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RELATORIO DO PRE 1981 — Agosto, Setembro e Outubro Eu sou menino, voed é menina, No fim do 1? semestre, exatamente no iltimo dia de aula, sur- giu de modo embrioniirio a formacao de dois subgrupos, meninos meninas. Numa atividade com barro, os meninos se agruparam para a construgo de uma pista, eas meninas para a construgao de um castelo, Observei que daquele momento em diante algo iria mudar na dinamica do grupo. Na verdade, aquele estava sendo o primeiro ‘momento em que meninos € meninas se organizavam enquanto grupo, nna construgdo e elaboragdo de um produto comum, importamte frisar que, desde o inicio do ano, eles ja pereebiam suas diferengas — em relagio um ao outro — mas ainda a nivel individual, A configuracio da nossa rodu por exemplo: de um lado sentavam-se (¢ sentam até hoje) meninas, e do outro,os meninos. Na sala a mesma disposiggo para as mesas, Num movimento erescente de busca da identidade, parecia que se fazia necessdria uma separacao fisica, cada ver mais expliita, para 0 conhecimento dos papéis masculino e feminino. De iato, com a explicitagao dos dois grupos, a dindmica como lum todo, mudou radicalmente. Defrontei-me, no inicio deste bimestre, com os dois grupos num comportamento hostil, e num movimento ambiguo de amor ¢ édio, “atragdo-repulsao". Antes de tudo, estava claro para mim que esta forma de relacionamento escondia real necessidade de estarem mais préximos — de se tocarem, de se conhecerem. Estava claro para mim também que a formagao dos dois grupos cra.um desafio de crescimento, tanto para as eriangas quanto para mim, a para as crianga a necesidade de mareaem em suas diferengas —menino e mening para im, iniiar um trabalho em cima dos cstereSipos maveulin © feminino, posibiliande que ve percebessem como cad um & an morsento algun brequei a organizagho dos dois grupos. Pelo contri, minha preocupagio foi ade jstamente trabalhar a da explictagio dos dois grupos ar pons de siguns dias de obscrvasdo, visi um camino seguir, que foo seguine! uns Ave fet atar a. organizacio dos dois grupos, através de ativdades, tendo. uma nica proposta.para les, Estimular a Sooperngdo entre seus elementos © de grupo pata grupo. 3° Explorar situagees que envolvessem tolo © gTUPO. Foi através de propostas de deseo ecolagem, en revi das palavras efonemas simples que i Havlamos visto nol semestre, que Fomeces a trabalhar a organtzagdo de cada grupo ‘Arrumava os materiais Bdsios cm duas mesas, explicnva a proposta's detava que se agrupassem como prterissem, Deinava Emre claro que a proposta era a menma para os dos grupos ‘Ac medmo tompo, surg por aces, uma stage em que uma crianga troune uma xicars de chd para a case, calgumas comesaram a featur gole de chi. Quando vi esta cena, me veio imagem do Pesihim da pa Faiet dele para as erangase logo perce que ot tatun oeadon." Combinamos ento. que sempreno inicio da “roda”, tomarlamos 0 “eachimbo da pa’ urg dese modo, a primeira chance de trabalhar o grupo como vim iodo, no gostoso de bebermos juntos aque chi simbolo de ‘nossa amizade. Sempre uma das criangas buscava, na cozinha, a xicara doch co nual aconiccla todos os das antes de comegarmos nosso trabalho na "rods". Meu encaminhamento na organizagao ¢ conducao da roda também mudou a partir dai, Até entio nossas conversas, discusses € plangjamentos no necessitavam de nenhum apoio, nenhuma pauta escrita. Comecei a sentir que os assuntos eram muitos, todos queriam falar sobre tudo, © no final nos perdiamos no emaranhado de mil questaes. Comecei entdio a anotar numa folha, no meio da roda, tudo 0 que queriam discutir, mostrar, ete. ____ Seguiiamos os assuntos:quem tinha algo a mostrar ou adizer, se inscrevia para tal. Os assuntos jé discutidos eram marcados com um trago. ‘Com este encaminhamento tive muitas chances de trabalhar a relagdo individuo-grupo (dando énfase & cooperagio) e 0 espaco de ‘cada um na construgao do todo. Nesse periodo, de eéecis-fraturado, andava com meu “aro de espuima", que logo as criangas apelidaram de ROSCA, © que me possibilitou, com éxito, explorar o S no meio e no final éa palavra. No dia seguinte propus: jé que estdo falando tanto da minha rosea, vamosfazer uma roscaE fizemos nossa rosea, outra situagao de trabalho, de que © grupo como um todo participou. sy Nyfinal do dia, comiamos nossa rosea com um coro de muitos vunh!... unl De repente, alguém pergunta: — Por que nao fazemos também sempre. um “cachimbo da paz" de comida? si sae Aplausos efusivos para a idéia, ¢ mais que depressa alguém se oferece para trazer um bolo no dia seguinte... No outro dia o bolo chega realmente (), desse dia em diante, iniciamos nosso 2° ritual deamizade com nosso “eachimbo da paz de comida”. No fim do dia a escolha de quem vai trazer qualquer coisa ¢ espontanea. Quem quer, se oferece. Ha dias que trés, quatro criangas se oferecem. _ (Venho trabathando muito através da repartigio da comida, do cachimbo — matemdtica: conjunto, subconjunto, quai de elementos, soma e escrita dos niimeros de | a 9.) Outeo acontecimento importante, demiro dessa ambigiidade “atragdo-repulsdo”, que descrevi no inicio, foi o surgimento da idéia de termos um baile sempre depois.da ligio. Um dado importante foi que minha atuacao nesse jogo foi fundamentalmente de ponte entre,os meninos e as meninas.. Como desde 0 inicio a minha Ieitura da hostilidade entre os grupos foi a da necessidade de se tocarem, de se aproximarem, eu no podia, bruscamente, jogi-los um diante do outro... E ai estava meu desafio: como chegar la? Num primeiro momento a aproximagio foi feita através do cachimbo da paz". No segundo momento, através do baile. Minha atuagao foi a de garantir a explicitagao da vontade de todos, de aproximarem-se, conhecerem-se; logo & vergonha foi passando. Na medida em que os mieninos iam dangando comigo, eu os encaminhava para outro par, ¢ assim no fim tinhamos um baile — meninos ¢ meninas dangando. Eu de ponte ¢ no comando: — TROCA DE PARES! — MENINO COM MENINO! — MENINA COM MENINA! ~ MENINO COM MENINA! SUCESSO TOTAL! Passamos uma semana em que @ atragio mixima era o baile. ‘Satisfeita a curiosidade, o“jogo” do baile foi baixando e apagou. Da minha observagio de um jogo com bonecos de barro nasceu a praposta de fazermos fantoches — mais uma oportunidade para trabalhar 0 grupo como um todo. Foi um trabalho longo, divi- ~ ta dic dace (Base pepe 4 — Pér de molho na agua com cindida. trabalhando oiguino dos personagens—primaramente a aeeshet depois em costura com papel, ¢ por ditima com tecido. a de trigo, 5 — Fazer os bonecos. 6 — Pintar 7 — Vestir os bonecos, 8 — Teatro, Durante a primeira etapa, cada crianga tinha uma bundeia individual, na qual ia pondo.o papel que picava, Em seeuida todas criangas pum, nam balde do grupo, todo o papel qu cada un tinh conseguido par. Fez-se um silencio, uma caina profunds, Para nn fot interessante observar o silencio que envolveu o grupo apis ess Momento cm que se encheu o balde comum com o papel picado ioe todos, Como seaqiele momento cstivaue sende pars seit en avaliando suas conquistas em relagdo ao comportaments host wee haviam tido entre elas, no inicio do bimestre, saa Senti que heviam crescido-e qu : Por isso mesmo, jdestavam condigées de explicar mais seus desejos. Mas a cai : Gongs de xpar mals ses dssos, Mas explicate se Chameistengio para o sil estéra, “que quando eu era cianca,gostava de um mening tinha vrgonha de conta paracte.-eemtioeueantova uma mescecom seumame ond laa gue gosta dle muscu dia gue neste E comecei a cantar a musica: oom «Moet gosta de mim Luciano, / eu também, de voce, Luciano, {vou pedir a seu pai, Luciano, para casar com voc’, Luciano.” A medida que ia cantando, um ar de risonha compreensto © cumplicidade fi allorando no rosto Je todos, Em seguida fui camtando com o nome de cad crianga © rapidsmente a misicatomou conte da roa. num mista re conteeaoe alegria descontraida, declaravam, cantando, que se gostavam. A partir desse dia, sempre quando alguém comecava a cantar a "misiea do Luciano, cantando com « algun omen do Luciano”, cantando com 0 ot Coro estivamos trabalhando em alfabetizacao 1, invaridncia da consoante ¢ a variancia da vogal — a descoberta das familias Silabicas MA ME MI MO MU — RA RE RIRO RU, etc,, introduzi Outra mésica explorando as consoantes: “0 A é uma letra que faz parte de ABC, | Avana, voce no sabe como eu gosto de voce...) Acaud voc® no sabe como eu gosto de vo- c@...(0 D € uma letra”, etc... E assim fomos cantando todos os nossos nomes dentro do abeceditio. was duas misicas nos acompanharam durante toda a confeegao do fantoche, enquanto trabalhavamos todos num sé grupo. Ela se tornou 0 simbolo da atividade ¢ ao mesmo tempo um canal de expresso dos desejos néo explicitos das eriangas. ‘Antes da etapa final do fantoche — 0 teatro com cortina tivemos “ensaios” em varios niveis! 1 — Escolha dos personagens —ensaio com roupa, explorando ‘© movimento dos bragos correspondente aos dois dedos das mos. 2.— Uma etapa onde as criancas trabalharam somente com cabega do fantoche sem roupa. E finalmente o“teatro com cortina”, quese desenvolveu em duas etapas | — Numa primeira etapa, todos se apresentavam juntos, atras da cortina, o que significava que ninguém entendia nada do que diziam, todos falavam ao mesmo tempo num verdadeiro burburinho de agbes. Comecei a intervir no sentido de questionarsea platéia (criangas de outras classes da escola) estavam entendendo (e em muitas ocasides, ‘até ouvindo no meio da gritaria) o que diziam — trabalhando a relagao dinimica ator-platéia. ‘Ao mesmo tempo comecei a observar mais atentamente, se no estava acontecendo algum tipo de agrupamento entre as eriangas que possibilitasse a apresentago do teatro através dos grupos. 1 — Nese 22 semestreinisiamos a revsio de todos os fonemas simples, através de thividudes de jouos © cartas, dtado, eligdes inventadas por mim e pelascraneas, sree ane dat um trabalho sitematico para descoberta das familia silabieas: TThuitar fs lavas que iniciageem com os mesmos fonems ou parcar palaviss que Comegassem com os mesmos fonemas, ec Parte to, muitas eriangas a estavame lendo econstruindofrasescomneetentot Trabathar a formaglo de frases, No inicio frases eurtas: Eu comi banana, Eu tomei Tudo o que me contavam de muita importante pedia para cue escrevessem edevolsis cm forma de lig. ‘Atuaimenteestow iniciando wm trabalho através de pequeros textos, sobre a vids do tipo inserindoaesen fase no (ext 2 Suspeitei que havia, ¢ enceminhei @ organizag pedingo au cada um me fois flan sobre onl peongeac nase 9 le fazia, se ele ia aparecer sozinho ou junto cx yutro persi a, Come st série ee medida que eu ia formulando as perguntas © anotan resposta auma folha de papel, (oi cando eiro-que cada personagem cstava dentco de wm grupoy agrupados atraves de tts interessex 1 — Princesa e a Fada 2— Super Her 3 — Mae ¢ Filha. — Eu sou a princesa que tem um gato. é eee Princesa que tem um gato. O gato é — Eu sou ohomem-aranha que luta com o espectro-man que ¢ a ee Eu sou amie ca filha é ... assim se configurou uma estrutura organizada para a apresentago do teatro; cada grupo fazia sua a 7 spresemagio dot grupo fazia sua apresentac&o, enquanto os 2 Com esta estrutura as préprias criangas organizaram-se sozinhas, sem mais necessitarem de minha intervengdo direta Atualmente 0 desafio maior é fazer uma apresentagao para toda a escola Em cima desse desafio venho trabathando os elementos coreogriffieos: censirio, luz e som, Foi a partir do_surgimento do “cachimbo da paz” que comegamos nossas pesquisas sobre indios. stamos estudando indio agora, néo &? Vou.trazer uns livros ld de casa E nos dias que se seguiram, cada dia era um livro, um objeto, fatos sobre indios, num movimento de pesquisa constante, Todos os livroy que as eriangas traziam, eu separava para estudar. No outro dia expunha resumidamente o que havia estudado, A partir dai anotavamos nossas descobertas e nossas ditvidas. Separei um espaco, um tipo de painel onde fomos fixando, pendurando, tudo o que as criangas traziam sobre o assunto. Enquanto pesquisivamos tipo de habitagao (a construgio da ca com palha de Buriti), lancei a proposta de fazermos uma cabana no argue da escola. Aceitaram imediatamente, Meu objetivo continuava a ser, através da coistrucdo da cabana, trabalhar os dois grupos: menino-menina, A participagiio dos dois grupos se efetuou de modo bastante cooperative ea alegria foi geral no final quando viram a cabana terminada — Acabamos, estd prota a nessa cabana, a cabana do PRE! E imediatamente comegou um jogo, de todo o grupo, onde indios ¢ indias entravam e saiam da cabana, conversando: — Mint mora aqui = Min também mora aqui — Mim ser indie. = Mim ser india, Sonia, responsavel pelo trabalho de pais da escola, contou-me Que havia estado numa aldeia em Mato Grosso. Faleicom ascriangas ¢ ‘combinamos com a Sonia um dia para que ela nos falasse sobre o que viu. A vinda da Sonia provocou nas eriangas a constatagdo de quedo aquilo que estavamos_pesquisando (“estudando”) nos livros cra verdade mesmo...!) Entio a cada encontro com algo que jé haviamos visto —sobre as construgdes das ocas, sobre o burt, sobre alguns habitos — imediatamente repetiam: isso nds jd sabemos, nds vimos no livro isso. Sonia também nos mostrou alguns objetos, falou-nos sobre alguns rituais quando 0 menino ¢ a menina entram na adolescéncia, disse de uma danga da qual participou juntamente com os indios, ¢ que fos ensinou também. Esse na verdade foi o grande momento para as ctiangas. No fim do dia organizaram a “danga do indio”, onde todos pintados dancavam repetindo os movimentos e sons descritos pela Sonia. 9s Depois da vinda da Sonia tivemos um periodo onde li algumas lendas e pesquisamos sobre indios de outros paises — da América do Norte, México, Peru e Colémbia. Esse foi um periodo muito rico, pois as criangas comegaram a fazer comparagées sobre as diferencas semelhangas que existiam entre um povo € outro. ‘Surgiu nese periodo um album de figurinhas, muito bonito, sobre ragas, em que se salientava a cultura de eada povo. Aprovcitel para trabalhar, através do album, as relagdes dos seres humanos com 0 ‘mundo, com a natureza. Relagdes em que, transformando a natureza, criando ¢ recriando as coisas através do trabalho, fazem cultura, Por isso, tem a mesma importincia, o mesmo valor, o trabalho de qualquer ser humano, seja indio, braneo, preto ou amarelo, Depois desse periodo tivemos a visita de um indi ‘depois a visita a uma pequena exposicio na USP sobr A visita do Marcos foi um momento importantissimo para todos nds. Especialmente para mim foi um dado avaliative muitoespecial, de tudo 0 que venho vivendo nesse periodo com eles. Durante todo esse Processo de pesquisa sobre os indios, em varios momentos eu me Guestionei se realmente tudo que estdvamos vendo, “estudando”, como eles préprios gostam de falar, era to importante assim como et estava sentindo que era, para cles E 0 que aconteceu durante a visita do Marsos foi para mim um video-tape de todas as etapas que haviamos vivido até aquele dia. Todas as nossas diividas, nossas descobertas, foram checadas, ndo esqueceram de mencionar uma sequer. Logo de principio eles proprios se organizaram para.a conversa com © Marcos — uma das criangas buscou a folha onde estavam anotadas nossas davidas, entregou-me para que fosse registrando o que Mareos ia respondendo, ¢ 0 “ping-pong” comecou: — Os Suid é a mesma tribo do Xavante? E verdade que os Botocudos usam uma madeira nos libios? — 0 Portugués tomou sua terra, foi? Vocé agiientou carregar 0 tronco? (ritual da adolescéncia) Sua tribo maia os gémeos? — Voc’ pode escother com quem voce quer casar? — Sabia que 0 marido da Madalena quase comeu um bicho parecido com um rato, lino Peru, com os indios?. — Que brincadeiras que as criangas ld brincam? = Sabia que nés aqui também temos nosso “cachimbo da pi 56 que é de ché.. ‘Ao que Marcos questionou: — Mas, na minha tribo, sé quem fuma o cachimbo da paz é 0 Cacique ¢ 0 Pajé... Um momento de surpresa, pois pensivamos que todos fumavam © cachimbe da paz... ao que de supetao uma crianga respondeu: Marcos, mas nossa tribo aqui é diferente, Maddalena & 0 Cacique ¢ nds todos somos 0 Pajé. Ficaram um pouco tocados quando Marcos contou que os indios nde prendiam os passarinhos nas gaiolas, mas também logo. retrucaram: — E, mas voce tem a floresta cheia de passarinhos. No final Marcos contou-nos uma lenda (a pedido das criangas) e depois vimos slides sobre algumas tribos do Xing A nossa ida i USP, para ver a exposigio sobre os indios do Xingu, despertou um novo interesse: o de conhecer melhor a atividade dos pais. E que alguns pais trabalham aa USP. souberam da nossa visita a universidade. Foi a partir desta visita que comegamos uma conversa sobre 0 trabatho dos pais, o que faziam, quantos trabalhavam na USP eos que no trabalhavam Observei nesse momento que as criangas expressavam um misto de fascinio © orgulho quando falavam do trabalho de seus pais. Lancei entio @ proposta de visitarmos os pais no local de sta atividade Profissional. Accitaram cuféricos. Deste modo a Visita a exposigao se tornow também a primeira visita & mae do Mauricio, Irene. Estivemos em seu escritério, depois numa sala de aula: na area de lazer dos estudantes, no bat, vimos onde licaya a biblioteca e CEUTES. Depois do lanche " “pipoca do pipoqueiro” — oferecido pela Irene. voltamos 3 escola, 7 | Wv Mas cis que surge outro “fogo”: mulher pelada Durante uma conversa na roda sobre indios onde viamos fotos de indios ¢ indias nus, uma das meninas levanta 0 assunto: — na minha casa tem uma revista sé de mulher pelada, eu vou trazer amanhd. posso ‘Madalena? ‘ — Caro que pode, respondi. E assim combinamos que “mulher pelada” seria o primeiro assunto da roda do dia seguinte. Percebi_que o interessé, a curiosidade, 0 que buscavam compreender no cra a“muther pelada”, mas sim, 0 nascimento, no 0 ato sexual e sim 0 parto. Pois jé vinha observando com frequéncia varias brincadeiras, onde o interesse central era nascimento ¢ parto, Separsi um livre sobre o parte ¢ todas as suasetapasafim delevar para No dia seguinte, no meio da roda uma. revista Play-Boy eto escondida como algo proibido nas mios; um livro de pinturas de Dézas —sobre nus, trazido por outra crianga e meu livo sobre o part. ‘Comegamos a rod num clima de muita excitagio. Todo o grupo num jogo estereotipadodo comportamento sexual — tanto masculino como. ferninino. As meninas diziam para os meninos: ~ Otha nes vamos mostrar para vocés “mulher pelada’. Os meninos respondiam: = Mostra, nds queremos ver as voazuas. Comecamos vendo o livro de Dégas, quando salientei a importincia dos esbogos, no desenho que 0 livro abordava e dei algumas informagdes sobre o pintor. Aproveitando a oporwunidade, chameia atengao delas para os“esbogos” que tambem realizam quando ‘a0 desenharem fazem ensaios anteriores a0 desenho que consideram definitive. Sugeri ento que guardassem as folhas dos “esbogos” em lugar de simplesmente as jogarem fora. Comparamos as téenicas usadas em dada pintura, seus efeitos, etc Sublinhei a beleza do’trago nos desenhos, a semelhanca que havia entre 0 desenho ¢ um corpo nu “de verdade™. Acrescentel que os pintores necessitam de estudar aatomia para melhor desenharem, que alguns desenham, pintam com modelos, outros nao. Tentei mostrar, enfim, que 0 nu nio, é somente “mulher boazuda”, pode ser também umn desenho maravilhoso de Dégas. AA excitacio foi diminuindo. Passamos para a Play-Boy. Fui vendo calmamente a revista, quando alguém comentava: Olha @ xoxoia!.. Bu dizia: —Xoxota é apclido, o nome € vagina, voc® nunca tomou banho com sua mie? — Nao, nunca! Eu sé vejo minha mae nua pelo buraco da Jechadura! si es 98 — Pois eu tomo banho com minha mae e meu pat. — Eu sé tomo com meu pai. — Olha que xoxota peluda! — Vocé j tem palo na xoxota? — Nao. — Pois voct quando crescer vai ter pélo igual; como eu e sua mie. Essas mulheres da revista j4 t#m pélo. = Mas homom tamibéns tem pélo? —Tem sim, — Meu pai tens um monte dessas revistas ld em casa. — Tem gente que gosta de ver estas revistas, tem gente que no ‘gosta; eu no gost, (E fiz questio de marcar para as criangas que nfo significava nada para mim aquele tipo de revista, que até eu poderia ver mas que preferia ver um tipo de livro como o de Dégas ) — O “pinto” do homem é para fora, é grande? — “Pinto” é apelido, o nome pénis. O“pinto” do homem é para fora, a vagina da mulher & pra dentro — porque sai 0 neném pela vagina. — Otha gue peitao! — Pois é, tnulher tem seio porque mulher dé de mamar 20 neném, mulher tem vagina para dentro para poder sair o neném. Essa mulher da revista esté gravida? Nao. Pois entio eu vou mostrar uma mulher gravida, para voces verem a diferengs E fui mosirando o meu livro sobre o parte. Nessas alturas, todos deixaram de lado a revista Play-Boy € fo interesse passov a fixar-se no meu livro sobre nascimento. © corpo tenso € rigido do inicio da roda estava agora solto, rclaxado, deitado na roda, ouvindo-me falar dos meus partos, de como foi o parto de cada uma das minhas filhas, da bolsa d'égua, que sempre rompeu antes da minha chegada ao hospital, das carreiras por iss0, do colo do tero que nunca dilatou o suficiente para que meus Partos fossem normais, ete. Com isso uma avalanche de perguntas € estérias sobre como cada um nasceu: “Eu nasei pela vogina da minha mae. — Eu nasei pela barriga — Cesariana, como minhas fithas?. E fomos vendo no Tivro, 0 parto cesariana ¢as etapas do parto normal: etapas de dilatagio, a expulsio, o neném saindo, 0 cordio umbilical. ® E assim acabamos @ roda, que no tinha nada a ver com a do inicio. Siléncio e paz. Parecia que nos haviamos isolado do mundo, naquele momento... No dia seguinte uma das criangas trouxe um boneco de mola que sob pressio pulava. Como haviamos vivido naroda do dia anterior lima situago onde senti nas criangas movimentos tensos, ¢ depois relaxamento; aproveite para explorar, através do boneco, tenso € relaxamento. ‘A proposta foi esticar todo 0 corpo como a mola do boneco, soltar 0 corpo caindo “mole” no cho e depois pular como o boneco. re Passamos alguns dias fazendo 0 mesmo exercicio, depois comesamos @ pesquisar tensio ¢ relaxamento nas partes do corpo: ccabega, bragos, pernas © pescogo. Pesquisando © movimento da mola, fizemos uma mola com frame, observamos na natureza coisas que tém este movimento — cip6 enrolado, gavinha do maracujd, uma concha do mar, ete. Exploramos ‘movimentos de enrolar ¢ rolar — para isso fizemos um rocambole. Neste mesmo periodo na “roda” 6 assunto de “xoxota” © voltou, desta vez puxado por um menino: ‘Olha, mew “pinto” (tirando as calgas). 0 meu & maior que 0 seu Aproveitei ¢ falei Eu conheco um livro que mostra a difereaga entre menino & menina nu, voe’s querem ver amanhi na roda? (Dei este cencaminhamento porque senti que este interesse era continuagio do anterior; primeira nascimento agora — como é meu corpo?) ‘A tesposta veio num coro: — Queremos! E o-assunto ja foi para a pauta do dia seguinte. ‘A roda comegou, os meninos um pouco agitados — jogavam de passar a mio na “xoxota” da menina da foto, no livro. Disse-Ihes, entiio, que iriamos fazer barro no final da roda. E fui calmamente mostrando 0 livro ao mesmo tempo que ia contando de quandaeu era cerianga, que eu no entendia como que saia o neném da bartiga da ‘minha mde, que também queria saber como era meu corpo, 0 dos ‘meninos... que cu tinha uma amiga cujos pais nl conversavam sobre lessas coisas com ela e ela se achava perdida, mas que os meus pais, conversavam comigo (tem gente que pensa de um jeito, gente que pensa de outro), mostravam livros, igual ao que estamos fazendo agora, aqui na roda, 4 agitagdo foi desaparecendo, todos de olhos grudadosem mim, conversivamos comparando as diferengas entre 0 corpo da menina € do menino; a roda chegou ao fim, ¢ outra vez 0 corpo relaxado, escorrido, deitado na roda. ‘Como havia sentido no inicio da rodaa necessidade de trabalhar ‘com as mios, em algumas criangas, dei barro no final da roda, mas na verdade a necessidade de manipulagdo jé ndo existia, No dia seguinte,na hora do parque, noto uma correria para a sala, um vai e vem pra late pracé... Vou até léeo que encontro: uma sala de parto, Uma das meninas deitada na mesa, médicos, enfermenras € acompanbantes ao seu redor. Pergunto: —Oqueestaacontecendo?_E me respondem: vai ter um filho! © médico com © livro (meu tivro sobre parto) na mio ia instruindo a paciente. — Agora vai ter que fazer forca! = Mais forca. A bolsa d'égua jd estourou? — Nao, — Abra as pernas! E nada do neném nascer... Pergunto: — Serd que vai ser preciso fazer cesiria? (Minhas intervengdes nos jogos sfo sempre a de quem langa desafios, questiona, irradia, retrata e devolve 0 que ve.) E 0 médico passava rapidamente as folhas do livroem buscardas fotos sobre um parto,de cesaria. © jogo ficou um bom tempo nesse impasse até quea paciente deu © desfecho: No, meu fitho ndo vai nascer hoje, meu marido niio esc Ela agua. No dia seguinte, depots co parque, ja entraram em classe enc” lum jogo organizado. A parturiente, neste dia, era outra, jé nha trazid 10 emma tga eee rte = hes Soe taage oe oon ae wet Bid A lana mm rent cordao umbilical.) ‘que desce da mesa de parto e Puxa, a “perua” jd chegou, deixa eu pegar minha pasta.. Depois desses jogos, dois mais aconteceram também de forma encadeada, de casamiento, Um deles foi bastante rico, cheio de detalhes. Ensaiavam o casamento e depois convidavam as outras criangas para assistirem. No final até platgia também participava jogando arror nos 1a Todo 0 grupo se inteyrou nos dois jogos — havia uma preocupagio nitidamente realista, em copiar fielmente a realidade tanto assim que as “damas de honra” (eram tanto meninas quanto ‘meninos) ajoelharam-se para parecer eriangas pequena, Vejo todo esse provesso, desde o surgimento dos dois grupos até essa sequincia desses quatro jogos, como um toda tinico e articulado. Uma busca curiosa, intensa e viva de entender e assimilar 0 mundo através do jogo dramatico.? 2 Gostaria de wanscrveragu um texto de 1974 ds Telma (ncartegada do Centro de Estudos) sobre jogo dramatico: aa ‘Sendo a representacdo o imeresse maior da criangade ?a6 anes, épara cstaatvidade ‘que ela tra: seus interesses especficos, isto é. ela representa tudo 0 que tenia Compreender melhor. Espectalmente no jogo que ¢ exsencialmente eu isirarento ara assimilr 0 mundo. Poraespretsar-se cognitivamenteeafetivamente,ctrabathar fr dfieutdades. © enriquecimento e socializagdo dos simbolos individuais tomam 0 jogo um insiramento mais efelente de assinilogdo da reahidade. ‘Ao mesmo tempo. sem que isto seja propriamente tum objetivo, fevorecem @ Compreensdo des cidiqus socials. A emergéncia de inereses no jogo possibilia a ampliacdo de experiéncies (ado Dedageigica) que consiste em um confronto planeiadd com a reaidade (rsto) Os retultados desta tenica de rabalho ido iediatos, © jogo passa a assimilay eta ‘nova redlidade maiscomplexa, A trabalher noves papeis, unsdeseconcetes qu 40 através do jogo — slaborades. ‘Um jogo pode ser “forte” foparecer com freqiiéncia) e pobre. Isto quer dizer que s6 se pote ampliar experiéncastracidas pelo joge. Uma realidade pode ser explorada quando se sabe que exisiem condigbes de compreensaoe tnieresee geralmente ela incorporada a0 0. A historia também luminsirumento de snriquecimento do jogo. ‘Quando aoividade pedagogica desloca seu ceniro dacabeca do adult paras apo da ‘rienca ¢ mais especialmente em jogo. «primeira cosa que perde senido ba divs ‘em reas programadas. Tornando-se entdo necessrio um preparo musio maior da brofesora para parte de wna auvidade eportdnea da crianga localize arent at ‘asimilagdo do mando (..) Na educagdo prevescoer. 0 jogo éferramenta de anlie, aso e avaliacdo 0 mesmo tempo. Desde que we esteja fundamentado para compreendélo Como dirta Paget. “@ gente ndo Wi 0 que enzerga, 0 que sobe” Meu desafio foi o de tentarfazer a leitura correta do que via para poder localizar e orientar essa assimilacdo. E especialmente para estar junto com as criangas, nessa onda, que aos poucos vai se formando, crescendo, No inicio é sé Agua solta, sem rumo, que se amontoa. De repente, surgem todos numa mesma dire¢io, numa gigantesca onda, ‘num movimento intenso de busca. Depois, como se estivesse amainado (© fmpeto da procura, a onda se desfaz calmamente numa serena paz.Para mim & maravilhoso. Antes de terminar, gostaria de falar da importincia que teve, para mim, a presenga de tr8s estagidrios, nesse periodo, cm classe. (Esses estagidrios fazem parte do grupo de formagio de educadores do Centro de Estudos.) Foi muito importante porque tive a possibilidade de ter a visio de uma pessoa, que, por no estar envolvids com o processo vivido por ‘mim eas criancas, viu coisas que eu sozinka nao teria visto. Também foi lum desafio t@-los em classe, na medida em que minha eabeca estava em dois pélos: nas criangas —'no espago de cada uma e suas nevessidades —enneles, enquanto adultos, com seu espaco e necessidades especifi- cas de “observadores”. Era como se, de repente, eu, como professora, tivesse duas classes 20 mesmo tempo, Nao quero dizer com isso que esse periodo foi lum peso para mim, Muito pelo contrério, foi um periodo rico, cujo desafio — na minha relagdo com eles, cu professora, ¢ eles “obser- vadores” — foi tentar sempre explicitar ali, na hora, ma minha atuagio com as criancas, que eles “observavam”, 0 que queria com aquele encaminhamento, como ele surgiu, ou o que pretendia com esta ‘ou aguela forma de trabalhar, ete. No final dé estigio, recebemos deles uma carta © como compartithamos de algumas descobertas, espantos e dividas juntos, transcrevo agora a carta 106 Impressdes do grupo de observagio Anete, Moca e Bie A cade emrada na classe do pré, descobrimos que a lua, 00h 0 arco-iis, os ‘plonetas all estavor por guna 1000. Foram openat alguns dias de conte. chegdvamor sentévomas numa adeirinha no conto de sal: e, 2m poucas momentos, sinkamor 0 tamanko dagucla cadeirinha, Tamos obtervando, onctandoo que dave coma dava, Tudo acontecioneguele imenso “espago" "A rede do inicio anunciaria coma seria 0 dia, Soturno, mulher peleda,indio. Parecia muita coisa, como falar disso tudo, 0 que fozer com tudo tts? Tula fexia aniverario: Dany organizando 0 jogo de futebol: Juja com suo ‘Madinha othondo tudo, etenta; Vadicoprocuravauma palavrano diconsria, ‘A coud irazendo poriaistobre indir, Tomarafolando de sua boneca: Avane cuidando 4 limpeza da clase: Emilia razendo o bolo para o cachimbo do pari Joao com seus favies: Mauricio querendo ver uma aldeio de indios: Rogerio se pintanda para a ‘Songa dos indian 'Ecomo numa rode viva todos contribuiam, falavam eparticipavamsem medo pois sabiom que todos tinham um espace gardniide. E Mada devolvis tudo pare a friancas coma mesma intentidade. Tudo era vivo. E tudo pulsava 0 dia prossegula, ¢ nds, “Observadores” tentdvamos persrguclo, Mot que torefa: Uff Fomioche comecave eterminava: jogo dremético: comecava.etermingva: hora ‘de eserever: connegava e ferminava; e tudo linha um ritmo, urna misica e fessenciatmente, harman. Era uma closse. Quase que o tempo todo inhames rte diuso. Eroum corpo cada movimento inka inicio fim E gue sonsacao gostoze sober ‘que a8 cotas tim um fim e logo wm outro nove Icio. a primeira vez que vinvor, tudo parecio umm somo e como era bom ver que ‘oprender podia ser essim O tempo correu. Que pena! O estigio chegou ao fim. Com ceric, amendoinn vito papo trocamos 0” que sensiinos “Notte, vocéviuque incrivelaquela horaem que cantavemefasiemfanioche? Eaguela hora ue fizerorm noscer uma erange? = B ble, bla, bia. Depois de muito ba, bl, bli, vemos vontadede dar alguna coiraem trocado ‘muito que recebemos F af ert, €0 que conseguimor depois de muita conversa Um grande e forte beio denéeirés “Anete Moca Bia 81/929 10s

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