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COMPETÊNCIAS E
HABILIDADES: PROPOSTA
DE INTERVENÇÃO EM
TEXTOS
DISSERTATIVO-
ARGUMENTATIVOS
In ê z G o m e s G u e d e s 1
Po li an a Mari a Alve s 2
INTRODUÇÃO
Diversos documentos oficiais relativos à educação no Brasil, como as diretrizes curriculares nacionais,
os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), seguindo uma
tendência mundial, incluem a necessidade de focar o ensino e a aprendizagem no desenvolvimento
de competências e habilidades pelo aprendiz, em vez de centrá-los em conteúdos conceituais.
O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), a fim de atender a essa demanda, objetiva mensurar
competências, que são modalidades estruturais da inteligência, e habilidades básicas a serem
desenvolvidas e transformadas no processo de ensino e aprendizagem nas escolas de Ensino
Médio. Esse exame busca verificar se os resultados do desempenho dos participantes permitem
a identificação de lacunas a serem preenchidas no aprendizado e de potencialidades que esses
participantes podem apresentar.
De acordo com os especialistas da área, cujos estudos foram apropriados pelos documentos
oficiais do Enem, a noção de competência está vinculada à noção de habilidade, isto é,
“as habilidades decorrem das competências adquiridas e referem-se ao plano imediato do
‘saber-fazer’. Por meio das ações e operações, as habilidades aperfeiçoam-se e articulam-
se, possibilitando nova reorganização das competências” (BRASIL, 2000: 05).
Assim, “Cada uma das cinco competências que estruturam o exame, embora correspondam
a domínios específicos da estrutura mental, funcionam de forma orgânica e integrada”
(BRASIL, 2015: 16).
Dos eixos cognitivos mencionados, dois deles interessam mais à Competência V da Matriz
de Referência para Redação do Enem: o eixo cognitivo “Elaborar proposta”, que se refere à
Competência V propriamente dita, pressupõe recorrer aos conhecimentos desenvolvidos
ao longo da formação escolar do aprendiz para a elaboração de propostas de intervenção
solidária na realidade, respeitando os valores humanos e considerando a diversidade
sociocultural. Esse eixo cognitivo coaduna-se a “Enfrentar situações-problema”, eixo
cognitivo referente à Competência III, o qual é correlacionado à capacidade do aprendiz de
colher dados e informações de diferentes fontes, relacioná-los, organizá-los e interpretá-los
para tomar uma decisão eficiente frente a uma questão problemática, demonstrando sua
habilidade de encontrar saídas para determinada situação e sua predisposição de enfrentar
desafios e superar obstáculos, com foco no objetivo que lhe foi dado.
Assim, na avaliação, espera-se que a proposta de intervenção social seja coerente, esteja
vinculada ao eixo argumentativo do texto e respeite a diversidade sociocultural, sem
qualquer forma de discriminação, coopere para o desenvolvimento humano, garanta a
segurança jurídica, valorize a democracia, defenda o meio ambiente (responsabilidade
socioambiental), identifique as conquistas sociais dos brasileiros, entre outros aspectos
valorativos.
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Nesse sentido, a Competência V deve ser avaliada sob dois focos: a elaboração de proposta
de intervenção social para o problema abordado e o respeito aos direitos humanos. É
imprescindível avaliar, então, se foi elaborada proposta de ação prática e consistente nos
vários âmbitos de atuação na realidade social, congregando os seguintes atores/agentes,
entre outros: governo, iniciativa privada, comunidade (ONG, igreja, associação de bairro),
mídia, escola, família, indivíduo. A avaliação deverá considerar a objetividade, a clareza, a
abrangência, a fundamentação, a argumentação e a plausibilidade das ações sugeridas.
Assim, propostas vagas, superficiais, confusas, pouco abrangentes, pouco plausíveis e
pouco relacionadas ao tema ou ao assunto vão perdendo pontos de acordo com uma
escala de qualidades que vai da inexistência de proposta e da proposta vaga, precária ou
relacionada apenas ao assunto até uma proposta detalhada, muito bem fundamentada,
relacionada ao tema e articulada à discussão desenvolvida no texto.
166 1 Ressalte-se que, a partir do Enem 2017, o nível 0 da competência V passou a englobar, também, a proposta
de intervenção que desrespeita os direitos humanos. Em edições anteriores, o edital do Enem previa que a
redação enquadrada na situação “Fere direitos humanos” seria anulada.
A partir da Matriz de Referência e com vistas a uma avaliação isonômica e objetiva dos
textos produzidos pelos participantes, estabeleceu-se uma Grade Específica com seis níveis
(0 a 5) para a avaliação desses textos. Conforme essa grade, a proposta de intervenção deve
apresentar elementos relacionados com a argumentação textual, tais como ação, agente,
modo/meio de execução, efeito (e detalhamento). Mesmo que o participante apresente
muitas propostas de intervenção em seu texto, a finalidade é avaliar, dentre essas, a mais
efetiva e que esteja atrelada à argumentação desenvolvida em seu texto.
Quadro de perguntas
Nível Perguntas
Para que a avaliação da redação seja feita da forma satisfatória e mais objetiva possível,
é de bom alvitre que se informe o que vem a ser proposta de intervenção. Segundo os
dicionários de linguagem geral, o termo proposta está relacionado a proposição, que se
refere a “sugestão que se faz sobre alguma coisa”, “ação ou resultado de propor”, “aquilo
que se propõe, que se oferece”. Por sua vez, o verbo “propor” refere-se a “apresentar
como sugestão ou opção”; “sugerir”. Intervenção significa ato ou efeito de intervir —
atuar com o intuito de influir sobre questão ou matéria — e indica uma intercessão ou
mediação em alguma situação adversa, um enfrentamento de uma situação posta, de um
problema abordado, uma manifestação com o intuito de causar alguma modificação na
realidade social. Para elaborar a proposta de intervenção, deve-se identificar o problema e
disponibilizar meios de enfrentá-lo.
No texto que trata das bases legais dos PCNEM (2000a, p: 14), registra-se que
elaborar propostas de intervenção que condizem com os direitos humanos, o que o revela
como um cidadão crítico, criativo e participativo. Sob esse viés, a cidadania compreende
a participação social e política, de exercício de direitos e deveres civis, sociais e políticos,
que possibilita ao participante demonstrar, na elaboração da proposta, atitudes de
solidariedade, de cooperação, de não discriminação e de repúdio às injustiças, respeitando
o semelhante e exigindo para si o mesmo respeito.
O respeito aos direitos humanos é uma questão bastante delicada, haja vista que se lida não
só com um direito, mas com princípios e direitos consagrados na Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão1 , de 1789, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de
1948, nos tratados de que o Brasil é signatário — como é o caso do Pacto Internacional
sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, adotado pela ONU em 1966 e promulgado,
no Brasil, pelo Decreto no 591, de 6 de julho de 1992, e da Convenção Americana de Direitos
Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), de 1969 —, na Constituição Federal de 1988 e
nas Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos.
1 No Artigo 1.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, estabelece-se que “Os homens nascem e
são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundar-se na utilidade comum”. A Declaração dos 169
Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, serviu de base para a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
adotada e promulgada pela Resolução 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro
de 1948.
liberdades fundamentais” (art. 13, § 1.º). Desse modo, o sistema educacional deve trabalhar
na defesa, na promoção, no enfrentamento e no combate a violações dos direitos humanos
no Brasil.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos traz, em seu artigo 1.º, que “Todos os seres
humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência
e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”, ratificado pelo texto
da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, que, em seu artigo 5.º, optou
por “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”, o que significa que todos (e cada um)
deverão ser considerados em sua condição de seres que já nascem dotados de liberdade e
de igualdade em dignidade e direitos.
No artigo 3.º das Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos — Resolução
CNE/CP n.º 1, de 30 de maio de 2012 —, cuja finalidade é a de promover a educação para
a mudança e a transformação social, estão estabelecidos os princípios que norteiam a
educação em direitos humanos, quais sejam:
I – dignidade humana;
II – igualdade de direitos;
III – reconhecimento e valorização das diferenças e das diversidades;
IV – laicidade do Estado;
V – democracia na educação;
VI – transversalidade, vivência e globalidade; e
VII – sustentabilidade socioambiental.
Assim, o questionamento que se faz é referente a como o participante lança mão desses
princípios ao elaborar a proposta de intervenção para o problema abordado de acordo
com a temática definida para a redação do Enem. O Caderno de Educação em Direitos
Humanos — Educação em Direitos Humanos: Diretrizes Nacionais, da Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República (SDH/PR), publicado em 2013, explicita cada um
desses princípios:
Art. 10. Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões religiosas,
desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei.
Art. 11. A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do
homem. Todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo,
todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei.
No que se refere à afronta aos direitos humanos, deve-se tentar distinguir o que é um
discurso do senso comum daquilo que, explícita e deliberadamente, desrespeita a
dignidade da pessoa humana. Vale lembrar que, como princípio fundador do Estado
brasileiro (CF, art. 1.º, III), a dignidade da pessoa humana interessa não só pelo seu
caráter principiológico, mas, também, pelo seu relacionamento com os demais direitos
protegidos pelo Estado.
Há proposições que se identificam mais com as chamadas críticas veladas, dentro do senso
comum — entende-se por senso comum o lugar do discurso por onde circulam as ideias,
as opiniões do dia a dia, as formulações de pensamento socialmente admitidas, repetidas,
naturalmente aceitas, sem que sobre elas incida a desconfiança e a crítica. É sabido, no
entanto, que o senso comum veicula inúmeras formas de desrespeito e afronta aos direitos
básicos da pessoa humana, por meio do qual são divulgadas opiniões que, apesar do
conservadorismo, do emprego de clichês e do lugar-comum, não necessariamente se
configuram como afronta aos direitos que se querem ver protegidos.
Em muitos casos, a indignação manifesta-se em vários níveis (leis mais rígidas, pena de
morte, prisão perpétua). As propostas ficariam no âmbito das punições mais severas e
condenáveis do ponto de vista dos direitos humanos. Ainda que sejam inconstitucionais, o
participante poderá, entretanto, estar apenas manifestando sua opinião.
Esse tipo de proposição só será avaliado como proposta de intervenção que não desrespeite
os direitos humanos se decorrer de legitimação por um dos poderes constituídos ou de suas
instâncias e instrumentos — o Estado, por meio do Poder Legislativo, do Poder Executivo
e do Poder Judiciário, as autoridades legitimadas pelo Estado, as legislações etc. —, ou
seja, nesse caso, a aplicação da lei mais severa (pena de morte, pena de prisão perpétua,
tempo de cumprimento de pena mais prolongado, por exemplo, acima de 30 anos, que
é o limite da detenção penal no Brasil) não dependeria da vontade do participante, que
está exercendo o direito de expressar sua opinião. Em casos como esses, entende-se que
o participante recorre ao Estado como ente detentor do poder-dever de garantir a ordem
por meio de sua prerrogativa (embasada em seu poder de império) do direito de punir,
garantido por contrato social preestabelecido.
Em linhas gerais, defende-se que, para não se configurar como desrespeito aos direitos
humanos, a proposta de intervenção deve indicar alteração nas leis ou reconhecer a
sugestão de maior rigor nessas leis, mesmo que opine pela pena de morte e pela prisão
perpétua, ou, no mínimo, indicar um agente qualificado para o fim de aplicar a devida
172 punição ao agressor/infrator. Ressalte-se que a proposta de intervenção que sugira leis
mais severas, inexistentes em nosso ordenamento jurídico, como a pena de morte, não
pode estar seguida de sugestões como “acabar com os infratores”, “torturar, linchar, mutilar
esses malfeitores”, “exterminar essa gente”, “deixar apodrecer na cadeia”, que pressupõem
desrespeitar a dignidade humana.
O tema proposto para a redação do Enem é pautado por questões sociais relevantes e 173
mostra-se compreensível pela sociedade em geral, no sentido de que todos, de alguma
Deve-se, então, elaborar uma proposta bem estruturada, que decorra dos argumentos
desenvolvidos no texto e que permita o enfrentamento do problema com vistas a uma
possível solução, o que não significa que essa proposta deva ser, necessariamente,
original ou inédita. A intervenção pode abranger medidas já sugeridas ou ampliar ações
já implementadas, a exemplo de aumentar o rigor de leis já promulgadas, fiscalizar a
execução de leis já existentes etc. É possível que o participante indique alguma ação que,
em algum lugar, já foi experimentada, como, por exemplo, a execução de um projeto que,
em outro país, tenha gerado resultado positivo e que possa ser transposto para a realidade
nacional. Esse fato não impede a valorização, pelo avaliador, do que foi proposto. É também
possível que o participante proponha projeto ou ação já existente, o que tampouco afeta a
avaliação da proposta, pois não é exigido que seja inédita.
Além de muito bem elaborada, tanto em seu aspecto formal — morfossintático — quanto
no âmbito da elaboração das ideias — atrelada aos argumentos desenvolvidos no do texto
—, a proposta de intervenção deve expressar a capacidade de compreensão da temática e
a abrangência/complexidade da questão social a ser abordada na redação, além de indicar
o encaminhamento das ações elencadas.
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