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ALENCAR, CARNEIRO e GUIMARÃES. Oficinas Potenciais - A Democratização Da Escrita (2022)
ALENCAR, CARNEIRO e GUIMARÃES. Oficinas Potenciais - A Democratização Da Escrita (2022)
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5939-316-9 (brochura)
978-65-5939-313-8 (eBook)
CDU: 800
CDD: 400
DOI: 10.31560/pimentacultural/2022.138
PIMENTA CULTURAL
São Paulo - SP
Telefone: + 5 5 (11) 96766 2200 pimenta
livro@ pimentacultural.com
www.pimentacultural.com
Ana M aria Amorim de Alencar
Maria Clara da Silva Ramos Carneiro
M ayara Ribeiro Guimarães
OFICINAS POTENCIAIS
• •
a democratização
da escrita criativa
As oficinas de literatura potencial são uma prática coletiva que
parte de exercícios de escrita sob restrição para liberar a criatividade: a
partir de jogos ou desafios de escrever, exploram-se formas incomuns
de redigir um texto, seja pela transformação de textos conhecidos, no
vas formas fixas, interdição de letras ou outros elementos textuais. Ao
longo das oficinas, a prática da escrita e da leitura em voz alta reforça
uma dimensão coletiva do processo literário, pois todo texto pressupõe
um destinatário. As oficinas lembram que a literatura não precisa ser
sempre séria: em vez do privilégio do ego que aguarda a inspiração
para escrever; nelas, se privilegia o refinamento da linguagem por jo
gos de palavras, paródias e pastiches. Tal prática também se desdo
brou para outras artes, como música e quadrinhos.
38 Nossa tradução, bem como as outras citações no texto, a não ser quando indicado.
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Não por acaso aproximamos a Aula de Barthes ao primeiro ma
nifesto do Oulipo escrito por François Le Lionnais no parágrafo acima:
os dois textos são contemporâneos, e, se no discurso de Barthes pro-
põe-se o estudo da literatura pela sua forma e sua história (a semiolo-
gia barthesiana), o segundo anunciava os pressupostos de um grupo
de autores que retomava antigos ensinamentos da retórica para brin
car de escrever. O texto de Le Lionnais (1973) enuncia a fundação do
Ouvroir de Littérature Potentielle (Oficina de Literatura Potencial), que
pretendia reunir formas novas de fazer literatura para serem utilizadas
por autores futuros. Fundado por matemáticos (como Le Lionnais) e
escritores (como Raymond Queneau) em 1960, o grupo tem por ob
jetivo pesquisar, justamente, jogos de escrever para livrar o texto dos
lugares comuns da língua. E o presente capítulo apresentará exemplos
de como tais jogos permitem uma experimentação da linguagem em
sala de aula, em função de sua desautomatização e renovação.
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Mais recentemente, as restrições vêm sendo aplicadas no ensi
no de literatura e em cursos de extensão da UFPA e UFSM, e neste ca
pítulo apresentaremos alguns exemplos dessas produções. A potência
pedagógica das oficinas é a de permitir aos participantes aproxima-
rem-se da escrita literária sem cerimônias, em que sujeitos se apro
priam da literatura ao jogar com ela. Dois princípios, portanto, regem
as oficinas: o princípio do coletivo, em um ensino que tange o fazer
escolar freiriano, e o princípio do jogo, desde a distribuição da palavra
a cada exercício das oficinas, desafios de linguagem que levam os par
ticipantes a suprimir elementos ao quais recorreriamos normalmente,
até a transformação de textos existentes.
O O U L IP O E A S OFICINAS
DE ESCRITA POTENCIAL PARA TODOS
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labirintos de onde se propõem sair” . Se a literatura moderna veio ques
tionar radicalmente certo misticismo da arte e do artista, como gênio
inspirado criador de uma obra que transmitisse uma mensagem aos
leitores, vistos como receptores passivos do sacrossanto Significado
da sacrossanta Obra, o contexto histórico do surgimento do Oulipo é
marcado pela eclosão, na França, do que se conhecerá como Estru-
turalismo (inscrito na corrente formalista europeia), que provocou uma
reviravolta no modo de se entender o sujeito, a linguagem, a socieda
de, a história, a sexualidade.
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tar fosse mais importante que o fato. Le Lionnais colaborou com ele no
cálculo do CentMWe Milliards de poèmes, em que os versos de um so
neto mudam de posição para formar até “cem mil bilhões de poemas” .
O fato de serem matemáticos fortemente atraídos pela literatura ou
escritores desejosos de investigarem os laços possíveis entre literatura
e matemática, os leva a explorar formas combinatórias de texto, contos
em grafos ou arborescências, atividades aritméticas, e a ênfase no
“potencial” de uma dada forma, indicando as inúmeras possibilidades
geradas por uma determinada restrição. A regra se confunde com um
axioma ou um algoritmo e, em todo caso, é equacionável.
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tal como investigados por Saussure, as formas poéticas japonesas
(haikai, tanka, shi), a sextina (poema de forma fixa em decassílabos
com 6 palavras e sem rimas que se repetem mudando de lugar, segun
do a lógica de uma sequência de Fibonacci) inventada por Arnaud Da
niel, trovador do século xii e muito praticada por Camões. De Rabelais
à Racine, passando pelos Grandes Retóricos, trocadilhos são recursos
frequentes (a paronomásia: a recorrência a palavras semelhantes; a
antístrofe: inversão ou supressão de letras em uma palavra). Unindo
matemática e literatura, escolheram como objeto de suas pesquisas
técnicas como essas, capazes de impulsionar a criação. Tudo aquilo
que a terminologia romântica associava à genialidade (inspiração, ori
ginalidade, intuição, talento...) equivale, nessa concepção de escrita,
à capacidade que se adquire de encontrar caminhos possíveis, ferra
mentas, para facilitar o trabalho criativo.
AS RESTRIÇÕES
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determinar a forma do texto antes mesmo que se pense no conteúdo.
O exercício S + 7 é um exemplo de restrição inventada pelo grupo:
escolhe-se um texto e substituem-se todos os substantivos pelo sétimo
subsequente a cada um deles, encontrado em um dicionário qualquer.
O resultado é um texto absolutamente aceitável do ponto de vista gra
matical, porém absurdo e surpreendente do ponto de vista do sentido.
Arranca gargalhadas dos alunos a cada exercício. Assim, tomando-se
como texto de partida o início do Gênesis:
Deus disse: “Haja luz” e houve luz. Deus viu que a luz era boa,
e Deus separou a luz e as trevas. Deus chamou à luz “dia” e às
trevas “noite”. Houve uma tarde e uma manhã e foi o primeiro dia.
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organizadas em duas turmas, na forma de três encontros de duas ho
ras pelo Google Meets, e os participantes postavam seus resultados
para leitura coletiva no chat durante o encontro, e depois colavam suas
produções em um arquivo único compartilhado.
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c) 0 tautograma consiste na escrita de um texto em que tod
as palavras comecem com a mesma letra.
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Às formas conhecidas da poesia, como o soneto, a balada, a
ode, os oulipianos adicionaram formas novas, como a (f) moral ele
mentar de Queneau: “Primeiro, três vezes 3 pares + um de duplas SA
(substantivo e adjetivo). Depois, um interlúdio de sete versos de até
cinco sílabas cada, em sintaxe livre. E, por fim, uma vez 3 pares + um
de duplas SA, de modo que aliterações, repetições, rimas e espelha-
mentos façam ecoar entre si os 24 vocábulos das duplas do poema.”
Tem-se assim uma forma poética em que o jogo de espelhamento
constitua a “moral” da história - e cujo título deve conter ou a palavra
“moral” ou “elementar” .
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A cinza tarde
Arrola-se no canto
Dos pássaros e vai
(Sarah Ferreira)
No canto, calados
Lamentam, sós no escuro
Os livros fechados
(Danielle Barros)
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ENSINO DE ELABORAÇÃO
DE HISTÓRIAS EM QUADRINHOS:
O OUBAPO
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(desdobrando a sequência narrativa em formas variadas), a sequen-
cialidade (perturbando a ordem sequencial exigida normalmente por
uma história em quadrinhos), o quadro (uma unidade no interior da
página), a semântica (jogos de sentidos provocados por modificações
na página), o texto, a imagem, o personagem, o modo de desenhar.
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40 O resultado também está disponível online, no site da editora Beleléu, pelo link ch ttp ://
www.revistabeleleu.com.br/velho/series/tension-de-la-passion/>.
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imagético. Outra forma de exercício nesse sentido é a reinterpretação
gráfica: uma página de quadrinhos sem as imagens é oferecida aos
participantes, que devem imaginar uma nova história a partir dos pon
tos de apoio da página (quadros e balões). Verifica-se que a posição
que determinado texto ocupa também importa para a narrativa, e se
desdobram os sentidos possíveis desse texto.41
Fonte: as autoras.
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também pode aparecer na escolha de um ponto de vista único, de
um objeto único. Em oficinas a distância em 2020 para participantes
da Bienal de Quadrinhos de Curitiba Versão Online e para alunos
do Colégio Politécnico da UFSM, cada participante foi convidado a
se apresentar em quatro a seis quadros, e em cada quadro era ne
cessário desenhar um objeto que estivesse no ambiente em que ele
se encontrava, com texto livre: uma restrição criada a partir do fato
de estarmos confinados, combinando instruções bem precisas para
fabricação do exercício. Assim, várias pessoas desenharam seus ce
lulares, computadores e outros objetos que lhe ajudavam a fugir do
cotidiano (instrumentos musicais, videogames, livros).
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ler. Como mencionado, o começo da difusão da prática oulipiana no
ensino da literatura no Brasil se deu na Faculdade de Letras da UFRJ,
em disciplinas regulares, cursos optativos e de extensão ministrados
por Ana Alencar e Ana Moraes. Alguns dos frutos desse trabalho fo
ram reunidos no Dossiê lauaretê, publicado na revista Terceira Margem
(ALENCAR; MORAES, 2005, p. 114-132). Nas aulas de teoria literária
de Ana Alencar, por exemplo, a prática da leitura de teóricos incluía
exercícios de escrita, como criação de contos de fada a partir das fun
ções do formalista russo Vladimir Propp: ao experimentar as funções
observadas pelo teórico, era possível entender o texto em sua materia
lidade a partir de um modelo de estruturação da narrativa.
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crescimento de uma onda de adoecimentos mentais e emocionais
aportando em nossas salas de aula - um adoecimento do mundo,
com discursos de ódio assumindo o poder, impactando diretamente
no humor, o dia-a-dia e o ir e vir de nossos alunos, bem como na re
dução sistemática de direitos adquiridos e avanços alcançados nas
últimas duas décadas, sobretudo no campo da educação e na pers
pectiva de emprego. Sentimos a necessidade de revirar esse cenário
pelo avesso, buscando um pouco de alegria e leveza. As estratégias
oulipianas vieram ao encontro da necessidade de se desenvolver ati
vidades de promoção de saúde para a população, pois a apropriação
da escrita e o estímulo do riso são potenciais também por isso: não
é raro que os participantes comparem o texto a uma prática terapêu
tica, operando sobre a autoestima dos sujeitos.
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ampliação, diversificação e democratização da leitura e da escrita, em
um país que elitiza e segmenta o acesso a esses direitos. Algumas
oficinas foram desenvolvidas em uma das mais antigas bibliotecas co
munitárias no Brasil, situada perto da UFPA, no bairro do Guamá, na
periferia da cidade de Belém do Pará.
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CONCLUSÃO
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ruptura e desmontagem das malhas e relações de poder, e na postu
ra da uma literatura que não se leva tão a sério, para não cair na tal
armadilha da seriedade que trava o sujeito e sua criatividade. O riso
é um antídoto contra a angústia, muito necessário em nossa atuação
de docência e na formação de professores e leitores. E, por trás da
leveza, do lúdico e do simples, existe uma ética, uma filosofia, um
projeto humanista dessa escrita como divertimento, em que rir nos
ajuda a permanecer humanos diante do desamparo e do desespero.
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