CAP{TULO IL
A historiografia latina
IL.1 As origens
Comentar sobre as origens da historiografia latina é algo bas-
tante conturbado. Como ja ressaltou Lintott (1990, p. 226), uma
Proporcao pequena do que foi escrito pelos historiadores roma-
nos chegou até nds. Assim, quando comentamos sobre qual-
quer historiador romano, estamos argumentando a partir da-
quilo que nos foi deixado, ou seja, de uma perspectiva parcial
do que restou da obra de cada um. Além disso, temos que ter
em mente que a grande maioria deles pertencia a elite romana,
razdo pela qual o tema da dominagao romana do Mediterraneo
éuma constante nas obras. Ou seja, sao caracteristicas da cultu-
Ta romana a marca¢ao do tempo e a celebracao da memoria de
Roma, de suas origens até os dominios territoriais do presente
do historiador que narra.
Essa maneira de organizar o tempo por meio de guerras e
triunfos esta relacionada com aspectos das narrativas gregas.
Fica claro, portanto, que as origens e fontes inspiradoras dos
escritores latinos recuam muito, desde as mais obscuras e me-
diadas indicacdes oriundas do Oriente Médio e, de forma mais
direta, dos historiadores gregos. Nao ha diivida de que coube a
difusdo da lingua, literatura e cultura gregas 0 papel central na
=Pedro Paulo Funari e Renata Senna Garraffoni
formacao dos géneros literdrios latinos, como no caso da histo-
riografia. A partir do final do século III a.C. e, em particular, no
decorrer do século I a.C., os romanos travaram contato mais
direto com o mundo helenistico oriundo das conquistas de Ale-
xandre, o Grande. Os romanos jd tinham contatos com a cul-
tura helénica havia muitos séculos, tanto por intermédio dos
etruscos, nos séculos da época da realeza (753-509 a.C.), como
pelo contato com a colonizagao grega no sul da peninsula it:
ca, na chamada Magna Grécia.
Foi apenas com a Segunda Guerra Ptinica (218-201 a.C.) ea
saida da peninsula itdlica que os romanos passaram a ter rela-
¢Oes mais intensas com as monarquias helenisticas. A alianga
de pinicos e macedénicos durante o conflito levou a interven-
¢40 romana mais direta no mundo helénico e, em poucas déca-
das, Roma havia conquistado (ou “libertado”, no linguajar la-
tino) boa parte do mundo grego em meados do segundo século
a.C. A partir dai, os romanos passaram a frequentar as escolas
helénicas mais prestigiosas e o estudo do idioma generalizou-se
entre a elite. Esse envolvimento com os gregos levou a uma re-
lagao ambigua com a cultura deles. Por um lado, a literatura
grega, com sua imensa diversidade e erudicao, da Filosofia mais
abstrata a geografia mais empirica e observadora, tudo causava
admiracao nos latinos, que tomavam os autores gregos mais
antigos como modelos a serem entendidos, primeiro, e segui-
dos, por conseguinte. Havia tanto a atracdo por Homero e pela
literatura do século V a.C. quanto também por toda a renova-
so literdria que havia caracterizado os tempos mais préximos,
do helenismo decorrente da expansio macedénica, a partir dos
anos 330 a.C. Assim, os romanos aprendiam tanto o idioma
arcaico e classico, como o grego da sua época, a lingua comum
(koiné).
=<32sHistoriografia
Esse movimento foi fundamental para o surgimento da lite-
ratura latina, em geral, e da historiografia, em particular. Um
dos mais antigos historiadores que deixou obra substancial e que
chegou até nés é bastante tardio, Saluistio (86-35 a.C.), educado
em um mundo romano que jé estava lendo e falando grego ha-
via mais de 100 anos. Isso explica que Saluistio houvesse lido e
assimilado - para nao dizer imitado - os maneirismos e as as-
perezas do grande historiador grego Tucidides (460-395 a.C.
Nenhum outro historiador latino cldssico deixaria de ser deve-
dor, de uma forma ou de outra, dos gregos, mesmo quando o
conhecimento do idioma declinou, na Antiguidade tardia, a
partir do século IV d.C., pois os gregos continuaram modelares.
Os romanos registravam os feitos dos cénsules a cada ano
(fasti consulares), que devem ser dos inicios da Republica, da-
tada de 509 a.C., segundo a tradico. Na origem, eram regis-
trados, pelos sumos pontifices (pontifices maximi), os eventos
principais de cada ano, tanto referentes aos magistrados, quan-
to outras ocorréncias consideradas dignas de nota, como secas
ou eclipses. Havia, ainda, as tradicdes finebres, quando se pro-
nunciavam encémios ao falecido e demais antepassados na lau-
datio funebris. Ainda que pouco confidveis, essas narrativas fa-
nebres serviriam de base também para os historiadores. As fun-
Ges desses registros eram administrativas e juridicas, no caso
dos Anais, e de elogio dos antepassados, no ambito da compe-
tigéo entre as familias aristocraticas romanas. Os romanos sem
antepassados (noui homines) entravam nessa disputa em des-
vantagem, como aparece, de forma reiterada, nos relatos histo-
riograficos latinos.
A conquista da Italia meridional e das antigas cidades gre-
£as, primeiro, e as lutas no Mediterraneo, no século Ill a.C. e ini-
cio do século I, viriam a consolidar a inser¢éo dos romanos de
2133.Pedro Paulo Funari e Renata Senna Garraffoni
elite nas tradicées culturais de lingua e cultura gregas, incluida
af a historiografia. Esse contato foi reforcado, em termos prati-
cos, pela inclusio de intelectuais de lingua grega nos circulos
romanos e, no caso da historiografia, em particular do historia-
dor Polibio (200-118 a.C.). Polibio de Megalépolis foi tomado
como prisioneiro em 168 a.C., mas logo se integrou a alta socie-
dade romana. Foi responsavel tanto pela difusio de Tucidides
entre os romanos, como se notara com Saluistio, quanto por
criar uma narrativa da ascensao do poder romano no Mediter-
raneo que servira, de certa maneira, de pano de fundo para to-
dos os historiadores latinos posteriores. Polfbio também sera
uma das fontes de inspiracao da nocao de papel decisivo do
acaso (tykhé, fortuna, em latim), divindade que explica tanto as
improbabilidades, como a sorte, aquilo que aparecera em di-
versas narrativas historiogrAficas latinas como felicitas (0 bafejo
da sorte).
O primeiro historiador latino cuja obra chegou até nds de
forma mais ou menos extensa foi Julio César (100-44 a.C.),
ainda que se tenha discutido se se poderia chamé-lo de histo-
riador. De fato, melhor seria definir seus comentarios (com-
mentarii) como obra de um “repérter enganoso” (artful repor-
ter, Welch & Powel 1998), no 4mbito do que alguns chamariam
de propaganda (Konstan, 2005), mas Andrew Lintott prefere
inserir essa atividade na tradigao historiogréfica: “os temas da
Guerra das Gdlias sao tipicos da historiografia romana ma-
dura” (Lintott, 1990, p. 232), ou seja, a virtude romana, a exalta-
40 dos romanos e do poder estabelecido, assim como a oposi-
ao ao poder individual e a revolucdo. Como Lintott reconhece,
isso tudo pode ser considerado irénico, a luz da atuagao politica
do proprio Julio César. De todo modo, a narrativa dos comen-
tarios pode, por um lado, estar na esteira da historiografia, mas
-34-Historiografia
dela se diferencia por ter como preocupacio prec{pua, também
e de forma decisiva, a difusio da boa fama do lider romano.
Esse aspecto de énfase na exaltacio do poder estabelecido, pre-
sente de maneira embrionaria nos escritos de César, é 0 que
Hingley (2005) vai destacar como um dos mais preponderantes
nas leituras da modernidade sobre o Império Romano: alguns
estudiosos teriam, em alguma medida, se embasado nela para
definir 0 modelo de explicacio da expansio romana que, de-
Pois, seria conhecida como romanizagio.
Nesse sentido, Hingley argumenta que, ao tratarmos a escri-
ta de César, as biografias ou a historiografia antiga, temos de
estar cientes de suas formas discursivas e de como os autores
constroem a gloria romana, pois é um topos latino e influenciou
muito a maneira como se entendeu a Histéria de Roma na mo-
dernidade. Hingley destaca que textos como os de César sio
importantes, nao ha diivida disso, mas atualmente, com o de-
senvolvimento da Arqueologia, uma contraposi¢ao entre cultu-
ta material e textos poderia nos trazer tona aspectos da cul-
tura e da sociedade romanas nem sempre presentes nos discur-
sos da elite vencedora. Essa ressalva nos pareceu importante, na
medida em que, como jé destacamos, as obras dos historiadores
latinos ora so consideradas pelo viés do género literdrio, ora
pelo da fonte, pelos modernos, em especial até a primeira me-
tade do século XX, mas atualmente, com a possibilidade de en-
tendé-las dentro de seus contextos politicos e histéricos, abrem-
-se novas chaves de leituras, como a telagéo que os romanos
estabeleciam entre passado e presente, 0 que consideravam dig-
no da meméria coletiva e como realizavam suas escolhas. Por-
tanto, mais do que uma descricao do que realmente aconteceu,
esses textos podem ser lidos, também, como discursos produ-
zidos a partir dos contextos histéricos e culturais, moldando
-35-Pedro Paulo Funari e Renata Senna Garraffoni
comportamentos e construindo visées de mundo. E por isso
que acreditamos que seria interessante pensarmos um pouco
sobre sua recepcao na posteridade.
11.2 A posteridade dos historiadores latinos
Como enfatizou Anthony Grafton (2013a, p. 448), “as reputa-
Ges dos historiadores antigos flutuaram tanto quanto o indice
Dow Jones da bolsa de Nova York - e as vezes com pouca rela-
g4o com o valor intrinseco dos textos em questo”. E mesmo
impressionante como alguns historiadores latinos mantiveram,
ao longo dos séculos, influéncia muito além do campo especia-
lizado do estudo da Histéria: Salustio, Tito Livio e Tacito.
Salustio foi estudado, citado e imitado nao apenas como his-
toriador, stricto sensu, mas também como filésofo moralizador,
pensador politico ¢ estilista. Isso se deve, em primeiro lugar, 4
presenca dominante em suas obras do tema da decadéncia mo-
ral, social e politica. Jé no inicio do Principado, Salustio passou
a fazer parte do canone de autores latinos a serem lidos, posi¢ao
que manteve na Antiguidade tardia, Idade Média, Renascimen-
to e Modernidade, sempre presente nos curriculos escolares.
Com isso, sua influéncia foi imensa, por ser lido por todos os
estudantes, em particular devido 4 sua concepcao de corrup-
¢ao, que advém da vida publica. Nao nos esquecamos
de que Lord Acton, formulador da expressio Power tends to
corrupt, and absolute power corrupts absolutely. Great men are
almost always bad men (“o poder tende a corromper e 0 po-
der absoluto corrompe absolutamente. Grandes homens sao
quase sempre maus”), era, ele proprio, leitor de Saltistio desde
a grammar school (Hill, 2000).
-36-Historiografia
O uso de suas duas obras Catilina e Jugurta no ensino pode
ser avaliado pela sobrevivéncia de mais de 500 manuscritos an-
teriores 4 imprensa, seguidos de 200 edigdes impressas entre
1470 e 1600. Contribuiu, com Tacito, para argumentagoes a fa-
vor do absolutismo em seu auge, entre os séculos XVI e XVII, €,
a partir do século XIX, foi tomado como precursor do rigor his-
torico do positivismo. Patricia Osmond (2013) considera Saluis-
tio atual para discutir questdes como medidas de exce¢ao, 0
papel do metus hostilis (“balanco do medo”) na politica interna,
as vicissitudes da uirtus e da fortuna e a contraposi¢ao da vida
politica 4 contemplativa e literaria.
Tito Livio (59 a.C.-17 d.C.) nao chegou até a modernidade
tao integro, pois, de 142 livros, apenas os volumes 1 a 10 ¢ 21a
45 sobreviveram, e sua edigdo se deve a atuagao de Petrarca,
acrescida da descoberta, em 1527, dos livros 41-45 por Simon
Grynaeus, em Lorsch. Sua influéncia foi muito grande ao longo
dos séculos. Durante a Idade Média, serviu de modelo para di-
versos historiadores, como Einhard em sua biografia de Carlos
Magno, no século IX. No Renascimento, a leitura de Livio ser-
viu para inspirar a agita¢ao politica, assim como a critica aos
livros iniciais por Lorenzo Valla, em 1442, contribuiu para o
desenvolvimento da critica das fontes, tema importante para a
historiografia posterior, toda fundada no estudo dos documen-
tos, conforme ja ressaltamos. Maquiavel, no inicio do século
XVI, iria inspirar-se em Livio e, nos séculos seguintes, ele con-
tinuaria popular. Francis Bacon, em 1605, haveria de designa-lo
como o melhor dos historiadores. Serviu aos propésitos
republicanos a época do Iluminismo, no século XVIII. Mais re-
centemente, como propés Ronald Ridley (2013), o brilhantismo
de suas habilidades narrativas tem sido ressaltado pela historio-
grafia contemporanea.
=a7ePedro Paulo Funari e Renata Senna Garraffoni
Dos historiadores latinos, TAcito (56-118 d.C.) destaca-se até
por ser o unico historiador, antigo ou moderno, a ter gerado
um adjetivo que designa um estilo e uma escola de pensamento,
0 tacitismo (Grafton, 2013b, pp. 920-924). Por um lado, o pré-
prio nome do historiador latino j4 contribufa para que desig-
nasse uma moda, pois “tacito” significa mudo e, dai, direto,
claro, de poucas, mas precisas palavras e conceitos. E certo que
isso nao explica o tacitismo, mas ajuda a entender a facilidade
da difusio da moda tacita, se assim podemos dizer. O floresci-
mento de Tacito deu-se apenas a partir do Renascimento, ainda
que tenha sido lido e preservado durante os séculos da Antigui-
dade tardia e da Idade Média. Para os renascentistas, contudo,
TAcito representava o principio de que a vida cultural muda, até
mesmo de forma radical e abrupta, conforme as circunstancias
politicas e sociais, como a ressoar o provérbio latino: tempora
mutant et nos mutamur in illis (“os tempos mudam e nés mu-
damos com eles”). Foi, também, associado aos desafios da psi-
cologia, da imaginacao (fingere) e do autoengano (Giglioni,
2012). Na mesma linha, seu realismo e sua percep¢ao de que 0
segredo do poder estava na fora bruta (arcana imperii') foi um
leitmotiv da Modernidade e esta na origem, em certo sentido
(Keller, 2012), da expressao Realpolitik (o realismo cru do po-
der — Faber, 1966) e da critica acerba do poder (dai, talvez, sua
perenidade).
Considerando, portanto, a repercussao dos escritos desses
trés historiadores latinos e sua influéncia ao longo dos séculos,
comentaremos mais a fundo alguns aspectos de suas vidas e
obras. Antes disso, faz-se necessdrio, com o recurso as fontes
arqueoldgicas, tragar um esbogo da época em que viveram e
escreveram esses historiadores, para que se possa verificar em
que circunstancias redigiram sua producao literaria.
=38-Historiografia
11.3 Um mundo em transforma¢ao
A Arqueologia tem sido considerada, a justo titulo, instrumento
essencial para o conhecimento do mundo antigo. Como afir-
mava Geza Alféldy (1984, p. 14) ja faz algum tempo, in unserer
Zeit alte Geschichte ohne Archéologie nicht mehr denkebar ist
(“em nossa época, a Historia antiga sem Arqueologia nao é mais
concebjvel”). Tampouco convém deixar de lado as evidéncias
materiais para o conhecimento da literatura antiga. Os autores
aqui analisados viveram uma época de transforma¢ées mate-
riais profundas, como tém atestado os estudos arqueoldgicos. A
expansao militar romana consolidou o dominio do Mediterra-
neo no século II a.C., como testemunham tanto a destruicdo de
Corinto e de Cartago, em 146 a.C., quanto as trocas comerciais
ea expansao da economia de mercado. O fim das duas cidades,
como se pode observar pelos vestigios materiais, significou tan-
to o dominio inconteste romano, quanto o ocaso da rivalidade
pelo controle do Mediterraneo Ocidental (Cartago) e Oriental
(Corinto). Os inimigos restantes estavam, em certo sentido, fo-
ra: o império persa, por um lado, e os barbaros, por outro. Nao
havia mais quem pudesse se opor ao poder romano e isso per-
mitiu, entre outras coisas, que os romanos passassem ao con-
fronto de uns contra os outros, como ocorrerd jé no inicio do
século I a.C. Todos os historiadores aqui estudados (Salistio,
Livio, Tacito), cada um a sua maneira, colocavam no fim do li-
mite ao poder romano um desafio, talvez insuperdvel, para a fi-
bra romana. Sem competidor, a soberba, atributo, nao por aca-
so, do ultimo rei de Roma, Tarquinio, 0 Soberbo (535-509 a.C.),
poderia colocar tudo a perder (Woolf, 2012). Os romanos da
elite, a essa altura, no século Il a.C., comecavam a sua educacio
bilingue, tendo o grego como idioma de cultura, e j4 associavam
=39-Pedro Paulo Funari e Renata Senna Garraffoni
a falta de outro poder a possibilidade de perder-se pela hybris
(arrogancia).
As descobertas arqueoldgicas atestam, ainda, o incremento
das trocas comerciais, como bem se pode observar pelo au-
mento dos achados de anforas destinadas ao comércio de vinho,
azeite e temperos (salacées). As guerras civis do primeiro século
a.C. deixaram também evidéncias arqueoldgicas, em particular
pela persisténcia das muralhas nas cidades, sinal evidente das
lutas que se prolongaram por décadas. Muitas delas, além dos
muros, tardaram a construir edificios em pedra e marmore,
nesse ambiente de guerras constantes. A propria cidade de Ro-
ma viveu as lutas e manteve, por exemplo, construgées em tijo-
los e madeira, como no caso das construgées temporarias, em
lenho, para os espetaculos gladiatérios. Isso sé mudaré, de for-
ma radical, com a vitéria de Otaviano em 31 a.C. ea instituicao
do que viria a ser conhecido como paz romana (pax romana).
Otaviano, apés conseguir o poder unico e inconteste, rece-
beu do senado a laurea de ser designado como abengoado pelos
deuses (Augusto) e fechou, de forma inédita, as portas do tem-
plo de Jano (29 a.C.), em sinal da paz que se instaurou e que
duraria, com breves interrup¢ées, até 235 d.C. Esse periodo foi
denominado, em tempos modernos, Principado (31 a.C.-
-235 d.C.), e foi excepcional em muitos aspectos materiais. Em
primeiro lugar, as cidades deixaram de ser amuralhadas, numa
verdadeira revoluco, pois, desde sempre, o mundo havia sido
caracterizado pelas guerras entre urbes que se deviam proteger.
Mais do que isso: os assentamentos urbanos estavam fincados
em elevagées naturais que facilitassem a defesa, naquilo que os
latinos chamavam de oppidum. A partir da paz, cidades foram
construidas fora das colinas, nas campinas, como atestam int-
meros centros urbanos criados nesses dois séculos. Para os que
-40-Historiografia
testemunharam essa mudanga, como Tito Livio e Tacito, isso
s6 podia parecer uma bengio divina, mesmo que temporaria,
como ambos temiam fosse 0 caso.
Nao eram apenas as cidades que se transformavam, mas
também o campo. Os vestigios de fazendas (uillae rusticae)
mostram uma multiplicacio de produtores de vinho e azeite,
assim como de estabelecimentos industriais para a producao de
temperos por terras mediterraneas e atlanticas (Fabiao, 2004).
As anforas mostram uma intensifica¢ao das trocas, com fluxos
entre as regides mais distantes. As estradas também se difun-
diram pelas regides mais interiores, com manuten¢ao cons-
tante, como os vestigios de marcos a cada milha permitem
constatar. A riqueza material pode ser observada no marmore,
mas também na imensa difusio de objetos como a ceramica.
Nem todos estavam contentes com a ordem romana, como se
pode verificar pelos vestigios materiais das Guerras Judaicas de
66/70 e 132/135, assim como pela repressio aos cristdos, cujos
restos materiais dos martires serviriam, séculos depois, para a
instituigdo de outra época, a partir do século IV. Os escravos e
subalternos, como nos atestam os grafites de Pompeia, tam-
Ppouco viviam apenas a louvar os bons tempos.
Salustio, Livio e Tacito experimentaram essas circunstancias
que hoje podemos conhecer melhor pela Arqueologia. Salustio
ficou marcado e mesmo ferido pelas lutas que vivenciou, pela
destruicéo material que relacionava ao dominio absoluto ro-
mano do Mediterraneo. Livio é a testemunha ocular do mila-
gre, que atribufa aos deuses e a seu protegido Augusto, de um
mundo que sai de uma guerra secular para uma paz que, an-
siava ele, pudesse durar. Técito viveu 0 apogeu da paz com sua
opuléncia, que, como moralista, pés-se a combater. As guerras
estavam na fronteira, naquilo que os estudiosos modernos cha-
-41-Pedro Paulo Funari e Renata Senna Garraffoni
maram de limes: as zonas de contato entre romanos e barbaros.
A Arqueologia do limes mostra que os romanos nao sé cons-
truiam fortificagGes, fossos e muros, como, nesse periodo, co-
merciavam com os povos além-fronteira, que podiam ser os
germanos a nordeste, os pictos a noroeste, os berberes a sudo-
este e os arabes a sudeste. Tacito parece ter conhecido bem es-
sas realidades fronteirigas, em que havia conflito, mas também
interagéo. A Arqueologia revela trés momentos distintos, de
cada um dos autores aqui estudados. Salustio viveu o apice das
destruicées derivadas do dominio inconteste romano. Livio foi
contemporaneo e admirador da instaurac¢ao da paz de Augusto,
que lhe parecia, a justo titulo, um milagre. Lembremo-nos de
que nunca antes nem depois houve nessa regiao paz e livre-
-comércio. Tacito, por sua parte, j4 nasceu sob a prosperidade e
foi beneficiado pela ascensao social. Contudo, embora reconhe-
cesse a mudanga ocorrida, conhecedor do limes, admirava, a
seu modo, a simplicidade dos barbaros, associavel a dos primei-
ros romanos. A Arqueologia revela-nos um mundo material,
em sua brutalidade, que muito explica as diferengas entre os
trés historiadores. Passemos, entao, a andlise de suas obras.
Nota
1 Cf. Técito, Anais, 2, 36: Et certamen Gallo aduersus Caesarem exortum est. Nam
censuit in quinguennium magistratuum comitia habenda, utque legionurn leat,
qui ante praeturam ea militia fungebantur, iam tum praetores destinarentur, prin-
ceps duodecim candidatos in annos singulos nominaret. Haud dubium erat eam
sententiam altius penetrare et arcana imperil temptari. (Uma desavenca surgiu
entre Galo e o César. Galo propés que as eleigdes de magistrados deveriam ser
quinquenais e que os comandantes das legides que, antes de receber a pretura,
deixassem o servico militar, deveriam, de imediato, estar designados para a pre-
tura; dessa forma, o principe nomearia doze candidatos a cada ano, Nao havia
diivida de que tal proposta tinha um sentido mais profundo e era uma maneira
de explorar os segredos do poder imperial.)
-42-