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Reinhart Koselleck FUTURO PASSADO Contribuigao a semadntica dos tempos histéricos TRADUGAO DO ORIGINAL ALEMAO Wilma Patricia Maas Carlos Almeida Pereira REVISAO DA TRADUGAO César Benjamin CONTRAPONTO Eorrora| PU RIO| © Suhrkamp Verlag Frankfurt am Main, 1979 Direitos para 0 Brasil adquiridos por Contraponto Editora Ltda. Contraponto Editora Ltda. Caixa Postal 56066 Rio de Janeiro ~ RJ ~ CEP 2292-970 “Vetefax: (21) 2544-0206 / 2215-6148 Site: www.contrapontveditora.com. mail: contrapontoeditora@gena Editora PUC-Rio Rua Marquis de S. Vicente, 225 ~ Projeto Comunicar Praga Alcew Amoroso Lima, casa V ivea ~ Rio de Janeiro — RJ ~ CEP 2453-900 elefax: (21) 3527-1838 / 3527-1760 Site: www.puc-rio.br/editorapucrio E-mail: edpucrio@vre.puc-rio.br Conselho Editorial Augusto Sampaio, Cesar Romero Jacob, Danilo Marcondes de Souza Fitho, Maria Clara Lucchetti Bingemer, Fernando Sé, Gisele Cittadino, Reinaldo Calixto de Campos, Miguel Pereira Capa v projeto grfico Regina Ferra, “Todos os direitos reservados, Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por quaisquer meios (eletronico ou meciinico, incluindo fotocdpia e gravagio) ow arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissio escrita das editoras. CaP. Bast, CATALOGACAO-NA-FONTE SINDIGATO NACIONAL DOS EDITOLIS DE LIVROS. BI Koseleck, Reinhart, 1923-2006 Futura passado ; contribuigdo a semantica dos tempos histricos / Reinhart Koselleck + tradi do original alemio Wilma Patricia Maas, Carlos Almeida Pereira 3 rvisio da tradugio Cesar Benjamin = Rio de Janeiro : Contraponto: Fl, PUC-Rio, 2006 368p. 23 cm “Tiadugio de: Vergangene Zakunft ISBN #5-85910-83-6 1 Histria~ Flos 2, Historia - Periodizagio, 3. Historiografia L Titulo. cpp 901 06.2275 cDU 930.1 CAPITULO 3 Critérios histéricos do conceito moderno de revolugaéo Poucas palavras foram tao largamente disseminadas e pertencem de ma- neira tao evidente ao vocabulario politico moderno quanto o termo “re- volucio”, Trat expressoes empregadas de maneira en- fatica, cujo campo semintico é tao amplo e cuja imprecisio conceitual é tao grande que poderia ser definida como um cliché, No entanto, claro esta que o contetido semantico de “revolugdo” nao se reduz a seu empre- go potencial como lugar-comum. Revolugao alude muito mais a desor- dem, golpe ou guerra civil, assim como a uma transformagao de longo prazo, ou seja, a eventos e estruturas que atingem profundamente o nos- so quotidiano. E evidente também que a ubiqitidade do termo “revolu- a0’, como lugar-comum, esta estreitamente ligada a seu sentido pontual bastante concreto. Uma alude ao outro e vice-versa. Nos estudos de ca- se de uma dess rater semantico que se seguem, proponho-me a elucidar essa relacio.! Primeiramente ¢ preciso reiterar que 0 uso € a extensdo do termo sao variaveis, do ponto de vista lingitistico. Quase todo jornal fala da Segun- da Revolugao Industrial, ao passo que a historiografia ainda nao chegou a um acordo quanto a determinacdo dos inicios assim como das carac- teristicas especificas da Primeira. A Segunda Revolugao Industrial nao apenas livrou o trabalho humano do esforgo fisico, mas também trans- feriu processos intelectuais a maquinas capazes de trabalhar de forma auténoma. O conceito de Segunda Revolugao Industrial compreende a cibernética, a fisica atémica ¢ a bioquimica. Tal revolugao ultrapassou a Primeira por uma extensa margem, uma vez que ali se tratava ainda de aumentar a produtividade humana para além do limite das necessidades tradicionais, gracas ao capital, técnica ¢ a divisdo de trabalho. Nesse caso, critérios gerais de distingao nao sao suficientes. Da mesma forma, é possivel ler noticia tas para uma revolugao universal, formulados por Marx e Lenin, e d pois impressos por Mao Ze Dong na bandeira do Partido Comunista Chinés. Na década de 1960, fez parte da situacio politica interna da Chi- na o conceito de Revolugdo Cultural, conceito que tem por tarefa incutir na mentalidade chinesa 0 movimento revolucionério, imprimindo, por assim dizer, a revolugao no préprio corpo das massas. Fm todos os lu- sobre os programas marxi 62 REINHART KOSELLECK * FUTURO PASSADO. gares devem ser criadas ou utilizadas as condigoes prévias capazes de expandir a revolucao proletaria ao redor do globo. Emissarios legais e ile- gais dos comunistas encontram-se ocupados em muitos paises do mun- do, principalmente nos subdesenvolvidos, em realizar esse programa. Como se sabe, na Asia esse programa universal jé foi articulado por meio da alternativa russo-chinesa,? O contetido semantico do termo “revolugio” nado é univoco. Ele varia desde sangrentos movimentos de deposicao c/ou golpes politicos e so- ciais até inovagoes cientificas decisivas, podendo significar tudo ao mes- mo tempo, ou apenas um desses sentidos exclusivamente. Assim, uma revolucao tecnolégica bem-sucedida pressupde um minimo de estabili- dade, a qual, por sua vez, exclui uma revolucao politica ¢ social, ainda que esta possa ser uma conseqiiéncia posterior ou uma precondisao. Nosso conccito de revolugdo pode ser assim definido, de forma ade- quada e legitima, como um conceito geral, que encontra pelo mundo todo as condigées prévias para seu entendimento, mas cujo significado preciso sofre variacées dramiticas de um pais a outro, de uma situagao politica a outra. E quase como se no interior da palavra revolugao habi- tasse uma forca revolucionaria capaz de fazer com que a expressao se dis- semine continuamente ¢ seja capaz de conter em si o mundo todo. Te- riamos dessa forma 0 caso de uma espécie de arqui-semema [Schlagwort] politico, que se reproduz continuamente em cada uma de suas ocorrén- cias, da mesma forma como conduz obrigatoriamente a alteragio da prépria situagao em que ocorre. O que, no mundo, nao se deixa revo- lucionar? E 0 que, em nossa época, nao esté submetido a efeitos revolu- ciondrios? Essas indagag6es nos remetem a uma constatacdo que é parte integrante da modernidade. Se foi possivel caracterizarmos a historia moderna [neuzeitliche Geschichte] como uma era da revolugao, a qual ainda nao chegou ao fim, é porque a essas formulagdes subjaz uma de- terminada experiéncia imediata. E tipico dessa experiéncia que cla se dei- xe submeter ao conceito de revolugao mais do que se poderia eventual- mente supor. O conceito de “revolugado” 6 um produto lingitistico de nossa modernidade [Neuzeit]. Desde 0 século XIX tornou-se comum dis tinguir entre uma revolugao politica, uma revolugio social ou uma re- volugao técnica e industrial. E, desde a Revolugao Francesa, a expresso “révolution” ou “revolution” — ou em qualquer outra lingua que pos- samos utilizar — adquiriu aquelas possibilidades semanticas flexiveis, ambivalentes ¢ ubiquas que vimos investigando até aqui. 0 CONCEITO MODERNO DE REVOLU 63 A seguir acompanharemos a histéria do conceito ao longo do tempo da grande Revolugao Francesa, a fim de, a partir dai, deduzir algumas peculiaridades de nossa experiéncia moderna, reconhecendo-as assim de maneira mais precisa. L Em 1842, um erudito francés fez uma observagio histérica de carater bas- tante produtivo. Haréau chamou a atengao para o fato, entdo esquecido, de que “revolugao” se referia a um retorno, uma mudanga de trajetéria, que correspondia ao uso latino da palavra e que conduzia de volta ao ponto de partida do movimento. Uma revolugao significava entao, pri- mordialmente, de acordo com a etimologia da palavra, um movimento ciclico. Ha au acrescentou ainda que, no ambito politico, esse movi- mento circular fora entendido como o circulo das constituigdes, segundo a doutrina de Aristételes ou de Polibio e¢ seus seguidores, mas que desde 1789, pela influéncia de Condorcet, nao se podia mais compreendé-lo desse modo. Segundo a doutrina antiga, havia um numero limitado de formas constitucionais, que substitufam alternadamente umas as outras, mas que, de acordo com sua natureza, jamais poderiam ser ultrapassadas por outras formas. ‘Trata-se dos tipos constitucionais ainda correntes en- formas decadentes, que se seguem umas as outras de maneira quase obrigatéria. Haréau cita Louis LeRoy como testemunha esquecida desse mundo passado. Para LeRoy, a primeira dentre todas as formas de governo era a monarquia, a qual, uma vez transmudada em ti- rania, era dissolvida pela aristocracia. Segue-se 0 conhecido esquema, se- gundo 0 qual a aristocracia transforma-se em oligarquia, deposta a se- guir por uma democracia, a qual, por fim, degenera na forma decadente de uma oclocracia, dominagao pelas massas. Nesse ponto ninguém mais governa de fato, e o caminho para a dominagao por um tinico individuo encontra-se novamente livre. Inicia-se novamente o velho circulo. Trata- se aqui de um modelo de revolugo que, em grego, foi compreendido como metabolé tén politeién ou como anakyklosis tén politeién** e que se tre nds e de suas * A expressio metabolé t6n politeidn € aristotélica (ocorre, por exemplo, na Politica) e signi- fica “mudanga” ou “reviravolta” de governo ou de regime (politeién é genitivo plural de politéia, palayra que pode significar tanto o Estado, “0 corpo civico”, quanto a forma ou regime de governo, a Constituigo (quer se trate da formagao, quer das normas que mo- delam o regime). Anakyklosis 16n politeidn é empregada por Polibio e designa um ciclo de constituigdes ou de regimes. [N.R.} 64 REINHART KOSELLECK + FUTURO PASSADO nutria da experiéncia de que toda a forma de convivéncia politica é, por fim, limitada. Cada mudanga conduz a uma forma de governo ja conhe- cida, sob a qual os homens sao obrigados a viver. Seria impossivel rom- per esse circulo natural. Qualquer alteragado das c rerum convertio [mudanga das coisas], nao é capaz, em principio, de in- troduzir mudangas no mundo politico. A experiéncia histérica permane- ceu constrangida aos limites das circunstancias naturais que lhe sao pré- prias. Assim como as estagdes do ano permanecem sempre as mesmas em sua alternancia, também os homens, como seres politicos, perma- s que nao traziam nada de novo. No s culo XVII, 0 conceito de revolucao assimila o sentido dessa experiéncia quase natural, como definiu entao LeRoy a trajetéria das formas consti- tucionais: “Tele est la révolution naturelle des polices...”, esta 6 a revolugao natural das constituigdes de Estado, o qual, segundo sua propria medida, transforma continuamente a vida da coletividade para finalmente voltar ao ponto de partida.> O tom natural desse conceito de revolugao nao é casual; ele alude di- retamente ao ciclo das estrelas, segundo o qual, desde Copérnico, pude- ram ser contadas as idades da ‘Terra. Em 1543 surgiu a obra pioneira de Copérnico sobre 0 movimento circular dos corpos celestes, De revolutio- nibus orbium coelestium [Sobre as revolugées dos orbes celestes], a qual, por sua vez, pds a disposigao um conceito de revolucdo que acabou por desembocar no vocabulario politico, passando pelo campo da astrologia, entao largamente difundido. Revolugao foi, inicialmente, um conceito “fisico-politico” (Rosenstock-Hiiessy). Assim como as estrelas descre- viam sua érbita de maneira independente em relagao aos habitantes da ‘Terra, a0 mesmo tempo em que influenciavam, ou mesmo determina- vam, 0 comportamento dos homens, também no conceito politico de re- volugao encontrava-se, desde o século XVII, a mesma ambigitidade: é cer- to que as revolugGes ocorriam acima das cabegas dos envolvidos, mas cada um deles permanecia preso as suas leis, como Wallenstein, por exemplo. Essa ambigitidade também ecoa no uso contemporaneo da lingua- gem. Mas 0 que diferencia 0 uso anterior ¢ 0 nosso é que antes havia uma consciéncia de um movimento de retrocesso, conforme indica a si- laba re- na palavra revolutio. Nesse sentido, Hobbes descreveu 0 periodo de vinte anos transcorridos depois da Grande Revolugio Inglesa de 1640 a 1660: “I have seen in this revolution a circular motion” (Eu vi nessa re- as, rerum comutatio, neciam atados a transformag 0 CONCEITO MODERNO DE REVOLUGAO 65 volucao um movimento circular].¢ Ele viu um movimento circular, cuja trajetoria iniciava-se na monarquia absoluta, passando pelo Long Par- liament em dire¢ao ao Rump Parliament,* a partir dai em diregao a di- tadura de Crommwell, retrocedendo finalmente, passando por formas oligarquicas intermediarias, 4 monarquia renovada de Charles II. Como conseqiténcia disso, um dos vitoriosos, Clarendon, que ainda culpava as estrelas pelas desordens do passado, pode comemorar, depois do retor- no dos Stuarts ao trono, a revolugao como restauragao. O que hoje nos parece incompreensivel tinha entéo uma conexao evidente: a trajetéria e objetivo das Rebelides dos Vinte Anos foi uma restauracao. Com isso, os monarquistas e os republicanos encontravam-se mais préximos do que podiam dar cont te — da restauracao do velho direito, de um movimento de retorno em direcdo 4 verdadeira Constituicao. A metéfora de cunho natural para a “revolucao” politica apdia-se no para ambos 0s lados tratava-se — terminologicamen- pressuposto de que também o tempo historico tem sempre a mesma qualidade, é fechado em si mesmo e passivel de repeticao. Permancece, no entanto, como questao certamente controversa, embora secundaria, sob a perspectiva do movimento circular, a questéo sobre em que ponto da trajetria ascendente ou descendente de uma revolutio se desejou im- plantar a situagio constitucional ja presente ou aquela a qual se aspira- Todas as posi¢Ges politicas permaneceram neutralizadas em um con- ceito trans-histérico de revolugao. Para os sangrentos combates ¢ as cegas paixGes com as quais se con- duziram as dissensdes politicas dos séculos XVI e XVII havia expressoes bastante diferentes. Assim como ja na prépria Idade Média, no século das terriveis lutas confessionais — as quais, repetida e simultaneamente v. devastaram a Franca, a Holanda, a Alemanha e a Inglaterra — foi em- pregada uma larga escala de definigdes. Elas vao desde motim ¢ subleva- ¢40, passando por insurreicao, tumulto e rebelido até divisao e guerra in- testina. Biirgerkrieg, guerre civile ¢ civil war foram os conceitos centrais nos quais se cristalizaram — ou, mais ainda, se fixaram legalmente — as paixdes e as experiéncias das fanaticas guerras religiosas. ‘Todas essas expressées, cuja lista poderia se multiplicar consideravel- mente, tinham em comum o fato de que procediam de uma formagio * Denominagio jocosa para a Camara dos Comuns, cujos membros presbiterianos foram expulsos por Crommuvell em 1648. (N.1.] 66 REINIART KOSELLECK * FUTURO PASSADO social organizada em estamentos. Ainda que se alterassem as instituicdes ou as formas de governo, muito raramente a organizagao social se dei- xava modificar de maneira imediata por uma guerra civil. As conse- qiiéncias, na maior parte das vezes, s6 se deixavam perceber em longo prazo. A legitimagao de uma guerra civil, mesmo as de carter confes- sional, residia no direito de resisténcia exercido por cada estamento, co- mo, por exemplo, os Paises Baixos reclamavam para si. O antigo modelo de guerra civil permaneceu, portanto, como uma guerra de cidadaos que se reconheciam segundo uma hierarquia estamental, de fato uma bellum civile, ainda que as camadas mais baixas da populagdo se tenham envol- vido no movimento. Também a Guerra dos Camponeses alema consti- tui um analogo de carater estamental a “guerra civil”, a qual somente de- pois de 1789 pode ser estilizada como “revolugao” e ass para a histéria da filosofia. Se, na Alemanha, nao chamamos guerra civil 4 Guerra dos Trinta Anos — como foram denominados os eventos cor- respondentes nos paises vizinhos —, é porque o carater juridico dessas im recuperada lutas transformou-se ao longo desses trinta anos. O que comegara como. guerra civil entre os estamentos protestantes do Império e 0 Partido Im- perial terminou com um acordo de paz entre Estados territoriais quase soberanos, Dessa maneira, nossa guerra civil religiosa pode ser com- preendida ex post factum como uma guerra entre Estados. Detenhamo-nos na época até cerca de 1700: ambas as expresses, guerra civil e revolugio, nado sdo coincidentes, mas também nao se ex- cluem mutuamente. A guerra civil remete a uma conjuntura de eventos sangrentos, cuja legitimagao decorria das lutas entre familias inimigas, de acordos entre estamentos ou de posigdes confessionai: sdes legais mutuamente excludentes, que rotulavam o respectivo inimi- Havia preten- go de insurreto fora-da-lei. O Estado converteu-se no conceito contrario a guerra civil, destruindo todas aquelas pretensdes de legalidade. Eleva- do simbolicamente, durante 0 periodo barroco, a condigao de pessoa, 0 Estado impediu a existéncia da bellum intestinum, ao monopolizar o di- reito 4 violéncia em questées internas e 4 guerra em questGes externas. A revolugio, primeiramente uma expresso associada a natureza e de cunho trans-historico, passou a ser aplicada, por meio de um proceso metaforico consciente, a acontecimentos a longo prazo ou a eventos poli- ticos especialmente repentinos, comogdes. Nessa medida, ele podia con- ter elementos de uma guerra civil. Um diciondrio alemao de 1728 tradu- ziu assim a palavra estrangeira: “Revolugao, comogao ou alteragao do 0 CONCEITO MODERNO DE REVOLUGAO 67 fluxo do tempo. Revolutio regni, alteragao ou modificagao de rota de um Império Real ou de uma nagao, especialmente quando estes sofrem uma alteragdo particular em seu regime e em suas institui¢des politicas.’? No entanto, 0 Diciondrio da Academia Francesa, em 1694, acusava 0 signi ficado astrondmico de révolution como o s entido proprio e original do termo. Esse pano-de-fundo sempre esteve presente no sentido da expres- so. Fle remete a modelos ja ultrapassados de lutas em torno de organiza- Ges politicas que seguiam sendo as mesmas jd conhecidas. Com a repeti- cio dos modelos constitucionais, também a revolucao politica pode ser entendida como repeticao. Por outro lado, desordens sociais ¢ levantes fo- ram entendidos como rebelides ¢ por isso reprimidos. Como disse Hanna Harendt: “Nao se dispunha de uma palavra que pudesse designar uma co- mogao social por meio da qual a populagao subjugada se tornasse ela mesma a classe dos senhores.” A emancipagao social como proces 0 TeVO- luciondrio ainda se encontrava além da experiéncia. Essa situagao iria al- terar-se ao longo do século XVII, na época do Huminismo [Aufklérung). Os iluministas encontravam-se em terreno conhecido no que se refere ao termo “revolugao”, pois o conceito se tornara uma “palavra da moda’. ‘Tudo aquilo que se via ¢ se descrevia era compreendido a partir da pers- pectiva da transformagio, da comogio. A revolugao abarcava os costu- mes, 0 direito, a religido, economia, nagGes, Estados e continentes, en- fim, todo 0 globo terrestre. Como disse Louis Sébastien Mercier em 1772, ‘Tout est révolution dans ce monde” (‘Tudo € revolugao neste mundo Assim, © conceito originalmente natural ¢, portanto, trans-historico dissemina seu significado parcial ¢ metaférico, que acaba por se tornar predominante. O movimento abandona sua base natural para adentrar a atualidade do quotidiano. Dessa forma, com 0 termo “revolugao’, veio a luz o ambito de uma histéria genuinamente humana. A caracteris! ica politicamente notavel desse novo conceito universal de movimento consistia em sua estilizagao como conceito oposto a guer- ra civil. Os pacifistas esclarecidos consideravam as guerr uma heranga dos partidos religio: s civis como fanaticos, heranga abandonada a medida que crescia 0 grau de civilizagao, Em 1788 Wieland afirmava: “A atual situagio da Europa ] de uma revolugdo benfazeja, uma revolugao que nao ser conduzida por revoltas selvagens ¢ de guer- laproxima-s ras civis (...) tampouco pela nefasta associagio da violéncia com a vio- léncia.’® Esse otimismo comovente, compartilhado por muitos dos con- temporaneos de Wieland, nutria-se de uma experiéncia estrangeira que 68 REINHART KOSELLECK + FUTURO PASSADO teve um efeito modelar. Trata-se da Revolugdo Gloriosa de 1688 na In- glaterra.!° Ali fora possfvel depor uma odiosa dinastia sem derramamen- to de sangue, substituida por uma forma de governo parlamentarista, com divisio de poderes, dirigida pelas classes superiores. Voltaire cons- tata, cheio de admiracao, que na Inglaterra ocorrera uma revolugao en- quanto, em outros paises, s6 fora possivel chegar-se a revoltas e guerras civis sangrentas e infrutiferas. A guerra civil adquire entao, sob diferen- tes pontos de vista, 0 significado de um circulo vicioso, sem sentido e fechado em si mesmo, comparado ao qual a revolugao mostrava-se ca paz de descortinar um novo horizonte. Quanto mais progredia o Huminismo, mais a guerra civil parecia tor- nar-se palida reminiscéncia historica. A Encyclopédie registrava a guerra sob oito diferentes verbetes, dentre os quais nado se encontrava o concei- to “guerre civile’. As guerras civis nao pareciam mais ser possiveis. De for- ma proporcional, 0 conceito de revolugao foi despojado de sua dureza politica, o que permitiu que confluissem para ele todas as esperancas utdpicas que explicam © entusiasmo dos anos que se seguiram a 1789. Esperava-se poder colher — como na Inglaterra — os frutos de uma Re- volugdo sem ter que se expor ao terror de uma guerra civil. Se fosse ne- cessdrio derramar sangue, entao o exemplo do movimento da indepen- déncia norte-americana parecia garantir uma sada feliz. E certo que nao faltaram prognésticos e adverténcias que profetiza- vam o horror de uma guerra civil por tras da mé te revolugao. Leibniz foi o primeiro a apontar, com estarrecedora clare- ade uma fulguran- za, o carater da “révolution génerale” que entao se avizinhava na Europa.!! Diderot legou-nos a previsio mais precisa, que descrevia o futuro Napo- ledo como um produto dialético do cruzamento entre o temor e a liber- dade, enquanto Rousseau profetizou o século seguinte. Aproximamo- nos, escreveu em 1762, do estado de crise e do século das revolugées. Seria impossivel prever as revolugées uma a uma, assim como seria impossi- vel adiantarmo-nos a elas. E certo que as monarquias na Europa serao varridas, mas o que vird entao, ninguém sabe. Da mesma maneira, Di- derot perguntava: “Quais serao as conseqiiéncias da revolugao que se aproxima? Nao se sabe.”!? is questdes, propostas pelas cabecas mais sagazes do [uminis- mo ¢ que hoje nao somos mais capazes de responder, inaugura-se um novo horizonte de expectativa. A revolucdo, com certeza, ndo mais con- Com duz de volta a situagées anteriores; a partir de 1789 ela conduz a um fu- © CONEFITO MODERNO DE REVOLUGAO 69 turo a tal ponto desconhecido, que conhecé-lo e domina-lo tornou-se uma continua tarefa da politica. “Le mot révolution a perdu son aception originelle” [A palavra revolugio perdeu seu sentido original], constatou Haréau em retrospectiva.'3 if, Que caracterist pois de 1789? Buscamos caracteristi definem 0 campo semantico do termo revolugao de- ‘as comuns, que nos chegam pelos testemunhos dos contemporaneos desde 0 inicio de nossa modernidade. Em primeiro lugar, deve-se registrar como inédito o fato de que a “re- volugao” transformou-se, a partir de 1789, em um “coletivo singular” — como ja se antecipava em Mercier: tudo neste mundo ¢ revolucao. As- sim como 0 conceito alemao Geschichte, que abriga, como “historia em si” [Geschichte schlechthin], as possibilidades de todas as histérias singu- lares, a revolucdo cristaliza-s em um coletivo singular, que parece con- centrar em si as trajetorias de todas as revolugées particulares. E assim que revolucao torna-se um conceito meta-histdrico, separando-se comple- tamente de sua origem natural e passando a ter por objetivo ordenar his- toricamente as experiéncias de convulsao social. Em outras palavras, 0 conceito adquire um sentido transcendental, tornando-se um principio regulador tanto para o conhecimento quanto para a a¢do de todos os homens envolvidos na revolugao. O processo revolucionario ¢ a cons- ciéncia da revolugao, despertada por esse mesmo processo e sobre ele retroagindo, tornam-se desde entao insepardveis. Todas posteriores do canceito moderno de revolugdo sustentam-se a partir des- s caracteristicas se background meta-histérico, E preciso mencionar, em segundo lugar — pois é impossivel ignora- la —, a experiéncia de aceleragito do tempo. Quando Robespierre concla- mou seus concidadaos a apressar a revolugao para trazer a liberdade & forca, pode-se enxergar por tras disso um processo inconsciente de se- cularizacio das expectativas apocalipticas de salvagao. De Lactancio a Lutero e Bengel, a abreviagio do tempo era considerada principalmente como um sinal da destruigao, que se avizinhava, do tempo historico. Mas os tempos das eras histéricas vém se modificando, de fato, desde sem- pre. Hoje a aceleragao faz parte da nossa experiéncia quotidiana, gracas explosio demografica e 4 capacidade técnica, assim como em conse- qiiéncia das alteragdes de regime politico, hoje mais freqtientes. O hori- 70 REINHART KOSELLECK * FUTURO PASSADO zonte “natural” da historia foi abandonado, ao mesmo tempo em que a » descortinou novas perspectivas que impregna- ram 0 conceito de revolugio. elera experiéncia de a Exemplo disso é 0 paralelo entre as novas ¢ as antigas revolugées, tra gado em 1794 por Chateaubriand, a fim de deduzir, a partir da experién- cia passada, a perspectiva do futuro. Mas logo ele foi obrigado a reco- nhecer que a Revolucdo Francesa tinha ultrapassado qualquer evento passivel de comparagao. Dessa forma, Chateaubriand reeditou, trinta anos depois, seu ensaio entao ultrapassado, agora acrescentado de novas observagées, nas quais ele ousava fazer progndsticos constitucionais de carater progressista, que dessa vez nao mais se nutriam a partir dos pa- ralelos entre futuro e passado, isto é, da capacidade de repetigao de anti- s revolucoes.!4 icos lan- Em terceiro lugar, deve-se reconhecer que todos os prognds cados a partir de 1789 caracterizam-se pelo fato de que contém um coefi- ciente dinamico ao qual se atribui um carater “revolucionario’, seja qual for sua origem. Também o Estado submete-se ao preceito da “revolugao”, ea partir daf pode-se compreender melhor por que, no processo de tra- dugao do francés para 0 alemao do Diciondrio da Academia Francesa, na Berlim do Iumini: mo por volta de 1800, © neologismo “contre-révolu- tionnaire” foi traduzido por “inimigo do Estado” [Staatsfeind].!8 Aquele que respeita o Estado deve ser “revolucionario”, Bis af, antecipada, a posi- gao dos hegelianos de esquerda. A questao nao era saber se o Estado fun- dado em estamentos poderia favorecer ou impedir a revolugao. A alterna- tiva era bem outra: a transformagao do Estado estamental, seja por vias pacificas ou violentas, como ja se haviam manifestado Struensee e Kant: revolugao a partir de cima ou a partir de baixo. No que se refere a disse- minagao dessa tendéncia revolucionaria, pode-se afirmar que, a partir de entao, também 0 conceito de reforma passa a convergir, eventualmente, como o de revolugdo, convergéncia exaustivamente utilizada na polémica politica, cujo nucleo objetivo, no entanto, encontrava-se contido em um. impulso generalizado para o planejamento do futuro das sociedades. Em quarto lugar, por meio desse continuo adiamento das perspecti- vas futuras, alterou-se também a perspectiva em diregio ao passado. Abriu-se um novo espaco de experiéncia cujos pontos de fuga remetiam a diferentes fases da Revolugdo de 1789. Conforme o interesse e a posi- gao de cada observador, era possivel identificar-se com uma determina- da etapa da revolucao, a fim de, a partir desse ponto de vista, tirar con- © CONCEITO MODERNO DE REVOLUGAO 71 clusdes aplicaveis ao futuro, A revolugao, desde entao, transformou-se para todos em um conceito perspectivista dentro da histéria da filosofia, que apontava para uma diregao irreversivel. f possivel que houvesse ain- da discussio sobre um “antes” e um “depois’, sobre retardamento ou ace- leracdo, mas a direcio do movimento parecia definitivamente determi- nada, A revolugao é manca, ironizava Rivarol, a direita marcha sempre para o lado esquerdo, mas a esquerda nunca marcha para o lado direito. Dessa forma, caracterizou-se um movimento pelo qual todos os aconte- cimentos politicos puderam passar por uma espécie de distanciamento ou estranhamento, do ponto de vista da histdria da filosofia. Mas, sob a dinamica des as transformagées, transpostas do plano espacial para 0 temporal, subjaz, uma experiéncia impossivel de ser negada: da mesma forma que os prognésticos, as perspectivas historico-filos6ficas impli m uma tendéncia irreversivel, capaz de abarcar todas as situagdes de uma unica vez. A partir dai pode-se concluir que a contaminagao entre os sig- nificados dos termos “evolucao” e “revolucao”, que passou a ocorrer jé desde o século XIX, nao se trata apenas de uma negligéncia lingiiistica ou de uma adequagao politica; o intercimbio alternado entre os dois conceitos refere-se a deslocamentos estruturais no complexo social como um todo, os quais, por sua vez, s6 poderiam ter provocado respostas dis- tintas no plano politico. Em seu emprego antitético, “evolugao” e “revo- lugao” sdo conceitos partidarios; ja 0 seu uso semanticamente andlogo refere-se a um processo geral de emancipagao, capaz de se disseminar movido pela industrializagao. Em quinto lugar, 0 conceito moderno de revolucao distingue-se ain- da pelo trajeto, ou seja, a passagent da revolugio politica a revolugao so- cial. E claro que todas as desordens politicas contém momentos de de- sordem social. £ inédita, no entanto, a idéia de que 0 objetivo de uma revolucao politica seja a emancipagao de todos os homens e a transfor- macao da estrutura social. Em 1794, Wieland registrou cuidadosamente ainda como palavra estrangeira: seria intengao dos jacobinos “fazer da Revolugao Francesa uma révolution sociale, isto 6, uma inversao [Umkehrung] dos Estados ora estabelecidos”.'6 A impreci- sao lingiiistica, que ainda predominava, nao fora capaz de ocultar 0 re- gistro do fato em si. Uma vez que a Declaracao dos Direitos Humanos 0 novo termo, m: inaugurara um campo de expectativa social, todos os programas langa- dos em nome da liberdade e/ou da igualdade pressionavam por uma rea- lizacao subseqiiente. 72 REINHART KOSELLECK * FUTURO PASSADO Babeuf foi o primeiro a predizer, 4 sua maneira de iluminista ristico, que a Revolugao Francesa nao chegaria ao fim antes que a exploracao do homem e 0 trabalho escravo fossem abolidos. Com isso estabeleceu-se um objetivo, o qual, em conseqiiéncia do trabalho industrial, tornou-se um desafio cada vez mais exigente. A partir da Revolugdo de 1830, acu- mularam-se as formulas — pensemos em Lorenz von Stein, Radowitz ou ‘Tocqueville — que levaram adiante a tendéncia de transformar a revolu- ¢80 politica em revolugao social. Ao cunhar uma férmula dualista — “toda revolucao desfaz a velha sociedade; nesse sentido, ela é social; toda revolugao derruba o velho poder; nesse sentido, ela é politica”!? —, 0 jo- vem Marx formulava também o principio universal cuja concepsao se tornara possivel desde 1789. Pouco tempo depois, em 1832, Heine diferen- ciava enfaticamente os coeficiente temporais de ambos os conceitos de revolugao: “O escritor que quer levar a bom termo uma revolugao social pode, se necessirio, adiantar-se cem anos em relagéo ao proprio tempo; ao contrario, o tribuno que pretende fazer uma revolugao politica nao pode afastar-se muito das massas’,8 isto é, do presente vivo e imediato. O grau de coincidéncia e interdependéncia entre as revolugées poli- ticas e as revolugdes sociais é uma das questdes fundamentais da histd- ria moderna. A emancipagao das antigas coldnias, praticamente termi- nada do ponto de vista politico, nao escapa a pressao de continuar como um processo social, para que assim seja possivel recuperar a liberdade politica, Com isso, chegamos ao nosso sexto ponto, o qual resulta diretamente da passagem de uma revolucao politica a uma revolugao social. Se to- marmos ao pé da letra as declaragdes das revolugdes Americana, France- sa ou Russa, entao nao restaré divida quanto ao fato de que suas “reali- zagoes” deveriam beneficiar toda a humanidade. Em outras palavras, todas as variagdes modernas do termo “revolugao” pretenderam, do pon- to de vista geografico, uma revolugéo universal e, do ponto de vista tem- poral, uma revolugao permanente, até que seus objetivos fossem cumpri- dos. Hoje j4 podemos acrescentar a Revolugao Chinesa a essa lista. Por distinta que tenha sido a realizacao de tais programas, a continuidade permanece como seu denominador comum no plano conceitual. Robespierre ja declarava, de forma patética: “La moité de la révolution du monde est déja faite; Pautre moité doit saccomplir (a metade da revo- lugao do mundo ja foi feita; a outra metade deve realizar-se].!9 Robes- pierre acrescentou ainda a metafora natural, segundo a qual a razdo do © CONCEITO MODERNO DE REVOLUGAO 73 homem é semelhante ao globo que ele habita. Metade da esfera encon- tra-se ainda mergulhada nas trev: Com i gotadas comparagdes com a natureza. De toda maneira, uma das meta- des da Terra permanecet s, AO passo que a outra rebrilha 2 luz. 0, Robespierre contradiz a si proprio, ao recorrer as velhas e es- { sempre na escuridao, ainda que alternadamen- te. O conceito de revolugao universal impés-se da mesma forma, ainda que os politicos posteriores a Napoledo tenham tido por objetivo “ter- minar a Revolugao” A partir da criagdo das diferentes Internacionais, 0 conceito de revolugdo universal passou a fazer parte dos programas de aco politica imediata. se necessariamente que a revolugao deve perdurar até que esse objetivo seja atingido. Desde a queda de Napoleao, firmou-se a suposigdo de que a Revolugao nao ter- minara, de maneira alguma, com a Restauragéo — como acontecera an- Se toda a Terra deve ser revolucionada, conclui teriormente — mas entrara em uma nova fase. “Napoledo nada mais é”, escreveu o conselheiro de Estado prussiano Koppe, “e nunca foi outra coisa a nao ser a Revolugao personificada em um de seus estagios. [De- pois de sua queda] pode ter terminado um desses estigios da Revolugao, mas de forma alguma a propria Revolugao.”2” Nessa formulagao de Kop- pe ja esta claro que o moderno coletivo singular “a Revolugio” com- preende e refere-se a sua propria duragao: a historia do futuro sera a his- toria da Revolucao. Logo depois da Revolugao de Julho de 1830 emerge a expresso “revo- lugdo em estado permanente”?! Proudhon utilizou-se dela com obje- tivos social-revolucionarios, da mesma forma que Marx se valeu dela em 1850.22 Marx deduz dialeti de 1848, a futura vitéria de “um partido realmente revolucionatio. (...) O que foi a pique nessa derrota nao foi a revolugao, mas sim os tradicio- mente, a partir da derrota da Revolugdo nais acessérios pré-revolucionarios A despeito da decepgao dis revolucdo (permanente), que sobrevivera 4 Revolugao (de fato) de 1848- 1850 teve um papel relevante como categoria hist6rico-filoséfica. Ela ser- eminada pela andlise de Marx a época, a viu 4 formagio da consciéncia do proletariado, Marx também recorreu entao ao velho significado de revolugio como repetigao, a cujos efeitos prolongados ele nao pode escapar inteiramente. A criagdo de uma con- tra-revolugao poderosa e fechada em si mesma deveria clarear as frentes de batalha, de forma que o inimigo de classe pudesse ser abatido ja no proximo assalto, que estava em preparagao. 74 REINHART KOSELLECK * FUTURO PASSADO Mas 0 que era novo em Marx é que, para ele, a repetigao (1830, 1848) das revolugdes que efetivamente ocorreram s6 poderia ser entendida como caricatura da grande Revolugao Francesa. Em sua perspectiva, era preciso realizar a revolucio na consciéncia, de modo a expurgar 0 passa- do. Marx tentou d sseminar um processo de aprendizado, o qual deveria instaurar, por meio da aquisigao de uma nova linguagem revolucionaria, a revolugao do futuro em sua singularidade. “As revolugdes do passado precisavam relembrar a historia universal para que pudessem enganar-se sobre a natureza de seu préprio contetido. A revolugao do século XIX deve permitir que 0s mortos enterrem seus mortos, para que possa al- cangar seu préprio contetido”4 A revolugio social tinha que se desfazer do passado, criando seu contetido a partir do futuro. O socialismo seria a “declaragao de permanéncia da revolugao”> Tal declaragao contém a an- tecipagdo do futuro tanto no nivel da vontade quanto no da consciéncia, assim como a premissa ticita de que essa revolugdo jamais se recolhera, Dessa forma, Marx vai além de Kant, o qual, j4 em 1798, a partir do fra- da “revolugao ou da reiterada”?6 fara sentir, cedo casso da primeira tentativa, deduziu a futura vitéri: reforma”: o “aprendizado pela experién ou tarde, seus efeitos duradouros, Marx, que diagnosticou 0 processo de transformacdo como revolucao social ¢ industrial, encontrou a formula mais precisa para caracterizar sua singularidade seu aspecto de futuri- dade; entretanto, é preciso ressaltar que, para cle, esse se um agente personificado da histéria, que deixa 0 mundo empirico sempre para tras, ja que 0 comunismo nao se realiza completamente. Sob esse paradoxo da utopia, que se vé continuamente obrigado a se étimo. Se, por um lado, a revolucao foi até aqui descrita como uma categoria me- revolugao tornou- reproduzir, oculta-se outro fendmeno, que denominamos o os industria ta-historica, que ajudou a determinar os s is € sociais ices como um processo de aceleracao, por outro lado essa mesma interven- Gao mostra-se como uma reivindicagao consciente de dominagdo por parte daqueles que se viram iniciados nas leis de progressividade de uma revolucao entendida como tal. Emerge entao o termo revolucionamento | Revolutionierung) © 0 verbo dele derivado, revolucionar. Jé desde 1789 junta-se ao nosso campo s mantico mais um dos intmeros neologismos, ‘0 substantivo “revoluciondrio” [ Revolutionér]. £ um conceito obrigatério para o ativismo, antes impensdvel, mas que faz prever imediatamente o tipo do revolucionario profi onal tal como 0 conhecemos ao longo do século XIX e depois, particularmente construido por Lenin, Necessaria- © CONCEITO MODERNO DE REVOLUGAO 75 mente associada a essa idéia esta também a concep¢ao, outrora da mes- ma forma impensavel, de que os homens podem fazer revolugées. A “factibilidade” da revolugao traz a luz o aspecto interior daquela re- volugao cujas futuras leis os revolucionarios pensavam conhecer. £ de Condorcet a explicagao sobre como se deveria produzir e dirigir uma re- volugao em nome da liberdade. “Une loi révolutionnaire est une loi, qui a pour objet de maintenir cette révolution, et d’en accélerer ou régler la mar- che” [Uma lei revolucionaria é uma lei que tem como objetivo manter esta revolugdo ¢ acelerd-la ou regular seu andamento].2? As estruturas transpessoais da revolugao, assim como sua capacidade de estar disponi- dessas mesmas estru- vel, que decorte do reconhecimento da existén turas, parecem provocar-se mutuamente. Em 1798 0 jovem Schlegel de- tectou com grande acuidade 0 motivo que possibilitou a Napoleao ter um papel saliente na Revolugao: € porque, disse Schlegel, “ele ¢ capaz de criar, levar adiante e aniquilar revolucées por si mesmo”2* Fora assim definida prognosticamente — passando por alto do rigor histérico — uma caracteristica do revolucionario profissional moderno. Ele é capaz de “levar adiante” revolugées, para se aplicar 0 termo usado por um postero, Weitling.? A relacdo entre perspectivas filoséfico-histricas de carater geral e um engajamento revolucionario particular torna possivel compreender por que, de modo cada vez mais freqiiente, o planejado comego de uma “re- volugao” no sentido conereto de um levante tem sido com freqiiéncia discutido ¢ anunciado sem que, por causa disso, efetivamente se inter- rompa a sucessao dos acontecimentos. Assim foi na Franga em agosto de 1792, em Palermo em 1848 ¢ em Sao Petersburgo em outubro de 1917. Por tras dessa combinagao que uma revolugdo em curso realiza e deve reali- zar, encontra-se o critério que destacamos em ultimo lugar: a legitimi- dade da revolugao. Em 1848, Stahl cunhou a expressao “revolugao absoluta”? a fim de mostrar que 0 movimento revoluciondrio encontrava em si mesmo a le- gitimagao para suas acdes. Com isso, a legitimagao histérica do direito a partir do passado foi transposta para uma justificagao permanente com base na filosofia da historia. Ao passo que a legitimidade da Restauracao permanecia atada & nogao de tradigao, a legitimidade revoluciondria tor- nava-se um coeficiente dindmico, que direcionava a histéria a partir de determinadas perspectivas do futuro, Ranke afirmava, ainda em 1841, que a “desgraga da revolucdo é que ela nao é ao mesmo tempo legitima.”! 76 REINHART KOSELL + FUTURO PASSADO Ja Metternich reconheceu esse estado de coisas de maneira mais precisa, quando observa, em tom sarcastico, que os préprios legitimistas torna- ram legitima a revolucao. O conceito de uma revolugao legitima tornou-se necessariamente um conceito partidério no campo da filosofia da histéria, uma vez que sua pretens “contra-revolucéo”. Se, em principio, até mesmo os que se opunham a revolugao a reivindicavam, ela, uma vez legitimada, reproduziu conti- (0 4 generalidade alimenta se de seus antonimos, a “reacao” ¢ a huamente seus inimigos, de modo a perpetuar-se. Com isso fica claro também 0 quanto o conceito de revolugdo reto- ma para si, desde 1789, a légica da guerra civil. A luta, uma vez decidida com todos os meios disponiveis, legais ou ilegais, passa a pertencer, se- gundo a dptica do revolucionario profissional moderno, ao decurso pla- nejado da revolucao. Assim, ele pode servir-se de todos os meios, pois acredita que a revolucao é legitima. O resseguro historico-filoséfico mantém-se a: sim elastico e flexivel na mesma medida em que “a revolu- 0”, como constante meta-historica, 6 capaz de manter um titulo per- manente de legitimidade.22 Dessa forma, altera-se também o papel atribuido pela filosofia da his- téria a “guerra civil”. Se o leninismo declarou e defendeu a guerra civil como a tinica forma possivel de guerra — principalmente com o objeti- vo de acabar com todas as (outras) guerras — entdo nao sdo somente 0 Estado concreto e sua constituigdo social o campo de agio e 0 objetivo da guerra civil. Trata 0 se sim, predominantemente, da extingao de toda e qualquer forma de dominagao. Essa é, no entanto, uma meta histérica global a ser realizada apenas como uma aproximagao infinita e progres- siva, nunca completamente alcangada. Quais sto as relagdes entre essa legitimidade hipostasiada da guerra civil ea legitimidade de fundo da revolugao universal permanente? Des- de o final da Segunda Guerra Mundial, 0 globo terrestre conheceu uma espécie de avalanche de guerras civis que parece consumir a Terra, abrin- do seu caminho por entre as grandes poténcias. Da Grécia A Coréia, pz sando pelo Vietna, da Hungria 4 Argélia e a0 Congo, do Oriente Médio a Cuba e novamente em diregdo ao Vietna estendem-se as guerras civis, sem dtivida geograficamente limitadas, no entanto desmedidas no hor- ror que provocam. Devemos nos perguntar se essas inimeras guerras ci- vis, regionalmente limitadas, mas disseminadas por sobre a superficie do globo, nao teriam ja ha muito tempo esgotado e substituido o conceito © CONCEITO MODERNO DE REVOLUGAO 7 de uma revolucao legitima e permanente. Nao teria a revolu sal esmaecido, tornando-se uma férmula oca, que pode ser pragmatica- mente usada ¢ abusada pelos mais diferentes programas dos mais dife- rentes grupos nacionais? O contraconceito filolgico das guerras civis do passado era o Estado. ional da razio de Estado considerava as guerras [na- cionais} como um recurso para evitar as guerras civis. A guerra servia — Ea doutrina tradi de acordo com essa teoria — ao alivio social, tendo sido freqientemente decidida defesa do além-mar. Juntamente com o imperialismo europeu, esse pe- segundo o ponto de vista centro-europeu — no espaco de riodo passa a fazer parte do passado. Desde que a superficie geografica- mente infinita de nosso globo terrestre encolheu, tornando-se um espaco de acao finito e interdependente, todas as guerras transformaram-se em guerras civis, Nessa situagao, torna-se cada vez mais incerto qual ser o campo a ser preenchido pelos processos revolucionarios sociais, indus- triais e emancipatorios. A “revolugao universal” esta submetida, gragas as guerras civis que parecem querer completa-la, a constrangimentos de agdo politica nao contidos em seu programa histérico-filoséfico. Exem- plo disso é a encruzilhada nuclear. Desde 1945 vivemos entre guerras civis latentes ou declaradas, cujo horror pode ser ultrapassado por uma guerra atomica, por exemplo — como se as guerras civis ao redor do globo, ao contrario de seu sentido tradicional, fossem 0 tiltimo recurso capaz de nos preservar da destrui- ¢ao total. Se essa inversio infernal tornou-se de fato a lei tacita da politi- ca mundial, entao ¢ preciso propor mais uma questao: que legitimidade é essa, pretendida pela guerra civil, que se nutre tanto da permanéncia da revolugao como do horror diante de uma catastrofe de proporgées globais? Mas a tarefa de elucidar a relagdo oscilante entre essas duas po- sigdes foge ao escopo de uma historia dos conceitos. Queremos aqui nos preservar de uma aceitagdo sumdria ou de uma interpretagdo equivocada, como realidade histérica efetiva, de todas as definigdes que apresentamos até aqui. No entanto, a histéria dos concei- tos, mesmo quando ideologicamente comprometida, nos lembra que a relacao entre as palavr uu uso é mais importante para a politica do que qualquer outra arma. Tradugio de Wilma Patricia Maas Revisao de Marcos Valério Murad

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