdade. O mesmo se passa com os sacrifícios rituais.
d
A nta que nos mi os, O apedrejamento de Éfeso não é um sacrifício propria-
dores se eem co ' , bruxas estruturados da mesma
mesmos temas que na ca~af :s . N 'realidade estão decifra- mente dito, mé)lS mantém de forma visível relações estreitas
. · dos indeci raveis. a '
maneira e JU1ga . 1 tos da Paixão são essa com um certo tipo de sacrifício muito em voga no mtmdo
dos desde há dois mil anos. s re a 0 grego. O rito no qual nos leva de imediato a pensar está, na
decifração. f tástica a interpretação que verdade, tão próximo do que nos conta Filostrato que somos
Longe de ser aberrante, an t' d~ momento em que a tentados a recorrer a ele para definir o «milagre» de Apolónio:
apresento torna-se ~videntela par idr idos» tais como o ape- é o rito do pharmakos.
meio de «e os per ' - d O mendigo de Apolónio faz lembrar o género de homens
abor d amos por . d' , . entre as narraçoes e
d A l ' ·0 mterme ian0 que Atenas e as grandes cidades gregas alimentavam à sua
drejamento e po oru ' d nos enganarem, míticas
violência colectiva ainda ca~azes e uelas nas quais instan- custa para, chegado o momento, fazerem deles pharmakoi~
na mais pura acepção da pa a:lra, _eeas~os perseguidores mis- quer dizer para os assassinarem colectivamente - por que
onhecemos as 1 uso . não chamar os bois pelos nomes? - por altura das Targélias e
taneamen te rec , . ri ões· a Paixão de Cnsto,
tificados pelas suas propna~ persegt: ç . . outras festas dionisíacas. Por vezes, antes de apedrejarem
as perseguições contemporaneas. estes pobres diabos, fustigavam-lhes o sexo, submetiam-nos
a uma verdadeira sessão de tortura ritual.
* Ao escolher uma vítima por quem ninguém jamais se ves-
* * tiria de luto, Apolónio não corre o risco de agravar as desor-
. d osso apedrejamento reside no dens que procura apaziguar, o que é uma grande vantagem.
O enorme interesse . ? n_ d s'ado rígidas daqueles O mendigo apedrejado apresenta os traços clássicos do phar-
·d · s distmçoes ema i
facto de evi enciar a . . l dentro de categorias cate- makos, os quais são, na verdade, comuns a todas as vítimas
. de apns1onar o rea
que gostariam . i· , t'co evita recorrer a textos humanas nos ritos sacrificiais. Para não suscitar represálias,
, . o es tru turahsmo
goncas. .
mgms i
- F'lostrato transpõe barre1-
·
·1 t to E com razao. 1 , escolhia-se nulidades sociais, tais como os que não tinham
como o d e F1 os ra . , . Por detrás do descontl- abrigo ou família, os enfermos, os doentes mentais, os velhos
ras que se queriam inwtrapassaveis.

100 101
abandonados, resmnindo, sempre seres dotados daquilo a que As representações teatrais estão ,
chamei, em O bode expiatório, os «traços preferenciais de selec- na .violência colectiva e constitue~a;b:U: elas, ei:iraizadas
ção vitimária». Estes pouco mudam de uma cultura para outra. mais esvaziadas da sua viol ~ . 1 species de ntos, mas
A sua fixidez contradiz o relativismo antropológico. Ainda nos . . enc1a co ectiva do .,
c10s arumais e mais ricas que os sacnf1-
nossos dias, determinam os fenómenos ditos «de exclusão». Já pre, pelo menos de uma f~o aspec~o cultural, pois são sem-
não se massacra os que os possuem, o que é mn progresso, mas origem do religioso e de tordma m~1irecta, meditações sobre a
precário e limitado. É com naturalidade que se sugere que os ~ i.. .
COiuiecimento talco a a CLutura ' potencia1s
· · f ontes de
gregos da época clássica seriam «demasiado civilizados» para ' mo nos mos tra San d G d
Sacrificing Commentary1. or oo hart no seu
se entregarem ainda a ritos tão bárbaros quanto o do pharmakos. Mas a finalidade da trao-édia .
Sem qualquer prova que o apoie, continua a dizer-se que estes a dos sacrifícios. Trata-se s;m re ~;hnua a ~era mesma que
ritos «depressa teriam que ter caído em desuso». Meia dúzia de bros da comunidad p . . produzir, entre os mem-
. e, uma punficação · ·
séculos depois de Sócrates e Platão, o nosso apedrejamento anstotélica oue não e' . d · espintua 1, a catharsis
' -.1.. mais o que uma - .
miraculoso não confirma este belo optimismo. zada ou «sublimada d. . versao mtelectuali-
. . » , como ina Freud d 0 f . ..
O culto dionisíaco está repleto de ritos ainda mais atrozes ongma1. / e eito sacnficia1
do que o «milagre» de Apolónio, mas não os vemos, literal-
mente ... no sentido quase cinematográfico em que o relato
*
de Filostrato nos obriga a ver o apedrejamento de Éfeso: os
* *
olhos pestanejantes do mendigo, a côdea de pão no alforge,
Na época em que ainda existia . .. . .
a compaixão inicial dos Efésios. Todos os pormenores con- menos vivos qua d , m ntos sacnfioa1s mais ou
cretos aumentam a força evocatória do texto de Filostrato. . ' n o os etnoloo-os pe t ,
rudades a razão de os b o rgun avam as comu-
Seria tentador concluir-se que o acontecimento narrado, . o servarem e .
nham sempre a mesma soupu 1osamente, obti-
c resposta.
mesmo se real, é demasiado excepcional para figurar de modo
Talvez seja altura de ouvir os . . . .
legítimo num debate sobre a violência nas religiões pagãs. nos dizem que os sac .f, . pnn~ipais mteressados, que
Pelo contrário, o relato de Filostrato é excepcional exacta- n IC10s se des tma · 1)
deuses que os ensinaram h m. a agradar aos
mente pelo seu realismo e os seu modernismo relativo. aos omens e 2) .
restaurar, no caso de haver n . a conso1idar ou a
Dos ritos do pharmakos, esperava-se que purificassem as comunidade. ecess1dade, a ordem e a paz na
cidades gregas dos seus miasmas, que as tornassem mais
. Apesar da unanimid ade das afi -
harmoniosas, em suma, que realizassem o tipo de milagre nunca as levaram a se' . p ,nnaçoes, os etnólogos
que Apolónio conseguiu com o mendigo. Em período de crise, no. enso que e po t -
conseguiram resolver o . d r es a razao que não
todas as culturas sacrificiais recorriam a ritos não previstos erugma os s ·f, ·
é preciso admitir ue .. acn IC10s. Para o fazer,
no calendário litúrgico normal. O apedrejamento do mendigo como a compreendiamosEsatcnficadores diziam a verdade tal
é um rito de phannakos improvisado. d a verdadeira explicação· dos
ses estavam m ·t
seu
· , .
, . Lll ? mais prox1mos
Ao fazer apedrejar o mendigo, Apolónio reproduz numa os especialistas contempo ~ s propnos ntos do que todos
vítima humana a violência unânime que a maior parte dos raneos.
sacrifícios, naquela época, só já reproduziam em vítimas ani-
1 Sa ndo r Goodha rt 5 ·ij.·
mais. versity, 1996. , nc11 ing Com men tn ry, Ba ltimore, John Hop kins Uni-

102
103
«É preciso que o escândalo aconteça », e acontece sempre,
são esforços para se reprimir e
Os sacrifícios sangrentos d uru· dades arcaicas ao primeiro esporadicamente e ninguém lhe presta atenção, mas
ff t internos as com , proliferará em breve. É preciso que se rendam às evidências:
moderar os con i os d t- exacto quanto possível, a
. de um mo o ao A . urna nova crise ameaça a comunidade.
repro d uzir-se . . 'd , 't'ma oriainal, vio1enoas
custa das vítimas substltt,~i as a vi _i ' vel ~as nada mítico, Como prevenir este desastre? A commúdade não esque-
do nao determina ' ,
reais que, num -~assa d f t essas comunidades, graças a ceu o estranho drama, incompreensível, que a salvou do
haviam reconohado e ac o abismo em que receia voltar a cair. Enche-se de reconheci-
sua unanimidade. ociadas aos sacrifícios, mento para com a misteriosa vítima que, primeiro a mergu-
As divindades estã~ sempre asts ta de produzir e aque- lhou naquele desastre, mas a salvou em seguida .
. lA . olectivas que se ra .
P ois as vio encias
.
c
t orque os reconci
·ii· aram persuadiram·
' Ao reflectirem sobre aqueles estranhos acontecimentos,
las que, precisamen e p ,. são divinas, são uma dizem para consigo que, se tudo aconteceu daquela maneira,
.. ,
os bene fician ·os de que as suas vitimas
é, sem d~1vida, porque a vítima misteriosa assim o quis. Tal-
coisa só. canismo vitimário » eficaz vez a divindade tenha organizado toda aquela encenação
, mpre um «me · ·
Em suma, e se ·f' . e que passa por divino com o intt,úto de incitar os seus novos fiéis a reproduzirem-na
d lo aos sacn icios .d
q ue serve de mo e fim a uma cn..se mimética ' a uma epi. e- e, assim, a renovarem-lhe os efeitos, de modo a proteger-se,
porque, de facto, pos
A

. - o se conseguia dominar. no futuro, de urna sempre possível recrudescência de desor-


mia de vinganças em cad~i~ .que ;~onstroem a partir de vio- , dens miméticas. A ideia de que foram os deuses que ensina-
A prova de que os sacrifíoosd~f m todos uns dos outros ram aos homens os sacrifícios é universal e facilmente se vê o
. . , certamente i ere
lênoas reais e que, t os estruturais fundamen- que a justifica.
nos pormenores, mas os seus rabç , o modelo da violência
tais são sempre o: m
colectiva espontanea que,
esmos e tam em
de modo visível, os inspira. As
·.
.f. ·ai·s de um extremo do
Talvez a divindade deseje que os sacrifícios sejam para
sempre repetidos, para o bem dos seus fiéis, talvez também
. temas sacn ici ' . para o seu próprio bem, porque se sente honrada com os
semelhanças entre os sis . d. constantes e explicáveis
ritos, ou talvez ainda porque se alimenta das vítimas.
planeta ao ou t ro, s ão · demasia o - ·maainárias ou psi- ·
para tornarem v~r~~ímeis as concepçoes i º Ao não saberem exactamente em que se baseia a virtude
cológicas do sacnhcio. das violências colectivas, mas talvez supondo que a sua efi-
cácia não é somente natural, as comunidades vão copiar a
* sua experiência de unanimidade violenta de uma forma tão
* * exacta e completa quanto possível. Em caso de dúvida, mais
mo nascem os ritos, é preciso vale fazer mt,úto do que pouco. Este princípio explica por que
Para se compreende~ ~o d uma comunidade que, após
é que muitas comunidades incluem nos seus ritos a própria
imaginar o estado de espi~!~s ~libertada do seu mal graça_s
crise mimética, a crise que desencadeou o processo mimético
longas e sangrentas ~e~or. :evisto. Pode supor-se que re~­
a um efeito de multidao imp . . ·os di·as ou nos primei- de selecção vitimária original.
d f ·a nos pnmen Em mt,útos ritos sacrificiais, tudo começa por um simula-
nava uma gran e eu on l"bertaç-ao Mas este período
·ama essa i · . cro de crise mimética, demasiado realista e parecido com
ros meses que se segm Os homens foram feitos
-
venturoso nao d, u rava para sempre.
nas suas nv
, ·
. alidades mimeticas. todos os outros para ser inventado. Todos os subgrupos que-
de modo a recairem sempre
105
104
nimidad
. e e, o mais agudo dos mim .
mais perigoso de todos se - etismos, forçosamente o
relam entre si e confrontam-se simetricamente, mimetica- De onde a ideia un1·versal nao se alcançar a unanimidade
mente. O modelo não pode ser outro senão a crise real que ·d . ' no seu · , · ·
vi ade ntual é extremament . pnnopio, de que a acti-
desencadeou aquilo mesmo que se procura reproduzir, a co f e arnscada p d. .
s, es orçavam-se por reprod . . ara umnuir os ris-
violência unânime contra a vítirna. exa~ta e meticulosa quanto po ~irelm o modelo de forma tão
Finalmente, para criar o seu próprio antídoto a violência E esta ssive .
deve agravar-se. É o que compreendem, cmn toda a evidên- 1 preocupação de exactidão .
ogos e psicanalistas todas que sugenu aos psicó-
cia, muitos sistemas sacrificiais. Portanto, julgam ser neces- te rmos d e «nevroses » «f ast suas expricaçoes - falaciosas em
sário reproduzir a crise sem a qual o mecanismo vitimário el os quais. se apaixonaram
' an pasmas» e o u tros «con1plexos»
P , . · ara a m ·
talvez não funcionasse. · nos, e evidente que o re11·g· ,. a10r parte dos moder-
º1co. ª. ~ª' se dissipar estas ilusõe
É por esta razão que tantos ritos visivelmente destinados o- · p 10so e um fe ,
, nomeno psicopatoló-
a restabelecerem a ordem começam, de uma maneira para- real que os sacrificadores r d s, ha que assinalar a acção
d epro uzem a · l ~ .
doxal para nós, de uma forma lógica na perspectiva mimé- ora porque espontaneament ~ . ' vio enoa reconcilia-
tica, nada menos nada mais do que por mn agravamento da model o era, 'd e facto temí 1 e unarnme . . U ma vez que este
desordem, por um espectacular desconcerto de toda a comu- em temer a sua reprodução.
' ve ' os sacnfic a d ores tmham
. razão
nidade. Na temporalidade dos ritos o- . 0
No entanto, por racional que seja, por detrás da sua apa- momento em que as . _ '. cheºa' inevitavelmente
rência absurda, este procedimento não era universal. Muitos sacrificial. O terror qu:epehçoes ~em
fim «usam» o efeÍto
sistemas rituais não reproduziam a crise inicial. Com facili- aos aprendizes de feiti·c ~s seus p:_opnos sacrifícios inspiram
dade se compreende porquê. Esta crise é um desencadea- a~a b a por se esvanecer. euo qlte sao nf
A ena ' e. im, os sacrificadores
mento de violência mimética. Se for imitada de uma forma dias de terror destinadas~ im s sob~ev1ve na forma de comé-
demasiado realista, são grandes os riscos de uma perda total as ml~heres e as crianças. press10narem os não iniciados,
de controlo e muitas conl.unidades recusariam assumi-los.
Sem dúvida, especulariarn que haveria sempre desordem re1nInumeros
q ue, nos indícios
.
pnmeiros
teóricos, textuais
tem d
. e arq
ueo logicos
' · suge-
suficiente para desencadear o mecanismo reconciliador, sem eram sobretudo humanas lºs a Humanidade, as vítimas
lhe acrescentar um perigoso suplemento de violência. mais foram substi· tu1n . d o . cada
om o passar. do tempo ' os aru·-
quase em. todo o lado , as vi' t.imasve~
/
Mesmo os ritos mais tmnultuosos não reproduziam, em aru n1ais
. os homens mas ,
regra geral, a crise mimética com toda a sua intensidade e menos eficazes do que as h mais eram consideradas
E tuna nas
duração. Contentavam-se, a maior parte das vezes, com uma , ,m caso de extremo pengo . na G. , ·
versão abreviada e acelerada da desordem. Resumindo, não as vitimas humanas A ac d. ' reoa clássica, voltava-se
batalha de Salamina. rr ;e Itar em Plutarco, na véspera da
saíam da lama para não se meterem no atoleiro. f .. ' .temistocles sob _
Compreende-se por que é que, quase por todo o lado, os ez sacnficar prisioneiros ' a pressao da multidão
, . persas. '
sacrificadores viam nos seus sacrifícios acções temíveis. Não Sera is to assim tão d. f
i erente do milagre de Apolóni o.?
ignoravam que a «boa violência», aquela que, em vez de
intensificar ainda mais a violência, lhe põe um fim, era a vio-
lência 1.mânime. De igual modo, sabiam que o motor da una-
107
106
VII

O ASSASSÍNIO FUNDADOR

Por detr~s da Paixão de Cristo, de um certo número de


drélmas bíblicos, de uma enorme quantidade de dramas
míticos, dos ritos arcaicos, identificamos sempre o mesmo
processo de crise e de resolução fundado no equívoco da
dli ma única, o mesmo «ciclo mimético».
Se examinarmos os grandes relatos de origem e os mitos
fw1dadores, apercebemo-nos que eles próprios proclamam
o papel hmdamental e fundador da vítima única e do seu
assassínio unânime. A ideia está em todos presente.
Na mitologia suméria é do corpo de urna ímica vítima, Ea,
Tiamat, Kingu, que surgem as instituições culturais. O mesmo
se passa na Índia: é o decepamento da vítima primordial,
Purusha, por uma multidão de sacrificadores que cria o sis-
tema das castas. Encontramos mitos análogos no Egipto, na
China, nos povos germânicos, por todo o lado.
A força criadora do assassina to concretiza-se muitas
vezes na importância d ada aos fragmentos da vítima. Acre-
dita-se que cada um deles faz nascer urna instituição parti-
cular, um clã totémico, urna subdivisão territorial, ou ainda o
vegetal ou animal que fornece o principal alimento à comu-
nidade.
\

109
Caim da p~imeira cultura que se situa, claramente, no prolon-
Por vezes, o corpo da vítima é comparado a uma s~­ ga~1.e~to d:rec~o do assassínio que acabam por ser as conse-
mente que tem de se decompor para germinar. _E_sta germi- quenoas nao vingadoras, mas rituais, desse mesmo assassínio.
nação e a restauração do sistema cultur~l d~mhcado pela A sua violência inspira aos assassinos um temor salutar.
crise anterior, ou a criação de um sistema inteiramente novo Faz-lhes c?mp~eender a natureza contagiosa dos comporta-
que, frequentemente, surge como o pr_imeiro_ alguma vez mentos 1111meticos e entrever possibilidades desastrosas no
aerado, como se fosse uma espécie de nwençao da Huma- futuro: agora que matei o meu irmão, diz Caim, «O primeiro a
~dade, são uma coisa só. «Se o grão não morrer antes de ser encontrar-me matar-me-á » (Génesis 4, 14).
semeado, fica sozinho, mas, se morrer, dá mLútos frutos .» Esta última expressão: «O primeiro a encontrar-me matar-
São tantos os mitos que afirmam o papel fundador do -me-á», mostra bem que, naquela altura, a raça humana não
assassinato que mesmo Mircea Eliade, um mi~ó~ogo muito se _limita~a a Caim e aos seus pais, Adão e Eva. A palavra
pouco dado a generalizações, julgava nece.ss,ano ?~r-lhe s 1 Caim ~e~i&na a primei,ra comunidade reunida pelo primeiro
atenção. Na sua Histoire des croyan.ces et des _1dees rel1g1:11ses , assassm10 fundador. E por esta razão que existem muitos
fala de um assassínio criador comum a muitas narraçoes de potenciais assassinos e que é preciso impedi-los de matarem.
origem e mitos fundadores por todo o mundo. Neles está O a~sassíi:io ensina ao(s) assassinos(s) uma espécie de
presente um tema cuja frequência pertur~a clarame~te ,º sa~edona, uma pr_u_dência que modera a sua violência. Apro-
mitólogo: um fenómeno de alguma man~i_ra «transnutolo- veitando a tranquilidade, Deus promulga a primeira lei con-
gico», mas fiel à prática puramente descntiv_a, nunca,_ tan~o
tra o assa_ssínio: «Se alguém matar Caim, será castigado sete
quanto se possa saber, Mircea Eliade sug~nu a explicaçao vezes mais» (Genesis 4, 15).
universal que me parece possível que lhe seia dada. A fundação da cultura caimnista é esta primeira lei con-
tra o assassínio: sempre que alguém matar, sete vítimas
*
ser~o imoladas em honra da vítima original, Abel. Ainda
* *
mais do que o carácter esmagador da retribuição, é a natu-
A doutrina do assassínio fundador não é só mítica, mas reza _ritual da séptupla imolação que restabelece a paz, é 0
também bíblica. No Livro do Génesis, ela e o assassinato de
enraizamento na tranqLúlidade suscitada pelo assassínio ori-
Abel pelo seu irmão Caim são uma ~ó ~oisa. O rel_ato de~te ginal, é a comunhão unânime da comunidade na rec~rdação
assassínio não é um mito fundador, e a mterpretaçao bíblica
desse mesmo assassínio.
de todos os mitos fundadores. Narra-nos a fundação sangrenta
A lei contra o _as~assínio não é mais do que a repetição
da primeira cultura e as suas consequências, q~1e constituem
des~~- O que a distmgue da vingança selvagem é mais o
primeiro ciclo mimético representado na Bíblia. . . espinto do que a natureza intrínseca. Em vez de ser uma re-
0
Como é que Caim procede para fundar a primeira cul-
petiç~o- vi~gadora, que suscitaria novos vingadores, é uma
tura? O texto não coloca esta questão, mas responde-lhe de
repetiçao ntual, sacrificial, da urúdade forjada na unanimi-
maneira implícita só pelo facto de se limitar ~ dois. te~~s: o
dade, uma cerimónia na qual participa a comurúdade inteira.
primeiro é o assassinato de Abel; o segLmdo e a atnbuiçao a
Por t~~ue _e precária que possa parecer a diferença entre
repetiçao ntual e repetição vingadora, nem por isso deixa de
1Pa yot, 1978, P· 84.

111
11 0
ter uma enorme importância, pois está repleta de todas as Uma vez que o povo judeu ainda não existia na época de
diferenciações ulteriores. É a invenção da cultura huma__na. Caim e Abel e que este era considerado como o primeiro dos
Há que evitar ler na história de Caim uma «co1:11u~ao~> profetas colectivamente assassinados, as mortes dos profetas
não podem, com toda a evidência, ter a ver apenas com o
entre o sacn·fíc1·0 e a pena de morte ' como se as duas institm-
ções preexistissem à sua invenção. A l~i que na_sce da sensa- povo judeu e não é para atacar os seus compatriotas que
tez suscitada pelo assassínio de Abel e ,ª _matnz comum d~ Jesus insiste nestas violências. Tal como sempre, as suas afir-
todas as instituições, é o fruto do assass1ruo de ~bel apreen mações têm mna significação universalmente humana.
dido no seu papel fundador. O assassí~~ col~ct1~0 torna-se A segunda razão que torna a alusão de Abel deveras
fundador por intermédio das suas r~petiçoes ntua1s. , . importante, no contexto da «fundação do mundo», é que
Não é apenas a pena capital, a lei con~a .º a~sassiru~, ~ue constitui um regresso ao que diz o Livro do Génesis na histó-
deve conceber-se como domesticação e hmitaçao da vi?lei:- ria de Caim, tuna adopção deliberada da tese que acabo de
cia selvagem pela violência ritual, são todas as grandes insti- expor, a sabe.r que a primeira cultura humana vê as suas raí-
tuições humanas. . . , · zes num p'r irneiro assassínio colectivo, análogo à crucifi-
Tal como observa James Williams, «O sinal de Caim e o sina1 cação.
2
da civilização. É o sinal do assassino protegido por Deus» . O que prova que é exactamente disto que se trata é a ex-
pressão, comum a Mateus e Lucas, «desde a fundação do
* mundo». O que se produz desde a fundação do mundo, quer
* * dizer desde a fundação violenta da primeira cultura, são
A ideia do assassínio fundador encontra-se uma vez mais assassínios sempre análogos à crucificação, fundados no
nos Evangelhos. É pressuposta por duas passagens pa~alelas mimetismo, assassínios fundadores por consequência, por
em Mateus e Lucas que referem uma série de assassinatos causa do equívoco a respeito da vítima, causado pelo mime-
análogos à Paixão e que remontam à «fundação do mtmdo». tismo.
São Mateus fala dos «assassinatos de tod~s ~s profetas As duas frases sugerem que a série de assassínios é
desde a fundação do mundo». São Lucas contnbm :º~uma extremamente longa, pois remonta à fundação da primeira
correcção suplementar: «desde Abel, o Justo ». O ultimo da cultura. Este tipo de assassinato, comum ao de Abel e à cru-
série é a Paixão, que se assemelha a todos os ~ue, ~ prece- cificação, desempenha um papel fundador em toda a His-
dem. Trata-se da mesma estrutura de impulso m1metico e de tória da Humanidade. Não é por acaso que os Evangelhos
mecanismo vitimário. comparam este assassinato à katabole tau kosmou, a fundação
A alusão de Lucas à morte de Abel é importante p~r pelo do mundo. Mateus e Lucas sugerem que o assassínio tem um
menos duas razões. A primeira é que devia desacreditar de carácter fundador, que o primeiro assassínio e a fundação da
uma vez por todas a tese demasiado obtusa que faz das obser- primeira culttu-a são a mesma coisa.
vações evangélicas sobre os assassinatos d~s pr~f~tas ataques Há no Evangelho segundo São João urna frase equiva-
contra 0 povo judeu, manifestações de «anti-semitismo». lente às de São Mateus e São Lucas e que confirma a inter-
pretação que lhes acabo de dar. É a frase que se encontra no
2 Tlze Bible, Violence nnd t/1e Sncred, Harper, São Francisco, 1991, P· 185. centro do grande discurso de Jesus sobre o Diabo e que já foi

112 113
se:neador de escândalos e aquele que, no paroxismo das
comentada no capítulo rn. É, também ela, uma definição do cnses que ele mesmo provoca, lhes dá um final brusco ao
que Mircea Eliade chama o assassínio criador: e~pulsar a desordem. Satanás expulsa Satanás por inte ,-
d10 d as v1' f ima,s mocentes
. que sempre conseguiu condenar.rme
Desde 11 origem [o Di11bo] foi um /10micid11 .
Uma ;ez que e o mestre do mecanismo vitimário, Satanás é
A palavra para origem, início, começo, é arche. Não se tambem_o mestre da cultura humana, que não teve outra ori-
refere à cr~ação ex n.ihilo que, por ser divina em absoluto, não gem
o a naot ser 1o homicídio. Em {utima análise é o Diabo ou,
I I

pode fazer-se acompanhar de violência. Refere-se, forçosa- P - r o~1 ras pa avras, o mau mimetismo que está na ori em
mente, à primeira cultura humana. Assim, a palavra arche nao
. 1 soda cultura caimnista mas tarnbe ' m de tod a e qua lg
quer
tem o mesmo sentido que katabole tau kosm.011 nos Evangelhos Clutura humana .
sinópticos, trata-se da fundação da primeira cultura.
Se a relação do assassínio com o começo fosse fortuita, *
significaria simplesmente que, desde que há homens sobre a * *
Terra, Satanás os teria empurrado para o assassínio e São Como é qu~ se deve interpretar a ideia do assassínio fun-
João não teria mencionado a palavra «origem» a propósito ~ador? Corno, e que pode uma ideia como esta concretizar-se?
do primeiro assassinato, assim como.São Mateus e São Lucas orno podera ela deixar de parecer fantasista e até mesmo
não teriam relacionado a h.mdação do mundo com o assas- absmda?
sínio de Abel. Sabemos que ?.assassínio age como uma espécie .de cal-
Estas três frases, por um lado, as de Mateus e Lucas, por mante, de tranq~uhzante, pois os homicidas, quando satisfa-
outro lado, a de João, significam a mesma coisa: chamam- zem. o seu ªfehte de violência à custa de urna vítima não
-nos a atenção para o facto de que, entre a origem e o pri- pertmente, sao de forma rntúto sincera persuadidos de que
meiro assassinato colectivo, há uma relação que não é desembaraçam ~ comunidade do responsável pelos seus
fortuita. O assassínio e a origem constituem uma coisa só. Se ~~les. Mas esta ilusão não pode, por si só, bastar para \1s-
o Diabo foi homicida desde a origem, isto quer dizer que tam- tificar a crença na virtude fundadora do assassínio cr~nça
bém o é na continuação dos tempos. Todas as vezes que acerca da qual acabámos de constatar que é comum ~ão só a -
surge uma cultura, começa por este mesmo tipo de assassi- tod_os os grandes mitos fundadores, mas também a~ Génesis
nato. Assim, temos uma sequência de assassínios todos aná- e, fmalmente, aos Evangelhos.
logos à Paixão e todos eles fundadores. Se o primeiro foi a A interrupção temporária da crise não chega para explicar
origem da primeira cultura, os que se seguiram deverão ser ª , c~ença d~ tantos religiosos no poder fundador do homi-
a origem das culturas subsequentes. c1d10 colechvo, no _seu poder, não só de fundar comunidades,
Tudo isto encaixa na perfeição com o que vimos mais atrás ma~ de lhes ga.ranhr urna organização durável e relativamente
sobre Satanás ou o Diabo, a saber, que este é uma espécie de estavel. O efeito reconciliador do assassínio por surpreen-
personificação do «mau mimetismo», quer no que diz res- dente . q ue seJa,
· nao- consegue prolongar-se durante
' gerações
peito aos aspectos conflituais e desagregadores quer quando Sozmh
. . - o, o onuCI io nao e capaz de criar e perpetuar as ins-·
h · ,d · - ,
se trata dos aspectos reconciliadores e unificadores. Satanás, htmçoes culturais.
ou o Diabo, é quem sucessivamente fomenta a d~sordem, é o

115
114
Existe uma resposta satisfatória para esta questão que porânea. Não é possível repudiá-la com franqueza sem se
transformar a omnipresença dos ritos nas instituições huma-
acabo de colocar. Para a descobrir, é preciso, evidenteme~te,
nas num tremendo ponto de interrogação.
recorrer à primeira de todas as instituições humanas apos o
As ciências sociais modernas são, na sua essência, anti-
assassínio colectivo, a saber a repetição ritual do mesmo. De
-religiosas. Se o religioso não fosse uma espécie de erva dani-
um modo breve, passalTtOS a questionarmo-nos sobr~ a forma
nha, um problema irritante mas insignificante, o que é que
como se coloca, na minha opinião, a questão da ongem das
podena fazer-se com ele? Corno, ao longo de toda a História,
instituições culturais e das sociedades humanas. ..
Desde a época das Luzes que esta questão se define em foi o elemento inalterável nas diversas instituições em trans-
termos ditados pelo racionalismo mais abstracto. Concebe-se formação, não pode renunciar-se à pseudo-solução que faz
os primeiros homens como se fossem pequenos Descartes no dele urna pura nulidade, um parasita insignificante que para
. conforto dos seus quartos e diz-se que conceberam forçosa- nada serve, sem se ser confrontado com a possibilidade in-
mente de forma abstracta, puramente teórica para começar, versa, ba.stante desagradável para a anti-religião moderna,
as instituições que desejariam ter para si. Em seguida,. ao aquela que faria dele o centro de qualquer sistema social, a
passarem da teoria à prática, ~ste~ primeiros homens tenam verdadeira origem e a forma primitiva de todas as institui-
realizado 0 seu projecto institucional. Portanto, n~nhuma ções, o fundamento universal da cultura hurnana3.
instituição pode existir sem uma ideia prévia ~ue guia a sua Esta solução é tanto mais difícil de se ne Óo-ar quanto I

elaboração prática. É esta a ideia que determina as culturas desde os tempos áureos do racionalismo, se conhece melhor
as sociedades arcaicas e, em muitas delas - é impossível não
reais. · o constatar-, as instituições que as Luzes consideravam corno
Se as coisas se tivessem realmente passado deste modo o
religioso não teria tido qualquer papel na génese das i~sti­ indispensáveis à Humanidade não existem; no seu lugar exis-
tuições. E, com efeito, no contexto racionalista que contm.ua tem apenas ritos sacrificiais.
a ser 0 da etnologia clássica, o religioso não desempei:-ha Sob o ponto de vista dos ritos, pode distinguir-se grosso
qualquer papel, não tem qualquer utilidade. Quando mmto~ modo três tipos de sociedades. Em primeiro lugar, 1) urna
é supérfluo, superficial, está a mais, por outras palavras, e sociedade em que o rito desapareceu por completo ou quase:
a nossa sociedade, a contemporânea.
supersticioso. . . . Depois, existem, ou melhor existiam outrora, 2) socieda-
Como explicar então a presença uruversal do religioso per-
feitamente inútil no centro de todas as instituições? Quando se des nas quais o rito d~ alguma maneira acompanha e reitera
coloca esta questão num contexto racionalista, só ~á .uma res- todas as instituições. E aqui que o mito parece acrescentado
posta verdadeiramente lógica, a de Voltaire: o religioso teve a instituições que não necessitam dele. As sociedades antigas
que parasitar as instituições úteis ~elo lado de fo~a. Foram os e, num outro sentido a sociedade medieval, inserem-se nesta
padres «pérfidos e ávidos» que .ªs inventaram a fim de explo-
rarem em seu proveito a credulidade do bom povo. , 3 Sobre a «estranha» a lergia da investigação moderna a toda s as formas de
Esta expulsão racionalista do religioso - na nossa epo~a, sagrado, ver a admiráve l reflexão de Cesareo Bandera no início de Tire Sncred
tentamos velar-lhe um pouco o simplismo, mas no essenoal Gnme. The R o~e of the Sncred i11 t/1e Genesis of Moder11 Litemry Fiction, Uni versity
Park, Pens1lvarua, The Pennsylvania University Press, 1994.
_ continua forçosamente a dominar a antropologia contem-

117
116
categoria. É este tipo, erradamente concebido como univer- Os ritos ditos ~e passagem ou de iniciação baseiam-se, tal
sal pelo racionalismo, que serviu de base à tese do religioso corno todos ?s n _tos, no sacrifício, na ideia de que toda a
parasitário. mudança radical e urna espécie de ressurreição enraizada na
E, por fim, as. sociedades «muito arcaicas» que não têm morte que a ~recede e que só ela pode repor a força vital
instituições tal como as entendemos, mas que sempre tive-
N_u rna primeira fase, que é a «da crise », os postul~dos
ram ritos. E são as únicas instituições que têm.
rnor~iam de algum modo na infância e, na segunda fase res-
Os velhos etnólogos viam as sociedades arcaicas como as susci tavarn capazes ' do ravan te, d e ocupar o lugar que ' lhes
menos evoluídas, as mais próximas das origens e, não obs- .
pertencia no_ mundo dos adultos. De vez em quando, nalgu-
tante, tudo o que foi dito para desacreditar a sua tese, prima
mas co~umda_des, ~contecia que um dos postulantes não
pelo bom senso. Contudo, não podemos adoptá-la sem ser-
ress~s.citava, nao saia vivo da prova ritual, o que era bom
mos irresistivelmente levados a pensar que não só o sacrifí-
cio desempenha um papel essencial nos primeiros ternpos augur~o para to~os os_ outros postulantes. Via-se nesta morte
da Humanidade, mas que poderia mLúto bem ser o motor de ~1~ -~e~orç? providencial da dimensão sacrificial do processo
uuciab.co.
tudo o que nos parece especificamente humano no Homem,
de tudo o que o distingue dos animais, de tudo aquilo que Diz:r que estes_ rit~s «substituem» os nossos sistemas de
nos perrrúte substituir ao instinto animal o desejo propria- e~ucaçao e ~utras instituições é pôr o carro à frente d b .
mente humano, o desejo rrúmético. Se o futuro humano fosse, S_ao, cer~amente, as instituições modernas que substit~:rno~s~
entre outras coisas, a aqLúsição do desejo mimético, seria evi- ntos apos terem coexistid_o durante rnLúto tempo.
dente, para começar, que os homens não podiam passar sem d Tudo suge~e. que os ntos sacrificiais são primordiais em
as institLúções sacrificiais que reprimem e moderam o tipo to . os os ~omuuos, em toda a história real da Humanidade
de conflito inseparável da hominização. Existem ntos de execução capital, o apedrejamento do Levítico.
Muitos observadores já constataram que, na s sociedades P?~ ex~mplo, ritos de morte e de nascimento, ritos matrimo~
exclusivamente rituais, as sequências rituais, sacrificiais, já ruais, ntos_d: caça e ~e pesca nas sociedades que se dedicam
desempenham, até um certo ponto, o papel que incumbirá, a estas ac~ividades, ntos agrícolas nas sociedades que prati-
mais tarde, a todas as instituições que temos o hábito de defi- cam a agncu1tura, etc. .
nir a partir da sua função concebida de forma racional. . Tudo aqLúlo que chamamos as nossas «instittúções cultu-
Apenas um exemplo, os sistemas de educação: não exis- rais» se reduz. ' originalrnen te, a comportamentos rituais de
tem no mundo arcaico, mas o ritos di~os de passagem ou de t~1 rno~o . polidos pelos anos que perderam as suas conota-
iniciação têm um papel que os prefiguram. Os jovens não se çoes religiosas e se definem em função do tipo de .
iniciam em segredo nas suas próprias culturas; entram por se destinam a resolver. «cnse» que
intermédio de procedimentos sempre solenes e que dizem Por força de serem repetidos, os ritos modificam-se e
respeito à commudade inteira. Estes ritos frequentemente ditos transformam-se em práticas que parecem elaboradas múca-
«de passagem» comportam «provas» muitas vezes penosas ;ent~ ~ela razão .h umana, ao passo que, na realidade, derivam
que lembram, inelutavelmente, os nossos exames ditos «de ore ~g1oso. O~ ntos surgem sempre num dado momento em
passagem», as nossas «provas» de 12.º ano, etc. A observação que ha uma cnse a resolver e com razão An tes d .
destas analogias é tão banal quanto possível. sacrºf' · - ' · e mais, os
i ic10s sao a resolução espontânea, pela violência unâ-

11 8 119
----------------~
forjá-lo · A veneraçao- que 0 seu futuro sacrifício · ·
nime, da todas as crises que se apresentam inopinadamente forma-se pouco a pouco em força «política>)'~ msprra trans-
na existência colectiva. Pode comparar-se a dimensão ..
As crises são não só as discórdias miméticas mas tam- com uma substância mate propriamente religiosa
bém a morte e o nascimento, as mudanças de estação, a fome, ritos se libertam com o rna, dcom urna placenta da qual os
passar o tempo p
os desastres de todos os géneros e ainda mil e uma outras remem
, · instituições desr1·tua liza d as. As repetiç
ara se- transforma-
d ·
· coisas que, com razão ou sem ela, inquietam os povos arcai- IC1os são as
fgrosseirona. numerosas lambidelas , oes os s.
a cn-
da ursaª sua progemtura
cos; e é sempre recorrendo ao sacrifício que as comunidades
O verdadeiro guia da Hurnanid d - , -
, ~ e nao e a razao desen-
tentam acalmar as suas angústias.
carnada mas o rito As .
içoes ~odelam a
' · incontave1s repet' -
* passo a passo as institui ões
* * tarde terem inventado eçx ·7 ~lueNos hom.e ns acreditarão mais
nz 1 1 o. a reahdad f · · ·
Por que é que certas culturas enterram as suas vítimas que as .i µventou para eles. e, 01 o rehg10so
debaixo de amontoados de pedras aos quais dão muitas As sociedades hrnnanas são obra d . . , .
que o rito disciplinou h os processos rrumet1cos
vezes uma forma piramidal? Para explicar este costume, pode . · 0 s omens sabem muito b -
ver-se nisto um subproduto dos apedrejamentos rituais. d ommam as suas rivalidades mi , . em que nao
meios. É por esta razão que at 'b mehcas pelos seus próprios
Apedrejar uma vítima é cobrir o seu corpo de pedras. Quando
mas, que as tomam por d ' . dn duem este controlo às suas víti-
se atira muitas pedras a um vivo, não só este morre como as 1vm a es Numa .
mente positiva, estão errad . . . perspectiva estrita-
têm razão. Penso que a Hum~~;~~m ~efilnht1ddo mai.s .profundo,
pedras tomam, naturalmente, a forma troncónica do «túmulo»
que se encontra, mais ou menos geometrizada, nas pirâmi- ee a o rehg1oso.
des sacrificiais ou funerárias de numerosos povos, a começar
pelos Egípcios, cujos mausoléus têm, primeiro, a forma de *
uma pirâmide truncada e, só mais tarde, terminada em ponta. * *
O mausoléu foi inventado a partir do momento em que o As nossas instituições não odem .
costume de cobrir os cadáveres de pedras se dift.mde na ausên- ser o resultado de P ser outra c01sa a não
um 1ento processo d 1 .
em conjunto com uma , . e secu anzação que
cia de qualquer apedrejamento. cionalização» formam espeo: de. «racionalização» e de «fun-
Como conceber a origem ritual do poder político? Por uma so c01sa Há · t0 .
intermédio daquilo a que se chama a realeza sagrada, a qual gação moderna teria ident'f d · mm que a mvesti-
deve ser pensada, também ela, como uma modificação, ínfima na realidade, não se tives:e1~e· o~ st~~ v~rdadeira génese se,
dade irracional pelo rel · . ixa o irru tar pela sua hostili-
no início, do sacrifício ritual. , ig1oso.
Para se fabricar um rei sagrado, escolhe-se uma vítima E .
tuiçõ!sr~~:a~:: :ep~~c:~e. a po~ssi?ilidade de todas as insti-
inteligente e autoritária. Em vez de a sacrificar de imediato, ' nsequencia a própria Hwnanidade I

retarda-se a sua imolação, deixa-se cozer lentamente a vítima


no caldo das rivalidades miméticas. A autoridade religiosa
4 Sobreª- questão das realezas sagrqdas em era] .
que lhe confere o seu futuro sacrifício vai permitir-lhe não no Sudao, ver Simon Simonse Kings if D' g
,
, e de modo ma is particular
o isnster, E. J. Brill, Leida, 1992.
«assumir» um poder que ainda não existe, mas, literalmente,

121
120
......... --------~-

A partir do momento em ue a .. ,
serem modeladas pelo religioso. Com efeito, para escapar ao passou um certo limite d ~ . cnatura pre-humana ultra-
instinto animal e aceder ao desejo com todos os perigos de . e rrun1ehsn10 e e
mos arumais de protecç-ao contra a v1ol . m que d os mecanis-
conflito mimético que o envolvem, o Homem tem necessi- (dominance patterns) , os cor:úl.itos miméti
. encia se
A •

dade de disciplinar o seu desejo, e apenas pode fazê-lo por f esmoronaram


sar danos entre os hom M cos iveram que cau-
intermédio dos sacrifícios. A Humanidade sai do religioso ens. as estes in ·
produziram o seu antídoto ao . ecarusmos depressa
arcaico por meio dos «assassínios fundadores» e dos ritos mários d .. d d . susotaren1 mecanismos v·t·-
' iv1n a es e ntos sacr·f
• A
· . . que n -
i iciais , d 1i
que de deles derivam. ram a v10lencia no se·10 d os arupos h ' ao so mo era-
A vontade moderna de minimizar o religioso poderia canalizaram as eneraias em ºd. - llffia~o~, mas também
muito bem ser, paradoxalmente, o supremo vestígio do pró- nização. o uecçoes positivas, de huma-
prio religioso sob a forma arcaica, que consiste, acima de
tudo, em guardar uma distância respeitosa em relação ao Uma vez que os nossos dese· - . , .
tam-se e aarupam-se e . JOS sao numetICos, estes inu-
sagrado, um último esforço para dissimular o que está em , , o m sistemas de 0 · - .
estereis e contaaiosos·
o · os A d
escan a1os Q posiçao
d obstmados
. . '
jogo em todas as instituições humanas, o evitar a violência e concentran1 meral1ll"a . . uan o se multiplicam
' o ·' in as comurud d .
entre os membros de uma mesma connuudade. agudizam cada vez m .
.
,
ais, ate ao mon1ent 0
ª es em cnses , .
que se
A ideia do assassínio fundador passa por uma invenção
que a polarização tmâe rume · contra uma , · parox1stico ,· em
bizarra, uma aberração recente, um capricho de intelectuais A

o escandalo tmiversal o . b uruca vitima fornece


modernos, estranhos quer à razão quer às realidades cultu- . ' «a cesso de fi -
a v10lência e recompõe . xaçao», que apazigua
rais. E, no entanto, esta ideia é comum a todas as grandes A , _ 0 conitmto descomposto
exasperaçao das rivalid d . , . .
narrações de origem, à Bíblia e, finalmente, aos Evangelhos. as sociedades humana d . a es n~u~etICas teria impedido
É mais verosínlil do que todas as teses modernas sobre a ori- · s e se constitmrem
x1smo, não tivesse prod uzi.d o o seu pró se, · no seu , . paro-
gem das sociedades, as quais se resumem todas a uma ou outras palavras se m . pno remed10, por
outra forma da mesma absurdidade inextirpável, o «contrato · ' 0 ecarusmo v 'f , · .
bode expiatório n ão h . i in1ano, ou inecarusn10 do
' e ouvesse intervind A . .
social» . · que este mecanismo d 1 o. ssim, fm preciso
Para se reabilitar a tese religiosa do assassínio fundador e volta do que liaeiros ;es~ ~ua. pouco mais vemos à nossa
para a tornar plausível no plano científico, basta juntar-se a ciliado as cor:unidad g10s, dt1vesse verdadeiramente recon-
este assassínio os efeitos cumulativos dos ritos, levando em . es e as otasse de d · .
mais tarde institucional , q ue U1es aara ntm . mna or em ntual,
conta a plasticidade dos rn.e smos, mm1a duração temporal
temp~ e urna relativa estabilidadeo Sim a p~rrnanencia no
A

extremamente longa. nas tem mesmo de ser f'lh d . . ~as sooedades huma-
A ritualização do assassúlio é a primeira instituição e a . 1 as o religioso O , ·
mais fundamental, a mãe de todas as outras, o momento deci- sapzens tem de ser filho d e formas . .
amda r d.· propno homo
cesso que acabo de de u imentares do pro-
sivo na invenção da cultura humana. screver.
A força de hominização é a repetição dos sacrifícios num
espírito de colaboração e harmonia ao qual devem a sua
fecundidade. Esta tese dá à antropologia a dimensão tempo-
ral que lhe falta e está de acordo com todas as religiões sobre
as origens das sociedades.

122 123
VIII

AS FORÇAS
E OS PRINCIPADOS

O anterior capítulo mostrou-nos que a Brblia e os Evan-


gelhos estãd, no essencial, de. acordo com os mitos na atri-
buição da fundação e do desenvolvimento das sociedades
humanas aos efeitos cumula ti vos dos «mecanismos vitimá-
rios» e dos ritos sacrificiais.
Por causa da sua origem violenta, satânica ou diabólica, os
Estados soberanos, no seio dos quais surgiu o cristianismo,
são objecto de uma enorme desconfiança por parte dos cris-
tãos que para os chamarem, em vez de recorrerem aos seus
nomes habituais, em vez de falarem de Império Romano,
por exemplo, ou de tetrarquia herodiana, o Nov~ Testamento
recorre, a maior parte das vezes, a tun vocabulário específico,
o das «força s e principados».
Se examinarmos os textos evangélicos e neotestamentá-
rios em qu~ se fala das forças, constata-se que, implícita ou
explicitamente, estas estão associadas ao tipo de violência
colectiva de que tenho vindo a falar, o que é bastante com-
preensível se a minha tese estiver conecta: esta violência é o
mecanismo fundador dos Estados soberanos.
No início dos Actos dos Apóstolos, Pedro aplica à Paixão
uma frase do segundo salmo: «Os reis da Terra apresentaram-se
e os seus chefes coligaram.-se contra o Senhor e contra o Seu Ungido.»

125
- ......._____________
É preciso não se conclLúr que Pedro leva à letra a ideia de
urna participação de «os reis da Terra » na crucificação, pois n;am o carácter terrestre das for as .
caem baixo, no nosso mund Pçl , a sua realidade concreta
sabe perfeitamente que a Paixão não chamou a atenção do Ü. e Ü CO t , • - I
como «príncipes do . , . n rano, expressoes tais
mundo inteiro, pelo menos não nesta altura. Não exagera . . impeno do ar» «fo l
a importância propriamente his tórica do acontecimento.
msistem na natv,.eza
u
n ao
- terrestre ·' · rças ce .es tes »' etc .,
Trata-se, com certez d 'espmtual, destas entidades.
A citação sigrúfica que, para lá do incidente por certo menor,
os casos. As forças ' ditasª' las mesmas entidades em ambos
Pedro identifica urna relação mui to especial da Cruz com as
f orças deste mLmdo p ce A estes em nad
d .
d. .
ªse istmguem das
forças em geral, urna vez que estas têm origem em assassí-
Sera, porque os autores . orque OIS grup d d
d N . os e enommações?
.
rúos colectivos análogos ao de Jesus. o ovo Testame t -
Sem serem a mesma coisa que Satanás, as forças são sem- certo o querem dizer? M .t no nao sabem ao
· UI o pelo co t , · ,
pre suas tributárias, pois todas elas são tributárias dos falsos porque sabem penso q . n rano, e precisamente
' , ue osci1am co t
deuses por ele engendrados, quer dizer pelo assassírúo fun- duas terminologias. ns antemente entre as
dador. Por isso, não se trata aqui de religião num sentido Estes autores têm uma consc· A .
puramente individual em que a entendem os modernos, mas, e ambígu~ natureza da ·1 d iencia bastante clara da dupla
. ·
d ef mir · qm o e que falam o
sim, da crença estrita·rnente pessoal à qual o rntmdo moderno são as combinaçõe d f · que procuram
se esforça por reduzir o religioso. O que está em causa são os tual que constituem as sobs e . orça material e força espiri-
, e eramas co .
fenómenos sociais gerados pelo assassírúo ftmdador. colectivo. m ongem no assassínio
O sistema de forças, com Satanás por detrás dele, é um A esta realidade complexa, os autor
fenómeno material, positivo e, simultaneamente, espiritual, nome de forma ta-o , 'd es querem dar-lhe um
rapi a e económi
religioso num sentido muito particular, ao mesmo tempo efi- que, se multiplicam as fo' ul , ca quanto possível. Penso
b rm as e porque tl
caz e ilusório. É o religioso mentiroso que protege os homens o te~ os deixam insatisfeitos. ,
A

os rest tados que


da violência e do caos, por intermédio dos ritos sacrificiais. . Dizer que as forças são mundan , . . .
Este sistema tem origem numa ilusão, mas a sua acção no lidade concreta neste d as ~ insistir na sua rea-
mundo é real na medida em que a falsa transcendência pode .
d imensão mun o terreno E bl.
essencial · d · em su mhar uma
fazer-se obedecer. . ' am a que em d t .
religiosa, que apesar de i·1 , . . e nmento da outra, a
O que perturba é o enorme número de denorrúnações que d emasiado reais para se usona ' repito- o, se consegue efeitos
.
os autores do Novo Testamento inventam para designarem p 1 , . rem escamoteados.
e o contrano dizer ue f
estas entidades equívocas. Ora são chamadas forças «deste na sua dimensa_o' . 1. . q as orças são «celestes» é insistir
mundo », ora, pelo contrário, forças «celestes», e também re igiosa no p t ' .
sobrenatural do qual gozam' os res igio sempre um pouco
«soberanias», «tronos», «dominações», «príncipes do império homens, mesmo nos nossos d . tro~os e os so~eranos entre os
do ar», «elementos do mundo», «arcantes», «reis», «príncipes adulação que reina J°Ltnto d ias. emo-lo ate no espírito de
deste mundo», etc. os nossos go
pouco que nos impressionem E t vernos, por muito
Porquê um vocabulário tão vasto e, em aparência, hetero- de modo inevitável tud . s e segundo vocabulário apaga
géneo? Ao examiná-los, depressa se constata que estas deno- ooqueoprime· d .
Como definir numa , l iro estaca e vice-versa.
minações se dividem em dois grupos. Expressões tais corno - so pa avra 0 p d
zaçoes tão reais mas e . d ara oxo de organi-
«forças deste mundo», «reis da Terra », «principados», etc., afir- , , maiza as numa t A .
e, porem, eficaz? Se as f A . ranscendencia irreal
orças tem mmtos nomes, é por causa
126
127
.......... ----------~

*
deste paradoxo const~tutivo, desta :pt~:~::rd~ei::::r;~7: * *
linguagem humana nao consegue e O Império Romano é uma força por excelência no tmi-
ples e inequívoca. mca assimilou isto que o Novo verso onde surge o cristianismo. Portanto, tem por base um
A linguagem humana m : A n-ao dispõe dos recursos

assassínio fundador, um assassínio análogo ao da Paixão, uma
d . por consequenoa,
Testamento iz e, . . f de coligação que a falsa espécie de «linchamento». À primeira vista, esta doutrina
necessários para exp~1mir a ~rça 1 material não obstante parece inverosímil, absurda. O Império é de fundação dema-
transcendência possui no mtm. ore~', . ' siado recente e artificial, dizemos, para que possamos repor-
. d atureza imagmana.
a sua falsida e, a sua n · blema que se coloca aos tá-lo a uma coisa tão arcaica como o «assassínio h:mdador».
Ao não compreen~~.rem o~ ~~dernos lêem, voluntaria- E no entanto ... Conhecemos bastante bem os desenvolvi-
autores neotestamentanos, f - todo o pensa- mentos históricos que levaram ao nascimento do Império
nte
me ' no tema das forças, toda a supers iEçao, lhos
, dese1am
. tra r nos vange . Romano e ·.somos obrigados a constatar que coincidem de
mento magi, ·coque encon
modo aciritável com a ideia evangélica deste género de fun-
* dação.
* * Todos os sucessivos imperadores vão buscar a sua autori-
re associadas a Satanás, apesar dade à virtude sacrificial que emana de mna divindade da
Apesar de estarem sempd A deste as forças são suas
• qual usam o nome, o primeiro César, assassinado por muitos
de se basearem na tra~scen :n~ia o ~esmo sentido que homicidas. Por consequência, tal como qualquer monarquia
. , · não sao satamcas n
sagrada, o império assenta numa vítima colectivamente divi-
A

tnbutanas, mas . t r se à falsa transcenden-


Satanás. Longe de pron:rare~ JlU: ~·~a com Satanás, os ritos nizada. Há nisto qualquer coisa de tão perturbador, de tão
· 1 a de aspirarem a uruao rrus i , .A •
impressionante, que é impossível dizer que se trata de uma
oa, on0 e , 1 personagem a distancia,
esforçam-se por manter este ter.rnve pura e simples coincidência. Shakespear, que não era pioneiro
f da commudade.
por~~~nps:~:~~o~r:sso, qualificar-se as forç!s sirr:_ples~en!:
neste domínio, recusou aceitá-lo.
. , . o retexto de que sao «mas»' nao Em vez de minimizar este dado fundador, em vez de
de «diabolicas» e, com P . E' transcendência em apenas ver nisto uma medíocre propaganda política tal
lhes por sistema. a
deve desob e d ecer- . s ntmca sã estranhas a como fazem tantos historiadores modernos, o dramaturgo,
que assentam que é diabólic!. As for~: condená-las de olhos sem dúvida porque tem uma consciência aguda dos proces-
Satanás, é um fact~, mas nao s~~;do estranho ao Reino de sos miméticos e da maneira como se resolvem, e também
fechados, tanto mais que, num t ç-ao da ordem É o que porque é um leitor incomparável da Bíblia, centrou o seu
- · d· , eis à manu en ·
Deu~, sao ir: ispensav . a este res eito. Se as forças exis- Júlio César no assassínio do herói e definiu de forma mtúto
exphca a atitude da Igreia . A p [.. - desempenhar explícita as virtudes fm1dadoras e sacrificiais de um aconte-
. - ul , r ue tem uma iLmçao a
tem, diz Sa? Pa o, e po ~1s O a óstolo é demasiado realista cimento que ele associa e opõe à sua contrapartida republi-
e são autonzadas por De . Rp enda aos cristãos que cana, a expulsão violenta do último rei de Roma.
às forças ecom
para declarar ?uerra . ie lhes prestem honras por- Uma das passagens mais reveladoras é a explicação que
tes as respeitem e mesmo qt . f, César faz do sonho sinistro na noite que precede o seu assas-
es d . .. m de contrário à verdadeira e.
quanto que na a ex11a

129
128
sínio: o intérprete anuncia de modo explícito o carácter fun- «transcendental » A d .
:~:~~~~!:~i~5d::.:E~'.;;so :i:~:~ t~a~:v:l:-::::~~~jv: ~:~~
1
dador, ou melhor refundador, deste acontecimento:
A vossa estátua a cuspir por tantos canais o sangue obedeçam. ros da comurudade a respeitem e lhe
Em que tantos Romanos se banhavam a sorrir
Significa que a grande Roma beberá Por legíti.ma que seja a aproximação a Durkheim pa -
ce-me excessivo defü · , re
Vosso sangue regenerador, que grandes homens se empurrarão defendo N- ur-se como «durkheimianas» as teses que
Para nele tingirem as suas relíquias e insígnias. f . ao se ei:contra em Durkheim nem o ciclo mimé-
1co, nem o mecarusmo da vítima única .
(II, 2, 85-89) questão que passo a abordar . / ~en:, s~b1etudo, a
O culto do imperador é uma continuação do esquema entre as religiões arcaicas e o j~1~a~:o~~=~1~.nc1a insuperável
antigo do assassínio ftmdador. A doutrina imperial é, decerto,
tardia e, sem dúvida, demasiado consciente de si própria para
não comportar algum artifício, mas aqueles que a conceberam
sabiam com toda a evidência o que faziam. A sua obra foi efi-
caz: a História que daí resultou provou-o.

*
* *
Para se compreender melhor a concepção neotestamen-
tária das forças, pode-se compará-la à, na minha opinião,
melhor teoria antropológica do social, a «transcendência so-
cial» de Durkheim.
O grande sociólogo identificou nas sociedades arcaicas
uma fusão do religioso e do social que se aproxima do para-
doxo constitutivo das forças e dos principados.
A tmião das duas palavras, «transcendência » e «social»,
foi bastante criticada. Os espíritos apaixonados pelas ciên-
cias exactas acham que a união trai estas últimas em proveito
do religioso. Os espíritos religiosos, pelo contrário, vêm-na
como uma traição para o religioso em proveito do cientismo.
Antes de se criticar, é preciso, primeiro, tentar compreen-
der o esforço de um pensador que procura ir além das abs-
tracções gémeas dos teóricos do seu tempo e do nosso. Faz
o que pode para aceder ao problema que coloca no estudo
das sociedades a combinação de imanência real e de força

130
131
TERCEIRA PARTE
'

O TRIUNFO DA CRUZ

'
-------------------
IX

SINGULARIDADE DA BÍBLIA

Actualme~te, os críticos dos Evangelhos já não procuram


demonstrar que os Evangelhos e os mitos são análogos,
idênticos, intermutáveis. Longe de os perturbarem, as dife-
renças enchem-nos de satisfação e nada mais vêem. São as
semelhanças que, pelo contrário, são suprimidas.
Se só existirem diferenças entre as religiões, estas formam
apenas uma (mica e vasta indiferenciação. Deixa de poder
dizer-se se são mais verdadeiras ou mais falsas do que um
conto de Flaubert ou Maupassant. Entre duas obras de fic-
ção, é absurdo considerar-se uma mais verdadeira do que
outra.
Esta doutrina seduz o mtmdo contemporâneo. As dife-
renças são objecto de uma veneração mais aparente do que
real. Dá-se a impressão de as levar mtúto a sério, ao passo
que, na realidade, não se lhes atribui a menor importância.
As religiões passam todas por puramente míticas, mas cada
uma à sua maneira, que é, obviamente, inimitável. Todos são
livres de compararem o que lhes agrada no supermercado
do religioso. Gostos e cores não se discutem.
Os velhos etnólogos anticristãos pesavam de outra maneira.
Tal como os cristãos, acreditavam nwna verdade absoluta.

135
Para demonstrarem a vaidade dos Evangelhos, ac~avam por
bem revelar, sabemo-lo, que estes últi~os se pareciam dema- atacarem os Evangelhos. Se invertessem ó processo, acha-
vam que estavam a trair a própria causa.
. d m os mitos para não serem miticos.
sia Assim
o co tal como eu, procuravam d emir f. · o d a do comum . Os mitos expõem o mesmo processo mimético que os
, . 'e ao evange'l.lC o . Desei·avam-no de tal .forma consi- Evangelhos, certamente, mas, a maior parte das vezes, de
ao mihco . .
forma tão obscura e baralhada que, se nos basearmos apenas
derável que nenhuma diferença maior pudesse mtroduzu~e,
neles, não chegamos a dissipar «as trevas de Satanás».
se assim podemos dizer, entre os mitos e os Evan~~lhos. ra
Não parto dos Evangelhos para favorecer de modo arbi-
deste modo que tentavam demonstrar o carácter rmtico destes
trário o cristianismo e rejeitar o paganismo. A descoberta do
últimos. d b · que ciclo mimético nos mitos, longe de confirmar a velha crença
Estes investigadores laboriosos nLmc~ esco nr:m 0
dos cristãos na singularidade absoluta da sua religião, torna-
procuravam, mas, na min · h a opinião tmham razao em lh se a, aparentemente, mais improvável, mais indefensável que
o b s t.inare m . O dado comum aos mitos e aos Evange os
h • , h _
mmca. Se <?S Evangelhos e os mitos narram o mesmo tipo de
,· t bemo-lo· é o ciclo mimético ou «sataruco», e a sequen crise mimética, resolvido pelo mesmo tipo de expulsão colec-
exis e, sa · . d . d ·olência colec-
cia tripartida, primeiro, da cr.1s~, epo1s, a vi tiva, concluído em ambos os casos por uma epifania religiosa,
tiva e por fim, da epifania religiosa. . d' repetida e comemorada por meio de ritos de estruturas rntúto
P;radoxalmente, era o seu anticristianismo que rmpe ia semeU~antes, éomo poderia, então, existir entre a mitologia e o
os velhos etnólogos de descobrirem todas as se_me_lh~nç~s cristianismo a diferença que conferiria à nossa religião a sin-
entre os Evangelhos e os mitos. Mantinham-nas a distancia, gularidade, a unicidade que sempre reivindicou?
sen1 d uvi, 'da com medo de serem novamente abocanhados d Decerto, no cristianismo, os sacrifícios não são sangren-
pelos Evangelhos. Ficariam claramente desonra os ,selos tos. Já não há imolação real. Por todo o lado se encontra a
tivessem utilizado tal corno eu fiz nos três primeiros capi~1 os. não-violência que observámos no capítulo IV, entre o apedre-
Os Evangelhos são mais transparentes do que os ~~tos e jamento fomentado por Apolónio e aquele outro impedido
espalham a transparencia a sua vo ltae'. pois são exphotos
h • ,
. ci-a por Cristo.
eito do mimetismo, primeiro conflitual, depois recon . O verdadeiro cristão não se contenta com esta diferença.
resp Ao revelarem o processo mime
liador. · , t.ico, pe11etrarn a opaci-
. O cristianismo pode surgir ainda como um processo mítico
dade dos mitos. Pelo contrário, se nos basearmos nos mitos, atenuado, suavizado, mas inalterado no essencial. A atenua-
nada aprendemos sobre os Evangelhos. . , .. ção e a suavização são manifestas em mLútos cultos míticos
tardios .. .
Após termos identificado o ciclo rn1~er~co graças ao~
Evangelhos, encontrárno-lo facilmente, pnmeuo, no apedre No plano da génese, não vemos, de momento, o que
·arnento de Apolónio e, em seguida, em todos os cu~tos poderia diferenciar o evangélico do mítico de uma outra
~tico-rituais. Doravante, sabemos que as CL~tu:a.s
arcaicas forma que não a superficial, a insignificante.
consistem, no essencial, em gerar o ciclo mirn~t=co co~ .ª Este resultado teria agradado aos velhos etnólogos anti-
ajuda dos mecanismos vitirnários e das s~1as re~etiçoes sacrifi~ cristãos. Desde há alguns séculos, mLútos cristãos têm vindo
ciais. Os velhos etnólogos segLúarn o rnetodo mver~o. Julga a sentir o enfraquecimento do sentimento íntimo de uma
varn-se moralmente obrigados a basearem-se nos mitos para singularidade irredutível da sua religião, para o qual contri-
buíram o comparativismo antropológico e a visão mítica do

136
137
refin!ct~~:ente 1
distin?ue de um mito. Assim, não serão muito sim
cristianismo. Aliás, é por este motivo que alguns cristãos um mito de morte e ressurreição talvez mais
fiéis desconfiam do meu trabalho. Estão convencidos de que mm tos outros, mas parecido no fundamental? que \
nada de bom para o cristianismo pode vir do comparati-
vismo etnológico. *
* *
*
Em vez de fazer urna abord ª0 d.
* * vou dividi-lo em duas f ª ern uecta do problema,
ases, recorrendo para isso ao l"
A questão é de tal forma importante que vou defini-la, ao qual os verdadeiros cristãos estão tã l" d ' ivro
resumidamente, uma segunda vez: quando comparamos de Novo · Testamento, o chamado A n t'igo .,.,.lestamento
o iga os como ao
a B:i-1·
maneira concreta uma epifania religiosa que os Evangelhos eb raica. Por razões tácti
hlongo ' Iu ia
da exposi ão cas q~1e se mostrarão evidentes ao
consideram falsa, mítica, satânica, à epifania religiosa vista
como verdadeira, não vemos diferenças estruturais. Em ambos desvio leva~-me-~ ao' cceorneçdare1 pel~ Bíblia, e este aparente
rne a questao
os casos, estamos perante ciclos miméticos, que resultam em O dado comum ao 'f ·
tico, encontra-se mi ico e ao evangélico, o ciclo rnirné
\ bodes expiatórios e ressurreições. mimética e , apenas e~ parte nos relatos bíblicos. A crise
O que é que permite ao cristianismo definir as religiões a morte colechva da víti -
não o terceiro momento d . 1 . rn~ est~o presentes, mas
l
pagãs como satânicas ou diabólicas e excluir-se a si mesmo o oc o. a epifarua r r · j
desta definição? Uma vez que o presente estudo pretende surreição que revela a div·m d a d e d a vitima.
,. e ig10sa, a res-
ser tão objectivo e «científico>> quanto possível, seria incor- Apenas os dois prirneir d . _
recto aceitar sem questionar a oposição evangélica entre na Bíblia hebraica E' be os .dº cic1o estao presentes, repito-o,
· rn evi ente ql ,·
Deus e Satanás. Se não se pode mostrar ao leitor moderno o ressuscitam:
. ntmca há De us vi una o, nem vítima d" ntmca
.t. d ie as vitimas . . d aí
que torna esta oposição real, concreta, este rejeitá-la-á por ser Assim, entre a Bíblia hebraic . , IVImza a.
capital para o problema do u:le:s mitos ha esta d_iferença
~onot~~s:~1b~~~~- ~ao p~de
enganosa, ilusória.
Neste momento, os ciclos miméticos que geram as divin- suspeitar-se que o divino, no
dades míticas e o ciclo que resulta na Ressurreição de Jesus e gerado pelos processos viti , . . . , enha sido
na afirmação da sua divindade parecem equivalentes. no politeísmo arcaico. manos que, visivelmente, o geram
Em suma, poderia ser que a distinção entre Deus e
José, ao mais conhecido d:~deo reato ~íblico, a história de
Vamos comparar um a d 1
' Satanás fosse uma ilusão produzida pelo desejo dos cristãos
de singularizarem a sua religião, de se proclamarem os úni- resultados facilitar-nos a-o s os mitos, o de Edipo. Os
- o acesso ao probl .
cos detentores de uma verdade estranha à mitologia. É esta a para nós: a divindade d J C . . __ema essenoal
p · . . . e esus nsto na rehg1ao cristã
acusação feita nos nossos dias ao cristianismo, não só pelos nme1ro, venficamos d . . . .
não cristãos, mas por muitos cristãos conscientes das seme- do ciclo mimético . que 0 ~ ois pnmeiros momentos
nos dois text - a cnse e a v10lência colectiva - figuram
lhanças entre os Evangelhos e os mitos. os.
Urn.a vez que o ciclo mimético nos Evangelhos contém os O mito e o relato bíblico começam
três momentos dos ciclos míticos, a crise, a violência colec- por uma infância dos dois he ro1s.
, . Em ' ambos
quer um os quer
casos,outro,
esta
tiva e a epifania divina, de forma objectiva, repito-o, nada os
/
139
138
primeira parte consiste numa crise no seio das duas .famíli~~' clarividência tira o I:erói da prisão (o que entendo como urna
resolvida por meio da expulsão violenta dos d01s hero1s expulsão) e protege o Egipto das consequências da fome.
ainda crianças, ambos banidos pelas suas fanúlias. O faraó faz de !osé o seu primeiro ministro. O seu grande
No mito, é um oráculo que precipita a crise entre ~s pais talento propuls10na-o para o topo da escala social exacta-
e o filho recém-nascido. A voz divina anuncia que Edipo, mente como aconteceu com Édipo. '
mais cedo ou mais tarde, matará o seu pai e casará com a Por causa das exp~ilsões iniciais, Édipo e José surgem, -r ~) •
mãe. Tomados pelo pavor, Laio e Jocasta decidiram matar o ambos, ~o~o estrangeiros, sempre um pouco suspeitos, no
seu filho. Édipo escapa por pouco à morte, ma s faz-se expul- palco pr~opal d.as suas façanhas, Tebas para Édipo, o Egipto
sar pela sua própria família. para Jose. Os dois percursos destes heróis são uma alternân-
No relato bíblico, é a inveja dos dez irm.ãos que faz: desen- cia de integrações brilhantes e de expulsões violentas. Por
1.1
cadear a crise. O ponto de partida é diferente, mas o resul- consequência, entre o mito e a história bíblica, as numerosas
tado é ;mes~o . Os dez irmãos querem matar José, mas, por semelhanças essenciais fazem um todo com os temas sobre
fim vendem-no como escravo a uma caravana de partida os quais sabemos já que constituem um dado comum ao
par~ o Egipto. Em suma, exa~tainente como Édipo, José escapa mítico e ao bíblico. São sempre processos miméticos de cri-
por pouco à morte e é expulso pela sua própria famíli~. ses e de expulsões violentas, iguais aos que encontramos em
Ne.s tes dois começos ~aral~los; .reconhecemos f~cilmei:'-t.e todos os textos que estudamos.

'.' t mário.queríamos,
o que uma cnse mimetica e um mecamsmo v1h-
Em ambos os casos, uma comunidade reúne-se de
O mito e o relato bíblico estão muito mais próximos um
d~ outro, parecem-se muito mais do que a maior parte dos
forma unânime contra um único dos seus membros que é lei~ores pode supor. Será caso para dizer que em nada se
\ violentamente expulso. opoem no essencial? Poderemos considerá-los como equiva-
No corpo dos dois textos, e:i-contra-se um segundo exem~lo lentes? Muito pelo contrário. A identificação do dado comum
de crise seauido,
o
no caso de Edipo, por ,
uma nova expulsao.
' permit: aperceber. entr~ o bíblico e o nútico uma divergência
Ao resolver o enigma da Esfinge, Edipo escapa as garras irredut1vel, um abismo multrapassável.
do monstro e, ao mesmo tempo, salva a cidade inteira . Para O mito e a história bíblica opõem-se na questão decisiva
o recompensar, Tebas faz dele o seu rei. Mas este triunfo não colocada pela violenta colectiva, a do seu ftmdamento da
é definitivo. Algtms anos mais tarde, sem que alguém sou- sua legitimidade. N_o mito, as ex12ulsões do herói são se~ re
besse, incluindo o principal interessado, as predições do"orá- JUStificada . No rerãtõ'bíb~ iS"so nunca acontec;-A violên- J
culo realizaram-se. Édipo matou o pai e desposou a mãe. eia colectiva é injustificável. - - - -
Para impedir os Tebanos de acolherem entre si um filho par- Laia .e Jocasta têm excelentes razões para se desfazerem
ricida e incestuoso, Apolo envia-lhes uma peste que os de ~m filho q~e, mais cedo ou mais tarde, massacrará o pri~
obriga a expulsarem Édipo uma segunda vez. i::eiro e casara com a segunda. Os Tebanos, também eles,
Voltemos a José. Para vencer dificuldades no Egipto, o tem excelentes motivos para se desfazerem do seu rei. Édipo
herói explora o mesmo tipo de talento que Édipo, a decifra- c?meteu re~lmente as infâmias profetizadas pelo oráculo e,
ção dos enigmas. São sonhos o que interpreta, primeiro os de amda por orna, trouxe a peste a toda a cidade!
dois oficiais do reino, depois o do próprio faraó, o famoso No _:nito, a vítima _es tá sempre errada e os seus persegtú-
sonho das sete vacas gordas e das ete vacas magras. A sua dores tem sempre razao. Não Bíblia dá-se o caso inverso: José

140 141
tem razão uma primeira vez contra os irmãos e duas vezes
~ naturez
J?íb~ic? s~ig~re
sistemática da oposição entre o ·
que este último obedece a uma ins ira _ão
relato) 0
'.~
seguidas contra os egípcios que o prendem. Tem razão con-
antunit~logica . E esta. inspiração revela, sobre os mitos, qual-
tra a esposa lúbrica que o acusa de ter querido violá-la.
quer. coisa de essencial que continua invisível fora da pers-
Atendendo a que o marido desta mulher, Putífar, o senhor de
pectiva adoptada pelo relato bíblico. Os mitos condenam
José, trata o seu jovem escravo como um verdadeiro filho, a
sempr: todas as vítimas isoladas e universalmente oprimi-
acusação que pesa sobre José lembra, pela sua gravidade, o
das .. ~ao fruto das multidões sobreexcitadas, incapazes de ver t\ '~11 ·.
incesto de que Édipo foi culpado.
Há aqui mais uma convergência entre os dois relatos que, e criticar a própria tendência para expulsarem e massacra- "' "'"'
tal como sempre acontece, resulta na mesma divergência rem os seres se~ defesa, bodes expiatórios acusados sempre
radical. Os universos míticos, e o tmiverso moderno ue os d?s mesmos cnmes estereotipados: parricídios, incestos for-
Rrolonga- (a psicanálise, por exemplo), tomam as acus~ ~cações bestiais e outras más acções horríficas cuja reco~rên­
míticas por legítimas. Toda a gente é mais ou menos culpada oa contínua e inverosímil denwtcia a absurdidade.
de parricida e de incesto, quanto mais não seja ao nível do
*
desejo. * *
O relato bíblico recusa levar a sério este ti o de acusação .
Reconhece a obsessão característica as multidões histéricas No e~isódio se~uinte, dá-se um ajuste de contas pacífico
contra todos aqueles que, por tudo e por nada, se tornam en,tre Jose e os seu irmãos. A história de José prossegue para
suas vítimas. Não só José não dormiu com a Putífar, como alem deste ponto, mas este episódio é a verdadeira conclu-
resistiu heroicamente à sua sedução. É ela a culpada, e atrás s~o da narrativa pela qual nos interessamos, a de José ven-
dela a multidão egípcia, dócil carneirada mimética que se dido pelos irmãos, expulso pela própria família. Vamos ver
entrega cegamente às expulsões de jovens imigrantes isola- qAue _con.firm.a de forma inequívoca a oposição bíblica à vio-
dos e impotentes. lencia colectiva dos mitos.
A relação dos dois heróis com as duas calamidades que . C_?meçaram os sete anos das vacas magras e os dez meios-
se abatem sobre os seus dois países de adopção repete e -irmaos de José passam fome em sua casa, na Palestina.
resume quer as múltiplas convergências dos _?-ois textos quer Partem, então, para o Egipto à procura do que viver. Não
a sua divergência única, porém, decisiva. Edipo é respon- reconhecem José sob as belas vestes de primeiro-ministro
sável pela peste e nada pode fazer para a curar, a não ser dei- mas José, sim, reconhece-os e, sem se dar a conhecer inter~
xar-se expulsar. José, além de não ser responsável pela fome, roga-os, discretamente, sobre Benjamim, o irmão mai~ novo
gere a crise com tanta habilidade que protege o Egipto dos que deixaram em casa com medo de que alguma coisa lhe
seus efeitos nocivos. acontecesse e para que o seu velho pai, Jacob, não morresse
A questão que se coloca é, invariavelmente, a mesma. de tristeza.
Será que o herói merece ser expulso? O mito responde sempre José dá trigo a todos os meios-irmãos, ao mesmo tempo
«sim» e o relato bíblico responde «não, não e não». O per- q_ue os previne de que, se voltassem uma segtmda vez pres-
curso de Édipo acaba com uma expulsão cujo carácter defi- sionados pela fome e não trouxessem consigo o Benjamim
nitivo confirma a sua culpabilidade. O de José acaba com um nada obteriam. '
triunfo cujo carácter definitivo confirma a sua inocência.

143
142
Como a fome se prolongava, os dez acabam por voltar ao *
Egipto, desta vez acompanhados por ~enjamim. J~sé volta a * *
dar-lhes trigo, mas esconde, por meio de um cnado, ~ma Poderei ser acusado de falsear a minha análise em favor
taça valiosa no saco de Benjamim. Acusando-os, em. seguida, das minhas teses e do relato bíblico? Não creio. Se o mito e o
de que lhe haviam furtado aquele objecto, manda revi~tar os relato bíblico fossem, uin e outro, obras fictícias e fantasistas,
onze irmãos e quando a taça é encontrada, anunoa que «narrativas» no sentido que lhes dá a crítica pós-moderna, a sua
prende apenas o culpado, Benjamim, e autoriza os dez irmãos discordância a respeito das duas vítimas, Édipo e José, poderia
mais velhos a voltar tranquilamente a casa . mlúto bem nada significar. As divergências poderiam estar
Em suma, José submete os seus irmãos culpados a uma enraizadas no capricho individual dos dois autores, na pre-
tentação que .b em conhecem, pois já lhe haviam sucu~1bido, ferência, de um, pelas histórias que «acabam mal» e, do
a de abandonarem impunemente o mais novo e o mais fraco outro, pelas que «acabam bem». Os tex tos são incompreensí-
veis Prote\lS, repete-se incansavelmente, e não se pode reduzi-
deles. Mais uma vez, nove irmãos cedem à tentação. Apenas
-los a uma ·temática estável.
Judá resiste e oferece-se para ocupar o lugar de Benjamim.
Sempre desejosos por aniquilarem qualquer sentido, os
Em recompensa do que José perdoa, chorando, a todo o grupo
nossos desconstrutivistas e outros pós-modernos recusar-se-
e acolhe a família inteira, incluindo o seu velho pai, Jacob, no
ão a aceitar que os mitos e os tex tos bíblicos encarnam duas
seu país de adopção. . . . posições opostas sobre a questão da violência colectiva.
Este último episódio é um regresso meditahvo ao tipo de Ao seu objec'tivo de não concordar, respondo que a
violência colectiva que tanto obceca o relato bíblico como os recusa ,das expulsões das quais José é alvo não pode ser for-
\ mitos, embora com resultados inversos. O triunfo final de tuita. E, forçosamente, uma crítica deliberada da atitude
José não é um insignificante «happy end », mas, sim, um rrútica, não só por causa do último episódio, mas porque este
meio de pôr, de modo explícito, o problema das expulsões se insere no contexto do dado comum ao mítico e ao bíblico,
violentas. Sem nur:ca sair ~o ~â~bito da narra~iva, ~ relat? exactamente o que ternos vindo a analisar há muito nos ante-
) bíblico faz, a respeito da violenoa, uma reflexao CUJO radi-
riores capítulos, antes de o encontrarmos nestes dois relatos.
calismo se revela no facto de à vingança obrigatória se subs- Há nisto uma teia de correspondências demasiado cerrada
tituir o perdão, o único capaz de acabar de uma vez por todas para ser obra do acaso. As múltiplas convergências garan-
1 a espiral das represálias, às vezes interrompida, decerto, _P?r tem a significação da única, mas decisiva, divergência. É, exac-
expulsões unânimes, mas de uma forma se~pre temp_orana. tarnente, uma recusa sistemática das expulsões núticas o que
Para _perdoar à multidão do~ãos inimi .os, Jose nada o relato bíblico nos mostra.
mais rede do que um único sinal de arrependimento, aquele A comparação do mito com a história de José revela, no ~ ~ \,f>
que udá lhe dá. . ., autor bíblico, yma intenção deliberada de criticar, não o pró- ví'~~·~º
O relato bíblico acusa os dez irmãos de odiarem Jose sem prio mito de Edipo, sem dúvida, mas um ou mais mitos que, lAY"' .>.. ,?"' ...
uma razão válida, de sentirem inveja por causa da sua supe- provavelmente, não conhecemos e que deviam assemelhar-se
rioridade intrínseca e das provas de amor que esta lhe gran- ao mito de Édipo. O relato bíblico condena a tendência geral
jeia da parte de Jacob, o pai de todos eles. A verdadeira causa dos mitos para justificarem as violências colectivas, a natu-
da expulsão é a rivalidade mimética. reza acusadora e vindicativa da mitologia.
\

145
144
Não se pode pensar a relação entre o mito e o relato bíblico
Ou bem. que se sucumbe ao contágio dos impulsos e se fica
só em função da divergência acerca das ví~mas e do~ carrascos,
na mentira com os mitos, ou bem que se resiste a esse mesmo
da mesma forma que não se pode fazê-lo so .em.~mç~o da~ con- contágio e se está na verdade com a Bíblia.
vergências. Para se chegar à verdadeira sigruficaça~o, ~a que
A ~stória de José é uma recusa das ilusões religiosas do
pensar a divergência no contexto de todas ~s convergenci~s.
paganismo. Revela uma verdade universalmente humana
,.. Nos mitos, assim como no relato bíblico, as expulsoes de
que não é relativa nem à referencialidade ou não referencia-
indivíduos julgados prejudiciais des~mpen~am um papel con-
{ /1
siderável. Os mitos e o relato bíblico estao de acordo nes_te
l~dade ~o _r~lato, nem a um sistema de crenças, nem ao pe-
~ t ! ponto, mas os mitos são incapazes de criticar est: papel, ~ao
~1odo histonco, nem à linguagem, nem ao contexto cultural.
... i E, portanto, absoluta. E, no entanto, não é urna verdade reli-
,f 1
incapazes de se interrogarem acerca ~a expulsao col,ectiva giosa no sentido estrito do termo.
enquanto tal. Pelo contrário, o relato bí?l~co ~tmge este ruve~ de
Será que a história de José não acusa uma parcialidade a
questionamento e afirma, resoluto, a m1ustiça ?as exi::ul.soes.
Longe de demonstrar a equivalência do mito de Edi~o e favor do jovem judeu separado do seu povo, isolado no meio
.d os pagãos? Mesmo se admitíssemos perante Nietzsche e o
da história de José, a descoberta do dado comum, o ci.clo
mimético, permite-nos isolar as diferenças inúteis ?º
di!e- Max Weber do Judaísmo Antigo que o relato bíblico favorece
sistematicamente as vítimas, sobretudo se forem judias, não
rencialismo contemporâneo e concentrarmo-nos na divergen-
cia essencial entre aquilo a que é preciso chamar a verdade poderíamos dáí concluir que seria melhor pôr a Bíblia e os
bíblica e a mentira da mitologia. mitos no mesmo plano, com o pretexto de que os seus pre-
con~eitos contrários são equivalentes.
- Esta verda e transcende a uestão da referencialidade do
relato, da realidade ou da não realidade dos acontecime~to~ _ E cer,to que o povo judeu, repelido de expulsão em expul-
que nos são narrados. O que faz a verdade deste relato na? e ~ao, ~s~a em boa posição para pôr os mitos em quest&o e
a sua correspondência possível a um dado extratextt~al, e a identificar mais depressa do que tantos outros povos os
sua crítica das expulsões míticas, fo~ços~n:'-ente pertm,er:te, fenómenos vitimários dos quais é, com frequência, a vítima.
pois estas expulsões são sempre tnbutanas de contag.10s Dá p.ro_:ras de uma perspicácia excepcional a respeito das
miméticos e, por consequência, não podem ser fruto de JUl- ~ultidoes perseguidoras e da sua tendência para se pola-
. . . . . 1 nzarem contra os estrangeiros, os isolados, os enfermos, os
gamentos racionais, imparciais . .
Longe d~ ser menor, a divergência ~n~re o relato bíbhc~ e estropiados de todas as espécies. Esta vantagem, paga cara,
0 mito de Edipo ou qua~quer outro e tao grand~ que nao e~ nada diminui a tmiversalidade da verdade bíblica; per-
pode haver outra maior. E a diferença entre um uru~erso em rrute-nos ver esta verdade como relativa.
que a violência arbitrária triunfa sem ser reconhecida e, ~m O ressentimento sempre invocado por Nietzsche não pode,
universo no qual e§_sa mesma violêJJ,Cia é elo c~ntra~10, tal como o «chauvinismo» ou o «etnocentrismo» judeu, en-
iden'ti&.acfa, denunciada_$, finalmente, perdoada. E a dife- gendrar a história de José. A bíblia recusa demonizar-divini-
rença entre uma verdade e uma mentira, ambas absolutas. zar as vítimas das multidÕes sanguinárias. Os verdãdeiros ·
responsáveis das expulsões não são as vítimas, mas, sim, os
1 É preciso não se concluir disto que tenho a história de José por necessada- seus perseguidores, as multidões ou ajtmtamentos atormenta-
mente fictícia, imaginária. Digo apenas que, mesmo se o fosse, nem por isso
seria menos verdadeirn do que o mito de Édipo .
?º~ pelos impulsos miméticos, os irmão invejosos, os Egípcios
lffiltadores, os Putífares enfurecidos.

146
147
Reconhecer 0 tipo de verdade própria do relato bíblico textos são os primeiros, na história hmnana, a dar a palavra
não é soçobrar no dogmatismo, no fa1'.ati~n:-o e no e~o.cen­ às vítimas típicas da mitologia, acossadas por multidões his-
trismo; é dar provas de verdadeira obiect1v1da~e. Ha a~~a téricas. As matilhas humanas perseguem-nas, insultam-nas
pouco tempo, na nossa sociedade, a pal~vra «<nuto» era s1~0- de forma grosseira, armam-lhes ciladas e cercam-nas com o
nimo de mentira. Depois, a nossa mtell1gentsia.fez o poss1vel
para reabilitar os mitos às custas do bíblico, m~s, 1:-él lmgua-
gem popular, «mito» significa sempre n1entira. E a lmguagem
objectivo de as lincharem.
Em vez de se calarem, as vítimas maldizem amaldiçoam
longa e ruidosamente os seus perseguidores. A sua angústia
1
popular que está certa. exprime-se com urna violência enérgica e pitoresca que tem
o dom de escandalizar e irritar as multidões mais modernas
* do que as dos salmos, as dos exegetas politicamente correctos.
* * Os nossos infoneros profissionais da compaixão deploram a
1 Na Bíblia, nem todas as vítimas têm tanta sorte com_o José. falta de cortesia que os linchados demonstram, nos salmos,
Nem sempre conseguem escapar aos seus persegu1do~es
e tirar partido dél perseguição para melhorar a sua_sor~e.
A mélior parte das vezes, morrem. Uma ~ez que esta.o sos,
abandonadas por todo , rodeadas por mmtos persegmdores
-- os ----
para com · linchadores. A única violência gue escandaliza
~-- -
~stes «defens es dos oprimidos» é a violência verbal das
. ----~
vítimas na altura de serem linchadas.
A violência real, física, dos próprios carrascos passa des-
poderosos, estas vítimas são des t~túdas. . ,. .· percebida aos olhos dos nossos puritanos da violência; tornam-
A história de José é feliz, «opt1rrusta », p01s a v1hma tnunfa -na por nula e inexistente. Com eles, aprendemos que apenas
sobre todos os seus inimigos. Pelo contrário, outros relatos os textos são violentos. Com efeito, escapa-lhes o essencial.
bíblicos são «pessimistélS», mas isso não os impe~e. de teste: Estão completamente mergulhados na desrealização textual.
munharem a favor da mesma verdade que a histona de J?se Os nossos métodos modernos estão embebidos nesta desrea-
e de se oporem ao mítico exactamente_ da mes~a maneir~ . lização textual e o «referente», por ouh·as palavras, tudo o que
A especificidade do bíblico não consiste em pmtar a r~ah­ é realmente importante nos sah11os, foi suprimido, ocultado,
dade com cores alegres e minimizar a força do mal, consis te, eliminado. Os críticos consternados pela «violência dos sal-
sim, em interpretar, de forma objectiva, os todos-contra-,~ mos» estão completamente enganados. Escapa-lhes o essencial.
miméticos em identificar o papel desempenhado pelo cont~gio Não prestam qualquer atenção à -Lmica violência merecedora
nas estru~uas de um universo em que ainda só existem rrut~s. de se levar a sério, da qual se queixam os narradores. A ori-
No univer 0 bíblico, os homens são, em regra geral, tao
ginalidade extraordinária dos salmos, talvez os mais antigos
1 i violentos quanto nos universos míticos e abundam os m:ca-
t • textos da história humana a darem a palavra às vítimas em
( nismos vitimários. Em contrapartida, a diferença esta na
vi' \ Bíblia, na interpretação bíblica desses fenómenos.
vez de aos seus persegttidores, de nada os faz desconfiar.
O que os salmos encenam são situações «míticas», ta l
* como a história de José, mas fazem-nos pensar num homem
* * que teria a ideia extravagante de vestir do avesso um casaco
de peles e que, em vez de irradiar luxo, calma e voluptuosi-
o que se aplica a José aplica-se, sob diversas formas, aos dade, nos mostrava a pele ainda sangrenta de animais esfo-
narradores de um grande número de salmos. Penso que estes

149
148
lados vivos. Veremos, então, que é à morte de criaturas vivas espiritual em que o carácter maciço, irresistível, da ilusão
que devemos todo este esplendor. mítica protegia as sociedades arcaicas de qualquer conheci-
mento susceptível de as perturbar.
* Não pode dizer-se que a Bíblia tenha restabelecido uma
* * verdade falseada pel.os mitos. Não pode dar-se a impressão
O Livro de Job é um imenso salmo, e o que tem de único de que esta verdade existisse já, à disposição dos homens,
é a confrontação de duas concepções do divino. A concepção antes de a Bíblia a ter formulado. Nada disso. Antes da )
J1...., k 5 ..J
pagã é a da multidão que, durante muito tempo, venerou Bíblia, havia apenas mitos. Antes do bíblico, ninguém era ) ; \, 1
Job e que, de repente, por um capricho inexplicável, pura- capaz de pôr em dúvida a culpabilidade das vítimas conde.:.
mente mimético, se voltou contra o seu ídolo. Esta concep- nadas pelas comtmidades unânimes.
ção vê na sua hostilidade, mais do que na sua idolatria, a A inversão da rela ão de i_!:'.ocência e de culpabilidade ~ 1,p\,
vontade do próprio Deus, a prova irrefutável de que Job é entre .
vítimas
,_ ,
e carrascos é a pedra ano-tlfur
o
a inspiração 1"""'"(<-\)
r..1'"1b

culpado e de que deve confessar a sua culpabilidade. A mul- bíbhca .. Nao e uma das permutações binárias bonitinhas e e' '""'
- I ..)
tidão apega-se a Deus e, por intermédio dos três «amigos» insignificantes com que se deleita o estruturalismo etno-
que enviou para junto dele, esforça-se, aterrorizando-o, por lógico, o cru e o cozido, o duro e o mole, o doce e o salgado,
obter o seu consentimento mimético do veredicto que o con- trata-se do problema crucial das relações humanas sempre
dena, tal como nos processos totalitários do século xx que perturbadas pelo mimetismo causador de rivalidade2.
são o ressurgimento do paganismo tmanimista. Uma vez que se apreende a crítica dos impulsos miméti-
Este super-salmo mostra, de forma admirável, que, nas cos e dos seus resultados, do princípio ao fim da Bíblia, com-
culturas míticas, o divino e a multidão formam um todo, e é preende-se o que há de roftmdamente bíblico no ri cípio
por esta razão que a expressão primordial do culto é o lin- talmúdico muitas vezes citado por Emmanuel Lévinas: «Se toda
chamento sacrificial, a dilaceração dionisíaca da vítima. a gente se user de acordo para conde!!!!:r ~usat!:0 libertem-no, J
O mais importante no Livro de Job não é o conformismo p_ois deve estar inocente. » A w1animidade nos grupos humanos \ ~~ 1
homicida da multidão, é a audácia final do próprio herói raramente guarda a verdade; é, a maior parte das vezes, um
. que vemos sempre hesitar, vacilar, depois, finalmente, recu- fenómeno mimético tirânico. Assemelha-se às eleições tmâ-
nimes dos países totalitários.
perar e triunfar, subtrair Deus ao processo persecutório para
fazer deste o Deus das vítimas e não dos perseguidores. É o
*
que faz Job quando, por fim, afirma: «Eu sei que o meu Defensor
* *
está vivo.» (19, 25)
Em todos estes textos, já não são os carrascos que têm Na história de José, as razões que, no mito, levariam os
razão, como acontece nos mitos, são as vítimas. As vítimas perseguidores a divinizarem a própria vítima são ainda detec-
são inocentes e os culpados são os carrascos, culpados de per-
seguirem vítimas inocentes. 2 Sobre as relações entre o pensamento que se aqui exprime e as ciências do
A Bíblia mostra, a respeito das violências miméticas, um Homem, ver François Lagarde, René Gimrd 011 ln christinnisntion des sciences
/111111nines, Peter Lang, Nova Iorque, 1994, assim como Lucien Scubla, Lire
cepticismo que nunca antes pudera insinuar-se num tmiverso Lévi-Stm11ss, Odile Jacob, 1998.

150 151
táveis, p arece-me, nos dez irmãos, no momento do seu reen- fíci~ dos primogénitos a imolação dos animais e, mais tarde,
contro com a sua vítima, toda aureolada d e esplendor faraó- cnhca mesmo os sacrifícios destes 0ltimos.
nico. Ao revelar o mecanismo vitimário, a Bíblia faz-nos com-
No momento em que os dez irmãos expulsam José, são preender o tipo de universo que o politeísmo projecta à suél
tentados, d esconiia-se, a demonizá-lo. Quando o encontram, volta . Par:ce s uperficialmente mélis h armonioso do que 0
sentem-se tentados a divinizá-lo. Afinal, es te faraó é um deus n osso, pois as rup turas de h armonia saldarn- se, em geral,
vivo, do qual José es tá tão próximo quanto possível. p elo. desencadeamento de um m ecanismo vitim.ário e pelo
No entanto, os dez irmãos resis tem à tentação da idolatria; surgimento de um novo d eus que impede a vítima de apare- 1
são judeus e não divin_izam as cria turas humanas. Os heróis cer enquanto tal.
míticos têm sempre q ualquer coisa de rígido e de hierá tico . A multiplicação_ indefinida dos deuses arcaicos e pagãos
Primeiro, são demonizéldos, depois, divinizados. José é huma- p assa, nos nossos dias, por uma sim pá tica fa ntasia uma cria-
nizad o, banha-se numa lumin osidade calorosa, impen sável ção, gra tuita - «lúdica », d evo dizer, uma vez qu: a palavra
na mitologia. Não é urna ques tão de «talento literário», o génio es ta n a moda - d a qual o monoteísmo d emasiado ério n ada
do texto é a sua renúncia à idolatria. lúdico, se esforçaria, mald osamente, por nos privar. N; recali-
A recusa de divinizar as vítimas é inseparável de um d_ade: longe de serem lúdicas, as divindades arcaicas e pagãs
outro élSp ec to d a revelação bíblica, o mais importante de sao fune~res. Antes de dar demasiada confiança a Nietzsche,
todos eles: o divino já não é vitimado . Pela primeira vez n a a n ossa epoca d everia ter reflectido sobre uma das frases
história humana, o divino e a violência colectiva afastam-se m ais fulgurantes de H era clito: «Dioniso é a mesma coisa que
um do outro. Hades.» E~ suma, Dioniso é a mesma coisa que o inferno, a
A Bíblia rejeita os d euses nascidos da violência sacrali- m~sma coisa. que Satanás, ~ mesma coisa que a morte, a mesma
' \ \ zada. Em determinados textos bíblicos, n om eadamente nos c01sa que o linchamento. E o mimetismo violento no que tem
de mais des truidor.
1~ livros his tóricos, existem restos de violência sagrada, mas
Y\ ( são vestígios sem futuro .
~") / A crítica d o mimetifilDQ_colectivo é uma crítica d m á uina
\ de fabricar deuses. O mecanismo vitirnário é uma abomina-
ção puramente human a. Isto não quer dizer que o divino
desapareça ou se torne mais fraco. O bíblico é, acima de tudo,
a descoberta de um divino que já não é o dos ídolos colec-
tivos d a violência.
O divino não sai eniraquecido ao separar-se da violência;
adquire mas importância do que mmca, na pessoa do Deus
único, Jeová, que o monopoliza e não depende de maneira
\ alguma do que se passa entre os homens. O Deus único é
aquele que repreende os homens pela sua ·violência e que
tem piedade das suas vítimas, aquele que substitui ao sacri-

152 153
X

A SINGULARIDADE
DOS EVANGELHOS

Façamos um resumo do que está para trás: nos mitos, o


contágio irresistível persuade as com.unidades unânimes de
que as suas vítimas são, primeiro, culpadas, depois, divinas.
O divino enraíza-se na unanimidade ilusória da perseguição.
Na Bíblia, a confusão do vitimário e do divino dá lugar a
uma separação absoluta. A religião judaica, repito-o, desdi-
viniza as vítimas e desvitima o divino. O monoteísmo é ao
mesmo tempo causa e consequência desta evolução.
Pelo con trário, nos Evangelhos, encontra-se não só os
dois primeiros momentos do ciclo mimético, mas também o
terceiro, aquele que a Bíblia rejeita de forma espec tacular, a
divindade da vítima colectiy a. As semelhanças entre o cristia-
nismo e os mitos são demasiado perfeitas para não levantar
a suspeita de uma recaída no mítico.
Jesus é uma vítima colectiva e os cristãos vêem nele o
próprio Deus. Como acreditar que a sua divindade tem uma
outra causa que não a das divindades míticas?
Provavelmente, desde o princípio da Humanidade, todos
os deuses tinham origem no mecanismo vitimário. O judaísmo
triunfou sobre es ta hidra de mil cabeças. O que constitui a ori-
ginalidade da Bíblia hebraica relativamente aos mitos parece
anulado pela divindade de Jesus.

155
Em vez de «arrumar as coisas», a vontade cristã de '.ideli- Em contrapartida, na nossa perspectiva antropológica,
dade ao Deus {mico complica-a ainda mais. Para conoli,a~ a constatamos que os Evangelhos mantêm a conquista essen-
divindade do Jeová bíblico com a d~ Je~ us e a do Esp;1~~-to cial da Bíbliél: a relação entre vítimas e perseguidores em
divino ao qual 0 Evangelho de João atnbm, de modo explío.~,
nada faz lembrar a dos mitos; é a relação bíblica que preva-
um papel no processo redentor, a T:olo~1~ ~-~ grande ~oi:1.ci­
lece, aquela que acabamos de descobrir na hi tória de José:
lios ecuménicos elaborou a concepçao tnmtm ia do Deus uruco.
Para 0 judaísmo, sta concepção surge como wn retori;o exactarnente corno a Bíblia, os Evangelhos reabilitam as víti-
dissimulado ao politeísmo. Ao definirem-se como «monoteis- mas colectivas e denLmciarn os seus perseguidores.
tas estritos», os muçulmanos dão também a entender que os Jesus é inocente e os culpados são aqueles que o fazem
cristãos são, para ele , monoteístas, pelo menos moderados. crucificar. João Baptista é inocente e os culpados são aqueles
o mesmo se passél com. todos aqueles que o?s.e rvam que o fazem decapitar. Entre a Bíblia judaica e as Escrituras
de fora 0 cristianismo. A religião que proclama a ~ivu:da~e judaico-cristãs, a continuidade é real, substancial. É nesta
de Jesus Cristo dá aos que a vêem de L~ma perspectiva ~iloso­ continuidade que se funda a recusa de seguir Márcion, que
fica, científica e mesmo religiosa, a impres~ao de ~ao ~er queria ·.separar os Evangelhos da Bíblia hebraica. A tese orto-
mais do que um mito modificado, talvez por diversas i~úluen­ doxa faz dos dois testamentos urna ímica e mesma revelação.
cias, mas não essencialmente diferente dos velhos rrutos de As divi_r;izações míticas explicam-se muito bem, vimo-lo,
morte e de ressurreição. . . pela operação do ciclo mimético. Assentam na aptidão das
A desconfiança que o dogma cristã~ sem~re_msp1rou ao vítimas para polarizarem a violência, para fornecerem aos
judaísmo e ao islão é partilhada por mmtos cnstaos dos n~~­ conflitos o abcesso de fixação que os assimila e apazigua.
sos dias. A Cruz parece-lhes dema siado es tranJ:1a e ar:acro- Se a transferência que demoniza a vítima for muito forte, a
nica para e levar a sério. Como pensar q~e un: 3ovem JUdeu reconciliação é tão súbita e perfeita que parece milagrosa e
morto há dois mil anos, num tipo de suphc10 ha tanto tempo
suscita urna segunda transferência que se sobrepõe à pri-
abolido, pudesse ser a encarnação do T~d~-P~der.?so? , meira, a transferência de divinização mitológica.
Está em curso um proce so de descnsharnzaçao des?e ~a
séculos no mundo ocidental, e não pára de aumentar. Ja nao Por detrás da divindade de Cristo, não há urna demoni-
são indivíduos isolados que, doravante, abandonam as suas zação prévia. Os cri tãos não vêem qualquer culpabilidade
Igrejas, são Igrejas inteiras, a começar pelo clero, ~ue passam em Jesus. A sua divindade não pode, portanto, basear-se no
para o campo do «plurahsn10», mesmo processo que as divinizações míticas. Ao contrário
com arma Se bagao-ens
o . · - d quer
dizer de um relativismo que se pretende «mais c~1stao » o que daquilo que e p assa com outros mitos, não é a multidão
0 apego ao dogma, porque_ rr:ais «gentil», mais «tolerante» unânime dos perseguidores que vê em Jesus o Filho de Deus
para com as religiões não cnstas. e o próprio Deus, é uma minoria contestadora, um pequeno
grupo de dissidentes que se destaca da commudade e des-
* trói a sua unanimidade; é a cornLmidade das primeiras tes-
* * temunhas da Ressurreição, os apóstolos e aqueles que os
Ass1m,
· numa perspectiva monoteísta «estrita», . o. cristia-
. rodeiam. Esta minoria contestadora não enconh·a qualquer
nisrno dá a impressão de urna recaída n.a .mito 1ogia: mais equivalente nos mitos. Em torno das divinizações míticas,
urna vez, juntam-se, nele, o vitimário e o divmo. nunca se vê a comunidade fraccionar-se em dois grupos

156 157
culações,. nomeadamente sobre a noção de resto fiel
desiguais dos quais apenas o mais pequeno proclamaria a
. divindade do deus. A estrutura da revelação cristã é única.
deve designar minorias reveladoras que corres onde~que
grupo dos apóstolos nos Evangelhos... p ao
Não só os Evangelhos são reveladores ·no sentido dos
Os relatos evangélicos são os únicos textos em que de
grandes relatos bíblicos como, com toda a evidência, vão ainda
cn ima forma ' vem os pro d uzu-se
a1º~ . ,
a ruptura de tmanimidade
mais longe na própria revelação da ilusão mítica. Isto veri-
Esta ~uptura faz parte do dado revelado. É tanto mais im~
fica-se a vários níveis. pressionante quanto intervém, volto a dizê-1 , f
O mimetismo violento, do qual os mitos nada revelam, é queza d d' , o, apos as ra-
revelado pela história de José e por outros textos da Bíblia; força ~ os . isci~ulos, após a demonstração clara da extrema
estes descrevem-no com uma só palavra ao acusarem os o mim.etismo violento, mesmo nos apóstolos, não
irmãos de José de «inveja », por exemplo. obstante o ensinamento que Jesus lhes prodigalizou.
A esta palavra, os Evangelhos acrescentam longos desen- . Os quat~o ~e~atos da Paixão fazem-nos ver os efeitos do
volvimentos dos quais falei nos primeiros capítulos ·deste ~m:ulso: . Jl.limetico não só na multidão e nas autoridades
livro: a palavra escândalo, já vimos, teoriza pela primeira vez JUdias e romanas, mas também nos dois infelizes crucifi-
o conflito mimético e as suas consequências. O personagem ca os com Jesus e n os propnos, · discípulos, quer dizer em
Satanás ou o Diabo é ainda mais revelador: este teoriza não to d as as test~munhas sem excepçao. - (Apenas não são toca-
só tudo o que teoriza o escândalo, mas também a força gera- das algumas mulheres, mas o seu testemunho não tem qual-
dora do mimetismo conflitual sob o aspecto do religioso quer peso).
mítico. A_ssim, os Evangelhos revelam a plena e inteira verdade
Mesmo nos dias de hoje, em nenhuma parte do mundo ~a gen~se dos mitos, da força da ilusão dos impulsos mimé-
existe uma descrição do todos-contra-um mimético e dos icos, e tudo_ o que os mitos forçosamente não revelam
seus efeitos tão completa como a dos Evangelhos, e isto por um~ vez que sao sempre iludidos. '
outra razão ainda: estes contêm indicações únicas acerca do E ~x~ctamente por esta razão que comecei este livro ela
que torna a revelação possível. ~xpos1çao de .noções tiradas dos Evangelhos: a imitaçã~ de
{
Para que um mecanismo vitimário possa ser descrito de ns~o, a teona do escândalo e a teoria de Satana's S , .
maneira exacta, verídica, é preciso que consiga, ou quase, a
unanimidade. É precisamente isto que se encontra logo nos
pod
:ª · d
munu~~e aquilo que precisava para mostrar ue a
· o assim
noçao evangehca de revelação, em vez de ser uma ilusio ou
relatos da Paixão, graças às fraquezas dos discípulos. É pre- u_m. logro, corresponde a uma formidável realidade ant
ciso que, em seguida, se produza uma ruptura desta unani- logica. ropo-
midade, suficientemente pequena para não destruir o efeito 0 mais espantoso é que a Ressurreição e a diviniza ão de
mítico, quanto baste para garantir a revelação ulterior e a Jesus
n 1pelos cristãos correspondem
, de maneira. mmto . exacta
ç
sua difusão no universo inteiro. É o que se encontra, igual- o P ano estrutural, as divinizações míticas d · '
mente, no caso da crucificação. lama falsidade E . as quais reve-
d f - . m vez de suscitar uma transfiguração uma
Estas exigências precisam também ser satisfeitas no caso
es iguraçao,
· , · uma falsificação ' uma ocultaça- 0 d os processos
'
do Antigo Testamento, nos relatos que revelam o mecanismo mimehcos, a Ressurreição de Cristo traz à luz da verdade
de unanimidade violenta, mas os textos não contêm infor-
tudo o que, desde sempre, fora dissimulado aos homens.
mações precisas a este respeito. Ficamos reduzidos às espe-

159
158
Apenas ela revela por completo o que estava escondido desde mobiliza. Os perseguidores «acreditam ue estão .
a hmdação do mLmdo, que forma um todo com o segredo de rectamente», 3ulgam actuar em nome da 9 t. da agir cor-
Satanás nLmca descoberto desde a origem da cultura humana, - JUS iça e a verdade
pensam que estao a salvar a commudade. ,
o assassínio ftmdador e a génese da cultura humana. Encontramos a mesma ideia nos Act d ,
Apenas a revelação evangélica me permitiu chegar a uma
interpretação coerente dos sistemas mítico-rituais e da cul-
ig_ual~1ente, obra d~ ~~o Lucas, mas com m~ es~:o ~e~~~~:~~~
p1~ss1~nante_. _Ao d1:1g1_r-se à multidão da crucificação, Pedro
ahtnbu1-lhe c1~ctmstanc1as atenuantes em virtude daquilo q
tura humana no seu conjtmto. Foi a este trabalho que consa-
grei as duas primeiras partes da presente obra. c ama a s ua ignorância: ue

* Agora, irmãos, sei que agistes por ignorância, como também os


* * {vossos chefes
' A Ressurreição de Cristo é o corolário e a conclusão da (Ac 3, 17)
subversão e da revelação da mitologia, dos ritos, de tudo o
' que garante a hmdação e a perpetuação das culturas humanas. o que·sfe a~lica ao mecanismo co1ectivo aplica-se de iaua1
mo d o, aos enomenos · , f ' o
Os Evangelhos revelam tudo aquilo de os homens têm . d . 'd O ~ mime icos que se desenrolam entre os
necessidade para compreenderem as suas responsabilidades m iv1 uos. ~ e~car:daJos são, acima de tudo, a incapacidade
para ver, a ceauerra multra , l
em todas as violências da história humana e em todas as fal- J - d fini o passave : na sua primeira epístola
sas religiões. oao e -os como as trevas que se expélndem à sua volta: ,
Para que o mecanismo vitimár1o seja eficaz, sabemo-lo, é Aquele que diz que está na luz
preciso que o impulso contagioso e o todos-contr a-um e odeia seu irmão
mimético escapem à observação dos participantes. A elabora- ainda está nas trevas.
- ...
- . ...... ~
çao rruhca assenta nun1a tgnorancza, ou mesm.o numa mcons-
ciência perseguidora que os mitos -nunca identificam porque
são possuídos por ela.
Aquele ~ue ama a seu irmão permanece nn luz
e nele nao há ocasião de queda.
(1 Jn 2, 9-10)
Esta inconsciência, os Evangelhos revelam-na não só na
ideia joanina de urna Humanidade enclausurada nas menti- A auto-ilusão caracteriza todo o processo sa tânico , .
ras do Diabo, mas em várias definiçõe explícita da incons- esta mesma razão que tun dos títulos do Diabo . , d.' e e ?º1
prú · d 'Jª o isse, e «o
ciência perseguidora . A mais importante encon tra-se no No~CI~e as trevas>'.. fao'º revelar a auto-ilusão dos violentos, o
Evangelho de São Lucas. É a famosa frase de Jesus durante a o es_tamento d1ss1pa a mentira da sua violência. ent''""'e
1crucificação: «Perdoa-lhes, Pai, porque nãq sabem o que fazem» tu d o aquilo d . , LULra
, , . e que precisamos para rejeitar a visão nútica de
(23, 34). nos propnos, a crença na nossa própria inocência.
Tal como para outras frases d e Jesu s, é preciso evitar
esvaziá-la do seu significado fundamental ao reduzi-la a *
uma fórmula de retórica, a uma hipérbole lírica . Tal como * *
sempre, há que levar Jesus à letra: fala da incapacidade dos , . Os E_v~ngelhos não somente dizem a verdade sobr
? mobilizados para distinguirem o impulso mimético que os vitima m3ustamente condenadas, como também sabem ~l~=

160
161
d. -lo retomam o modo do Antigo
A
grande papel. A liturgia faz-nos reler os lamentos dos futu-
o dizem, e sabem que, ao ize ' f" .d de com a Bíblia no ros linchados para nos fazer compreender melhor os sofri-
ompreendem a sua a iru a
Testamen to. C fo' rmulas mais tocantes . mentos de Cristo, falando-nos dos fiéis que combatiam um
. t. , · e empreo-am as suas
aspecto vi iman 0 º . . , d "sse foram amea- tipo de injustiça sem dúvida menor do que aquela de que
Os narradores de alguns salmos, lª o i ' h de Jesus foi vítima, ele que era totalmente dedicado aos que o
çados de violência colectiva . Trata,-s~ ~:éc~:o ~~%eesmo persegtúam, mas que nem por isso, na experiência humana,
dem.mciar, no caso de Jesus, u~ c?~tagio rrador de um ou deixa de ser o que há de mais próximo dos sofrimentos da

~~~ad:~::,~e S~~":c~:.~::~~~ ~~~::ta:,~:,~~~:ted~;';~'.::,~


Paixão.
Os exegetas modernos não vêem a pertinência da relação
processo em ambo~ _os casos, o recurso entre o salmo e a Paixão porque não distinguem o próprio
g elhos à Bíblia clanftca-se. ·f· do de fenómeno de multidão em toda a sua absurdidade violenta.
, . , li cação a Jesus cruo ica
Um exemplo t1pico e a ap . (Sl 35 19) Ao não verem a violência real nos salmos, não compreen-
. . les· «Odeiam-me sem mohvo» ' . dem que .O narrador do salmo e Jesus são, de facto, vítimas
urna frase mmto sirnp · · natureza essen-
rentemente banal, esta frase expnrne a . . . - do mesmo tipo de injustiça.
~pla d hostilidade contra a vítima: injustificada, '!:'recisa Os textos bíblicos que desmistificam os impulsos con-
eia a , . · 'f e nao tanto
, f to de urn contagio mime lC 0 ' tagiosos e os · todos-contra-um miméticos «anunciam» ou
mente porque e. ru. d um sentimento verda-
«prefiguram» realmente os sofrimentos de Cristo. Não pode
de motivo~ r~o,ona1s, ou mesmo e Muito antes de Jesus, a
deiro nos md1v1duos que a sentem. . d a absurdidade simpatizar-se com estas vítimas sem, de igual modo, se sim-
f 1 o salmo compreen eu patizar com Jesus e vice-versa: não pode desprezar-se os
vítima que nos aª n h' e tomar
deste ódio. Em vez de se ver nisto um exagero, a qu sofrimentos dos seres, em aparência, mais insignificantes, o
mendigo de Éfeso, por exemplo, sem se juntar espiritualmente
a exÓ:e~:!~a~s~:s ~~:i:~~::::~~~preendem que~ m~l:i~ão aos perseguidores de Jesus:
,, . . motivos estranhos, nao soa 1us- É aqui que está a essência· do profetismo especificamente
os escolheu para vitimas lpor f vação racional. A multi-
judaico-cristão. É a comparação com a Paixão de todas as
. também a qua quer mo i
~~~ ~~stem qualquer motivo _verdadeira_mente p~ss~:l:;:~ perseguições colectivas, seja qual for a sua data na história
atribuir culpas à vítima selecc1ona~a ed:aqou:i;~al;g~tima ou
humana, independentemente das pertenças étnicas, religio-
. d" 'd N- tem qualquer razao sas ou culturais das vítimas.
in iv1 uo. a 0 . d · · t à anarquia, as O desprezo moderno pela noção de profetismo, a ideia de
·1 , . Numa sooeda e su1ei a
mesmo i egitima. ·da de de perse- que se trata de urna miragem teológica ultrapassada por um
infelizes vítimas sucumbem a uma vorao . uem
. - e ode saciar-se à custa de pouco importa q . «método científico» forçosamente superior ao pensamento
gmç~o . qu p , fciente. Ninguém se preocupa, ver- que estuda, é urna superstição mais temível do que a credu-
0 mmimo pretexto e su i . A d•

lidade antiga, pois a sua arrogância torna-a impermeável a


b T dade ou com a mocenoa a
dadeiramente com a cu1pa 1 1 qualquer compreensão. A falsa ciência é cega aos ciclos mimé-
vítima. . d evem às mil mara- ticos em geral e à sua revelação progressiva do princípio ao
Estas duas palavras, sem motivo, escr N f' .os
f lhas humanas os o ici fim da Bíblia, revelação essa que justifica a ideia de ,« prefigu-
d
vilhas o comportamento as ma i - . nham urn ração» vetem-testamentária e de «cumprimento» cristológico.
da Semana Santa, os salmos de execraçao desempe

163
162
Os profetas judeus já procediam da mesma mane~ra_ que fundamentalmente, a mesma natureza, de proceder do mesmo
os Evangelhos. Para combaterem a cegueira das mult~does a tipo de intuição.
seu respeito, para se defenderem cont~a o ódio c~ntagioso de A revelação cristã no sentido mais elevado deseja deixar-se
que era alvo 0 seu pessimismo perspic~~' recorn~m a exe~­ guiar pela sua irmã mais velha, enriquecer-se com o seu saber
plos de incompreensão e de p~rse~luçao .q~1e tinh~m viti- e com as suas saborosas fórmulas. As citações vetem-testa-
mado profetas mais antigos. A: l.i~urgia ~ra.d~cio~al vai bu~car mentárias com as quais os evangelistas salpicam os seus
muito a estes textos, cuja sensibilidade as mp.lshças cole~hv~s rela tos nem sempre parecem ser igualmente felizes e inspira-
é extremamente forte, ao passo que é fraca nos textos füoso- das. Por vezes, parecem ser, sobretudo, verbais, despidas de
ficos e nula nos míticos. _ significação profunda, geradoras de correspondências fac-
A ideia de se qualificar de «profética» a compara?ªº de tícias com a Bíblia. Mas, não deve condenar-se, precipitada-
todos os textos que denunciam as ilusões persegmdoras mente, as Santas Escrituras. Quando formos tomados pela
baseia-se numa intuição profunda da continuida~e .entre a inveja, desconfiemos. Talvez não estejamos à altura da nossa
inspiração bíblica e a inspiração evangélica. Esta id~ia nada tarefa ......
tem a ver com 0 que, vulgarmente, se chan1a profetismo, as
pretensões fantasistas para a d.ivinização, tais como as encon- *
tramos na maior parte das sociedades. * *
Ao ler-se Pascal, é lamentável constatar-se que c?n.ceba o A revelação evangélica é a ascensão definitiva de uma
profetismo como uma espécie de codificação mec~rnca, de verdade já parcialmente acessível no Antigo Testamento, mas
charada que apenas os cristãos são capazes de decifrar por- que, para se completar, exige a Boa Nova do próprio Deus
que têm a chave, supondo-se que os Judeus nada perceb~m que aceita tornar para si o papel de vítima colectiva para sal-
dos seus próprios textos, pois falta-lh~s . a tal chav: qu~ e ,ª var a Humanidade. Este Deus que, mais uma vez, se torna
própria pessoa de Jesus Cristo. Graças a mterpre.taçao ~~e­ vítima não é mais um deus mítico, é o Deus único e infinita-
tica, pode dar-se à noção de profetismo um sentido ~ositivo, mente bom do Antigo Testamento.
quer para os cristãos quer para os Judeus, um sentido qL~e Se a divinização de Cristo não se baseia na escamoteação
não exclui ninguém, sobretudo os redactores dos t:x.tos ma~s dos .impulsos miméticos que produz o sagrado mítico, mas,
antigos, decerto motivados pela ,i~1spil:a?ão profetica, poi~ pelo contrário, na plena e total revelação da verdade que
defendem a inocência de uma vitima miustamente co1'.de esclarece a mitologia, a qual, espero bem, alimenta as minhas
nada. Para se compreender o profetismo é preciso, resu.mi-lo, próprias análises desde o princípio.
tal como tudo 0 que é essencial no cristianismo, a candade; Às divindades míticas opõe-se um Deus que, em vez de
há que relacioná-lo com a parábola, em São Mateus, so~re o surgir do mal-entendido a respeito da vítima, assume, volunta-
Julgamento Final: «Em verdade vos di?o: ~empr~ que hze~­ riamente, o papel da vítima única e que toma possível, pela
tes isto (a caridade) a um destes Meus irmaos mais pequeru- primeira vez, a revelação plenária de um mecanismo vitimário.
nos, a Mim mesmo o fizestes» (25, 40). , Longe de regredir em direcção à mitologia, o cristianismo
A revelaÇão cristã no sentido mai elevado ~sta sempre representa uma nova etapa da revelação bíblica, que vai além
consciente de ser precedida pela revelação bíblica e de ter, do Antigo Testamento. Longe de constituir mna recaída na

164 165
-~-----------~---~--

divinização das vítimas e na vitimização do divino que de Jesus apazigua a multidão. Produz nela o efeito de todos
caracteriza a mitologia, tal como, inevitavelmente, começa os assassínios colectivos ou de inspiração colectiva, uma espé-
por se imaginar, a divindade de Jesus obriga-nos a disting.uir cie de desanuviamento, uma catharsis sacrificial que impede
dois tipos de transcendência semelhantes no seu exterior, a revolta que Pilatos temia que se produzisse.
mas radicalmente opostos: uma enganadora, mentirosa, obs- Do ponto de vista evangélico e cristão, este apazigua-
curantista, a da realização não consciente do mecanismo viti- mento da multidão não tem qualquer valor religioso, como é
mário na mitologia; a outra, ao contrário, verídica, luminosa, evidente. É um fenómeno característico do mimetismo vio-
que destrói as ilusões da primeira ao revelar o envenenamento lento, da Humanidade prisioneira de Satanás.
das comunidades pelo mimetismo violento e pelo «remédio» Em vez de turvar e mistificar o processo vitimário, os
suscitado pelo próprio mal, a que começa no Antigo Testa- Evangelhos desmistificam-no ao revelarem a nat1ueza pura-
mento e se esvanece no Novo. mente mimética daquilo que uma explicação mítica tomaria
Se a divindade de Cristo se afirma na ocasião do todos- por divin~. O Evangelho segundo São Lucas contém uma
-contra-um mimético do qual é vítima, nada deve em abso-
pequena ' prova, porém reveladora, desta desmistificação,
luto a este fenómeno cuja eficácia é por ele subvertida.
uma prova muito preciosa para o exegeta esclarecido. No
fim do seu n ;lato da Paixão, São Lucas acrescenta a seguinte
*
observação: «Nesse dia, Herodes e Pilatos ficaram amigos,
* *
pois antes eram inimigos um do outro» (23, 12).
Para reforçar a argumentação que precede, vou, então, No Evangelho seg1mdo São Lucas, Jesus comparece, bre-
começar a comentar as duas passagens dos Evangelhos
vemente, perante Herodes. E é a sua participação comum na
sinópticos que tomam manifestas, não só as semelhanças ilu-
morte de Jesus que aproxima os dois homens, Herodes e
sórias entre as falsas epifanias religiosas e a verdadeira, mas
Pilatos. A sua reconciliação é um daqueles efeitos catárticos
qualquer coisa de mais notável ainda: a existência de um
saber evangélico acerca destas semelhanças, e dos mal-enten- dos quais beneficiam os participantes num assassínio colec-
didos que arrastam atrás de si. Para os evangelistas, é de tal tivo, os perseguidores não arrependidos. É o efeito mais
modo possível uma assimilação da divindade de Cristo a uma característico destes assassínios, aquele que, se for suficiente-
divinização mítica que pode citar-se fenómenos susceptíveis mente poderoso, termina na divinização mítica da vítima.
de provocarem este tipo de confusão sem o menor constrangi- São Lucas apreende, de forma visível, este feito . Com-
mento, sem a menor preocupação. Se fossem os vulgares pro- preende muito bem que o progresso das relações entre Herodes
pagandistas que os nossos suspeitosos peritos tendei:n a faz~r e Pilatos nada tem de cristão. Por que é que se dá ao trabalho
deles, São Lucas, São Marcos e São Mateus n1mca tenam redi- de nos assinalar um pormenor desprovido de significação
gido as duas passagens que passo agora a comentar. cristã? Sobretudo, é preciso não se pensar que São Lucas se
interessa pela «política palestiniana». O que lhe interessa,
* com toda a evidência, é isto de que falo neste momento, o
* * efeito apaziguador do assassínio colectivo. Mas, por que é
A primeira passagem, extremamente breve, encontra-se que, sendo ele próprio cristão, se interessa por um efeito tipi-
no Evangelho segundo São Lucas. Disse, atrás, que a morte camente pagão?

166 167
Penso que São Lucas assinala esta reconciliação pa~a que, Como bons cristãos que são, São Marcos e São Mateus
justamente, reconheçamos nela qualqu~r coisa que, vista de tomam esta ressurreição por falsa, ao passo que acreditam
fora, se parece, a ponto de a confundirmos, com a comu- na de Jesus.
nhão dos primeiros cristãos e que, no entant?'. n~da tem.ª O que toma o texto exh·aordinário é que a verdadeira morte
ver com ela. Por certo, não conh.mde a reconcihaçao de dois de João e a sua falsa ressurreição se apresentam com contornos
representantes das forças com o que iri~ pa~sar-se_ ent~e os surpreendentemente parecidos às verdadeiras morte e res-
discípulos e Jesus no dia da R~ss~1rreiçao. E o p_m ado:rn da surreição de Jesus, contornos, na verdade, tão semelhantes
semelhança entre o mítico e o cnstao que choca Sao Lucas~ o que a presença deste texto nos Evangelhos tem, para o leitor
que não hesita em assinalar, sem recear qualqu~r _confusa~. moderno, cristão ou não, qualquer coisa de espantoso.
O interesse desta comparação das duas ressurreiçoes, a ver- As duas crenças, a verdadeira e a falsa, enraízam-se num
dadeira e falsa, é extraordinária quer no plano intelectual quer desses assassínios colectivos, ou com ressonâncias colectivas,
no plano espiritual. _ , . . dos qu~is surgem as divindades míticas. Em ambos os casos,
Ser verdadeiramente fiel aos Evangelhos nao e suprmur um venerado profeta passa por ressuscitado. Em ambos os
0
que faz da Paixão um mecanismo vitimário como os outros, casos, a ressurreição parece nascer da violência colectiva.
é, pelo contrário, tê-lo c1.üdadosa~ente ~~1 conta, e.º resul- Os dois ·Evangelhos atribuem a Herodes uma frase que
tado, longe de contradizer a teologia tradicional, confirma-lhe sugere o enraizamento da falsa crença na recordação do
o fundamento. .. assassínio: «É João, a quem. eu degolei, que ressuscitou! » (Me 6, 16).
Os dados nos quais se fundam as divinizações miticas Esta frase situa a falsa crença no prolongamento directo da
estão todos presentes nos relatos da Paixão, m~s, e~ vez de violência que surge, assim, como fundadora. Confirma a
incompreendidos e desprezados co~o num mito, sao com- concepção das géneses míticas apresentada nos capítulos
preendidos, desmistificados, neutralizados. . . precedentes. Todo o episódio é wna génese mítica em minia-
Pilatos e Herodes não se dão conta, sem duvida, de que a tura, estranhamente semelhante à sequência da Paixão e da
sua reconciliação tem por base a morte de Jesus. São Lucas Ressurreição.
fá-lo por eles. Dos quatro evangelistas, é ele quem melhor Imediatamente após a frase de Herodes, os dois Evan-
define a inconsciência perseguidora. gelhos remontam no tempo para narrarem o assassínio de
João. O que justifica o relato deste assassínio não pode outra
*
coisa a não ser a preocupação de explicar a falsa crença de
* *
Herodes. Para assinalar uma falsa ressurreição, é preciso
Passo, assim, à segtmda passagem que pretend~ comen- encontrar o assassúuo colectivo que a suscita. Como justificar
tar, a mais antiga das duas, dizem os enten~idos, pois ~ncoi:­ de outra maneira o retrocesso dos Evangelhos, o seu recurso
tra-se nos Evangelhos de ?ão Marcos e de Sao Mateus. E mais à técnica do «flashback», exemplo único nos Evangelhos?
longa do que a primeira. E o relato da falsa crença_de Her~des A função criadora do assassínio na crença de Herodes
numa ressurreição da sua vítima, o profeta Joao Bapt1sta. é ainda mais evidenciada em São Mateus do que em São
Este texto ilustra, de modo admirável, o problema d~s _seme- Marcos. Com efeito, para este último, a crença na ressurrei-
lhanças chocantes, surpreendentes, entre as ressurreiçoes de
ção não começa com Herodes, mas, sim, com os rumores
tipo mítico e a ressurreição de Jesus.

168 169
populares aos quais o assassínio de João se limita a acrescen-
tar fé . Mateus, quanto a si, suprime o tema dos rumores. No Tud~ o que obsidia a crítica dita científica tudo
confrrmar 0 cepticismo qtie 0 't· ' o que parece
seu Evangelho, a falsa crença não tem qualquer outro esti- d e começar o seu trabalho cn ico traz em s·l an tes mesmo
-realizadora, um círculo v · ~ surgde ~ °~0 u~a ?~ofecia auto-
1
mulante a não ser o assassínio.
Os dois evangelistas nada dizem para dissipar a confusão 0 ic1oso e l usao m1metica
ou a justaposição das duas ressurreições, a falsa e a verda- s Evangelhos «verificam»' sempre de modo .d . , 1
to d as as posições que se ado tam . a m1rave '
deira, com o risco de fazerem cair em desgraça os débeis mais contrárias ao seu espírifo reat ;e~ respeito, mes~o ~s
cristãos modernizados. É visível que não sentem a perturba- «superior» nas verificaçõ . o e ver-se uma Irorua
ção que a semelhança das duas sequências suscita nos nossos entanto i·1 , . es, aparentemente brilhantes e no
, usonas que os E lh '
contemporâneos. Se estas semelhanças os tivessem inquie- seus leitoi:es. ' vange os fornecem a .todos os
tado, São Marcos e São Mateus teriam feito o mesmo que São São Lucas suprimiu do seu Ev Ih
Lucas: teriam suprimido um episódio que, como não estava nio de São João Bapt1ºst - ange o o relato do assassí-
centrado em Jesus, desempenha apenas um papel seclmdá- . . .. · a, nao que o perturb
via russo uma lamentável dia - - asse, mas porque
rio e que pode ser facilmente eliminado. tudo em Jesus. oressao. Sao Lucas quer centrar
A fé de São Marcos e de São Mateus é demasiado pura e Assim, p,odemos pensar q
forte para se deixar abalar, como a nossa, com as semelhan- reconciliação de Herode p ·1ue a _sua curta frase sobre a
· s e i a tos e 0 q
ças entre a falsa ressurreição e a verdadeira. Pelo contrário, terceiro Evangelho à fal . _ ue corresponde, no
' sa ressurre1çao nos dois ri .
tem-se a impressão de que os dois evangelistas insistem nes- A crença na falsa ressurreiça-o , p me1ros.
, . e um toque pagão ·t
tas semelhanças para mostrarem até que ponto são hábeis as tenshco do representant d f mw o carac-
e as « orças » que , H d -
imitações satânicas da verdade, mas, ao fim e ao cabo, impo- Lucas suprime-o, mas substitui- . e ero es. Sao
tentes. do mesmo tipo, a reconcilia ão doe por um outr~ toque pagão
A fé cristã consiste em pensar que, ao contrário das falsas crucificação. Em amb ç , Herodes e Pila tos graças à
os os casos e 0 proce d d. . .
ressurreições míticas, que estão, de facto, enraizadas nos mítica que é sugerido e rejeitado~ sso e iv1ruzação
assassínios colectivos, a ressurreição de Cristo nada deve à Apesar das aparências os Eva 11
violência dos homens. Es ta produz-se após a morte de opõem-se à mitologia de/ . nge 10~ e a Ressurreição
Cristo, inevitavelmente, mas· não logo, apenas ao .terceiro dia Antigo Testamento Os e orma 1~mda mais radical do que o
dão provas de um . v_ange istas, tal como pode ver-se,
e, dentro de uma óptica cristã, deve a sua origem ao próprio
Deus. de um poder muito ~~~:;en_to_ prof riamente vertiginoso,
cas da Resstrr . - g , .e d1shngurr as ressurreições míti-
O que separa a verdadeira ressurreição da falsa não são reiçao evangehca Em t .
diferenças temáticas do drama que as precede, pois é tudo crêem confundem os d . f , . con raparhda, os que não
01s enomenos.
muito análogo, é a sua força de revelação.
Já verificámos esta força e voltaremos a fazê-lo nos capí-
tulos que se seguem. Não se opõe de forma tão decisiva à
força de ocultação mítica quanto, uma vez captada a oposi-
ção, as semelhanças temáticas entre OI mítico e o evangélico.

170
171
XI

O TRIUNFO DA CRUZ

Dentro da ordem ~n tropológica, defino a revelação como ~


a representaç,âo verdadeira daquilo que ainda mmca fora repre-
sentado até ao fim, ou fora representado falsamente, o todos-
-contra-um mimético, o mecanismo vitimário, precedido dos
respectivos antecedentes, os escândalos «interindividuais».
Nos mitos, este mecanismo é sempre fa lsificado em detri-
mento das vítimas e para vantagem dos perseguidores. Na
Bíblia, a verdade é sugerida, evocada frequentemente e mesmo
representada parcialmente, mas nunca de maneira completa
e perfeita . Os Evangelhos, considerados na totalidade, são,
muito literalmente, es ta representação.
Assim que se compreende este facto, um texto da Epís tola
aos Colossenses, que ao princípio parece obscuro, torna-se
luminoso:
[Cristo] cnncl'iou n nctn escritn contrn nós, wjns prescrições nos
condennvnm; nboliu-n inteiramente, crnvnndo-n nn Cru z. Despo-
jnndo os Principados e Potestades, exibiu -os p11blicn mente, tri1111-
fnndo deles peln Cru z.
(Col 2, 14-15)

A acusação que se voltava contra os homens é a acusação


contra a vítima inocente nos mitos. Tornar responsáveis por

173
isto os principados e as forças, é a mesma coisa que tornar certa medida, também estão crucificados. Longe de serem
responsável o próprio Satanás, no papel de acusador público, fantasistas e improvisadas, estas metáforas são de urna exac-
que já mencionei. tidão de cortar o fôlego, pelo facto de o revelado e o revela-
Antes de Cristo, ~ acusação satânic ~era sempre v!.!.2!iosa, dor serem, aqui e ali, apenas um: em ambos os casos, é 0
devido ao contágio violento que encerrava os homens dentro todos-contra-um cuja verdadeira natureza, mimética, está
Cios sistemas mítico-rituais. A crucificação reduz a mitologia dissimulada no caso de Satanás e das forças, revelada na
" impotência, ao revelar o contágio cuja eficácia excessiva crucificação de Cristo, nos relatos verídicos da Paixão.
t oi\ os mitos impede as comunidades de alguma vez detecta- A Cruz e a origem das falsas religiões e das for as são um)
em a verdade, a saber, a inocência das suas vítimas. único e mesmo fenómeno, rêvelado num caso dissimulado
Esta acusação aliviava, temporariamente, os homens do no outro. Foi por isso qi:e Dante, no fundo do Ínferno, repre-
peso da violência, mas «voltava-se» contra ele~, pois sub\1- sentou Satanás pregado na cruzl.
gava-os a Satanás, por outras palavras, aos principados e às Assim 9ue o mecanismo vitimário é correctamente espe-
forças com o_s seus deuses desonestos e sacrifícios sarnrrentos. tado, ou ·melhor, pregado na Cruz, o seu carácter irrisório,
Ao tomar manifesta a sua inocência nos relatos da Paixão, insignificante, mostra-se a todos e tudo o que assenta nele no
Jesus «apagou» esta dívida, «fê-la desaparecer». É ele agora mundo perde, gradualmente, o prestígio, enfraquece e aca-
que prega esta acusação na Cruz, ou seja, que revela a sua bará por desáparecer.
falsidade. Enquanto que, habitualmente, a acusação prega a A metáfora principal é a do triunfo no sentido romano, ou
vítima na Cruz, pelo contrário, aqui a acusação é ela mesm_a

---
seja, a recompensa que Roma concedia aos generais vitoriosos.
pregada e, em certa medida, exibida e exposta enquanto Em pé no seu carro, o triunfador fazia uma entrada solene
enganadora. A Cruz faz triunfar a verdade pois, nos relatos na Cidade, sob as aclamações da multidão. No cortejo, figu-
1
evangélicos, é revelada a falsidade da acusação, a impostura ravam os chefes inimigos acorrentados. Antes de os mandar
de Satanás ou, o que significa a mesma coisa, a dos principa- executar, eram exibidos como animais ferozes reduzidos à
dos e das forças fica para sempre desacreditada no rasto da impotência. Vercingetorix desempenhou este papel aquando
crucificação. São todas as vítimas do mesmo tempo que se do triunfo de César.
reabilitam. O general vitorioso é aql.!i Cristo e a sua vitória é a_Cruz.
Satanás fazia dos seres humanos os seus vassalos, os seus Aquilo de que o cristianismo triunfa é da organização pagã
devedores, ao mesmo tempo que os cúmplices dos seus cri- do mundo. Os chefes inimigos acorrentados atrás do vence-
mes. Ao revelar o carácter enganador de todo este jogo, a dor são os principados e as forças. O autor compara os efeitos
Cruz expõe os homens a um aumento temporário de violên- irresistíveis da Cruz aos da força militar, ainda omnipotente
cia mas, mais fundamentalmente, liberta a Humanidade e na altura em que escrevia, o exército romano.
uma servidão que dura desde o início da História humana. De todas as ideias cristãs, actualrnente nenhuma suscita
- Não é somente a acusação que está pregada na Cruz e mais sarcasmos do que aquela que se exprime tão aberta-
exposta ao olhar de todos: os principados e as próprias for-
ças são oferecidos corno espectáculo perante o mundo e
1 Ver Jolm Freccero, Tire Poetics of Conversion, Harvard University Press, 1986:
arrastados para o cortejo triunfal de Cristo crucificado; em «The sign of Satan», pp. 167-1 79.

174 175
O texto contradiz pois, isoladamente, tudo o que um
mente no texto a que nos referinlOS, a ideia de um triunfo ~a certo bom senso considera a dura e triste verdade por detrás
Cruz . Aos cristãos virtuosamente progressistas, parece tao da Paixão. Longe de serem invisíveis, as forças são presenças
arrogante como absurda. Para definir a atitude que repro- brilhantes no nosso mundo. Nele ocupam a posição elevada.
vam, puseram n.a moda o termo «triunfalismo:> . Se algures Não cessam de nele se pavonearem, de exibirem os seus
existe urna carta original do trilmfalism.o, ela e o texto , q~1e poder e luxo. Não é preciso exibi-las, exibem-se permanente-
estou a comentar. Dir-se-ia que parece escrita de proposito mente.
para excitar a indignação dos modernista~, sempre preo- A ideia do triunfo da Cruz parece de tal modo absurda
cupados em lembrar à Igreja o dever de humildade. aos olhos dos exegetas pretensamente «científicos», que de
Porém há nesta triunfante metáfora um paradoxo dema- bom grado vêem nela uma dessas inversões completas às
siado evidente para não ser deliberado, para não derivar de quais os desesperados submetem o real quando o seu uni-
urna intenção irónica . A violência militar é tão estra1~h,a verso se desmorona e quando já não conseguem enfrentar a
como possível àquilo de que a epístola realmente fala: A :'ito- verdade ... É aquilo a que os psiquiatras chamam um «fenó-
ria de Cristo nada tem a ver com a de um general vitonoso: meno de 'é ompensação». Os seres destruídos por uma catás-
em vez de infligir a violência aos outros, Cristo sofre-a. ~ ~ue trofe irreparável, privados de qualquer esperança concreta,
se deve reter aqui da ideia do triunfo, não é o aspecto m.iht~r, invertem todqs os sinais que os informam acerca do real: de
é a ideia de um espectáculo oferecido a todos os hom~n~, e a todos os «menos» fazem «mais» e de todos os «mais» fazem
exibição pública daquilo que o inimigo deveria ter d1ss11nu- «menos ». Foi o que aconteceu aos discípulos de Jesus após a
crucificação; é aquilo a que os crentes chamam Ressurreição.
( lado a fim de se proteger, a fim de perseverar no seu ser que
l1he oculta a Cruz. A precisão e a sobriedade dos relatos da crucificação, a
sua unidade também, mais clara do que a do resto dos
Longe de se obter pela violência, o triunfo da Cruz é fruto
de l~m;--re;úncia tão total que a violência pode abater-se Evangelhos, de modo nenhum dão a impressão de reflecti-
com toda a sua raiva sobre Cristo, sem duvidar de que, ao rem a espécie de catástrofe psíquica, de ruptura com o real
abater-se, torna manifesto aquilo que lhe importa dissimular, imaginada por estes críticos.
sem suspeitar que esta exaltação desta vez se vai ~oltar con- A ideia do triunfo da Cruz explica-se muito bem de ma-
tra ela, pois esta será registada e representada, mmto exacta- neira racional, sem recorrer a hipóteses psicológicas. Cor-
responde a urna realidade indubitável que em breve iremos
rnente nos relatos da Paixão.
Se não se vir 0 papel dos contágios rnünéticos na vi~a
1
constatar. A Cruz transformou, verdadeiramente, o mundo e
das sociedades, a ideia de que os principados e as forças sao pode dar-se da sua força urna interpretação que não faz
apelo à fé religiosa. Pode atribuir-se ao triunfo da Cruz um
exibidos e despojados pela Cruz, esse papel surge como um
sentido plausível dentro de um contexto puramente racional.
absurdo urna inversão u · e...simple: ver de.
A maioria dos homens, quando reflecte na Cruz, somente
Ao ~ue parece, isto é exactan1ente o contrário do que o
vê o acontecimento na sua brutalidade, a morte terrível de
texto em questão afirma, que se produziu na altura da cru-
Jesus que, segundo parece, se desenrolou de maneira a infli-
cificação. Foram os principados e as forças que pre.gararn
gir ao «triunfalismo» da epístola em questão o desmentido
Cristo na Cruz e o despojaram de tudo sem que daqm resul-
mais acerbo.
tasse, para eles, o mínimo dano.

177
176
A sua, luz priva Satanás do poder principal, o de expulsar
Todavia, a par do acontecimento bruto, que dá a van-
Satanas. Uma vez que o sol negro for todo ele iluminado
tagem imediata aos principados e às forças, visto _que os
pe,l a Cruz, já não poderá limitar a sua capacidade de destrui-
liberta de Jesus, existe uma outra história desconhecida dos
ção. Satanás destruirá o seu reino e destruir-se-á a si mesmo. "
historiadores e, contudo, igualmente real, igualmente objec-
Compreender este facto é compreender por que razão
tiva como a deles, que é a história, não dos próprios aconte-
Paulo vê na Cruz a origem de todo o saber sobre o mundo e
cimentos, mas da sua representação. sobre os homens, assim como sobre Deus. Quando Paulo
O acontecimento que se situa por detrás dos mitos e que
afirma nada querer conhecer fora de Cristo crucificado, não·
os governa sem que os mitos nos permitam detectá-lo, p_ois
faz «anti-intelectualismo». Não é um desprezo pelo conheci-
desfiguram-no e transfiguram-no, os E".angelhos, rei:_ito,
mento que se exibe. Julga, muito literalmente, que não há saber
representam-no tal como é, em toda a sua verdade e poem
superior ao de Cristo crucificado. Se seguirmos esta es~ola,
esta verdade, ntmca detectada pelos homens, à disposição de
saberemo~ mais, simultaneamente, sobre os homens e sobre
toda a Humanidade. Deus do que se consultarmos qualquer outra fonte de saber.
Fora dos relatos da Paixão e dos cantos do Servo de
O sofrimento da Cruz é o preço que Jesus aceita pagar
Jeová, os principados e as forças são visíveis no seu esplen-
para oferecer à Humanidade esta representação verdadeira
dor exterior, mas são invisíveis e desconhecidos na origem
da origem de que permanece prisioneira e para privar, com o
violenta, vergonhosa. O reverso do cenário nunca está pre-
tempo, o mecanismo vitimário da sua eficácia.
sente e é este reverso que a Cruz de Cristo mostra aos
No triunfo de u"m general vitorioso, a exibição humi-
homens pela primeira vez. lhante do vencido é apenas urna consequência da vitória, ao
Em tudo o que diz respeito à falsa glória, as forças encar-
passo que, neste caso, é essa própria vitória, é o desvendar
regam-se da sua própria publicidade, mas que ~ Cruz
? da orig:m viole~ta. Não é porque sejam derrotadas que as
revela a seu respeito é a vergonha da sua ongem violenta
forças sao oferecidas em espectáculo, é porque ,são oferecidas
que deve permanecer dissimulada, a fim de impedir a sua
em espectáculo que são derrotadas.
queda. Assim sendo, há ironia ;:; metáfora do tritmfo militar e o
É isso que exprime a imagem dos principados e das for-
que a torna saborosa é o facto de Satanás e respectivas coor-
ças «dados em espectáculo ao mundo», arrastados para «O
tes só respeitarem a força. Pensam somente em termos de
cortejo triunfal » de Cristo. t~iw;f? militar. São, assim, batidos por uma arma cuja eficá-
Ao pregarem Cristo na Cruz, ~s forças julgan: fazer .º. q1:e
oa e mconcebível para eles, que contradiz todas as suas
habitualmente fazem, desencadeando o mecarusmo vitima-
cr~nças, todos os seus valores. É a impotência mais radical que
rio: pensavam afastar uma ameaça de revelação, não ~u:i­
tntmfa do poder de auto-expulsão satânica.
davam de que, afinal, faziam exactamente o contrario,
trabalhavam para o seu próprio aniquilamento, em certa *
medida pregavam-se a si mesmas na Cruz, de cujo poder * *
revelador não suspeitavam. Para compreender a diferença entre a mitologia e os
Ao privar o mecanismo vitimário ~as trevas de que deve
Evangelhos, entre a dissimulação mítica e a revelação cristã,
rodear-se para governar todas as coisas, a Cruz altera o mundo.

179
178
é preciso, portanto, deixar de confundir a representação com
sucmnbido ao contágio, tudo o que diz, é o mimetismo vio- 1
a coisa representada. lento que o diz por ela, é o mimetismo que diz a culpabili-
Muitos exegetas imaginam que, quando uma coisa é dade da vítima e a inocência dos perseguidores. Já não é,
representada num texto, este texto em certa medida está sub- verdadeiramente, esta comunidade que fala, é aquele a que
metido à sua própria representação. Pensam que este meca- os Evangelhos chamam o acusador: Satanás.
nismo vitimário, de que não paro de falar, deve dominar os Os exegetas falsamente científicos não vêem que o judaico
Evangelhos, visto que é só neles que é verdadeiramente visí- e o cristão são as primeiras representações reveladoras e·
vel e não algures. Considera-se este me smo mecanismo libertadoras a respeito de uma violência que existe desde
ausente, ao contrário da mitologia, porque nunca está nela sempre mas que, até ao bíblico, permanecia dissimulada
representado, porque não existe qualquer indício explícito dentro da infra-estrutura mitológica.
da sua presença. Sob a influência de Nietzsche e de Freud, procura-se de
Há quem se admire por me ve~· dizer que o assassínio imediato n_estes textos, cuja possibilidade de referência é
colectivo é essencial para a génese dos mitos e que nada tem sempre n~gada sem a mínima prova, os indícios de um
a dizer-nos, ao contrário, sobre a génese dos Evangelhos. «complexo de perseguição» de que o judaico-cristão estaria
O assassínio colectivo, ou mecanismo vitimário, tem tudo atorrnen ta do no conjunto, ao passo que a mitologia, pelo
a ver com a génese dos textos que o não representam e não contrário, esta'ria dele isenta.
podem representá-lo, precisamente porque realmente assen- A prova de que tudo isto é absurdo, é a soberba indife-
tam nela, porque o mecanismo vitimário é o seu princípio rença, o desprezo real de que a mitologia dá provas a res-
gerador. Estes textos são os mitos. peito de tudo o que sugere uma violência possível dos fortes
Os exegetas deixam-se enganar pela tendência do nosso co~tra os fracos, das maiorias contra as minorias, dos saudá-]
espírito para concluir, demasiado depressa, que os textos veis contra os doentes, dos normais contra os anormais, dos
( que citam a violência colectiva são textos violentos cuja vio- autóctones contra os estrangeiros, etc.
lência temos o dever de denunciar. A confiança moderna nos mitos é tanto mais estranha
Sob a influência do nietzscheísmo, o nosso espírito tende actualmente quanto os nossos contemporâneos se mostram
para funcionar de acordo com o princípio «não há fumo sem terrivelmente desconfiados a respeito da sua própria socie-
fogo», tão mistificador como possível no caso que nos inte- dade. Por todo o lado vêem vítimas dissimuladas, excepto
ressa. Tratam a revelação judaico-cristã como uma espécie de onde existem verdadeiramente, nos mitos que nunca consi-
sintoma freudiano ou nietzscheano no sentido de «a moral deram com uma opinião realmente crítica.
dos escravos». Vêem na revelação do mecanismo vitirnário o Ainda sob a influência do nietzscheanismo, os pensado-
afloramento de um ressentimento social, por exemplo. res contemporâneos adquiriram o hábito de ver nos mitos
Nunca se interrogam se esta revelação por acaso não se justi- textos amáveis, simpáticos, divertidos, alegres, muito supe-
ficaria. riores às Escrituras judaico-cristãs, dominadas, elas, não por
uma preocupação legítima de justiça e de verdade, mas

~
É onde não está representado que o impulso mimético pode
por urna desconfiança mórbida ...
desempenhar um papel gerador devido , exactamente, a não
Se se adoptar esta visão, e toda a gente mais ou menos a
es tar representado. Urna vez que toda a comunidade tenha
adopta no mundo actual, considera-se segura a ausência

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aparente de violências injustas nos mitos, ou a transfigu- menos alguns deles, pela verdade, se tivessem admitido, tal 1
{ ração estética destas violências. Pelo contrário, o judaico e o como se faz actualmente, que o próprio facto de acreditar
cristão passam por demasiado obcecados pelas persegtúções numa verdade absoluta é o verdadeiro pecado contra o espí-
para não manterem com elas uma relação turva que sugere a rito, Dreyfus nunca teria sido reabilitado e a mentira teria
sua culpabilidade. triunfado. ~
Para apreender o mal-entendido na sua enormidade é Se se admira os mitos que em parte nenhuma vêem víti-) ~r­
preciso transpô-lo para um caso de vítima injustamente con- mas, e se se condena a Bíblia e os Evangelhos porque, pelo \V"\."lf
denada, um caso tão bem esclarecido doravante que exclui contrário, as vêem por todo o lado, renova-se a ilusão daque- ' /
qualquer mal-entendido. les que, na época heróica do Caso, recusavam encarar a pos- ·
Na época em que o capitão Dreyfus, condenado por um sibilidade de um erro judiciário. Os adeptos de Dreyfus
crime que não cometera, cumpria a pena na outra extremi- fizeram triunfar, com grande dificuldade, uma verdade tão
dade do mlll.ldo, por um lado, havia os «antidreyfusianos» absoluta,._intransigente e dogmática como a de José na oposi-
extremamente numerosos e perfeitamente serenos e satisfei- ção à ví'olência mitológica.
tos, porque consideravam a sua vítima colectiva e felicita-
vam-se por a verem justamente castigada. *
Por outro lado, havia os defensores de Dreyfus, ao princí- * *
pio muito pouco numerosos e que passaram, durante muito
O mecanismo vitimário não é um tema como os outros,
tempo, por traidores declarados ou, no melhor dos casos,
por descontentes profissionais, verdadeiros obcecados, sem- simplesmente literário. É um princípio de ilusão,_que n~o
pre ocupados a remoerem toda a espécie de ressentimentos e pode figurar a claro nos textos que governa. Se este princípio
de desconfianças cujas razões ninguém em seu redor via . aparece explicitamente, enquanto que princípio de ilusão, e é
Procurava-se na morbidez pessoal ou nos preconceitos polí- isso que acontece na Bíblia e nos Evangelhos, certamente que
ticos a razão do comportamento de Dreyfus. os não domina, no sentido em que pode sempre dominar os
Na realidade, o antidreyfusismo era um verdadeiro mito, textos onde não aparece.

uma acusação falsa universalmente confundida com a ver- Nenhum texto pode esclarecer o impulso mimético sobre
dade, mantida por um contágio mimético tão sobreexcitado o qual assenta, nenhum texto pode assentar no impulso
pelo preconceito anti-semita que nenhum facto conseguiu mimético que esclarece. É, pois, preciso evitar confundir a
abalar durante anos. questão da vítima unânime com aquilo de que fala a crítica
Os que comemoram a «inocência» dos mitos, a sua ale- literária, a saber, um desses temas ou motivos que se atribui a
gria de viver, a sua boa saúde e que opõem tudo isto à des- um escritor quando se constata a sua presença nos respec-
confiança doentia da Bíblia e dos Evangelhos, cometem o tivos escritos e quando, pelo contrário, não se lhe atribui, se
mesmo erro, penso, que os que optavam ontem pelo anti- se constatar a sua ausência.
dreyfusismo contra o dreyfusismo. Era exactamente isto que Sobre este assunto, o erro é fácil de reconhecer, mas mais \ O
proclamava, na época, um escritor chamado Charles Péguy. fácil ainda de desconhecer e é por todo o lado desconhecido. """"
Se os adeptos de Dreyfus não tivessem combatido para Ninguém suspeita que, se os mitos nunca falam de violência v-l
imporem o seu ponto de vista, se não tivessem sofrido, pelo arbitrária, poderia exactamente ser porque reflectem, sem o '7 /)
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saberem, a virulência de uma perseguição que em parte Os mitos não têm consciência da sua própria violência,
nenhuma vê vítimas, mas apenas culpados justamente expul- que fazem passar para o nível transcendental, ao demoniza-
rem-divinizarem as próprias vítimas. São, justamente, essas

l
sos, Édipos que sempre «realmente» cometeram os seus par-
violências que se tornam visíveis na Bíblia. As vítimas pas-
ricídios e incestos.
Os conteúdos míticos são inteiramente determinados por sam a ser verdadeiras vítimas, já não culpadas, mas inocentes.
impulsos miméticos aos quais os mitos estão demasiado sub- Os perseguidores transformam-se em verdadeiros persegui-
metidos para suspeitarem da sua própria sujeição. Nenhum dores, já não inocentes, mas culpados. Não são os nosso
texto pode fazer alusão ao princípio de ill1S-ão que o go:ern~. predecessores, a quem acusamos sempre, que são culpados,
- Ser vítima de uma ilusão é considerá-la verdadeira; e, somos nós os indesculpáveis.
pois, ser incapaz de a assinalar enquanto ilusão. ~o .s~r .ª Um mito é a não representação enganadora que um
primeira a assinalar a ilusão perseguidora, a Bíblia m1cia impulso mimético e respectivo mecanismo vitimário dão de si
uma revolução que, por intermédio do cristianismo, pouco a mesmos p~r ·intermédio da comunidade, que é o seu joguete.
pouco se estenderá a toda a Humanidade, sem ser verdadei- O impulso mimético nunca é objectivado, nunca é represen-
ramente compreendida por aqueles que têm o ofício de com- tado no seio do discu,rso mítico; é o seu verdadeiro sujeito,
preender. Penso que é este o sentido principal de uma das sempre dissimuilado. E aquele a que os Evangelhos chamam
frases capitais dos Evangelhos sob o ponto de vista «episte- Satanás ou o diabo.
mológico »: «Bendigo-te, ó Pai, [.. .] porque escondeste estas Se me repito tanto quanto faço, é porque o erro que assi-
coisas aos sábios e aos entendidos e as revelaste aos peque- nalo é constantemente repetido em redor de mim e porque
desempenha um papel essencial no paradoxo da Cruz.
ninos» (Mateus, 11, 25).
A condição sine qua non para que o mecanismo vitimário
domine um texto é que nele não figure na qualidade de tema *
explícito . E a recíproca é verdadeira. Um mecanismo vitirnário * *
não pode dominar um texto - os Evangelhos - onde figura A prova de que é difícil compreender o que acabo de
explicitamente. . dizer ou talvez demasiado fácil, é que o próprio Satanás não
Há aqui um paradoxo cujo erro se deve assinalar, pois é o compreendeu. Ou melhor, compreendeu demasiado tarde
erro da Paixão: é sempre o indivíduo ou o texto revelador para proteger o seu reino. A sua falta de rapidez teve, sobre
que passa por responsável pelas violências indesculpáveis a História humana, consequências enormes.
que revela. É o mensageiro, em suma, tal como faz a Cleópatra Na primeira epístola aos Coríntios, Paulo escreve: «Se
de Shakespeare, que se considera responsável pelas verda- os príncipes deste mundo a tivessem conhecido [a sabe-
des desagradáveis que traz. Revelá-la e sofrer as consequên- doria de Deus] não teriam crucificado o Senhor da glória»
cias é próprio das Escrituras judaico-cristãs. (1 Co 2, 8).
O princípio de ilusão que o mecanismo vitimário é, não «Os príncipes deste mundo», que são aqui a mesma coisa
pode aparecer em plenitude sem 2erder a força estruturante. que Satanás, crucificaram o Senhor da glória porque esperavam
Exige a ignorância de perseguidores que «não sabem o que destes acontecimentos determinados resultados favoráveis
fazem». Para bem hmcionar, exige as trevas de Satanás. aos seus interesses. Esperavam que o mecanismo funcionasse

184 185
O papel que esta tese faz desempenhar a Satanás inquieta
como habitualmente, ao abrigo dos olhares indiscret?s; ~ que
os ocidentais. À medida que o tempo passa, o papel do diabo
ficassem libertos de Jesus e da sua mensagem. No m1c10 do diminui no pensamento teológico. O seu desaparecimento é
caso, tinham excelentes razões para pensar que tudo se pas- lastimável, na medida em que Satanás é igual ao mimetismo
saria muito bem. . . , . conflitual, (mico capaz de esclarecer a significação verdadeira
A crucificação é um mecanismo v1timano tal como os e a legitimidade da concepção patrística. }-o \ C'
outros desencadeia-se tal como os outros, desenrola-se ;al A exposição do ciclo mimético, ou satânico, permite com~ ~
como ~s outros e, todavia, tem resultados diferentes de to os preender que a tese de Satanás enganado pela Cruz contém "º,.,,.. v0
os outros. ·
Até à Ressurreição, nada deixava prever a revir~;~ a
lt de uma intuição essencial. Explica o tipo de obstáculo que os ?r'
conflitos miméticos opõem à revelação cristã.
. pulso mimético ao qual os próprios discípulos lª tinham As sociedades mítico-rituais são prisioneiras de uma cir-
~:'"~~ucumbido. Os príncipes deste mt.mdo po~iam esfregar cularidade mimética à qual não podem escapar, visto que
- e pore' m , afinal de contas, os seus
as maos . calculas foram nem se quex a detectam. Isto ainda é válido hoje em dia:
frustrados . Em vez de escamotearem, mais uma vez,º. s_e- todos os nossos pensamentos sobre o Homem, todas as nossas
redo do mecanismo vitimário, os quatro relatos da Pa1xao filosofias, todas as nossas ciências sociais, todas as nos-
g
dift.mdem-nos pelos quatro canos t d o m t.mdo ' dão-lhe uma sas psicanálises,. etc., são fundamentalmente pagãs pelo facto
publicidade gigantesca. . , de assentarem nrnna cegueira ao mimetismo conflitual análogo
( A partir da frase de Paulo que acabo de citar, 0 ngenes e
inúmeros Doutores de língua grega elaboraram u,ma tese
ao dos próprios sistemas mítico-rituais.
Ao permitirem aceder à inteligência do mecanismo viti-
,

e desempenhou um papel importante durante seculos, .ª mário e dos ciclos miméticos, os relatos da Paixão permitem
d~ Satanás enganado pela Cruz2. Nesta fórmula, ~at~nás eqm- aos homens detectarem a sua prisão invisível e compreende-
1 vale àqueles a quem São Paulo chama os «prmc1pes deste rem a necessidade de redenção.
mundo». Visto não estarem em comt.mhão com Deus, os «príncipes
No cristianismo ocidental, esta tese nunca conheceu os deste mt.mdo» não compreenderam que os resumos do meca-
os favores que no Oriente e, finalmente, tanto quant? nismo vitimário desencadeado contra Jesus seriam muito
mesm Ch a suspe1-
sei desapareceu completamente. ego.u mesm 0 _ f diferentes dos resumos míticos. Se tivessem podido ler o
tar~se que era «pensamento mágico». Pergunta-se se nao az futuro, não apenas não teriam encorajado a crucificação, mas
desempenhar a Deus um papel indigno del~.. dilha ter-se-lhe-iam oposto com todas as suas forças.
A dita tese assimila a Cruz a uma es~ec1e de arma Quando os príncipes deste mundo finalmente compreen-
divina uma astúcia de Deus, ainda mais forte do que as deram a importância real da Cruz, era tarde de mais para
astúci;s de Satanás. Sob a pena de determinados Doutores, voltarem atrás: Jesus estava crucificado, os Evangelhos esta-
surgiu uma metáfora estranha que contribuiu para a descon- vam redigidos. Paulo tem, assim, razão quando afirma: «Se
fiança ocidental. Cristo é comparado ao engo_d o que o )esca- os príncipes deste mt.mdo tivessem conhecido a sabedoria de
dor prende ao anzol para ap~nhar na armadilha da gu a um Deus, não teriam crucificado o Senhor da glória»
Ao rejeitar a ideia de Satanás enganado pela Cruz, o Oci-
peixe que não passa de Satanas.
dente priva-se de uma riqueza insubstituível no domínio da
antropologia.
2 Jean Daniélou, 01"igene, Paris, La Table ronde, 1948, PP· 264-269.

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186
dar conta de que fazia exactamente o contrário. Fazia, preci-
As teorias medievais e modernas da redenção vão todas samente, aquilo que Deus desejava que fizesse. Só Satanás
procurar junto de Deus, da sua _honr~, justiça, ou mesmo podia pôr em acção, sem suspeitar, o processo da sua pró-
cólera, aquilo que obsta à salvaçao. Nao conseguem e~con­ pria destruição.
trar 0 obstáculo onde o deveriam procurar, na Hu~l.amdade A tese de Sataná s enganado pela Cruz preci sa çle ser
pecadora, nas relações entre os homens, ,no mimehsm~ con- completada por uma definição clara daquilo que aprisiona
flitual, que é a mesma coisa que Satanas. ~alam mmto _de os homens no reino de Satanás, e só o mimetismo conflitual
pecado original, mas não conseguem concret~zar a respectiva e a sua conclusão podem fornecer esta definição. Não se deve
ideia . É por isso que, mesmo se forem teolog1cament: :er~a­ concluir por isso que basta detectar o mimetismo para se ser
deiras, dão uma impressão de arbitrariedade e de m1ust1ça li5erto dele.
quanto à Humanidade. . . , O texto de Paulo de onde extraio a fra se que acabo de
Uma vez detectado o mau mimetismo, a ideia de Satanas comentar é inspirado por um fôlego espiritual ex traordiná-
enganado pela Cruz adquire um senti_do preciso que os ?au- rio. Pa~Jo pressente aí a existência de um plano divino que
tores gregos visivelmente presse ntiam se~ co,n~eguuem incide sobre toda a História humana e que não pode formular
explicitá-lo de uma maneira inte~ramente sahsfatona . _ , verdadeiramente. Culmina em balbucias extáticos em vez de
Ser «filho do diabo», no sentido do Evangelho de Joao, e nrnna tese plenamente desen volvida. Evoca uma sabedoria
estar encerrado, tal como se viu, dentro do sisterr:a enga- envolta em mistério, encoberta, que, antes dos sérnlos, fo i des ti-
n ador do mimetismo conflitual que só pode culminar n~ s nada por Deus para nossa glória, e q11e nenhum dos príncipes
sistemas mítico-rituais o.u, actualmente, nessas forma s mais dt>ste mundo con heceu; se, de fac to, a tivesse m co nhecido, niio
modernas de idolatria constituída s pelas ideologi as, por teriam cru cificado o Senhor dn glória!
Mas, como estn escrito, siio coisas q11e nem o olho viu, nt'm o ouvido
exemplo, ou o culto da ciência. . ouviu, nem jamais passou pelo pensamento do homem, o q11e Deus
Os Doutores gregos tinham razão ao dizerem ~ue, na preparou para aqueles q11e O amam.
Cruz Satan ás é o mistificador apanhado na armadilha da
(1 Co 2, 6-9)
sua ~rópria mistificação . O mecani sm~ vitimário era o seu
bem pessoal, a sua coisa própria, o instrumento dessa a_uto- Deus permitiu a Satanás reinar, durante um certo tempo,
-expulsão que põe o mundo a seus pés. Na Cruz, este rrum~­ sobre a Humanidade, prevendo que, chegado o momento, o
tismo escapa, de uma vez para sempre, ao controlo que Satanas venceria ao morrer na cruz. Graças a esta morte, e a sabedo-
exercia sobre ele, e o mundo muda de rosto. ria divina sabia-o, o mecanismo vitirnário seria neutralizado
· Se Deus permitiu a Satanás reinar durante u_m certo e, longe de se opor eficazmente a este facto, Satanás parti-
tempo sobre a Humanidade, foi porque_ sabia, previa~11.:nte, ciparia nele sem o saber. Ao fazerem de Satanás a vítima de
1 que, chegado
0 momento, Cris to venceria _
este adversano ao uma espécie de astúcia divina, os Doutores gregos sugerem
morrer na Cruz. A sabedoria divina previra, desde sempre, aspectos da revelação actualmente obscurecidos, porque
que 0 mecanismo vitimário seria virado do ~v:sso, desven- incidem, essencial~ente, sobre a antropologia da Cruz.
dado, revelado, desactivado nos rel atos da Pa1xao e q:1e nem O próprio Satanás pôs a verdade à disposição dos homensy
Satanás, nem as forças poderiam impedir esta revelaçao. tornou possível a reviravolta da sua própria mentira, tomou a
Quando desencadeou o mecanismo vitimário contra Jesus, verdade de Deus universalmente legível.
Satanás julgava proteger o seu reino, defender o seu bem, sem

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A ideia de Satanás enganado pela Cruz não é, pois, de
modo algum mágica e não ofende, de maneira alguma, a XII
dignidade de Deus. A astúcia de que Satanás é vítima não
comporta nem a mínima violência, nem a mínima dissimu- BODE EXPIATÓRIO
lação por parte de Deus. Não é verdadeiramente uma astúcia,
é a impotência do príncipe deste munao em compreen- er o

lamor divino. Se Satanás não vê Deus, é porque todo ele é


mimetismo conflitual. É extremamente perspicaz em relação
a tudo o que respeita aos conflitos entre rivais, aos escânda-
los e às respectivas consequências persecutórias, mas é cego
a qualquer realidade diferente daquela. Satanás faz do mau
mimetismo aquilo que espero eu mesmo não fazer, ou seja,
uma teoria totalitária e infalível que torna o teórico, humano
ou satânico, surdo e cego ao amor de Deus pelos homens e
ao amor dos homens entre si.
É Satanás que transforma o seu próprio mecanismo numa O~ relatos, da. Paixão projectam sobre o impulso mimético
armadilha na qual cai. Deus não se conduz de uma maneira ~:a uz gu~ pnva o mecanismo vitimário da inconsciência
desleal mesmo em relação a Satanás, mas deixa-se crucificar que
· precisa
. para ser verdadeiramente •ma. , Amn1e
. e para
para a salvação dos homens, o que Satanás não pode conce- suscitar sistemas mítico-rituais. A difusão dos E lh
d Bíbl' d · vange os e
ber de modo algum. .ª i ia ever~a. ~ssim origina:, para começar, o desa are-
O príncipe deste mundo contou excessivamente com a cin:ef~to das rehgioes arcaicas. E isso, efectivamente q~e se
extraordinária força de dissimulação do mecanismo vitimário. ven ica. Por todo o lado onde 0 c · t. · '
,. . ns iamsmo penetra, os sis-
Os próprios Evangelhos chamam a nossa atenção para a temas mih~o-ntuais definham e desaparecem.
perda da unanimidade mítica por todo ·o lado onde Jesus t' ~ara alem deste desapare~imento, qual é a acção do cris-
intervém. Em particular João assinala, várias vezes, a divisão iamsmo no nosso mundo? E esta a questão que devemos
agora colocar.
entre as testemunhas após as palavras e os actos de Jesus.
Depois de cada intervenção de Jesus, as testemunhas dis- f A influência complexa do cristianismo difunde-se sob a
cutem entre si e, longe·de unificar os homens, a sua mensa- orma ~e um saber desconhecido das sociedades pré-cristãs
gem de Jesus suscita o desacordo e a divisão. É, sobretudo, ~ q~e nao cessa de se aprofundar. É o saber que Paulo diz vir
na crucificação que esta divisão desempenha um papel capi- a ruz e que nada tem de esotérico. Para o apreender basta
tal. Sem ela, não haveria revelação evangélica; o mecanismo c~nstatar que ~bservamos todos e que compreendemos' situa-
vitimário não seria representado. Tal como nos mitos, seria çoe~ de opre~sao e de perseguição que as sociedades anterio-
transfigurado em acção justa e legítima. res a nossa nao ~etectavam ou consideravam inevitáveis.
. .O _P?der bíblico e cristão de compreender os fenómenos
vitimanos transparece no significado moderno de determ·-
nadas expressões, tais como «bode expiatório». i

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Um «bode expiatório» é, em primeiro lugar, a vítim~ d,o vimos, que se esforçavam por os reproduzir sem muita timi-
rito judeu que era comemorado durante ~s grandes cenn:o- dez, pois a operação transferencial parecia-lhes produzir-se
nias de expiação (Levítico, 16, 21). Este nto de~e. ser .m m!o fora deles, sem que participassem verdadeiramente nesses·
antigo, pois continua visiveli:nente :s.tranho. a m~piraçao fenómenos.
especificamente bíblica no sentido defmido mais atras. A inteligência moderna dos «bodes expiatórios» é a mesma
Consistia em expulsar para o deserto um bode acusado coisa que o saber cada vez mais difundido do mimetismo
de todos os pecados de Israel. O grande sacerdote punha ~s que rege os fenómenos vitimários. É porque os nossos ante-
mãos sobre a cabeça do bode e este gesto deveria transferir passados se alimentaram, durante muito tempo, da BÍblia e
para 0 animal tudo o que fosse susceptível de ~n;~nenar .ªs dos Evangelhos, que compreendemos estes fenómenos e que
relações entre os membros da comunidade. A ehcacia do nto os condenamos.
consistia em pensar que os pecados eram expulsos com o Dir-me-ão que nunca o Novo Testamento recorre à expres-
bode e que a comunidade ficava liberta deles. são «bode expiatório» para indicar, em Jesus, a vítima ino-
O rito é de expulsão análogo ao do pharmakos grego, mas cente de . ~m impulso mimético. Sem dúvida, mas dispõe de •
muito menos sinistro, pois a vítima nunca é hwnana. No caso urna_&xpressão igual e superior a «bode expiatório» que é
de uma vítima animal, a injustiça parece-nos mínima ~u éprdeiro deDius. ~sta expressão elimina os atributos ne a-
mesmo nula. É exactamente por isso que o rito do bode .exp~­ tivos e antipáticos do bode. Por isso, corresponde melhor à
tório não nos inspira a mesma repugnância que a lapidaçao ideia de vítima inocente injustamente sacrificada.
«milagrosa» de Apolónio de Tiana. . . Urna outra expressão fortemente reveladora, que Jesus
O princípio de transferência nem por isso .d eixa de . ser
aplica a si mesmo, é tirada do salmo 80: «A pedra rejeitada
0
mesmo. Na época muito distante em que o nto era eficaz
pelos construtores tornou-se a pedra do topo. » Esta frase
enquanto que rito, a transferênci~ colecti~a real con~ra o
afirma não apenas a expulsão da vítima única, mas também
bode deveria ser favorecida pela ma reputaçao deste arumal,
a alteração posterior que faz do expulso o elemento essencial
pelo odor nauseabundo, pela embar_aços~ s:xualidade. No
universo arcaico, os ritos de expulsao existiam por .to.d o o de toda a comunidade.
lado e actualmente dão-nos a impressão de um cinismo Num universo onde a violência já não é ritualizada e
enorme combinado com uma ingenuidade infantil. No caso onde é objecto de um interdito poderoso, de uma maneira
do bode expiatório, o processo de substituição é ~ão transpa- geral a cólera e o ressentimento não podem ou não ousam
rente que o compreendemos à primeira vista. E esta co~­ saciar-se com o objecto que as excita directamente. O pon-
preensão que se exprime na utilização modernaAda expressao tapé que o empregado, seja onde for, não tem a audácia de
«bode expiatório»; é uma interpretação espontane~ ~as rela- dar no patrão, dá-lo-á ao cão quando chegar à noite a casa,
ções entre o rito judaico e as transferências de hostih~ade no ou talvez maltrate a mulher e os filhos, sem de modo algum ,,
nosso mundo. Estas já não são ritualizadas, mas contmuam a dar conta de que fez deles os seus «bodes expiatórios». ~~.,...
existir a maioria das vezes sob uma forma atenuada. As vítimas substífmâas ao alvo realmente visado são o ,o
O; povos rituais não compreendiam estes fenómenos t~l equivalente moderno das vítimas sacrificiais de outrora. Para ) " · ~; .-:?
como nós os compreendemos, mas observavam os seus :fei- designarmos este género de fenómeno, utilizamos espontanea- ~ ip")

tos reconciliadores e apreciavam-nos de tal modo, e assim o mente a expressão «bode expiatório». .l"7
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'}..J7 ~ ./ v1)) ?} ' l"G VI J O fenómeno já não acaba em violências físicas a maioria
A verdadeira origem das substituições vitimárias é o a12e-
das vezes, mas em violências «psicoló icas», fáceis de camu-
..J tite -de violência que desperta entre os homens quando a
flar. Os que são acusados de participar~mTenómenos de
cólera os domina e quando, por uma ou outra razão, o objecto
transferência violenta ntmca deixam de protestar a sua ino-
real desta cólera é intocável. O campo dos objectos suscep- cência, com toda a sinceridade.
tíveis de satisfazerem o apetite de violência aumenta na pro- Quando os grupos humanos se dividem e se fragmen-
porção da intensidade da cólera. De igual ~nodo, quando a tam, muitas vezes acontece-lhes, após um período de mal-
nossa fome se torna extrema, aceitamos alimentos que, em -estar e de conflitos, ficarem de acordo à custa de un1a vítima
circunstâncias normais, recusaríamos. de uem os observadores constatam sem dificuldade, se não
•) ~eficácia das ~ub~t~tuiç?es sacrifi~iais aumenta qu~n~o pertencerem ao grupo perseguidor, que não é realmente res-
muitos escândalos mdividuais se aglutmam contra uma u~ ponsáve1 por aquilo de que a acusam. Todavia, o grupo acusa-
e mesma vítima . Os fenónlenos de bode expiatório conti- dor considera esta vítima culpada, em virh1de de um contágio
nuam, assim, a desempenhar um papel garantido no nosso análogo ·ao dos fenómenos ritualizados.
mundo, ao nível dos indivíduos e das comtmidades, mas não Os membros do grupo em causa acusam o «bode expia-
são estudados enquanto tais. tório» co~ uito ardor e sinceridade. Mais frequentemente,
Se interroaarmos os nossos sociólogos e os nossos antro- um incidente qualquer, f~r:tasista ou P?uco signific~ti.vo,;11
pólogos, a m~ioria reconh.e cerá a existênci~ e ª . i~portância c!_esencadeou contra esta vitima um movimento de opmião, .
destes fenómenos, mas não se interessara suficientemente tm1a versão suavizada do impulso mimético e do mecanismo
por eles, dirão, para deles fazerem o objecto da sua pesquisa. vitimário.
A razão profunda desta atitude é o medo de encontrarem o O recurso metafórico à expressão ritual é muitas vezes
religioso que é, efectivamente, impossível de evitar qu~o arbitrário nas modalidades, mas justifica-se no princípio.
" ~( \ se aprohmda um ~ou~º.ª qt~estão .. _ - , ., _ Entre os fenómenos de expulsão atenuada que observamos
• <r- d')' Devido à influencia Judaica e cnsta, o fenomeno ia nao se todos os dias no nosso mundo e o rito antigo do bode expia-
rr- 'l 1) \ produz na nossa época a não ser de maneira enverg?r , ª. a, tório, assim como mil outros ritos do mesmo género, as ana-
vê~ ,) furtiva clandestina. Não rentmciámos aos bodes expiatonos, logias são demasiado perfeitas para não serem reais.
) • I • d Quando suspeitamos que os nossos vizinhos cedem à
\v- mas a nossa crença neles está três quartos arruma a e o
fenómeno 2arece-nos moralmente tão cobarde, tão repreen- tentação do bode expiatório, denunciamo-los com indigna-
sível que, quando nos surpreendemos a «descarregar» num ção. Estigmatizamos ferozmente os fenómenos de bode expia-
tório de que os nossos vizinhos se tornam culpados, sem
inocente, temos vergonha de nós mesmos.
A observação das transferências colectivas é mais fácil do nós mesmos conseguirmos passar sem vítimas alternativas.
que outrora, porque estes ,fenómenos já não são s~nci~~ados Tentamos acreditar que só temos rancores legítimos e ódios
e cobertos pelo religioso. E mais difícil, porque os md~v1~uos justificados, mas as nossas certezas neste domínio são mais
que com eles se comprazem tudo fazem para os dissimu- frágeis do que as dos nossos antepassados.
Poderíamos utilizar com delicadeza a perspicácia de que
larem deles mesmos e, de uma maneira geral, conseguem.
damos provas a respeito dos nossos vizinhos, sem humilhar-
ctualrnente tal como no passado, ter um bode expiatório não
mos excessivamente aqueles que apanhamos em flagrante
, saber que se tem.

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delito de caça ao bode expiatório mas, a maioria das vezes,
maléfica, continuo a considerar os meus objectivarnente cul-
fazemos do nosso aber uma arm a, um meio não apenas de
pados. É claro que os meus vizinhos não deixam de demm-
perpetuarmos os velhos conflitos, mas de o_s e~evar_m~s ~o
ciar em mim a perspicácia selectiva que d enuncio neles.
nível superior de s ubtileza exigido pela propna ex1stencia
Os fenómenos de bode ex iatório em muitos casos só
d esse saber e pela u a difusão por toda a sociedade. Em
podem sobreviver tornando-se mais subtis, perdendo em
suma, integramos nos nossos sistemas de defesa a problemá-
meandros cada vez mais complexos a reflexão moral que os
J .,
tica judaico-cristã. Em vez de nos criticarmos, fazemos _uma
D segue como a sua sombra. Já não poderíamos recorrer a um
má utilização do nosso aber, voltamo-lo contra outrem e
desgraçado bode para nos libertarmos dos nossos ressenti-
pra ticamos uma caça ao bode ex ia tório de seglmdo g.ra_u,
mentos, precisamos de procedimentos menos comicamente
uma caça aos caçad ores de bode expiatório. A compa1xao evidentes.
obrigatória, n a nossa socied ade, autoriza ~ovas formas de
É à privação dos mecanismos vitirnários e às suas con-
crueldade.
se quênci~ s terríveis que Jesus faz alusão, segundo penso,
Tudo isto é resumido, de maneira fulgurante, por São Paulo
quando apresenta o futuro do n1lmdo cristianizado em ter-
na epís tola aos Romanos: «N ão julgarás, ó homem, pois tt~
mos de conflito entre os seres mais próximos.
que julgas, fazes a me ma coisa.» Se condenar o pecador e
fazer a m esm a coisa que se lhe critica, em ambos os casos Niio pe11seis que vim trnzer n pnz à terra; niio vim trazer n pn;,
o pecad o em ques tão consiste, forçosamente, em condenar o mns n espndn. Porque vim sepnrnr o filho do pni, n filha dn s1in
miie e n nora dn sogrn; de tnl modo que os inimigos do homem
próximo. ,. serão os seus fnmilinres.
As substituições clandes tinas, os deslizes de uma vitima
p ara outra, num universo desritualizado, permitem-n_os (Mt 10, 34-36)
observar no estado puro, se assim se pode dizer, o func10-
Num universo privado de rotecções sacrificiais, as riva-
n am ento dos mecanismos relacionais (interindividuais), que
lidades miméticas muitas vezes tornam-se menos violentãs
subentendem a organização ritual dos universos arcaicos. - I

mas insinuam-se até nas relações mais íntima E isto que


Estes mecanismos perpetuam-se entre nós sob uma forma rui-
explica o pormenor do texto que acabo d e citar: o filho em
nosa mais frequentemente mas, por vezes, também podem
guerra contra o pai, a filha contra a mãe, etc. As relações mais
voltar a surgir sob formas mais virulentas do que nunca e a
íntimas transformam-se em oposições simé tricas, em rela-
uma escala gigantesca, tal como na destnüção sistemática por
ções de duplos, de gémeos inimigos. Es te texto permite-nos
Hitler dos judeus inocentes e em todos os genocídios e quase-
detectarmos a verdadeira gé~aquilo a que se chama a
-genocídios que se produziram no século xx. Voltarei a falar psicologia moderna.
do assunto mais adiante.
A perspicácia acerca dos bodes expiatórios é urna ver~a­ *
deira superioridade da nossa sociedade sobre todas as socie- * *
dades anteriores mas, tal como todos os progressos do saber,
também é uma ocasião de mal agravado. Eu, que denuncio Assim sendo, a expressão bode expia tório indica : 1) a
vítima do rito descrito no Levítico, 2) todas as vítimas dos
os bodes expiatórios dos meus vizinhos com uma satisfação
ritos análogos que existem nas sociedades arcaicas e que

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também se chamam ritos de expulsão e, finalmente, 3) todos XIII
os fenómenos de transferências colectivas não ritualizadas
que observamos, ou julgamos observar, à nossa volta.
Esta última significação transpõe, tranquilamente, a bar-
A PREOCUPAÇÃO MODERNA
reira que os etnólogos se esforçam por manter entre os ritos COM AS VÍTIMAS
arcaicos e os sucedâneos modernos, os fenómenos cuja per-
sistência à nossa volta demonstra que mudámos um pouco
desde os ritos arcaicos, mas menos do que gostaríamos de
acreditar.
Diferentemente dos etnólogos que querem manter a au-
tonomia ilusória da sua disciplina e que evitam recorrer à
expressão «bode expiatório », para não terem de penetrar nas
análises complexas que se tornam inevitáveis uma vez abo-
lida a separação absoluta do arcaico e do moderno, creio que
as utilizações modernas de «bode expiatório» são essencial- No tín;pano de algumas catedrais figura um anjo muito
mente legítimas. Vejo aqui um sinal entre outros de que, grande munido de mna balança . Pesa as almas para a eterni-
longe de permanecer letra morta na nossa sociedade, a reve- d~de. S~ a. arte não tivesse renunciado, actualmente, a expri-
lação judaico-cristã cada vez se torna mais efectiva. nur as ideias que fazem girar o mundo, rejuvenesceria esta
A desritualização moderna exibe o ·s ubstracto psicosso- antiga _p~sagem das almas e seria mna pesagem das vítimas que se
cial dos fenómenos rituais. Gritamos «bode expiatório» para esculpma no frontão dos nossos parlamentos, das nossas mli-
estigmatizarmos todos os fenómenos de «discriminação » versidades, dos nossos palácios de justiça, das nossas casas
política, étnica, religiosa, social, racial, etc., que observamos editoras, das nossas estações de televisão.
em nosso redor. A nossa sociedade está mais preocupada com vítimas do
Temos razão. Doravante, vemos sem dificuldade que os que alguma vez esteve. Mesmo se não passa de uma grande
bodes expiatórios pululam por todo o lado onde os grupos c~m~~ia, o fenómeno não tem precedentes. enhum período
humanos procuram fechar-se numa identidade comum, local, histonco, nenhuma sociedade nossa conhecida, alguma vez
nacional, ideológica, racial, religiosa, etc. falou das vítimas como nós fazemos. Pode discernir-se, no
As teses que defendo baseiam-se na intuição popular que passado recente, as premissas da atitude contemporânea, mas
aflora no sentido moderno de «bode expiatório ». Esforço-me todos os dias são batidos novos recordes. Todos somos actores
por desenvolver as implicações qesta intuição. É mais rica de a~s~m como testemunhas de uma grande estreia antropo-
saber verdadeiro do que todos os conceitos inventados pelos log1ca.
etnólogos, pelos sociólogos e pelos psicólogos. Todos os dis- Examinem os testemunhos antigos, pesquisem por todo
cursos acerca da exclusão, da discriminação, do racismo, etc., o lado, explorem todos os cantos do planeta e em parte
permanecerão superficiais enquanto não atacarem os fun- nenhuma encontrarão algo que se assemelhe, mesmo de
damentos religiosos dos problemas que cercam a nossa so- muito longe, à preocupação moderna com as vítimas. Nem na
ciedade. China dos mandarins, nem no Japão dos samurais nem nas

198 199
Para justificarmos as maldições que dirigimos a nós mes-
Índias, nem nas sociedades pré-colombianas, nem na Grécia,
mos não basta constatarmos que somos mais ricos e estamos
nem na Roma da República ou do Império se preocupavam
melhor equipados do que todo o universo antes de nós. Até
minimamente com as vítimas que sacrificavam, sem conta-
mesmo _nas sociedades mais miseráveis, os rico e os pode-
rem aos deuses, à honra da pátria, à ambição dos conquis-
rosos nao faltavam e davam provas, a respeito das vítimas
tadores, pequenos ou grandes. que os rodeavam, da indiferença mais completa.
Um extraterrestre que ouvisse as nossas afirmações sem
O nosso mundo deve encontrar-se sob a acção de uma
nada conhecer da História humana imaginaria, sem dúvida,
injunção que só a ele se dirige. As gerações que nos precedem
que existiu, algures nos séculos passados, pelo menos um.a
imediatamente já ouviam o mesmo apelo, mas de maneira
sociedade muito superior à nossa sob o aspecto da compai-
menos ensurdecedora. Quanto mais se recua no tempo, mais
xão, tão atenta aos sofrimentos dos infelizes que deixou uma
o apelo enfraquece. Tudo sugere que, no futuro, se irá refor-
recordação imperecível entre os homens e que fazemos d_:la
çar. Visto . l.~ já não odemo_§_fingir nada ouvirmos, conde-
a estrela fixa em redor da qual giram as nossas obsessoes
~mos a's nossas insuficiências, mas não sabemos em non;e
acerca das vítimas. Só a nostalgia de uma sociedade destas
~e quê. Fingimos acreditar que aquilo que nos interpeia,
permitiria compreender a nossa severidade quanto a nós
toda a gente, sempre o ouviu quando, na realidade, somos os
mesmos, as amargas críticas que dirigimos a nós mesmos.
t'.micos a ouvir.
É evidente que esta sociedade ideal nunca existiu. Já no
Em relação aos meios de que dispomos, é certo que as
século xvm, quando Voltaire compos o Cândido, procurou
nossas obras são insignificantes, as nossas falhas excessivas.
uma tal sociedade e nada encontrou de superior ao mundo no
Temos boas razões para nos censurarmos, mas de onde vêm?
qual vivia. Precisou, pois, de inventar a sua sociedade ideal
Os universos que nos precedem partilhavam tão pouco a nossa
do princípio ao fim. preocupação que nem sequer se criticavam pela sua própria
Para nos condenarmos nós mesmos, o mundo tal com.o
indiferença.
está nada fornece de satisfatório. O que não nos impede de
Se interrogarmos os nossos historiadores, invocarão o
repetirmos, insistentemente, contra o universo contempo-
ht~~~nismo e outras ideias do mesmo género que lhes per-
râneo, acusações que sabemos, pertinentemente, serem fal-
mituao nunca mencionarem o religioso, nada dizerem do
sas. Ouve-se, com frequência, que nunca alguma sociedade
papel que o cristianismo, suposto nulo e não inexistente, não
foi mais indiferente aos pobres do que a nossa. Como pode-
pode deixar de desempenhar neste caso.
ria isto ser verdade, dado que a ideia de justiça social, por
É certo que em França o humanismo se desenvolveu con-
muito imperfeitamente realizada que seja, não se encontra
t~a o cristianismo do Antigo Regime, acusado de cumpli-
em parte alguma? Esta é uma invenção muito recente.
odade com os poderosos, aliás, com razão. De um país para
Se falo tal como faço, não é para exonerar o nosso mundo
outro, as peripécias locais são diferentes, mas não conse-
de todas as censuras. Partilho a convicção dos meus contem-
guem dissimular a origem verdadeira da nossa preocupação
porâneos acerca da culpabilidade deste mundo, mas procuro
moderna com as vítimas, muito evidentemente cristã . O htm1a-
descobrir a razão, o ponto de vistà a partir do qual nos con-
nismo e o humanitarismo desenvolvem-se, em primeiro lugar.1 }
denamos. Penso ~e temos excelentes razões para nos sen-
em terra cristã.
tirmos culp-ados mas nunca são as que mencionamos.
- 1 •

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200
Esta é uma das coisas que ietzsche, contra a hipocrisia nhos; são os nossos próximos que nos lembram o nosso
do seu temro, a mesma que a nossa agora, ~as r:ã~ t~o dever e prestamo-lhes o mesmo serviço. Em suma, no nosso rnú-1
monumentat proclamou vigorosamente._O mais anticnstao verso toda a gente arranja vítimas próprias e o resultado
dos filósofos do século XIX identificou a origem da nossa cul- final é aquele que Cristo antmciou em afirmações que a preo-
pabilidade numa época em que era m~n~s evidente _do_q~1e cupação com as vítimas esclarece pela primeira vez:
hoje em dia, menos caricaturalmente cnsta no seu anticnstia- .. . n fim que se peçn contns do snng11e de todos os profrtns, derrn-
nismo. mndo desdt' n crinçiio do mundo, desde o snngue dt> Abel ...
Se há uma ética do cristianismo, é toda feita do amor pelo (Lc 11, 50-51) .
\ próximo, pela caridade e não é difícil encontrar a origem:
Vindt>, bt>nditos dr Meu Pni, recebt'i 1:'111 hernn çn o Reino qut' vos Esta afirmação verifica-se com um a traso apreciável no
estrí pri> pnrndo desde n crin çiio do Mundo. Porque tive fo me e_dt's- horário previsto pelos primeiros cristãos, mas o importante é
tes-Me de comer, tive sedt' e dt'stes-Me de beber; em peregnno e que se verifica, e não a data da verificação.
recolhestes-Me; estn vn 1111 t' destes-Me de ves tir; ndoeci e visitns- Doravante, t~mos os nossos ritos vitimários, anti-sacrifi-
tt's-Me; es tivt' nn prisiio e fostes ter Comigo .» Entiio, os justos ri> s-
ciais e desenrolam-se dentro de uma ordem tão imutável
ponder-Lhe-iio: «Senhor, q11n11do foi que TI:' vimos co m fome e
Te dt'mos dt> comer, 011 com sede e Te demos de beber? Q11nndo Te como os ri tos ropriamente religiosos. Em primeiro lugar,-
vimos perfg rino e Te recolhemos, ou 1111 t' TI:' vestimos? _E _qunnd~ lan1enta-se as vítimas que se acusa mutuamente de fazer ou
Te vimos dornte 011 nn prisiio, e fo mos visitnr-Te? » E o Rei d1r-lhes-n deixar fazer. Em seguida, lamenta-se a hipocrisia de todas as
em res pos tn: «E111 verdnde vos digo: Sempre que fi zes tes isto num lamentações; finalmente, lamenta-se o cristianismo, indis-
destes Meu s irmiios 111nis pequt'ninos n Mim mesmo o fz zestt's. pensável bode expia tório, pois não h á rito sem vítima e,
(Mt 25, 34-40) ac tualmente, a vítima é sempre ele: é the scapegoat of last resort*
e, num tom nobremente aflito, constatamos que nada fez para
O ideal de uma sociedade estranha à violência rem.onta, «resolver o problema da violência ».
visivelmente, à pregação de Jesus, .ao an(mcio do reino de Nas comparações perpétuas que fazemos entre o nosso
Deus. Lonae de diminuir à medida que o cristianismo se mundo e os outros, temos sempre dois pesos e duas medi-
~fasta, a st~ intensidade aumenta. Este paradoxo é fácil de das. Tudo fazemos para dissimular as superioridades esma-
explicar. A preocupação com a.s ~t~as tornou-se t~na aposta gadoras do primeiro que, de qualquer maneira, só está em
paradoxal das rivalidades m1meticas, das melhores ofertas
1 concorrenciais.
concorrência com ele mesmo, porque engloba, doravante, todo
o planeta.
Existem as vítimas em geral, mas as mais interessantes são Um exame, mesmo que pouco a tento, demonstra que
sempre aquelas que nos permitem condenarmos os nossos tudo o que se possa dizer ' contra o nosso mundo é verda-
vizinhos. E estes fazem-nos a mesma coisa. Pensam, sobre- deiro: é, de muito longe, o pior de todos. Repete-se sem ces-
tudo, nas víti~as pelas quais nos consideram responsáve~s . sar, e não é falso, que nenhum mtmdo alguma vez fez mais
Nem todos fazemos a experiência de São Pedro e de Sao
Paulo, quando se descobrem eles mesmos culpados de p_e~­
seguição e quando batem no peito em vez de nos dos v1z1- * O bode ex pia tório de último recurso (em ing lês no o rig inal. N. T.)

202 203
vítimas do que ele. Porém, as proposições mais opostas sã~ fenómeno económico, segLmdo me parece. A verdadeira força
todas igualmente verdadeiras acerca dele: o nosso mundo e motriz é o fim dos encerramentos vitimários, é a força que,
também e de muito longe o melhor dos mundos, aquele que após ter destruído as sociedades arcaicas, desmantela, dora-
salva mais vítimas. Obriga-nos a multiplicarmos toda a espé- vante, as substitutas, as nações ditas modernas.
cie de propo ições incompatíveis umas com as .outras. _
A preocupação com as vítimas faz-nos avaliar, com raz~o, *
* *
que os nossos progressos no «humanit~~i~mo» são m~ito
lentos e que, sobretudo, não se deve glonhca-los, para ,e:itar Visto que a pesagem das vítimas está na moda, joguemos
abrandá-los mais. A preocupação moderna com as vitimas o jogo sem fazermos batota. Em primeiro lugar, examinemos
obriga-nos a censurarmo-no perman~r:teme~te~ . o pra to da balança que contém os nossos êxi tos: desde a alta
Próprio da preocupação com as vitimas e na? se ~a tisfa­ Idade Média que todas as grandes instituiçõ~s humanas evo-
zer com os êxitos passados. Se se lhe der demasiada impor- luem no rpesmo sentido: o Direito público e privado, a legis-
tância, apaga-se modestamente. Procura desviar dela m.esma lação penal, a prática judiciária, o estatuto das pessoas. Tudo
urna a tenção que deveria apenas ser dirigi~a ~s :í tim~s. se modifica, muito lentamente ao princípio, mas o ritmo ace-
Fustiga-se constantemente, dem.mcia a sua propna mdolen- lera-se cada vez mais e, vista de muito alto, a evolução vai
cia, o seu farisaísmo. É a máscara laica da caridade. sempre no mesmo sentido, em direcção à suav ização d as
Em suma, o que nos impede de examinarmos a ~re~­ penas, em direcção à maior protecção das vítimas potenciais.
cupação com as vítimas de dernasiad~ p~rto_ é esta ~ropna A nossa sociedade aboliu a escravatura, depois a servidão.
preocupação. Quer esta humildade sei~ fmgi~a. o~ sincera, Mais tarde, surgiram a protecção da infância, das mulheres,
está rigorosamente no nosso mundo e e ao cnsbams~o. que dos idosos, dos estranhos de fora e dos estranhos de dentro I

indubitavelmente remonta. A preocupação com a vitimas a luta contra a miséria e o «subdesenvolvimento». Ainda
n ão pensa em termos de es ta tísticas. Funciona de acordo mais recentemente, Lmiversalizou-se os cuidados médicos a I

com 0 princípio evangélico da ovelha tresmalhada. Por ela, protecção dos deficientes, etc.
se for preciso, o pastor abandon ará todo o rebanho. Todos os dias são ultrapassados novos limites. Quando,
Para provarmos a nós mesmos que não somos nem e t~o­ num ponto qualquer do globo, se produz urna catástrofe,
cêntricos, nem triunfalistas, vociferamos contra a auto-sa tis- as nações não sinistradas sentem-se no dever, de agora em
fação burguesa do século XIX, ridicularizamo a ingenuidade diante, de enviarem socorros, de participarem nas operações
do «progres o» e caímos na ingenuidade inv~rsa: acusamo-nos de salvamento. Estes são ges tos mais simbólicos do que
de sermos a mais desmnana de toda as soCledades. reais, dir-me-ão. E respondem a uma preocupação de pres-
As d emocracias modernas podem apresentar, para sua tígio. Sem dúvida, mas em que época anterior à nossa e sob
defesa, um conjunto de realizações de tal modo únicas na que aspectos, a entreajuda internacional constituiu, para as
História humana que fazem a inveja do planeta. nações, urna fonte de prestígio?
O afrouxamento gradual das divisões culturais começa A (mica rubrica sob a qual se pode reunir tudo o que re-
em plena Idade Média e acaba, ac:ualrnente, ~aquilo ~ que sumo desordenadamente, sem me preocupar em ser completo,
se chama a globalização, a qual so secundariamente e um é a preocupação com as vítimas. Actualrnente, por vezes esta

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preocupação exaspera-se de maneira tão caricatural q~1e sus- Naquilo a que actualmente se chama os «direitos do
cita a gargalhada, mas tem de se evitar ver nela uma simples Homem», o essencial é uma compreensão do facto de que
moda, uma tagarelice sempre ineficaz. Em primeiro lugar, qualquer indivíduo ou qualquer grupo de indivíduos pode
não é uma hipócrita comédia. No decurso das épocas, criou tornar-se o «bode expiatório» da sua própria comunidade.
uma sociedade incomparável a todas as outras. Unificou o Acentuar os direitos do Homem é esforçar-se por evitar e
controlar os impulsos miméticos incontroláveis.
nmndo.
Como se passaram as coisas concretamente? Em cada . .~quilo qu~ pressentimos, pelo menos vagamente, é a pos-
geração, os legisladores desciam, mais profundamente, sibilidade, seia para que comunidade for, de perseguir os
nun1a herança ancestral que consideravam um dever trans- seus, quer mobilizando-se de maneira súbita seja contra
formar. Onde os antepassados nada viam para reformar, quem for, seja onde for, seja quando for, seja como for, seja
s~b que pretexto for, seja ainda, mais frequentemente, orga-
descobriam a opressão e a injustiça. O statu quo parecera into-
ruzando-s~ -de maneira permanente em bases que favorecem
cável durante muito tempo, determinado pela Natureza ou
desejado pelos deuses, muitas vezes mesmo pelo Deus cristão. uns à custa dos outros e perpetuam durante séculos, até
Desde há séculos que as vagas sucessivas da preocupa- mesmo milénios, formas injustas da vida social. É contra as
ção com as vítimas revelaram e reabilitaram· novas catego- modalidade inumeráveis do mecanismo vitimário que a preo-
rias de bodes expiatórios nos alicerces da sociedade, sere_s cupação com as vítimas procura proteger-nos.
dos quais só alguns génios espirituais, no pas.sado, ~u~pei­ A força de transformação mais eficaz não é a violência
~evolucionária, mas a preocupação moderna com as vítimas.
tavam que as injustiças que sofriam se podenam eliminar.
A preocupação moderna com as vítimas afir~a~se, ao O que informa esta preocupação, o que a torna eficaz, é um
que penso pela primeira vez, ,nessas instituições religiosas a saber verdadeiro da opressão e da perseguição. Tudo se
que se chama de caridade. E aí que tudo começ.a, ao que passa como se este saber tivesse surgido, ao princípio timi-
parece, com o hospício, essa dependência da Igre1a que ~m damente e se tivesse, pouco a pouco, encorajado devido aos
breve se torna hospital. O hospital acolhe todos os estropia- primeiros êxitos. Para resumir este saber, tem de se voltar às
dos, todos os doentes, sem distinção de pertença social, terri- análises do capítulo anterior: é o saber que separa a signifi-
torial ou mesmo religiosa. Inventar o hospital é dissociar, cação ritual da expressão «bode expiatório» da significação
pela primeira vez, a noção de vítima de qualquer pertença moderna. Enriquece-se todos os dias e amanhã basear-se-á
explicitamente, sem dúvida, na leitura mimética dos rela tó-
concreta, é inventar a noção moderna de vítima.
As culturas ainda autónomas cultivavam toda a espécie rios de perseguição.
de solidariedades familiares, tribais, nacionais, mas não A evolução que resumo de maneira caótica confunde-se
conheciam a vítima em si, a vítima anónima e desconhecida, com o esforço das nossas sociedades para eliminarem as
no sentido em que se diz «O soldado desconhecido». Antes estruturas permanentes de bode expiatório nas quais se
desta descoberta, não havia Humanidade no sentido pleno a baseiam, à medida que se toma consciência da sua existência.
não ser no interior de um território determinado. Actualmente, Esta transformação surge como um imperativo moral. Socie-
todas as pertenças locais, regionais, nacionais definham: Ecce dades que não viam a necessidade de se transformarem
'
modificaram-se pouco a pouco sempre no mesmo sentido,
homo.

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em resposta ao desejo de repararem as injustiças passadas e O nosso mundo. não inventou a compaixão, evidente-
de suscitarem relações mais «humanas» entre os homens. mente, mas urúversalizou-a. Nas cultura s arcaicas exercia-se
Sempre que se ultrapassa uma nova etapa, ao princípio a exclusivamente, no interior de grupos ex tremamente res tri~
oposição é mtúto intensa entre os privilegiados lesados nos tos. A fronteira era sempre marcad a p or vítima . Os mamí-
seus interesses. Uma vez a situação modificada, nunca os feros marcam as fronteiras territoriais com os excreinentos·
resultados são seriamente postos em causa. durante mtúto tempo, os homens fizeram a mesma cai a co~
Nos séculos xvm e xrx, deu-se conta de que esta evolução essa forma p art~ct:lar de excremento constituída, para eles,
estava a: criar um conjunto de nações tanto mais único na pelos bodes expiatorios.
História humana quanto a sua transformação social e moral
era acompanhada de progressos técnicos e económicos tam-
bém eles sem precedentes.
É evidente que foram apenas as classes privilegiadas que
fizeram esta constatação e dela tiraram um orgulho e uma
insolência extraordinários de que as grandes catástrofes do
século XX podem passar, até certo ponto, pelo inevitável castigo.
Os mundos antigos eram comparáveis entre si, o nosso é
verdadeiramente único. A sua superioridade em todos os
domínios é de tal modo esmagadora, de tal modo evidente
que, paradoxalmente, é proibido valer-se dela.
É o receio de um regresso a um orgulho tirânico que o
quer, o receio também de humilhar as sociedades que não
fazem parte do grupo privilegiado. Por outras palavras, é a
preocupação com as vítimas, tuna vez mais, que faz silêncio
sobre ela mesma.
A nossa sociedade acusa-se, constantemente, de crimes e
de erros de que é certamente culpada no absoluto, mas ino-
cente relativamente a todos os outros tipos de sociedades.
Com toda a evidência, não deixámos de ser «etnocêntricos».
Porém, nem por isso deixamos de ser, com a mesma evidên-
cia, a menos etnocêntrica de todas as sociedades. Fomos nós
que inventámos a noção há já cinco ou seis séculos - o capí-
tulo de Montaigne sobre «os canibais» atesta-o. Para conse-
guir esta invenção era preciso ser menos etnocêntrico, dado
que as outras sociedades estavam tão exclusivamente preo-
cupadas consigo mesmas, que a noção de etnocentrismo não
lhes vinha ao espírito.

208 209
XIV

A DUPLA HERANÇA
NIETZSCHEANA

Na nossa pesagem das almas, examinemos agora o prato


da balança que contém os nossos fracassos, os nossos erros,
as nossas falhas. Se o facto de estarmos libertos dos bodes
expiatórios e dos ritos sacrificiais nos dá grandes vantagens,
é também uma causa de opressões e de perseguições inúme-
ras, assim como uma fonte de perigos, uma ameaça de des-
truição.
Desde há séculos que o máximo de justiça que devemos
à preocupação com as vítimas liberta as nossas energias,
aumenta a nossa força, mas submete-nos, igualmente, a ten-
tações às quais sucumbimos a maioria das vezes: conquistas
coloniais, abusos de poder, guerras monstruosas do século xx,
pilhagem do planeta, etc.
De todas as catástrofes dos dois séculos anteriores a este,
· o facto mais significativo, na nossa perspectiva, é a destruição
sistemática do povo judeu pelo nacional-socialismo alemão.
Nada de mais comum do que os massacres, evidentemente,
em toda a História humana, mas geralmente são concebidos
no ardor da acção, representam uma vingança imediata, uma
ferocidade espontânea. Se forem premeditados, respondem a
objectivos facilmente identificáveis.

211
O genocídio hitleriano é outra coisa. É evidente que se liga invertem o erro positivista. A seu ver, só existe a interpreta-
à longa história das perseguições anti-semitas no Ocidente ção. Querem ser mais nietzscheanos do que Nietzsche. Em
cristão, ma s es ta tradição nefasta não explica tudo. es te vez de expulsarem os problemas de interpretação, tal como
projecto de aniquilamento minuciosamente concebido e exe- faziam os positivistas, expulsam os factos.
cutado, há qualquer coisa que escapa aos critérios habituais. Em determinados inéditos do último período, Nietzsche
Longe de servir os objectivos de guerra alemães, este enorme evita o duplo erro positivista e pós-moderno e descobre a
massacre prejudicava-os. · verdade que me limito a repetir depois dele, a verdade que
O genocídio hitleriano contradiz de maneira tão flagrante domina o presente livro: na paixão dionisíaca e na paixão de
a tese exposta no capítulo anterior, a de um mLmdo ocidental Jesus, é a mesma violência colectiva, mas a interpretação é
e moderno dominado pela preocupação com as vítimas, que diferente:
me obriga ou a abandoná-la ou então a fa zer da contradi-
Dioniso contrn o «c rucificado»: ei-ln bem, n oposiçiio. Niio é 11mn
ção que me é assim trazida o cerne da minha interpretação. ..difere nçn qunnto no mtírtir - mn s es te tem um se ntido diferente.
A segLmda solução parece-me ser a boa. O objectivo espiritual A próprin vidn, n sun eternn fecundidnde, o seu eterno retorno, deter-
do hitlerismo, na minha opinião, era arrancar a Alemanha minn o tormento, n destruição, n vo ntnde de nniquilnr. No outro
em primeiro lugar, a Europa em seguida, à vocação que lhes cnso, o sofrimento, o «crucificndo» enqunnto «inocente», serve de
é atribuída pela sua tradição religiosa: a preocupação com as nrgu;nento contrn estn vidn, defórmuln dn sun condennçiio 1 .
vítimas.
Por razões tácticas evidentes, o nazismo em guerra ten- Entre Dioniso e Jesus, não há «diferença quanto ao már-
tava dissimular o genocídio. Penso que, se tivesse triunfado, tir», por outras palavras os relatos da Paixão contam o mesmo
o teria tornado público, a fim de demonstrar que, graças a tipo de drama que os mitos; é o sentido que difere. Ao passo
ele, a preocupação com as vítimas já não era o sentido irre- que Dioniso aprova e organiza o linchamento da vítima (mica,
vogável da nossa História. Jesus e os Evangelhos desaprovam-no.
Supor, tal como faço, que os nazis viam claramente, na É exactamente neste caso que digo e volto a dizer: os mitos
preocupação com as vítimas, o valor dominante do nosso assentam nmna perseguição unânime. O judaísmo e o cristia-
mundo, não será sobrestimar a sua perspicácia dentro da nismo destroem esta Lmanimidade para defenderem as vítimas
ordem espiritual? Não creio. Neste domínio, apoiavam-se no injustamente condenadas, para condenarem os carrascos in-
pensador que descobriu a vocação vitimária do cristianismo, justamente legitimados.
no plano antropológico, Frederico Nietzsche. Esta constatação simples, mas fundamental, por muito
Este filósofo foi o primeiro a compreender que a violência incrível que pareça, ninguém a fizera antes de Nietzsche,
colectiva dos mitos e dos ritos (tudo a que chamava «Dioniso»)
nem sequer um cristão! Por consegLúnte, sobre este ponto pre-
é do mesmo tipo que a violência da Paixão. A diferença não
ciso, deve prestar-se a Nietzsche a homenagem que merece.
reside nos factos, afirma, que são os mesmos em ambos os
Infelizmente, para além deste ponto, o filósofo limita-se a delirar.
casos, mas na sua interpretação.
Os etnólogos eram demasiado positivistas para compreen-
derem a distinção entre os factos e a respectiva interpre- 1 Oeuv res completes, vol. xrv: Frng111e11ts pos t/111111 es début 1888-fnn vier 1889,
tação, a sua representação. Actualmente, os «desconstrutores» Gallimard, 1977, p. 63.

212 213
Em vez de reconhecer na inversão do esquema mítico uma Para escapar às consequências da sua própria descoberta
verdade incontestável que só o judaico-cristianismo procla,ma, e persistir numa negação desesperada da verdade judaico-
Nietzsche tudo faz para de acreditar a tomada de posição a -cristã, Nietzsche recorre a uma manha tão grosseira, tão in-
favor das vítimas. digna das suas melhores análises, que a sua inteligência não
Vê perfeitamente que se está perante a mesma violência lhe resistirá.
em ambos os casos («não é uma diferença quanto ao már- Penso que não é por acaso que a exposição explícita
tir»), mas não vê, não quer ver a injustiça desta violência. por Nietzsche daquilo que Dioniso e o Crucificado têm em
Não vê ou não quer confessar a si mesmo que a unanimi- comum e daquilo que os separa, precede de muito pouco a sua
dade sempre presente nos mitos assenta, forçosamente, em núna definitiva. Os devotos nietzscheanos esforçam-se por
contágios miméticos passivamente sofridos e desconhecidos, privar esta demência de qualquer significado. Compreende-se
quando, pelo contrário, nos Evangelhos, o mimetismo vio- perfeitamente porquê. O não sentido da loucura desempe-
lento é conhecido e demmciado, tal como é já na história de nha, no _pensamento deles, o papel protector que a própria
José e nos outros importantes textos bíblicos. loucura desempenha para Nietzsche. O filósofo não soube
Para desacreditar o judaico-cristão, Nietzsche esforça-se instalar-se, confortavelmente, nas monstruosidades para as
por demonstrar que a sua tomada de posição a favor das quais era impelido pela necessidade de minimizar a sua pró-
vítimas tem raízes nwn ressentimento mesquinho. Ao obser- pria exposição e refugiou-se na loucura.
var que os prirn.eiros cristãos pertenciam, sobretudo, às clas- Há um avanço histórico inexorável da verdade cristã no
ses inferiores, acusa-os de simpatizarem com as vítimas a fim nosso mundo. Paradoxalmente, é a mesma coisa que o enfra-
de satisfazerem o ressentimento contra o paganismo aristo- quecimento aparente do cristianismo. Quanto mais o cristia-
crático. É esta a famosa «moral do escravos». nismo cerca o nosso mLmdo, no sentido em que cerca o último
É assim que Nietzsche entende a «genealogia» do cristia- Nietzsche, mais difícil se torna escapar-lhe por meios relati-
nismo! Julga opor-se ao espírito gregário e não reconhece no vamente anódinos, compromissos «humanistas» no estilo dos
seu dionisíaco a expressão suprema da multidão naquilo que nossos bons velhos positivistas.
ela tem de mais brutal, de mais estúpido. Para eludir a sua própria exposição e para defender a vio-
Ao reabilitar as vítimas do mecanismos vitimários, o lência mitológica, Nietzsche tem de justificar o sacrifício lm-
cristianismo não obedece a segundos pensamentos suspeitos. mano, o que não hesita em fazer, recorrendo, para isso, a
Não se deixa seduzir por um humanitarismo contaminado argumentos monstruosos. Vai mais longe do que o pior dar-
de ressentimento social. Rectifica a ilusão dos mitos, revela a winismo social. Sugere que, sob pena de degenerarem, as
mentira da «acusação satânica».
sociedades devem libertar-se do lixo humano que as a tra-
Visto que Nietzsche é cego aqui ao mimetismo e aos res-
vanca:
pectivos contágios, não vê que, longe de depender de um
preconceito a favor dos fracos contra os fortes, a tomada de O indivíd110 foi tão bem levndo n sério, ti'ío bem exposto como 11111
posição evangélica é a resistência heróica ao contágio violento, nbsoluto pelo cristinnismo, que já ni'ío se podin sacrificá-lo: porém,
é a clarividência de uma pequena minoria que ousa opor-se ao n espécie só sobrevive grnçns nos sncrifícios humnnos.. . A verdn-
gregarismo monstruoso do linchamento dionisíaco. deirn filnntropin exigP o sncrifício n bem dn es pécie - é dum,

214 215
obriga a dominar-se, porque precisa do sacrifício humano. E esta Rodeiam-nos autênticos alucinados que, por vezes, lhes pre-
pseudo-h umanidade que se intitula cristianismo quer, precisa- gam a pior partida que se possa pregar, levam-nos à letra.
mente, impor que ninguém seja sacrificado2. Desde a Segunda Guerra Mundial que toda uma nova
vaga intelectual hostil ao nazismo, mas mais niilista do que
Por muito fraco e doente que estivesse, Nietzsche nunca . nunca, mais do que nunca tributária de Nietzsche, acumulou
perdia urna ocasião de fustigar a preocupação com os fracos montanhas de sofismas para isentar o pensador preferido de
e os doentes. Corno verdadeiro Dom Quixote da morte, con- qualquer responsabilidade na aventura nacional-socialista.
dena qualquer medida a favor dos deserdados. Na preo- em por isso Nietzsche deixa de ser o autor dos únicos
cupaç ão com as vítimas, denuncia a causa daquilo que textos susceptíveis de esclarecerem a rnonstruo idade nazi.
considera o envelhecimento precoce da nossa civilização, o Se existe urna essência espiritual do movimento, é Nietzsche
acelerador da nossa decadência . quem a exprime.
Esta te e nem sequer merece ser refutada. Longe de enve- Os intelectlléüs do pós-guerra escamotearam, leviana-
lhecer rapidamente, o mundo ocidental caracteriza-se por mente, as ·textos que acabo de citar. Em certa medida, sen-
uma longevidade extraordinária, devida à renovação e ao tiam-se au torizados a fazê-lo pelo verdadeiro sucessor de
alargamento constante das elites. Nietzsche, o intérprete quase oficial do seu pensamento aos
A defesa evangélica das vítimas é mais humana do que o olhos das sérnpiternas vanguarda , Martin Heidegger. Já
nietzscheísmo, evidentemente, mas não se deve ver nisso desde antes da guerra que este espírito proh..mdo lançara um
urna distorção de alguma «dura verdade». É o cristianismo interdito prudente sobre a versão nietzscheana do neopa-
que detém a verdade contra a loucura nietzscheana. ganisrno filosófico. Excomungou a reflexão sobre Dioniso e o
Ao condenar, de maneira louca, a verdadeira grandeza Crucificado, demmciando, não sem poucos escrúpulos, uma
do nosso mundo, Nietzsche não só se destruiu a ele mesmo, simples rivalidade mimética entre Nietzsche e o «monoteísmo
mas sugeriu e encorajou as destruições terríveis do nacional- judeu».
-socialismo. Heidegger proibiu o estudo des tes textos sem jamais
Para apressarem a desagregação e a morte do judaico- repudiar o seu conteúdo. Estigmatizar a desumanidade do
-cristianismo, os nazi viam bem que a «genealogia » nietzs- que se passava em redor não era o seu forte, tal como se sabe.
cheana não bastaria. Após a conquista do poder, dispunham A sua autoridade não sofreu com i so. Durante a segunda
de recmsos muito superiores, certamente, aos de um desgra- metade do século xx, permaneceu tão grande que, até aos
çado filósofo meio louco. últimos anos do século, ninguém ousava infringir o interdito
Enterrar a preocupação moderna com as vítimas é a lançado por Heidegger sobre a problemática religiosa de
maneira nacional-socialista de ser nietzscheano. biz-se que Nietzsche.
esta interpretação teria horrorizado o desgraçado Nietzsche.
É provável. O filósofo par tilhava com muitos intelectuais do *
tempo dele e do nosso a paixão pelas promessas irresponsáveis. * *
Os filósofos, para sua desgraça, não estão sós no mundo. Apesar de inúmeras vítimas, a iniciativa hitleriana aca-
bou por fracassar. Longe de abafar a preocupação com as
2 lbid., pp. 224-225. vítimas, acelerou os seus progressos, mas desmoralizou-a

216 217
completamente. O hitlerisrno vinga-se do fracasso desespe- de Nietzsche e de Hitler em demolirem a preocupação com
rando a preocupação com as vítimas, tornando-a caricatural. as vítimas seguida, actualmente, pela fuga dos genealogis-
Num mundo onde, ao que parece, o relativismo triunfou tas, mostra bem que esta preocupação não é relativizável.
do religioso e de qualquer «valor» derivado do religioso, a O nosso absoluto é ela.
preocupação com as vítimas está mais viva do que nunca. Se ninguém consegue pôr «fora de moda » a preocupação
Ao optimismo orgulhoso dos séculos xvm e xrx, que acre- com as vítimas, é porque é a única no nosso mundo a não
ditavam só deverem a eles mesmos o progresso científico e depender da moda (mesmo se as modalidades dependerem
técnico substituiu-se, na segunda metade do século· xx, um dela muitas vezes). Não é por acaso que o aumento em força
pessimismo negro. Apesar de compreensível, esta reacção é da vítima não coincide com o aparecimento da primeira cul-
tão excessiva como a arrogância que a precedeu. tura verdadeiramente planetária.
Tal corno já afirmei, vivemos num mundo que critica a si Para designarem uma dimensão permanente, imutável da
mesmo, constante, sistemática e ritualmente, a sua violência. existência pumana, os filósofos existenciais falavam de preo-
Actuarnos de modo a transpormos todos os nossos conflitos, cupação. 'É . pensando nesta utilização que me sirvo deste
mesmo os que se prestam menos a esta transposição, na lin- termo. Associo-o a moderno para sublinhar o paradoxo de um
guagem das vítimas inocentes. Por exemplo, o debate sobre valor cujo aparecimento histórico de modo nenhum impede
o aborto: quer se seja a favor ou contra, é sempre no inte- que se imponha com a evidência do imutável e do eterno.
resse das «verdadeiras vítimas», a avaliarmos por nós, que Para além dos absolutos recentemente eliminados, o hu-
escolhemos o nosso campo. Quem merece mais lamentações: manismo, o racionalismo, a revolução, até a ciência, não
as mães que se sacrificam pelos filhos, ou as crianças sacrifi- existe, actualmente, o vazio absoluto que nos anunciavam
cadas ao hedonismo contemporâneo? Eis a questão. antigamente. Há a preocupação com as vítimas e é ela que,
Apesar de os niilistas da extrema-esquerda serem tão para o melhor e para o pior, domina a monocultura plane-
apreciadores de Nietzsche corno os niilistas da exh·ema-direita, tária na qual vivemos.
evitam honrar a desconstrução quinta-essencial, aquela que A mw1dialização é o fruto desta preocupação e não o
incide sobre a preocupação com as vítimas. Desde o fracasso contrário. Em todas as actividades económicas, científicas,
do nazismo que nenhum desconstrutor, nenhum desmistifi- artísticas e mesmo religiosas, é a preocupação com as víti-
cador atacou esse valor. E, todavia, é aí que se jogava, aos mas que determina o essencial; não é nem o progresso das
olhos de Nietzsche, o destino do seu pensamento. ciências, nem a economia de mercado, nem «a história da
metafísica ».
* Se examinarmos as dehmtas ideologias, apercebemo-nos
* * de que o que havia de durável nelas era já esta preocupação,
Visto que a preocupação com as vítimas está exclusiva- ainda envolta em superficialidades filosóficas. Actualmente,
mente reservada ao nosso mundo, poderia pensar-se que nos tudo se decanta e a preocupação com as vítimas mostra-se em
marginalizaria en~ relação ao passado, mas não é isso o que plenitude e a sua impureza também. Retrospectivamente, é)
se passa: foi ela que marginalizou o passado. Repetem-nos \ ela, e vê-se bem, que desde há séculos governa em segredo a
em todos os tons que não ternos absoluto, mas a impotência \ evolução do nosso mundo.

218 219
Se a preocupação com as vítimas se revela, é porque todas «sacrificiais», que permanece vulnerável aos ataques de inú-
as grandes formas do pensamento moderno estão esgotadas, meros adversários.
desacreditadas. Depois dos nossos colapsos ideológicos, os A influência de Nietzsche está muito presente no nosso
nossos intelectuais julgavam instalar-se para sempre no delei- mundo. Quando se referem à Bíblia ou ao Novo Testamento,
tável «tacho» de um niilismo sem obrigações nem sanções. muitos intelectuais afirmam pressentir neles, evidentemente
O nosso niilismo é um pseudoniilismo. Para acreditar na sua com uma repugnância à maneira de Nietzsche, aquilo a que
realidade, tenta fazer-se da preocupação com as vítimas urna cham.am «fedores de bode expiatório», suponho que em recor-
atitude que seja evidente, um sentimento de tal modo difun- dação do bode original.
dido que não possa passar por um valor. a realidade, é uma NwKa é do lado de Dioniso e de Édipo que estes subtis
excepção flagrante ao nosso nada de valor. Em seu redor, é, detectives exercem a delicadeza requintada do seu olfacto.
evidentemente, o deserto, mas passa-se a mesma coisa com Observarão que nos mitos, nunca alguém detecta maus chei-
todos os universos dominados por um absoluto. ros de cad~veres mal enterrados. Nunca os mitos são objecto
da mínima suspeita.
* Desde o primeiro Renascimento que o pagão goza, junto
* * dos nossos intelectuais, de uma reputação de transparência,
de saúde e de salubridade que nada pode abalar. Opõe-se
O que exigia ainda para ser detectado, há um século, ou
sempre favoravelmente a tudo o que o judaísmo e o cristia-
seja, a perspicácia de Nietzsche, actualmente é percebido pela
nismo, pelo contrário, comportassem de «malsão».
primeira criança que chega. A sobreavaliação constante trans-
Inclusive até ao nazismo, o judaísmo era a vítima pre-
forma a preocupação com as vítimas numa injunção totali-
ferencial deste sistema de bode expiatório. O cristianismo
tária, numa inquisição permanente. Os próprios m edia se
vinha somente em segtmdo lugar. Em contrapartida, a partir
apercebem deste facto e troçam da «vitirnalogia», o que os não
do holocausto já não se ousa atacar o judaísmo e o cristia-
impede de a explorarem.
nismo é promovido ao papel de bode expiatório número um.
O facto de o nosso mundo se tornar maciçamente anticris-
Toda a gente se extasia com o carácter arejado, saudavel-
tão, pelo menos nas elite , não impede, pois, a preocupação
mente desportivo da civilização grega, perante a atmosfera
com as vítimas de se perpetuar e de reforçar, ao mesmo tempo fechada, desconfiada, enfadonha, repressiva do universo
que torna forma muitas vezes aberrantes. judaico e cristão. Esse é o bê-á-bá da universidade, também é
A inauguração majestosa da era «pós-cristã » é urna brin- o verdadeiro laço entre os dois nietzscheísmos do século xx,
cadeira. Encontramo-no num ultracristianisrno caricattual a sua hostilidade comum à nossa tradição religiosa.
que tenta escapar à órbita judaico-cristã ao «radicalizar» a Para que o nosso mundo escapasse, verdadeiramente, ao A
preocupação com as vítimas num sentido anticristão. cristianismo, seria preciso renunciar, realmente, à preocupa- \\
As transcendências enganadoras estão a desagregar-se ção com as vítimas e foi exactamente isto que Nietzsche e 9
no universo inteiro sob o efeito da revelação cristã. Esta desa- nazismo compreenderam. Esperavam relativizar o cristia-
gregação origina o recuo do religioso um pouco por todo o nismo, revelar nele uma religião como as outras, susceptível
lado incluindo, paradoxalmente, o recuo do próprio cristia- de ser substituída ou pelo ateísmo, ou por uma religião
nismo, durante tanto tempo contaminado de sobrevivências verdadeiramente nova, completamente estranha à Bíblia.

220 221
Heidegger não abandonara toda a esperança de urna extinção autêntica cruzada contra a opressão e a perseguição de que
completa da influência cristã e de urna re-partida do zero de seriam o ferro de lança.
um novo ciclo mimético. Penso que é este o sentido da frase Na linguagem simbólica do Novo Testamento, pode
mais célebre da entrevista testamenteira publicada em Der dizer-se que, para tentar restabelecer-se e triunfar de novo,
Satanás serve-se, no nosso mundo, da linguagem das víti-
Spiegel depois da morte do filósofo: «Só um deus nos pode
mas. Satanás imita Cristo cada vez melhor e pretende ultra-
salvar.»
passá-lo. Esta imitação usurpadora está presente desde há
A tentativa para fazer esquecer aos homens a preocupa- muito tempo no mundo cristianizado, mas reforça-se enorme-
ção com as vítimas, a de Nietzsche e a de Hitler, saldou-se mente na nossa época. É o processo que o Novo Testamento
por um fracasso que parece definitivo, pelo menos para já. evoca na linguagem do Anticristo. Para compreender este
O triunfo da preocupação com as vítimas, todavia não é o cris- . termo, deve começar-se por o desdramatizar, porque corres-
tianismo que dele aproveita no nosso mundo, é aquilo a que ponde a uma realidade muito quotidiana, muito prosaica.
se deve chamar o outro totalitarismo, o mais maligno dos dois, O Anticristo lisonjeia-se por trazer aos homens a paz e a
o mais rico de futuro, evidentemente, assim como de pre- tolerância que o cristianismo lhes promete, mas não cumpre.
sente, aquele que, em vez de se opor abertamente às aspira- Na realidade, aqtúlo que a radicalização da vitimalogia con-
ções judaico-cristãs, as reivindica como coisa sua e contesta a temporânea ~raz é um regresso mtúto efectivo a toda a espécie
autenticidade da preocupação coin as vítimas entre os cris- de hábitos pagãos - o aborto, a eutanásia, a indiferenciação
tãos (não sem uma certa aparência de razão ao nível da sexual, os abundantes jogos de circo -, mas sem vítimas reais,
acção concreta, da encarnação histórica do cristianismo real graças às simulações electrónicas, etc.
no decurso da História). O neopaganismo pretende fazer do Decálogo e de toda a
moral judaico-cristã uma violência intolerável e a sua aboli-
Em vez de se opor, francamente, ao cristianismo, o outro
ção completa é o primeiro dos objectivos. A observância fiel
totalitarismo ultrapassa-o pela esquerda.
da lei moral é percebida como uma cumplicidade com as
Durante todo o século xx, a força mimética mais pode- forças de perseguição, que seriam essencialmente religiosas.
rosa nunca foi o nazismo nem as ideologias aparentadas, Visto que as Igrejas cristãs tomaram consciência, tardia-
todas aquelas que se opõem, abertamente, à preocupação mente, das suas faltas de caridade, da conivência com a ordem
com as vítimas, as que reconhecem de bom grado a sua ori- estabelecida, no mm1do de ontem e de hoje, sempre «sacrifi-
gem judaico-cristã. O movimento anticristão mais forte é o cial», são particularmente vulneráveis à chantagem perma-
que reassume e «radicaliza » a preocupação com as vítimas nente a que o neopaganismo contemporâneo as submete.
para as paganizar. As forças e os principados doravante que- Este neopaganismo situa a felicidade na satisfação ilimi-
rem-se «revolucionários» e censuram ao cristianismo não tada dos desejos e, por conseguinte, na supressão de todos
defender as vítimas com ardor suficiente. No passado cris- os interditos. A ideia adquire um aspecto de verosimilhança /
tão, só viam persegtúções, opressões, inqwsições. no domínio limitado dos bens de consumo, cuja multiplica-
O outro totalitarismo apresenta-se como libertador da ção prodigiosa, graças ao progresso técnico, atenua determi-
Humanidade e, para usurparem o lugar de Cristo, as forças nadas rivalidades miméticas, conferindo uma aparência de
imitam-no de maneira rivalitária, denunciam, na preocupa- plausibilidade à tese que faz de qualquer lei moral um puro
ção cristã com as vítimas, urna hipócrita e pálida imitação da instrumento de repressão e de perseguição.

222 223
CONCLUSÃO

Tal corno já disse, Simone Weil sugere que, antes mesmo


de ser urna 'teoria de Deus, os Evangelhos são urna teoria do
Homem. Apesar de desconhecer o papel da Bíblia hebraica,
esta intuição, naquilo que tem de positivo, corresponde ao
que acabamos de expor.
Para compreender esta antropologia, é preciso completá-la
pelas proposições evangélicas sobre Satanás que, longe de
serem absurdas ou fantasistas, reformulam, numa outra lin-
guagem, a teoria dos escândalos e o jogo de urna violência
mimética que decompõe, em primeiro lugar, as comunida-
des e, em seguida, as recompõe, graças aos bodes expiatórios
unânimes.
Em todos os títulos e hmções atribuídos a Satanás - o «ten-
tador», o «acusador», o «príncipe deste mundo», o «príncipe
das trevas», o «assassino desde a origem», o encenador dissi-
mulado da Paixão - assiste-se ao reaparecimento de todos os
sintomas e da evolução da doença do desejo diagnosticada
por Jesus.
A ideia evangélica de S~tanás permite aos Evangelhos
formularem o paradoxo ftmdador das sociedades arcaicas.
Existem apenas em virtude da doença que deveria impedi-las
de existirem. Nas suas crises agudas, a doença do desejo

225
desencadeia o que faz dela o seu próprio antídoto, a unani- verdade. Reabilita-se os bodes expiatórios injusta-
midade violenta e pacificadora do bode expiatório. Os efeitos mente condenados. Só a Bíblia e os Evangelhos são
apaziguadores desta violência prolongam-se nos sistemas capazes de o fazerem.
rituais que estabilizam as comunidades. É tudo isso .que se
resume na fórmula: Satanás expulsa Satanás . Há, portanto, a par do dado comum e graças a ele, entre
A teoria evangélica de Satanás descobre um segredo que os mitos por um lado e, por outro, o judaísmo e o cristia-
nem os antropólogos antigos, nem os modernos jamais des- nismo, o abismo insondável que separa a mentira e a ver-
dade, a diferença invencível reivindicada pelo judaísmo e o
cob~ir.am. A violênci~ no religioso_ arcaico é um paliativo tem-

lporano. Longe de ficar verdadeiramente curada, a doença


afinal de contas reaparece.
Reconhecer em Satanás o mimetismo violento, tal como
cristianisn:;o. Definimos esta diferença uma primeira vez ao
opormos Edipo a José, e uma segtmda vez opondo os Evan-
gelhos a qualquer mitologia.
A diferença judaico-cristã era sentida pelos primeiros
fazemos, é acabar de desacreditar o príncipe deste mtmdo, é
cristão& quase fisicamente. Hoje em dia, já não é sentida, mas
aperfeiçoar a desmistificação evangélica, é c.o ntribuir para
tornamo-nos capazes de a detectarmos comparando os tex-
essa «queda de Satanás» que Jesus anuncia aos homens antes
tos. Mostramos a sua evidência manifesta no plano da aná-
da crucificação. A força reveladora d-ª-Cruz dissi a as trevas
lise antropológica, definimo-la de maneira racional.
sem as quais o príncipe deste mundo não pode passar para
lmanter o poder. ' *
Sob o aspecto antropológico, os Evangelhos são como um * *
mapa das estradas das crises miméticas e da sua resolução /
A palavra evangélica é a ímica a problematizar, verdadei-
mítico-rih1al, um guia que permite circular no religioso arcaico
ramente, a violência humana. Em todas as outras reflexões
sem se perder.
sobre o Homem, a questão da violência é resolvida antes
mesmo de ser colocada. Ou a violência passa por divina, e
*
são os mitos, ou se atribui à natureza humana, e é a biologia,
* *
ou se reserva a determinados homens apenas (que constituem,
Só há duas maneiras de contar a sequência da crise assim, excelentes bodes expiatórios), e são as ideologias, ou
mimética e da respectiva resolução violenta, a verdadeira e a ainda se considera demasiado acidental e imprevisível para
falsa. que o saber humano possa tê-la em conta: é a nossa boa
1) Ou não se detecta o impulso mimético, porque não velha filosofia das Luzes.
Pelo contrário, perante José, perante Job, perante Je~us,
se participa nele sem suspeitar. Fica-se, assim, con-
denado a uma mentira que nunca se poderá rectifi- perante João Baptista e outr~s vítimas mais, interrogamo-nos:
por que razão tantos inocentes expulsos e massacrados por
0
car, pois acredita-se, sinceramente, na culpabilidade
de todos os bodes expiatórios. São os mitos que tantas multidões furiosas, por que rçi.zão tantas comunidades'
fazem isto. enlouquecidas?
2) Ou detecta-se o impulso mimético no qual não se A revelação cristã esclarece, não apenas tudo o que vem
participa e, então pode descrever-se tal como é na antes dela, os mitos e os rituais, mas também tudo o que
l

227
226
vem depois, a História que estamos a forjar, a decomposição sar Satanás. Não se deve concluir daqtú que os homens vão
cada vez mais completa do sagrado arcaico, a abertura para ser imediatamente libertos do príncipe actualmente caído.
um futur,o mtmdializado, cada vez mais liberto das suas ser- No Evangelho de Lucas, Cristo vê Satanás «cair do céu
vidões antigas, mas privado, ao mesmo tempo, de qualquer como um raio». Com toda a evidência, é sobre a Terra que
protecção sacrificial. cai e não ficará inactivo. Não é o fim imediato de Satanás \ ~ - 0 e o
O saber que a nossa violência adquire dela mesma, gra- que Jesus antmcia, pelo menos ainda; é o fim da sua trans- \' ""' cl ~ ,
ças à nossa tradição religiosa, não suprime os fenómenos de cendência enganadora, do seu poder de restabelecimento da ~
'-'e. bode expiatório, mas enfraquece-os suficientemente para ordem.
l v<!- b,o reduzir cada vez mais, a sua eficácia. É esse o verdadeiro Para significar as consequências da revelação cristã, o
""'(!..., . . ~· • entido da expectativa apocalíptica em toda a História cristã,
1

Novo Testamento dispõe de todo um jogo de metáforas.


e+\ expectativa que nada tem de irracional no seu princípio. Esta Repito que se pode dizer de Satanás que já não consegue
f\.'v "" racionalidade inscreve-se, todos os dias mais proftmdamente, expulsar-?e a si mesmo. Também se pode dizer qu~ já n~o é
' "'
l'\( nos dados concretos da História contemporânea - as ques- capaz de se «enfurecer» e, no fundo, é a m~sma cmsa. ,V~sto
tões de armamento, de ecologia, de população, etc. que os dias de Satanás estão contados, aproveita-os ao maxrmo
O tema apocalíptico ocupa um lugar importante no Novo e muito literalmente, enfurece-se.
Testamento. Longe de ser a repetição mecânica de preocupa- ' O cristia~smo estende o campo de uma liberdade de que
ções judaicas privadas de qualquer actualidade no nosso os indivíduos e as comtmidades fazem o uso que lhes agrada,
mtmdo, tal como Albert Schweitzer pensava e continua a por vezes bom, muitas vezes também mau. ...
afirmar, este tema faz parte integrante da mensagem cristã. A má utilização da liberdade contradiz, evidentemente, ..)

Não se aperceber deste facto é amputar esta mensagem de as as_R.irações_dg Jesus em relação à Humanidade. Porém, se
qualquer coisa de essencial, é destruir a sua unidade. Deus não respeitasse a liberdade dos homens, se se lhes
As análises precedentes culminam numa interpretação impusesse pela força ou mesmo pelo prestígio, pelo contágio ~",,
puramente antropológica deste tema, uma interpretação que, mimético em suma, não se distinguiria de Satanás.
longe de o ridicularizar, justifica a sua existência, tal como Não é Jesus que rejeita o reino de Deus, são os homens,
todas as interpretações simultaneamente desmistificadoras e incltúndo muitos dos que se julgam não violentos, simples-
cristãs da presente obra. mente porque beneficiam ao máximo da protecção das for-
o Ao revelarem o segredo do príncipe deste mundo, ao des- ças e dos principados e porque ntmca usam a força.
o vendarem a verdade dos impulsos miméticos e dos mecanis-
Jesus distino-ue
º
dois ti os de paz. A rimeira é a que pro-
-
mos vitimários, os relatos da Paixão subvertem a origem da põe à Humanidade. Por mtúto simples que sejam as regras,
ordem humana. As trevas de Satanás já não são suficiente- «ultrapassa o entendimento humano », pela boa razão de q~1e
J mente espessas para dissimularem a inocência das vítimas a única paz nossa conhecida são as tréguas dos bodes expia-
que, ao mesmo tempo, são cada vez menos «catárticas». Já tórios, «a paz tal como o mundo a dá». É a paz das f?rças e
não se pode verdadeiramente «purgar» ou «purificar» as dos principados, cada vez mais ou menos «satânica»: E a paz IJ
comunidades da violência. de que a revelação evangélica nos priva cada vez ma.is.
Satanás já não pode recalcar as suas próprias desordens Cristo não pode trazer aos homens a paz verdaderramente
na base do mecanismo vitimário. Satanás já não pode expul- divina sem nos privar, previamente, da única paz de que dis-

228 229
pomos. É este processo histórico, forçosamente temível, que melhores do que eles e passa-se a mesma coisa em relação a todas as
culturas não cristãs. Não é uma identidade cultural determinada que
estamos a viver. dotn o cristinnísmo dn forçn de penetração, é o seu poder de resgntnr
Aquilo que atrasa a «fúria de Satanás», define-o São Paulo, toda n História humann, no resumir e no trnn scender todns ns suns
na epístola aos Tessalónicos, como um kathéchon , ou' seja, fo rmns sacrificiais. É ní que residi:.' n vl:.'rdndeirn metnlí11gungem espi-
como aquilo que contém o Apocalipse no duplo sentido da ritual, iínicn cnpn z de descrevl:.'r e de superar n linguage m dn vio-
palavra, anotado por J.-P. Dupuy: encerrar em si mesmo e lêncin (...). E é isso qlle explica n difu são extremamente rápidn destn
reter dentro de certos limites. religião no mundo pngão, o que lhe permitiu absorver n forçn viva dos
Trata-se, obrigatoriamente, de um conjunto em que as qua- seus símbolos e costumes2.
lidades mais contrárias se compõem, quer a força de inércia
das forças deste mundo, a sua incompreensão da Revelação, *
quer a sua inteligência, a sua faculdade de adaptaçãol. E o * *
atraso do apocalipse também e sobretudo talvez se deva ao A verdade é extremamente rara nesta Terra. Há mesmo
comportamento dos indivíduos que se esforçam por renun- razõés para pensar que deveria estar totalmente ausente.
ciar à violência e por desencorajar o espírito de represálias. Com efeito, os impulsos miméticos são tmânimes por definição.
A verdadeira desmistificação nada tem a ver com os auto- Sempre qpe se verifica um, persuade todas as testemunhas
,, ·móveis e a electricidade, contrariamente ao que Bultmann sem excepção. Faz de todos os membros da comtmidade fal-
imaginava; vem da nossa tradição religiosa. Nós, «moder- sas testemunhas inabaláveis, pois incapazes de perceberem a
nos», acreditamos possuir a ciência infusa apenas devido ao verdade.
facto de estarmos impregnados da nossa «modernidade». Dadas as propriedades do mimetismo, o segredo de
Esta tautologia, que repetimos para nós mesmos desde há Satanás deveria estar ao abrigo de qu'alquer revelação . De
três séculos, dispensa-nos de pensarmos. facto, de duas, uma: ou o mecanismo vitimário se desen-
Por que razão o verdadeiro espírito de desmitização só é cadeia e a sua unanimidade elimina todas as testemunhas
formulado numa única tradição religiosa, a nossa? Não será lúcidas, ou não se desencadeia, as testemunhas continuam
uma injustiça insuportável na época dos «pluralismos» e dos lúcidas, mas nada têm a revelar. Em condições normais, não
«multiculturalismos»? O essencial não será sacrificar a ver- é possível conhecer o mecanismo vitimário. O segredo de
dade à paz do mundo, para evitar as terríveis guerras de
Satanás é inviolável.
religião que se diz prepararmos por todo o lado, se defende-
Diferentemente de todos os outros fenómenos, que têm
mos aquilo que julgamos ser a verdade?
por propriedade fundamental aparecerem (a palavra «fenó-
Para responder a esta pergunta, dou a palavra a Giuseppe
meno» vem de phainesthai: brilhar, aparecer), o mecanismo
Fornari:
vitimário desaparece, necessariamente, por detrás das signi-
O fncto de possuirmos (no cristianismo) um instrumento de conheci- ficações míticas que engendra . É, pois, paradoxal, excepcio-
mento desconhecido dos Gregos, não nos dá o direito de nos julgarmos
nal, único enquanto fenómeno.
1 Sobre este assunto, ver o ensaio de Wolfgang Palaver: Hobbes et le Kntéchon:
the Secularization of Sacrificial Christianity», in Contngion, Primavera de 1995, 2 Giuseppe Fomari, «Laby rinthine Stra tegies o f Sacrifice: The Cretnns by
pp. 57-74. Eurípides», Contngion, Primavera de 1997, p. 187.

'230 231
A inviolabilidade do mecanismo explica a segurança ex- relatos, difundidos mais tarde pelo mLmdo inteiro, que dis-
trema de Satanás antes da revelação cristã. O senhor do mundo tribuirão por todo o lado o saber subversivo dos bodes expia-
julgava-se capaz de subfrair para sempre o seu segredo aos tórios injustamente condenados.
olhares indiscretos, de conservar intacto o instrumento da O pequeno grupo dos últimos fiéis estava já mais do que
sua dominação. E, todavia, Satanás enganava-se. Afinal, dei- semi-apanhado pelo contágio violento. Onde vai buscar,
xou-se «enganar pela Cruz», tal corno vimos. subitamente, a força de se opor à multidão e às autoridades de
Para que a revelação evangélica tenha lugar é preciso Jerusalém? Corno explicar esta reviravolta contrária a tudo o
que o contágio violento contra Jesus seja e não seja unânime. que aprendemos sobre a força irresistível dos impulsos mi-
É preciso que seja Lmânirne para que o mecanismo se pro- méticos?
duza e é preciso que não seja unânime para que este meca- A todas as pergLmtas feitas neste ensaio sempre consegw
nismo possa ser revelado. Estas duas condições não são encontrar aqui respostas plausíveis dentro de um contexto
realizáveis em simultâneo, mas podem realizar-se sucessiva- puramente humano, «antropológico», mas, desta vez, a coisa
é clara/ é 'impossível.
mente.
Para quebrar a unanimidade mimética tem de se pos-
Foi isso que se passou, com toda a evidência, no caso da
tular urna força superior ao contágio violento e se apren-
crucificação. Foi isso que fez com que o mecanismo vitirnário
demos apenas uma coisa, neste ensaio, é que não existe
finalmente pudesse ser revelado.
nenhuma nesta Terra. É, justamente, porque o contágio vio-
No momento da detenção de Jesus, Judas já traiu, todos lento sempre foi omnipotente entre os homens, antes do dia
os discípulos se dispersam, Pedro prepara-se para renegar o da Ressurreição, que o religioso arcaico a divinizou. As so-
mestre. O impulso mimético parece a ponto de se inclinar, tal ciedades arcaicas não são tão es túpidas corno pensam os
corno habitualmente, para a unanimidade. Se isto se verifi- modernos. Têm boas razões para considerarem divina a Lma-
casse, se o mimetismo violento tivesse triLmfado verdadeira- nirnidade v.!ole; lta. { 't -
mente, não haveria Evangelho, só haveria mais um mito. A Ressurreição não é somente milagre, prodígio, trans-
Todavia, no terceiro dia da Paixão, os discípulos voltam a gressão das leis naturais; é o sinal espectacular da entrada
u> / reunir-se de novo em redor de Jesus, que consideram ressus- em cena, no mundo, de Jdffia força superior aos impulsos
citado. Algo se produziu in extremis, que nunca se verifica miméticos.
_.-- Diferentemente deles, esta força nada tem de alu-
'{ nos mitos. Aparece urna minoria contestatária, firmemente cinatório, nem de enganador. Longe de enganar os discí-
ergLúda contra a Lmanimidade persegLúdora, a qual já só é, pulos, torna-os ca azes de detectarem o que não detectavam
por isso, uma maioria, claro que sempre numericamente antes e de se censurarern pela debandada lamentável no§
esmagadora, mas doravante incapaz, tal como sabemos, de dias anteriores, de se reconhecerem culpados pela partici-
impor, universalmente, a sua representação daquilo que se pação no impulso mimético contra Jesus.
passou.
A minoria contestatária é tão minúscula, tão desprovida *
de prestígio e, sobretudo, tão tardia, que em nada afecta o * *
processo vitirnário, mas o seu heroísmo vai permitir-lhe não Que força é esta que triunfa do mimetismo violento? Os
1 apenas manter-se, mas também redigir ou mandar redigir os Evangelhos respondem que é o Espírito de Deus, a terceira

232 233
pessoa da Trindade cristã, o Espírito Santo. É ele, com toda a ao concretizar a ideia demasiado abstracta do pecado origi-
evidência, que se encarrega de tudo. Por exemplo, seria falso nal, tal como James Alison3 bem viu, toma manifesta a sua
dizer dos discípulos que «voltam a recuperar»: . é o Espírito pertinência.
de Deus que os recupera e já não os larga. · 1 •

No Evangelho de João, o nome dado ao Espírito des- *


creve, admiravelmente, o poder que arranca os discípulos ao * *
contágio até então omnipotente, o Paracleto. Para sublinhar o papel do Espírito Santo na defesa da
Comentei este termo em outros ensaios, mas a sua impor- vítimas, talvez não seja inútil observar, para terminar, o
tância para o significado deste livro é tão grande que devo paralelismo das duas conversões magníficas que se produ-
voltar ao assunto. O sentido _principal de parakleítos é o advo- zem em redor da Ressurreição.
gado mm1 tribunaCo defensor dos acusados. Em vez de perí- A primeira é o arrependimento de Pedro após renegar
frases, escapatórias, com o fim de evitar esta tradução, deve Jesus, t~o importante que pode considerar-se como uma nova
preferir-se a todas as outras, deve ficar-se maravilhado com e mais profunda conversão. A segunda é a conversão de
a sua pertinência. É preciso levar à letra a ideia de que o Es- Paulo, o famoso «caminho de Damasco».
pírito esclarece os perseguidores sobre as suas próprias per- Aparei;itemente, tudo separa estes dois acontecimentos:
seglüções. O Espírito revela aos indivíduos a verdade literal não figuram nos mesmos textos, situam-se um exactamente
daquilo que Jesus disse durante a crucificação: «Não sabem no início, o outro exactamente no fim do período crucial do
o que fazem.» Também se deve pensar nesse Deus a que Job cristianismo nascente. As respectivas circunstâncias são milito
chama: «O meu defensor». diferentes. Os dois homens são muito diferentes. O sentido
O nascimento do cristianismo é uma vitória do Paracleto profundo das duas experiências nem por isso é menos exac-
sobre o adversário, ~a~ás, cujo nome significa, original- tamente o mesmo.
mente, o acusador perante um tribunal, aquele que está O que os dois convertidos se tornam capazes de ver, gra-
encarregã do de provar a culpabilidade dos arguidos. Esta é ças às duas conversões, é o gregarismo violento do qual não
uma das razões pelas quais os Evangelhos fazem de Satanás se sabiam posstúdos nem um nem outro, o mimetismo que J
o responsável por todas as mitologias. nos faz participar todos na crucificação.
O facto de os relatos da Paixão serem atribuídos à força Exactamente antes de renegar pela terceira vez, Pedro ouve
espiritual que defende as vítimas injustamente acusadas cor- cantar um galo e lembra-se da pregação de Jesus. Só então
responde, de maneira maravilhosa, ao conteúdo humano da descobre o fenómeno de multidão em que participara. Julgava-
revelação, tal como o mimetismo permite apreendê-lo. -se orgulhosamente imunizado contra qualquer infidelidade
Longe de prejudicar a revelação teológica ou de estar em a Jesus. Ao longo dos Evangelhos sinópticos, Pedro é o
concorrência com ela, a revelação antropológica é insepa- joguete ignorante de escândalos que o manipulam sem que
rável dela . Esta fusão das duas é reclamada pelo dogma da o saiba. Ao dirigir-se à multidão da Paixão alguns dias mais
Encarnação, o mistério da dupla natureza, divina e humana, tarde, insistirá na ignorância dos seres possuídos pelo mime-
de Jesus Cristo. tismo violento. Fala com conhecimento de causa.
1 t
A leitura «mimética» permite realizar melhor esta fusão.
Em vez de eclipsar a teologia, o alargamepto antropológico, 3 The ]oy of being wrong, Crossroad, Nova Iorqu e, 1998.

234 235
No seu Evangelho, Lucas, no instante decisivo, faz atra- que, ao retirar o carácter sagrado a determinados tema s, ao
vessar o tribunal a Jesus sob a conduta dos guardas e os dois d~m~nstrar que Satanás exi~te: err: pri~e~ro lugar, enquanto
homens trocam um olhar que trespassa o coração de Pedro. subdito das estruturas da v10lencia rn1metica, se pensa com
A pergunta que Pedro lê neste olhar: «Por que me perse- /, ' os Evangelhos e não contra eles.
gues? », entendê-la-á Paulo da própria boca de Jesus: «Saul, Deve observar-se que o alargamento antropológico se
Saul, por que me persegues? » A palavra perseguição ainda verifica à custa de domínios que os teólogos actuais, mesmo
figura na segunda frase de Jesus, em resposta à pergunt~ I - os mais ortodoxos, têm tendência para desprezar, porque já
feita por Paulo: «Quem és tu, Senhor? - Sou Jesus que tu per- não os podem integrar nas suas análises. Não querem re-
segues» (Actos 9, 1-5). produzir, pura e simplesmente, as leituras antigas que não
A conversão cristã é sempre esta pergunta colocada pelo retiram, suficientemente, o carácter sagrado da violência.
próprio Cristo. Devido somente a que vivemos num mundo Também não querem suprimir textos essenciais, em nome de
estruturado por processos miméticos e vitirnários de ue mn imperativo de «desmitização» positivista e ingénua, no
todos aproveitamos sem sabermos, somos todos cCunplices da estilo··de Bultrnann. Assim sendo, permanecem silenciosos.
crucificação. - A interpretação mimética permite sair deste impasse.
A Ressurreição faz apreender a Pedro e a Paulo e, depois Longe ,de minimizar a transcendência cristã, a atribuição
deles, a todos os crentes, que q_ualguer encerramento na vio- de significações puramente terrestres, racionais a temas tais
lência sagrada é violência contra Cristo. Q Homem nunca ~ corno Satanás ou a ameaça apocalíptica, torna mais actuais
vítima d~ Deus, Deus é sempre vítima do Homem. do que nunca os «paradoxos» de Paulo sobre a loucura e a
sabedoria da Cruz. Na minha opinião, é na cornparaçã~ com
* os textos mais espantosos de Paulo que se esclarece já e que
* * amanhã se esclarecerá ainda mais, tal como pressente Gil
~ minha pesquisa só indirectamente é teológica, através Bailie4 , a verdadeira desmitização do nosso universo cultural,
da antropologia evangélica demasiado esquecida, ao que aquela que só pode ser oriunda da Cruz:
me parece, dos teólogos. Para a tornar eficaz, prossegui-a, Porque n lingungem da Cru z é lou.curn pnrn os que se perdem, e
durante o máximo de tempo possível, sem pressupor a reali- poder de Deus pnrn os que se snlvam, isto é, pnrn nós, pois está
dade do Deus cristão. Nenhum apelo ao sobrenatural deve escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios e reprovarei a pru-
quebrar o fio das análises antropológicas. dência dos prudentes. Onde está o sábio? Onde está o eru-
Ao dar uma interpretação natural, racional de dados dito? Onde está o investigndor deste século? Porventura, Deus não
antigamente percebidos como dependentes do sobrenatural, considerou loucn n snbedorin deste mundo? Pois, já que o mundo,
com n sun sabedoria níio reconheceu a Deus nn sabedoria divina,
Satanás por exemplo, ou a dimensão apocalíptica no Novo
nprouve n Deus salvar os crentes por meio da loucurn dn pregação.
Testamento, a leitura mimética alarga, na verdade, o domí- Enquanto os judeus pedem sinais, e os gregos buscam n snbedoria,
nio da antropologia mas, diferentemente das antropologias nós pregnmos n Cristo crucificado, escândalo para os judeus e lou-
não cristãs, não minimiza o domínio do mal sobre os homens e cura para os gentios.
a sua necessidade de redenção. 1
Alguns leitores cristãos receiam que este alargamento
4 Violence Lln.veiled, Crossroad, Nova Iorque, 1995.
usurpe o domínio legítimo da teologia. Pelo contrário, creio

236 237
Mns, pnrn os eleitos, tnnto judeus como gregos, Cristo é o poder e n
snbedorin de Deus. ÍNDICE
Portnn to, o qu e é tido como /oucurn de Deus é mnis sábio que
os homens, e o que é tido como frnqu ezn de Deus é mnis forte que os
homens.
(1 Co 1, 18-25).

j'

INTRODUÇÃO .... ...... ....... .. ........ ........... .... ....... ...... .. ..... .... .. ......... ...... 11

PRIMEIRA PARTE
O CONHECIMENTO BÍBLICO DA VIOLÊNCIA
I. É preciso q ue o escândalo aconteça .. .. .... ................. ......... ..... .. .. 23
II. O ciclo da violência mimé tica .............. ...... ... ....... ... ................... . 37
III. Satanás ......................... ...... .. .... ... ...... ... ..... ....... .... ..... ..... .... ..... ..... .. 53

SEGUNDA PARTE
O ENIGMA DOS MITOS RESOLVIDO
IV. O horrível milagre de Apolónio de Ti ana ... .... ... ........ .. ....... ... 71
V. Mi tologia ........................... .. .... ..... .... .......................... .... ........ .. ... 85
VI. Sacrifício ..... ...... ........................ ............ .................. .................. ... 95
VIL O assassínio fundador ...... .... .. ...... .............................. ............... 109
VIII. As forças e os principados ........ .... .. ......... ................ .. ... .... ..... ... 125

TERCEIRA PARTE
O TRIUNFO DA CRUZ
IX. Singularidade da Bíblia ........ ... .. ....... .. .. .......... .... .. ...... .. ..... ........ 135
X. A singularidade dos Evangelhos ..... ......... ...... .. ....... .... .. ... .... ... 155
XI. O triunfo da cruz ... .... .. ...... ...... .... .. ........ .. ....... ... .. ..... .... ....... ... ... . 173
XII. Bode expia tório ............... ... ...... ........... .... ...... .. ... ....... .... ............ . 191
XIII. A preocupação moderna com as vítimas .. ...... .. ... ............ ...... 199
XIV. A d u pla heran ça nie tzsch eana .. .... ..... ................ ... ... ... ............. 211

CONCLUSÃO ....................... ..... ... ...... ........... ....... ... ..... ....... ..... .......... 225

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