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NÚMERO 305

MENSAL ○ SETEMBRO 2023

ESPAÇO ENTREVISTA
COMO SERÁ MARTA SANTAMARIA
A NOSSA CASA NA LUA CAPITALS COALITION
PÁG. 10 REDEFINIR VALORES.
APERFEIÇOAR DECISÕES
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL PÁG. 70
ESTAMOS A CAMINHAR
PARA UM ‘ROBOCALIPSE’? FISIOLOGIA
PÁG. 58 A ENERGIA ESCURA
DO CÉREBRO
ZOOLOGIA PÁG. 26
OS ANIMAIS
SÃO MORAIS?
PÁG. 64

PSICOLOGIA
A QUÍMICA DA
CONFIANÇA
PÁG. 52

ECOSSISTEMA
PORQUE É QUE
OS HUMANOS SÃO
HOLOBIONTES
PÁG. 74

PENSAR A CIÊNCIA
O REPTO FILOSÓFICO DA INVESTIGAÇÃO
ND A
A!
VE R
À AGO

VIVER A HISTÓRIA
COM PAIXÃO

EDIÇÃO BIBLIOTECA
EDIÇÃO
BIBLIOTECA

LIVRO DOS
MORTOS
A viagem ao Além
PORTUGAL ORIGENS DE UMA NAÇAO

GRANDES MISTÉRIOS DO EGITO


O ASSASSINATO DE
TUTANKHAMON
E outras conspirações
PALEOARTE

contra os faraós
VALE DO CÔA
Território de
memória MAGIA
E AMULETOS
GRUTA DO ESCOURAL As ferramentas
Marco do paleolítico dos deuses
no Alentejo
MISTÉRIO ENIGMAS
Stonehenge e outros Do país de Punt
santuários megalíticos às lâmpadas
de Dendera

PALEOARTE
Onde e quando surgiu
GRANDES MISTÉRIOS
o nosso impulso artístico DO EGITO
A arte acompanha o ser humano A vasta cultura da terra do Nilo
desde os tempos mais remotos, ao e o seu fascínio pela vida após a
longo da sua evolução. O que é que morte continuam a surpreender-
os artistas das cavernas pretendiam Conheça a formação de Portugal como Nação nos. Aqui encontrará as últimas
alcançar com as suas pinturas? O através de grandes historiadores: conhecerá investigações sobre o assunto.
que é que elas simbolizam? os protagonistas, os momentos decisivos, os
desafios e as bases do futuro império.
NotíciasFlix

EDITORIAL

Mais SUPER no
Na fronteira do conhecimento seu quiosque:
Q
uando, no nosso dia-a-dia falamos em Ciência, temos imediatamente
tendência a associá-la às suas aplicações tecnológicas e benefícios
práticos para a vida. E, de facto estas têm ocorrido a uma EDIÇÃO BIBLIOTECA

velocidade tão vertiginosa, que leva muitos de nós a considerar a Ciência AFONSO
HENRIQUES
e o nascimento de

PORTUGAL ORIGENS DE UMA NAÇAO


Portugal

como um «quase- —deus», infalível, que tudo sabe ou virá a saber. Porém O MILAGRE DE
OURIQUE
ou o mito nacional
de sobrevivência

temos também de considerar os seus limites, porque há ainda muitos aspetos D.DINIS, A
CONSOLIDAÇÃO
DO TERRITÓRIO
e afirmação

misteriosos e inexplicáveis pelo nosso conhecimento científico atual, muitas


da identidade
EXPANSÃO
PORTUGUESA:
as primeiras décadas

perguntas a que temos de humildemente responder: «não sabemos».


Qual o mecanismo físico subjacente às surpreendentes interações de partículas PORTUGAL
Origens de uma nação
no mundo quântico, que Einstein apelidou de «ação fantasma à distância»?
Não sabemos! De onde surgem as partículas que aparecem e desaparecem
demasiado depressa, para poderem ser observadas, no designado vácuo quântico?
EDIÇÃO

Não sabemos!... O físico e professor catedrático da Faculdade de Ciências da


BIBLIOTECA

Universidade do Porto, José Luís Santos, conduz-nos neste artigo pelos meandros
de algumas destas grandes interrogações que se situam nos limites da ciência

PALEOARTE
VALE DO CÔA
Território de
memória

atual, incentivando-nos a valorizá-las e a observar a vida sem preconceitos. GRUTA DO ESCOURAL


Marco do paleolítico
no Alentejo

Para além desta interessantíssima reflexão sobre a Ciência na fronteira de


MISTÉRIO
Stonehenge e outros
santuários megalíticos

um novo paradigma, encontrará nestas páginas outros artigos que certamente PALEOARTE
Onde e quando surgiu
despertarão a sua curiosidade: Será que a moral nos diferencia dos outros animais? o nosso impulso artístico
Como será a nossa casa na lua? Devemos continuar a construir NÚMERO 1 ○ ABRIL 2023

arranha-céus? Qual é a sua pegada ecológica? O que é a INTERESSANTE

energia negra do cérebro?... E não só, porque também


falamos com duas grandes mulheres: a socióloga Helga
Nowotny, que nos alerta para o mundo desconhecido que a
JÁ HOUVE UM TSUNAMI
inteligência artificial abre, e a economista Marta Santamaria, EM PORTUGAL?
diretora sénior da Capitals Coalition, uma Organização Não Que sermão deu
Santo António
aos peixes?
Que países foram fundados

Governamental com sede na Holanda que visa transformar a


por ex-escravos?
É legal que a minha renda
seja revista em concordância
com o IPC?

Carmen Sabalete,
diretora
forma como empresas e governos medem e valorizam as suas Cor nos animais - para
namoriscar ou para Quando é que ocorre o
Júlio César
tinha um
assustar? crime de peculato? piercing?
csabalete@zinetmedia.es interações com o meio ambiente e a sociedade. Boa leitura. 1 E mais 150 Perguntas e Respostas

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SUPER 3
Sumário

18
AGE

CA PA
10 Como será a nossa
casa na Lua
O habitat terrestre que a NASA está a
preparar.

38 No Limiar de um novo
paradigma REPORTAGENS EN T R E V ISTA
A Ciência na fonteiras do seu conheci-
32 Helga Nowotny
mento.
18 Descoberto o mapa do Para esta socióloga, a IA pode ser um

52 A química da confiança cérebro de uma mosca espelho que nos permite descobrir mais
sobre nós próprios.
Porque é que nos entregamos sem Uma descoberta científica que nos ajudará a
pensar? mapear o cérebro humano.
RÚBRICAS
58 'Robocalipse' 26 A energia escura do 8 Falar de ciência
A IA já está a pôr em risco centenas de
milhares de empregos?
nosso cérebro Miguel Ángel Sabadell fala das mulheres na
É o órgão que mais energia consome, História da Evolução Humana.
mas, na maior parte das vezes, não
64 A moral distingue-nos sabemos para quê. 79 Matrizes e Matrazes
dos outros animais? Eugenio Manuel fala-nos da química
Ainda há muito por saber sobre o
comportamento dos animais, mas eles
47 Devemos continuar a Elizabeth Fulhame.

não agem apenas por instinto. construir arranha-céus? 80 Tecnocultura


Um desafio para a sustentabilidade. J. Moreno interroga-se se seremos capazes

EN T R E V ISTA
de distinguir o real da ficção.
84 O papel da música nas 82 Chaves do clima
70 Marta Santamaria nossas vidas José Miguel Viñas escreve sobre o clima e
Capitals Coalition.
Não há quase nada tão evocativo e tão as suas alterações.
Redefinir Valores. Aperfeiçoar decisões.
motivador.

74 Holobiontes 98 História de ficção


Os seres humanos são ecossistemas. 92 Os Molly Maguires científica
A origem do crime organizado nos EUA. Por Óscar Curieses.

4 SUPER
WIKEMEDIA COMMONS ESA GETTY SHUTTERSTOCK

10
AGE SHUTTERSTOCK
64 74

92
52

38
SUPER 5
DISCOVERY NOTÍCIAS ATUAIS

UMA RAPOSA QUE COME PEIXE? Em março de 2016, dois investi-


gadores em Espanha observa-
fáceis para uma raposa. «Ver a
raposa a caçar carpas, uma atrás
ram um macho de raposa verme- da outra, foi incrível», diz o ecolo-
lha (Vulpes vulpes) a perseguir e gista Jorge Tobajas, da Universi-
a apanhar 10 carpas num par de dade de Córdoba. «Há anos que
horas. O evento, descrito num estudamos esta espécie, mas
estudo publicado a 18 de agosto nunca esperámos algo assim.
na revista Ecology, parece ser o Em vez de devorar imediata-
primeiro caso registado de uma mente todos os peixes, a raposa
raposa a pescar, dizem os inves- escondeu a maior parte da sua
tigadores. Esta descoberta faz da captura e pareceu partilhar pelo
raposa vermelha o segundo tipo menos um peixe com uma rapo-
de canídeo, o grupo que inclui os sa fêmea, possivelmente a sua
lobos e os cães, conhecido por companheira.
caçar peixes. As raposas verme- Para Tobajas, a raposa pesca-
lhas e os lobos são atualmente dora é um exemplo de quanto
os únicos canídeos conhecidos os cientistas ainda não sabem
por pescarem. sobre o mundo natural, mesmo

SHUTTERSTOCK
Os peixes grandes em águas sobre espécies que vivem muito
pouco profundas são presas perto dos humanos.

ASC
ATRIBULAÇÕES DE UMA ESCULTURA DE
MIGUEL ÂNGELO
San Juanito de Úbeda, é uma escultura em
mármore realizada por Miguel Ângelo en-
tre 1495 e 1496, encomendada por Loren-
zo de Pierfrancesco de Medici para o seu
palácio florentino. Cosimo I de’ Medici, que
conseguiu estabelecer o seu poder em Flo-
rença em 1537 graças ao apoio de Carlos
V, adquiriu a propriedade e presenteou
Francisco de los Cobos com a estátua,
que foi enviada para Espanha, para a
sua villa em Sabiote. Depois da sua
morte, a estátua foi colocada na capela
sepulcral que mandou construir na sua OS CENTROS DE DADOS
cidade natal de Úbeda.
O San Juanito encontrava-se junto
DESLOCAM-SE PARA O ESPAÇO
ao retábulo-mor da Sagrada Capela A atual era da Internet é uma grande consumidora de dados.
do Salvador de Úbeda (Jaén), quan- O aumento exponencial da computação pode significar que,
do, num ato de vandalismo no início em breve, serão necessárias instalações extraterrestres de
da Guerra Civil, foi despedaçado e processamento e armazenamento. Tal como a nuvem não é
a cabeça queimada. Só foi possível tão gasosa como parece e requer uma infraestrutura gigan-
recuperar catorze fragmentos, o equi- tesca e milhares de quilómetros de cabos, o armazenamento
valente a 40 por cento do seu volume e o processamento de dados são consumidores de energia.
original. O delicado e complexo projeto Estima-se que, em breve, representarão 10% do consumo
de recuperação da obra começou em mundial e poderão ser responsáveis por 4% dos gases com
1994, em Florença. Foram utilizados métodos efeito de estufa. A boa notícia é que alguns dos maiores
inovadores, como a utilização de lasers para consumidores de dados estão a recorrer a fontes de energia
limpar a superfície negra e queimada da ca- renováveis e a instalar grandes parques solares, mas isso não
beça, e a reconstrução virtual em 3D com ba- é suficiente.
se em fotografias tiradas antes da sua destrui- A União Europeia decidiu explorar a possibilidade de instalar
ção. Uma vez montada com os fragmentos de grandes centros de dados no espaço, alimentados por velas
mármore originais, foram integradas as partes solares. Trata-se do programa ASCEND, European Space Cloud
em falta, feitas com fibra de vidro. Atualmen- for Zero Emission Networks and Data Sovereignty. A grande
te, está à guarda da Fundación Casa Ducal vantagem deste sistema é a temperatura: cerca de metade da
de Medinaceli e aguarda o seu regresso à energia consumida pelos centros de dados é utilizada para dis-
capela de El Salvador em Úbeda. sipar o calor que geram. E na órbita terrestre, pode atingir 180
graus Celsius negativos nas zonas de sombra.
ASC

6 SUPER
O NOVO FATO LUNAR DA NASA
A agência espacial ameri- protótipo seja preto com de-
cana, em colaboração com talhes em laranja e azul (para
a Axiom Space, apresentou esconder elementos do fato
o primeiro protótipo do fato que estão sob patente), o de-
que os astronautas usarão na sign final será feito com uma
missão Artemis III. O AxEMU camada exterior branca, como
(Axiom Extravehicular Mobility os anteriores fatos espaciais,
Unit), como é designado o uma vez que esta cor permite
fato, tem um desenho modular que o calor seja refletido em
que proporcionará uma maior temperaturas extremas.
flexibilidade para se adaptar A missão, prevista para 2025,
às caraterísticas físicas dos deverá levar a primeira mulher à
astronautas. Proporcionará Lua. De acordo com Bill Nelson,
uma maior proteção contra administrador da NASA: «Com
o ambiente lunar e permitirá base nos anos de investigação
uma melhor exploração. Será e experiência da NASA, os fatos
Embora o uma alternativa mais leve aos espaciais de nova geração da
protótipo seja
enormes e volumosos fatos do Axiom não só permitirão que
preto, os fatos
serão brancos passado, uma vez que serão a primeira mulher caminhe na
para refletir o mais apertados e leves. Terão Lua, como também abrirão
calor quando as também avanços nos sistemas oportunidades para que mais
temperaturas de suporte de vida, sistemas pessoas possam explorar e in-
forem extremas.
de pressão, etc. Embora este vestigar na Lua.
ASC

O PERFUME DE CLEÓPATRA (O CHANEL N.º 5 DO ANTIGO EGITO)


obert Littman e Jay Silverstein, arqueólogos da

R
O perfume de
Universidade do Hawaii em Manoa, recriaram o Cleópatra teria
que poderá ter sido o perfume de Cleópatra VII, um aroma mais
forte do que os
rainha da dinastia ptolomaica e última governan-
perfumes atuais e
te do Egito (51-30 a.C.) antes da conquista romana. Muitos duraria mais
arqueólogos sonharam em lançar expedições para encontrar o tempo.
seu túmulo ou qualquer objeto que lhe tenha pertencido. Isso
não foi possível, mas foi possível recriar os perfumes mais co-
muns do mundo antigo, incluindo o que se crê que ela usava.
Uma escavação que durou uma década perto do Cairo, num
local chamado Tell-El Timai (conhecido na antiguidade co-
mo «a cidade de Thmuis»), descobriu os ingredientes através
de amostras e restos que ainda restavam nos recipientes: os
frascos não cheiravam, mas a análise química da lama encon-
trada dentro de uma ânfora — uma elegante garrafa grega
ou romana antiga com duas pegas e um gargalo estreito en-
contrada na área — revelou alguns dos ingredientes. Os in-
vestigadores levaram as suas descobertas a dois especialistas
em perfumes egípcios, Dora Goldsmith e Sean Coughlin, que,
utilizando estes dados e seguindo as fórmulas encontradas
em antigos textos gregos de perfume Mendesiano (originário
da cidade de Mendes e popular entre a classe alta egípcia),
ajudaram a recriar os aromas. A sua reprodução resultou nu-
ma mistura espessa à base de mirra (uma resina extraída de
uma árvore espinhosa nativa do Corno de África e da Penín-
sula Arábica), bem como de cardamomo, canela e azeite (na
verdade, tem uma consistência semelhante à do azeite). O
aroma é muito mais forte do que o dos perfumes modernos e
dura muito mais tempo. Segundo a perfumista Mandy Aftel,
não é certo que Cleópatra tenha usado esta fórmula, uma vez
que tinha a sua própria fábrica e provavelmente criava fra-
SHUTTERSTOCK

grâncias exclusivas, mas é provável que a elite tenha usado


algo com um cheiro semelhante. e

SUPER 7
CURIOSIDADE FALAR DE CIÊNCIA...

O SEXO INVISÍVEL
NA HISTÓRIA DA EVOLUÇÃO HUMANA, A MULHER NÃO TEM TIDO GRANDE PRESENÇA,
SENDO A SUA IMPORTÂNCIA IGNORADA DEVIDO ÀS SUPOSTAS CARACTERÍSTICAS DO SEU SEXO.
maginemos que na gruta de primeiros cuidados fazem-nas esquecer tu- finais da evolução humana». Os homens

I Altamira alguém está a dar


os últimos retoques numa das
pinturas. De que sexo é o pin-
do o que as fizeram sofrer... as mulheres,
como todos os animais, estão sob o domí-
nio do seu instinto», escreveu o médico e
produzem, as mulheres reproduzem.
Com esta ideologia, não era difícil ne-
gar às mulheres o acesso a áreas como
tor? Masculino? Alguém já provou que os botânico Jean Emmanuel Gilibert em 1770. a ciência, argumentando que era pura-
pintores eram homens? Ninguém provou. A insistência apaixonada de Gilibert no mente biológico: em geral, e exceto para
Para qualquer um de nós, inconsciente- instinto maternal foi motivada pela sua os anormais, elas não conseguiriam ter
mente, a pré-história é um território ex- antipatia pela prática, comum no seu tem- sucesso. Estavam predestinadas a ser
clusivamente masculino. Até na própria po, de ter uma parteira ou ama de leite: mães, nascidas para serem passivas em
nomenclatura isso é evidente: somos «Ho- 95 por cento dos recém-nascidos em Paris vez de competitivas, intuitivas em vez de
mo», homens. As mulheres são, como di- eram enviados para o campo para serem lógicas — recorde-se a canção A Hymn
zem o pré-historiador James M. Adovasio e deixados ao cuidado de outras mulheres, to Him interpretada pelo filólogo Henry
a antropóloga Olga Soffer, o sexo invisível. geralmente economicamente desfavoreci- Higgins no musical My Fair Lady.
das, que ganhavam o seu sustento desta
UM DOS EFEITOS DA IMAGEM DOS CAÇADORES forma. Para Gilibert, as mulheres tinham ENTRE OS QUE SE OPUNHAM A ESTA VISÃO ES-
QUE REGRESSAM COM O MAMUTE— «o animal seios para amamentar as suas crias e não o TAVA CLÉMENCE AUGUSTINE ROYER, a primeira
totémico da pré-história humana», diz a fazer não era natural. Esta ideia foi parti- tradutora francesa de A Origem das Espécies
historiadora da ciência Claudine Cohen — lhada pelo fundador da taxonomia, o sue- e introdutora do conceito de evolução em
é que o papel desempenhado pelas mu- co Carolus Linnaeus, o nosso Linnaeus, um França. Em 1870, tornou-se a primeira mu-
lheres foi minimizado: apenas cuidavam fervoroso defensor da amamentação. Por lher a ser admitida numa sociedade cientí-
das crias e apanhavam bagas e frutos. No isso, identificou toda uma classe de ani- fica e também a primeira a receber a Legião
entanto, os dados etnográficos sugerem de Honra pelo seu trabalho. Essencialmen-
que a imagem do «homem-caçador» e da te, Royer assumiu que as mulheres tinham
«mulher-coletora» é verdadeira em muitas
culturas, mas está longe de ser universal.
A BIOLOGIA É VISTA as suas próprias estratégias, eram ativas na
prossecução dos seus objetivos e tinham as
Entre os Agta de Luzon, 85% das mulheres
caçam e têm mais sucesso do que os ho-
PELAS MULHERES suas próprias agendas.
Mais de um século depois de as pri-
mens nas suas caçadas: 31% contra 17%
dos homens. No entanto, em grupos mis-
COMO UM CAMPO meiras mulheres darwinistas terem ten-
tado colocar a biologia no caminho que
tos, a taxa de sucesso aumenta para 41%.
As mulheres também caçam em diferentes
MINADO ela nunca tomou, sabemos que ambos os
sexos coevoluiram respondendo às estra-
sociedades no Ártico, no Japão e na Amé- tégias um do outro; não existe uma mãe
rica do Norte, e os Anmatyerre no norte da mais, os Mammalia, pelas estranhas glân- amorosa universal e as suas respostas de-
Austrália. Se refinarmos ainda mais esta dulas secretoras de leite que se desenvol- pendem do seu ambiente. Infelizmente, o
questão, temos de repensar até a ideia da vem em metade dos membros dessa classe. atraso na correção destes preconceitos fez
caça como uma atividade de grupo: não Somos «mamíferos» e não «sugadores». com que «muitas mulheres, especialmen-
é preciso um grupo de dez homens para Em meados do século XIX, o filósofo e te as feministas, tenham abandonado as
caçar um coelho. antropólogo Herbert Spencer, famoso na abordagens evolutivas como sendo infali-
Este preconceito cultural na perceção sua época e atualmente relegado para a velmente tendenciosas. A própria biologia
do passado tem origem (pelo menos em história da antropologia, utilizou a mater- é vista pelas mulheres como um campo
parte) no conceito de maternidade: «As nidade para definir a capacidade intelec- minado e é melhor evitá-la», diz a antro-
mulheres existem para trazer ao mundo tual das mulheres. Uma vez que as fêmeas póloga e primatologista Sara Blaffer Hrdy.
o maior número possível de crianças». são os únicos mamíferos que ovulam, Para muitas antropólogas feministas, falar
Biologicamente, «maternidade» refere-se gestam e amamentam, Spencer partiu de biologia é um tópico desconfortável.
apenas a dar à luz, mas no Ocidente este do princípio de que a utilização de uma Colocar as mulheres no seu devido lu-
termo carrega uma longa tradição de sacri- tal quantidade de energia na reprodução gar seria um caminho interessante para a
fício e auto-sacrifício. Já os moralistas do limitaria o desenvolvimento mental das investigação científica, não fosse o facto
século XVIII, a idade mulheres e imporia um constrangimento de se ter tornado um campo de batalha
de ouro da razão, re- importante à variabilidade da sua inteli- ideológico. Assim, a ideia, muito apre-
cordavam às mulheres gência. Por outras palavras, a inteligência ciada pelas feministas radicais, de que
o seu dever de cuidar de todas as mulheres é semelhante, não as mulheres são oprimidas desde tempos
da sua descendência. há grandes diferenças. Com pouca varia- imemoriais por férreas estruturas patriar-
«Embora a sua des- bilidade, um fator fundamental para que cais não parece ser apoiada por observa-
cendência seja a cau- a mudança ocorra, as mulheres não pode- ções etnográficas e arqueológicas; é mais
POR MIGUEL ÁNGEL
sa de todos os seus riam evoluir para as mais altas faculdades o resultado de uma ideologia do que da
SABADELL arrependimentos, os intelectuais e emocionais, os «produtos observação científica do meio. e
Físico

8 SUPER
ISTOCK

ASC

Em cima, uma mãe típica dos anos 1950 e 1960. As


mulheres estavam predestinadas a ser mães, passivas
e não competitivas, mais intuitivas do que lógicas. À
direita, Clémence Augustine Royer, tradutora francesa
de A Origem das Espécies e a primeira mulher a ser
admitida numa sociedade científica, em 1870.

GETTY

SUPER 9
E S P A Ç O

COMO SERÁ A NOSSA CASA


NA

10 SUPER
A NASA planeia um habitat terrestre na superfície do satélite, juntamente com uma
plataforma móvel e um rover de exploração, todos equipados com sistemas robotizados.
Estes serão os pilares para a continuação da vida humana no nosso vizinho celeste,
que não visitamos desde que Eugene Cernan levantou o pé da superfície do regolito
no final da missão Apollo 17, a 13 de dezembro de 1972.

Texto de MANUEL RUIZ RICO, jornalista

AP

SUPER 11
a quarta-feira, 13 de dezembro UM HABITAT, UMA PLATAFORMA MÓVEL E UM ROVER PARA
de 1972, o astronauta Eugene EXPLORAÇÃO. A NASA já está a trabalhar numa versão
Cernan, depois de completar preliminar do projeto. Com base nisso, começou a co-
o seu terceiro passeio pelo vale laborar com outras agências espaciais e empresas do
lunar Taurus-Littrow, entrou setor para desenvolver a tecnologia necessária para
no vaivém que o traria de vol- alcançar este desafio. Na primeira fase, esta casa para
ta à Terra, juntamente com humanos na Lua permitirá estadias de apenas alguns
o seu companheiro Harrison dias, mas o objetivo final é que o acampamento base
Schmitt, que já se encontrava possa acomodar até quatro astronautas durante vários
no interior do vaivém. Cernan meses de cada vez e que, durante esse tempo, tenham
dirigiu-se então ao posto de mobilidade suficiente para explorar grandes regiões
controlo na Terra: «Aqui é Ge- do satélite. Para tal, o conceito do acampamento base
ne», disse, «enquanto dou o último passo humano da Artemis inclui, para além do habitat de superfície, um
superfície, de volta a casa por algum tempo, mas acre- escritório-casa sobre uma plataforma móvel e um veí-
ditamos que não muito no futuro, gostaria apenas de culo rover para exploração.
dizer [que] partimos como viemos e como voltaremos: A administradora associada da NASA para voos es-
com paz e esperança para toda a humanidade». peciais, Kathy Lueders, descreveu o processo: «A cada
Passaram mais de 51 anos e Cernan continua a ser nova viagem, os astronautas terão um nível de confor-
o último homem a ter pisado a Lua. Para alterar es- to cada vez maior, com mais capacidades do que nunca
ta situação, a NASA lançou o seu projeto Artemis em para explorar e estudar a Lua. Estamos a desenvolver
2017: em 2024, a agência espacial americana coloca- as tecnologias para conseguir uma presença humana
rá a primeira mulher e outro homem na superfície do e robótica sem precedentes a 386 240 quilómetros de
satélite. E não só: esta etapa será o primeiro passo de casa. A nossa experiência na Lua nesta década prepa-
outro projeto muito mais ambicioso, a chegada a Marte rar-nos-á para uma aventura ainda maior no universo:
na próxima década. Para isso, a Lua será uma estação a exploração humana de Marte».
intermédia fundamental, e estas palavras não são ape- Prevê-se que a base esteja operacional em meados
nas um mero slogan: a NASA planeia instalar a primeira da próxima década. Um primeiro elemento que teve
base espacial no satélite, o primeiro assentamento hu- de ser resolvido foi: haverá uma base, tudo bem, mas
mano na superfície de outro corpo celeste. É assim que onde a colocar? O local já é conhecido: o Pólo Sul lu-
será o acampamento base lunar da missão Artemis. nar. Será construída neste ponto do satélite por duas

A base lunar inclui um habitat de

ESA PIERRE CARRIL


superfície, um escritório-casa
numa plataforma móvel e um rover
para exploração.
ARTEMIS PREPARA-SE PARA MARTE

Fundação da plataforma Foram acrescentadas


Gateway aumentado móvel habitável enviada capacidades de
para completar o habitação alargadas Ensaio geral da
com habitat
Alargar o leque de acampamento base de ao Gateway para missão a Marte
internacional para
explorações de Artemis permitir o ensaio com estadias mais
incrementar as
superfície e de geral da missão a longas no espaço e
capacidades
Ensaios de aterragem demonstrações ISRU Marte na Lua na superfície
e descolagem

Fundação do
Habitat de superfície

Veículo lunar de Plataforma


Superfície móvel habitável

EXPLORAÇÃO SUSTENTÁVEL DA ÓRBITA LUNAR E DA SUPERFÍCIE


CARGAS ÚTEIS CIENTÍFICAS E DE CARREGAMENTO OPORTUNIDADES DE PARCERIAS DEMONSTRAÇÃO DA TECNOLOGIA E DAS
INTERNACIONAIS OPERAÇÕES PARA A MISSÃO A MARTE

NASA
Orion é a nova
nave espacial
razões: o sol brilha aí quase todo o ano, o que o tor- interplanetária da
NASA que será
na ideal para a obtenção de energia solar, e existem projetada para
enormes quantidades de gelo sob a superfície, o que além da Lua para
permitiria a obtenção de água e o acesso a recursos levar os astronautas
naturais, que poderiam mesmo ser transferidos para a ao planeta vermelho.
Terra e explorados comercialmente.
De acordo com o Plano de Exploração e Desenvol-
vimento Lunar da NASA, «todas as missões humanas
até agora ocorreram na região equatorial, numa área
de menos de 100 quilómetros quadrados, de uma su-
perfície lunar total do tamanho de África». Além
disso, o documento recorda que, no total, os humanos
estiveram na Lua apenas 16 dias. Todos estes números
serão largamente ultrapassados pela missão Artemis.
NASA

O seu acampamento base, de facto, baterá o recor-


de da mais longa permanência humana contínua no
satélite, que ainda é detido pela Apollo 17 de Eugene
Cernan e Harrison Schmidt, com 74 horas, 59 minutos
e 38 segundos. pelo que, desde 2016, a NASA tem vindo a trabalhar,
O plano da NASA é, uma vez estabelecida uma base segundo a agência, em «novos sistemas e designs de
lunar permanente, enviar para lá uma tripulação pe- habitabilidade», bem como em novos fatos de astro-
lo menos uma vez por ano. Esta missão tirará partido nauta, «que lhes permitam maior mobilidade e sejam
de todos os conhecimentos e práticas adquiridos com mais robustos», já que a ideia é que os astronautas ex-
a Estação Espacial Internacional, que tem sido con- plorem o satélite com menos limitações.
tinuamente habitada desde 2 de novembro de 2000, Para além disso, a base terá um rover, chamado LTV
quando a primeira tripulação lá chegou. Era consti- (Lunar Land Vehicle), uma plataforma habitável mó-
tuída pelo americano Bill Shepherd e pelos russos Yuri vel e, finalmente, um habitat terrestre, uma espécie de
Gidzenko e Sergei Krikalev, que permaneceram na es- cabine para alojar uma tripulação de até quatro pes-
tação durante quatro meses. soas durante alguns dias.
O rover LTV ainda está a ser desenvolvido pela
NOVAS TECNOLOGIAS, NOVOS FATOS, NOVAS FONTES DE ENER- NASA. Será um veículo não pressurizado que os as-
GIA. Não há dúvida de que manter uma tripulação num tronautas poderão conduzir na Lua com os seus fatos
ambiente habitável na Lua implica novos desafios, espaciais vestidos. Este veículo «permitirá aos astro-

Uma vez estabelecida a base lunar permanente, pretende-se


enviar uma tripulação pelo menos uma vez por ano
SUPER 13
O novo rover LTV é fundamental para o desenvolvimento
de uma presença a longo prazo na superfície lunar

nautas explorar a Lua mais longe do que nunca», diz água para futuras missões. No entanto, a localização
Lara Kearney, diretora do programa de Atividade Ex- exata da base precisa de ser definida, e a NASA pla-
traveicular (EVA) e Mobilidade da Superfície Humana neia enviar o rover VIPER para procurar estas fontes
(HSM) no Centro Espacial Johnson da NASA, em Hous- de água e outros recursos potenciais. A agência nor-
ton. Segundo Kearney, espera-se que seja capaz de te-americana espera que o VIPER chegue à superfície
percorrer até 20 quilómetros. lunar no final de 2024, numa missão que durará cerca
Este novo rover também não surgirá do nada. Co- de 100 dias. No entanto, o primeiro candidato na lista
mo refere a NASA, o agora icónico rover «estreou-se de sítios é a cratera Shackleton.
durante as missões Apollo e é uma pedra angular dos
planos da NASA para desenvolver uma presença a lon- QUANTO À FONTE DE ENERGIA, A NASA ESTÁ A TRABALHAR COM
go prazo na superfície lunar. Embora esses veículos OUTRAS AGÊNCIAS ESPACIAIS E COM A indústria privada
pilotados por humanos tenham expandido significati- num sistema de energia baseado na fusão nuclear, que
vamente as capacidades de exploração lunar, o novo forneceria energia limpa e abundante. Uma diferen-
LTV Artemis apresentará múltiplas melhorias e tec- ça fundamental entre a missão Artemis e as missões
nologia avançada. Tendo em conta que as missões Apollo será que nas missões Artemis para habitar e
Artemis terão como objetivo a área do Pólo Sul lunar, explorar a Lua, a NASA terá o orbitador Gateway, que
o novo LTV deve ser capaz de suportar e funcionar em orbitará sempre a Lua, com ou sem tripulação, e quan-
condições únicas de frio e luminosidade. do o fizer, será operado de forma autónoma, como se
A NASA espera que o LTV Artemis seja capaz de per- espera que aconteça com muita da tecnologia que será
correr uma distância de centenas de quilómetros por desenvolvida para a missão Artemis. O Gateway será o
ano, permitindo o acesso a uma variedade de locais espaço intermédio para as tripulações entre a Terra e a
que facilitarão a descoberta científica, prospeção e ex- vida na Lua.
ploração de recursos. Os três pilares do acampamento base Artemis — o
LTV para transportar a tripulação pelo local, a pla-
O POLO SUL LUNAR: FONTE DE LUZ E DE ÁGUA. Uma ques- taforma de mobilidade habitável para viagens de
tão essencial para garantir a habitabilidade de uma longa duração para fora do acampamento base e o
base lunar será a disponibilidade de energia e água. O habitat de superfície da fundação, que permitirá es-
pólo sul do satélite está quase sempre exposto à luz so- tadias curtas para quatro membros da tripulação no
lar, pelo que esta fonte permanente de energia estará Pólo Sul lunar — serão apoiados por infra-estruturas
disponível. A presença de água abundante na subsu- que irão sendo acrescentadas em áreas como comu-
perfície desta região garantiria o abastecimento de nicações, energia, proteção contra radiações, uma

Os fatos concebidos para a


missão Artemis estão equipados
com um sistema portátil de
suporte de vida e um sistema de
rádio bidirecional.
NASA

14 SUPER
NASA

O rover lunar LTV da Artemis permitirá aos astronautas operar em


condições únicas de frio e luminosidade. Estima-se que será capaz de
percorrer uma distância de 100 quilómetros por ano. À direita, o
Veículo de Exploração Polar Volátil para Investigação, ou VIPER, da
NASA, que irá mapear a localização e concentração de gelo e outros
recursos no Polo Sul da Lua. Em baixo, o módulo Gateway, que estará
NASA

sempre a orbitar a Lua.


NASA
Ejeção do ICPS
na Terra

Demonstração
das operações
de proximidade

Primeiro voo de ensaio tripulado à Lua desde a Apollo


LANÇAMENTO. MANOBRA DE SUBIDA IGNIÇÃO DE SEPARAÇÃO TRÂNSITO DE IDA PARA A O MÓDULO DA
Os astronautas AO PERIGEU. DA FASE SUPERIOR (USS) LUA. Ignições de TRIPULAÇÃO É SEPARADO
descolam do DE ORION. correção da trajetória DO MÓDULO DE SERVIÇO.
Centro Espacial IGNIÇÃO DE SUBIDA de partida.
Kennedy. NO APOGEU PARA A IGNIÇÃO DA SUBIDA INTERFACE DE ENTRADA (EI).
ÓRBITA TERRESTRE NO PERIGEU. SOBREVÔO LUNAR. 10 247 Entrada na atmosfera terrestre.
EJEÇÃO DOS PROPUL- ALTA. km / 6479 milhas (média)
SORES SÓLIDOS DO no lado mais afastado ATERRAGEM: uma nave
FOGUETÃO, CARENA- A Orion separa-se da Lua. recupera os astronautas
GENS E SISTEMA DE da fase de REGRESSO e a cápsula.
ABORTAGEM DO LAN- propulsão INJEÇÃO TRANS-LUNAR TRANSTERRESTRE. Ignição
ÇAMENTO. criogénica interina (TLI) COM O MOTOR para correção da
DESATIVAÇÃO DO (ICPS), seguida PRINCIPAL DA ORION. trajetória de retorno
MOTOR PRINCIPAL por demonstração (RTC).
DA FASE CENTRAL. das operações de
Com separação. proximidade.
NASA

plataforma de aterragem, eliminação de resíduos e Os humanos foram à Lua nove vezes entre 1968 e
planeamento do armazenamento. Sem dúvida que o 1972, no âmbito do programa Apollo. Eram os anos di-
desenvolvimento de novos sistemas robóticos, que fíceis da Guerra Fria. Precisamente este novo impulso
permitam que tudo seja autónomo, será fundamen- para a exploração lunar está a ter lugar num contexto
tal para a exploração lunar e para a continuação da não muito diferente. Foi Donald Trump que iniciou o
vida no satélite. programa Artemis como presidente dos Estados Uni-
Em conjunto, o rover, a plataforma móvel e o habitat dos em 2017, no meio de uma dura guerra comercial
de superfície serão os pilares que, segundo a agência com a China. Esta situação foi agravada pelo início
espacial americana, permitirão às tripulações viver na da guerra da Rússia na Ucrânia em fevereiro de 2022.
superfície lunar durante meses. Ambos os elementos trouxeram de volta ao mundo a
visão de dois blocos concorrentes que estão mais uma
YURI GAGARIN ABRIU O CAMINHO EM 1961. Habitar a Lua vez a utilizar a corrida espacial e os seus avanços co-
encerrará, mais de meio século depois, o primeiro ca- mo mais uma etapa dessa luta. De facto, em maio de
pítulo da exploração humana do espaço in situ, aberto 2021, a agência espacial chinesa aterrou um rover em
na década de 1960, os anos da corrida espacial. O so- Marte e anunciou planos para construir a sua própria
viético Yuri Gagarin tornou-se o primeiro ser humano estação espacial internacional e levar astronautas à
a chegar ao espaço quando completou uma órbita à Lua até 2030.
volta da Terra a bordo da cápsula Vostok 1, em 12 de
abril de 1961. Foi o golpe de misericórdia soviético que UMA NOVA GERAÇÃO DE MEGA-FOGUETÕES. Mas há outro
desencadeou a corrida espacial na sua luta contra os elemento decisivo em toda esta história. A base lunar
Estados Unidos. A NASA tinha sido criada apenas três Artemis não terá apenas as suas fundações assentes no
anos antes, em julho de 1958. Menos de dez anos após o regolito do satélite, mas também num elemento-chave
voo de Gagarin, a 20 de julho de 1969, Neil Armstrong da tecnologia humana, o pilar que ligará fisicamente a
tornou-se o primeiro ser humano a pisar a superfície Lua e a Terra: a nave espacial Orion da NASA e o Siste-
da lua. Em dezembro de 1972, com a Apollo 17 de Cer- ma de Lançamento Espacial (SLS).
nan e Schmidt, esta primeira fase das missões lunares A nave espacial Orion foi concebida pela NASA
chegou ao fim. para operações com um máximo de quatro tripulan-

A corrida espacial volta a ser uma etapa da luta entre os


Estados Unidos, a Rússia e a China
16 SUPER
tes no espaço profundo em torno da Lua, e o SLS é
o poderoso foguetão de carga pesada concebido para
a lançar, e potencialmente outras cargas úteis de ele-
vada massa, no ambiente lunar. Em 16 de novembro
de 2022, a NASA enviou a cápsula Orion sem tripu-
lação, movida pelo foguetão SLS, para a órbita lunar
como tiro de partida para a Artemis. Nesse dia, o SLS
tornou-se o foguetão mais potente alguma vez lança-
do com sucesso, retirando o título ao icónico Saturno
V da NASA.
De acordo com a NASA, o foguetão gerou um total
de 8,8 milhões de libras de impulso durante esse lan-
çamento. O icónico foguetão Saturno V, que enviou as
missões Apollo à Lua há meio século, gerou cerca de
7,5 milhões. No entanto, o reinado do SLS pode ser de
curta duração. A SpaceX está a desenvolver um mega-
-foguetão da próxima geração, o chamado Starship,
concebido para transportar até 100 pessoas e muita
carga para a Lua, Marte e outros destinos longínquos.
A Starship é constituída por um propulsor de pri-

NASA
meira fase, denominado Super Heavy, e por uma nave
espacial de fase superior, denominada Starship. Am- Na imagem, o então Presidente dos EUA, Donald Trump, assina
bos os elementos são reutilizáveis e alimentados pelo em 2017 a Diretiva de Política Espacial-1, que alterou a que tinha
motor Raptor da próxima geração da SpaceX, que é sido assinada pelo anterior Presidente Barack Obama.
consideravelmente mais potente do que o Merlin. Es-
tima-se que o gigantesco propulsor do mega-foguetão
gere até 16 milhões de libras de impulso na descola-
gem, o dobro do impulso do SLS. meira casa da humanidade fora da Terra. Afinal, como
James Green explicou à Super Interessante numa en-
ESTE SISTEMA DE TRANSPORTE, SE CORRESPONDER ÀS EXPECTA- trevista em novembro passado, «os humanos vivem na
TIVAS, TORNARÁ FINALMENTE possível a futura colonização órbita da Terra há mais de 20 anos a bordo da Estação
da humanidade em Marte. Mas antes disso, os humanos Espacial Internacional. Não há razão para pensar que
terão um primeiro passo: a base lunar Artemis, a pri- não podemos também viver na Lua. e

A SpaceX está a desenvolver um


mega-foguetão, o Starship, que
se estima que possa gerar até 16
milhões de libras de impulso na
descolagem.
SPAXEX

SUPER 17
Z O O L O G I A

DESCOBERTO
O MAPA DO
CÉÉREBRO DE
UMA MOSCA
UM PASSO GIGANTE
PARA COMPREENDER
O CÉREBRO HUMANO
Esta mosca tem sido utilizada pela ciência como um
organismo modelo para diferentes estudos. Agora, a
publicação do diagrama das suas ligações neuronais
aproxima-nos do estudo e da compreensão do cérebro
humano e da sua biologia. Mas, embora existam muitos
paralelos, a possibilidade de mapear este último parece
ainda distante devido à sua complexidade.

Texto de SERGIO PARRA, jornalista

18 SUPER
AGE

SUPER 19
UNIVERSTIY OF CAMBRIDGE

Compreender o cérebro de uma mosca, aqui


ilustrado, pode ajudar-nos a compreender me-
lhor o funcionamento do cérebro humano.

O
minúsculo cérebro de uma nos Estados Unidos. O resultado foi a publicação na
mosca da fruta (Drosophi- revista Science do primeiro conectoma (diagrama de
la melanogaster) tem cerca ligações neuronais) completo do cérebro de uma larva
de 100 000 neurónios (me- de mosca do vinagre.
tade dos quais pertencem ao Embora o cérebro da larva seja mais pequeno do
sistema visual), apenas um que o da mosca adulta, as larvas realizam quase todas
milionésimo dos existen- as mesmas ações que as moscas adultas, como voar e
tes no cérebro humano. No acasalar. Ainda assim, o mapeamento deste cérebro
entanto, o seu cérebro mi- minúsculo demorou cerca de um dia por neurónio
núsculo, do tamanho de uma para analisar meticulosamente os mais de 3000 neu-
cabeça de alfinete, é suficien- rónios e as respetivas ligações aos neurónios vizinhos.
te para efetuar manobras aerodinâmicas espantosas, e
até mesmo para ser capaz de seguir rituais de corteja- UM PROCESSO LONGO E LABORIOSO. A ideia para este pro-
mento, aprender e até mostrar medo e agressividade. jeto partiu da neurocientista do MRC Marta Zlatic. A
Assim, apesar das evidências claras quanto à com- partir daí, ela e os seus colegas começaram a captar
plexidade, há muitos paralelos entre o cérebro de uma imagens de microscópio eletrónico de todo o cérebro
mosca e o cérebro de um ser humano. E, ao mesmo
tempo, existem paralelos com o resto da sua biologia,
incluindo o seu genoma.
Neste sentido, observou-se que 75% dos genes
ligados a doenças humanas têm um equivalente no
código genético da mosca da fruta, e até 50% das
suas proteínas também têm equivalentes no ser
A mosca da ciência
humano. Estas semelhanças fizeram com que um or-
ganismo aparentemente tão simples como a mosca
tenha sido utilizado em numerosos estudos rela-
D esde o início do século passado, a Drosophila me-
lanogaster tem sido amplamente utilizada como
organismo modelo para estudos genéticos, devido ao
cionados com doenças como Parkinson, Alzheimer, seu tamanho, elevada capacidade reprodutiva e curto
diabetes, cancro e dependência, entre outros cam- período de gestação, bem como a certas características
pos de investigação. genéticas únicas, como a sua composição cromossómica
Em conclusão, uma melhor compreensão do cére- constituída por apenas quatro cromossomas e a ausência
bro de uma mosca pode permitir-nos compreender de recombinação meiótica nos machos. Foi por isso que
melhor o cérebro humano, bem como o resto da sua um dos seus alunos, Seymour Benzer, começou a fazer
biologia. E é aí que reside a importância de um esforço experiências com elas na Universidade de Columbia, em
de 12 anos desenvolvido por investigadores do Labo- Nova Iorque: Seymour Benzer. Além disso, desde 2000,
ratório de Biologia Molecular do MRC, em Cambridge, dispomos do genoma completo desta espécie.
Inglaterra, e de outro da Universidade Johns Hopkins,

20 SUPER
Graças à inteligência artificial, a equipa rastreou todos os
neurónios do cérebro da larva do vinagre para criar uma
representação tridimensional das células

da larva da mosca do vinagre. Em seguida, juntaram e parciais do cérebro da Drosophila já conduziram a


essas imagens num computador e rastrearam manual- vários estudos de primeiro nível que explicam o me-
mente cada neurónio para criar uma representação canismo de processamento de informação dos seus
tridimensional das células. Por fim, a equipa encon- circuitos neuronais.
trou as ligações por onde a informação passava entre
as células, e até as extremidades emissoras e recetoras UM AVANÇO PARA A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL. Segundo a
foram determinadas com a ajuda de algoritmos de in- equipa responsável pela publicação do primeiro co-
teligência artificial. nectoma da mosca, o próximo passo será aprofundar
O grande aliado deste processo, segundo Albert o conhecimento da estrutura neuronal envolvida em
Cardona, um dos investigadores do MRC envolvidos certas funções comportamentais, como a aprendiza-
no projeto, foi o programa CATMAID, que corre no gem e a tomada de decisões, e monitorizar a atividade
browser da Internet e armazena os dados num servi- de todo o conectoma enquanto o inseto está ativo.
dor remoto com uma base de dados: «O interessante Estes avanços, em princípio, não nos aproximam
é que, uma vez reconstruído um, o seguinte é muito da possibilidade de mapear o cérebro humano, por-
mais fácil; em primeiro lugar, porque a inteligência
artificial, na sua aplicação à deteção de membranas
celulares e outros aspectos dos neurónios em ima-
gens de microscopia eletrónica, percorreu um longo
caminho nos últimos cinco anos e, em segundo lugar, A imagem mostra
porque os erros que ainda comete podem ser corri- Caenorhabditis
elegans, um verme
gidos automaticamente, comparando os neurónios hermafrodita que
reconstruídos pela inteligência artificial com os re- vive no solo.
construídos à mão».
Anteriormente, este marco só tinha sido alcançado
com organismos muito simples, como um nemátodo de
apenas um milímetro de comprimento e com um cére-
bro de apenas 302 neurónios: o verme Caenorhabditis
elegans, cujo primeiro esboço foi publicado em 1986
pelo Prémio Nobel Sydney Brenner. No entanto, o cé-
rebro da mosca é muito mais complexo do que o destes
organismos simples. Concretamente, os investigado-
res identificaram 3016 neurónios e 548 000 ligações,
conhecidas como sinapses. Trata-se de um salto não só
quantitativo, mas também qualitativo, porque nada no
sistema nervoso é linear.
Estes dados são importantes para compreender me-
lhor o funcionamento do cérebro e a forma como este

GETTY
gera o comportamento. De facto, os mapas anteriores

Entradas Interneurónios Saídas do cérebro


cerebrais (480) (2122) (414)

Diagrama do
MICHAEL WINDING

conectoma de
uma mosca.

SUPER 21
que estamos a comparar um órgão com cerca de 3000 ajuste dos pesos das ligações, são capazes de aprender
neurónios com outro que tem mais de 85 mil milhões. e generalizar padrões nos dados de entrada para reali-
No entanto, um dos grandes valores deste estudo re- zar tarefas específicas, como a classificação, a previsão
side no facto de poder inspirar novas arquiteturas nas e o reconhecimento de padrões, entre outras.
diferentes abordagens à inteligência artificial, como Por exemplo, o conectoma da mosca revelou que
as redes neuronais artificiais. As redes neuronais ar- certos circuitos relacionados com a aprendizagem têm
tificiais são um conjunto de algoritmos e técnicas de um grande número de ligações nervosas recorrentes e
aprendizagem automática inspirados na estrutura e abundantes. Esta descoberta sugere como a natureza
funcionamento das redes neuronais biológicas pre- fornece circuitos neurais para facilitar a importante
sentes no cérebro humano. Através da retroação e do função da aprendizagem. Em suma, a presença desta
estrutura organizacional confere ao sistema a capaci-
dade de reter informações.
Graças a esta descoberta, é possível tirar lições pa-
JANLIA RESARCH CAMPUS

O conectoma da ra otimizar tanto a arquitetura das máquinas como os


mosca revelou algoritmos de aprendizagem e de inteligência artifi-
que os circuitos cial que utilizamos atualmente. Algo que já tinha sido
relacionados com conseguido anteriormente graças à descrição feita pe-
a aprendizagem
têm um grande
la equipa de Cardona dos circuitos do lóbulo olfativo e
número de do lóbulo da memória associativa da larva da mosca,
ligações que, respetivamente, «inspiraram a conceção de redes
nervosas. neuronais artificiais altamente eficientes, reduzindo
62 vezes o número de passos e duas vezes o tempo de
aprendizagem, mas mantendo a precisão do resultado
num teste de referência padrão».
Assim, é de esperar que, com a publicação do co-
nectoma completo do cérebro da larva da mosca,
surjam mais estudos semelhantes que se inspirem na
biologia. Tanto mais que a análise da arquitetura dos
circuitos neuronais deste pequeno cérebro mostra
que tem características comuns às redes neuronais

A decifração do conectoma
ISCTOCK

humano poderá ajudar a


compreender as doenças
neurológicas e psicológicas
consideradas conectopatias,
ou seja, «ligações defeituosas»
das redes neuronais, como a
esquizofrenia ou o autismo.

22 SUPER
Morfologia Conectividade
Neurónios pós-sinápticos

3016 neurónios

Neurónios pré-sinápticos
548 000 ligações
sinápticas

MICHAEL WINDING
artificiais, como a ResNet e a U-Net, caracterizadas Contudo, os cientistas fizeram recentemente pro-
por um número reduzido de neurónios (ou unidades gressos significativos no registo do cérebro humano
computacionais). Certamente que existem outros ele- e no rastreio da atividade neuronal em ratos, mas a
mentos da arquitetura do circuito desconhecidos dos atenção centrou-se apenas em regiões específicas.
cientistas informáticos que trabalham em inteligência Também se conseguiram conectomas parciais
artificial que os inspirarão a melhorar o desempenho e de áreas específicas do cérebro humano, como um
a precisão das novas redes neurais artificiais. projeto de 2021 da Google e de investigadores da
Universidade de Harvard, em que um segmento de
O DESAFIO TITÂNICO DE MAPEAR O CONECTOMA HUMANO. tecido cerebral de um doente epilético foi cortado
Decifrar o conectoma do cérebro humano poderia em cerca de 5300 secções individuais de 30 nanóme-
permitir-nos dar um salto extraordinário em muitos tros (um bilionésimo de metro). Em seguida, foram
domínios do conhecimento. Os investigadores chega- obtidas 225 milhões de imagens 2D de cada uma das
ram mesmo a colocar a hipótese de algumas doenças fatias utilizando um microscópio eletrónico. Por fim,
neurológicas e psiquiátricas, como a esquizofrenia e o foi utilizado um computador para fundir estas ima-
autismo, serem «conectopatias», ou seja, problemas gens e criar uma representação 3D do tecido cerebral
causados por «ligações defeituosas». No entanto, a ob- original. Os investigadores utilizaram algoritmos de
tenção do conectoma humano é ainda uma enteléquia. aprendizagem automática para caraterizar 130 mi-
Em apenas 1400 gramas de cérebro, temos entre lhões de sinapses.
80 mil milhões e 100 mil milhões de neurónios. Cada Os dados do projeto ascendem atualmente a mais
neurónio estabelece entre 5000 e 50 000 ligações com de 1,4 petabytes, o equivalente a armazenar mais de
as células vizinhas. Isto equivale a construir uma rede 4.000 fotografias digitais por dia durante toda a nossa
neuronal interligada por 5 000 000 000 000 000 000 vida. Estes dados realçam a complexidade desconcer-
000 000 000 000 000 000 000 ligações. Uma com- tante com que os investigadores se deparam.
plexidade tão avassaladora que nem sequer é possível Assim, antes do conectoma humano, surge o conec-
calcular a que distância estamos de a compreender. toma do saguim (um macaco muito pequeno) e, ainda
Poderá acontecer dentro de alguns anos, ou talvez antes, do rato e do ratinho, ambos de enorme impor-
nunca. Tudo o que se sabe, explica Cardona, é que «se- tância para a medicina e a investigação em geral.
riam necessários aproximadamente todos os centros Atualmente, o horizonte é mais claro para o cérebro
de armazenamento de dados do mundo» para arma- do rato, que, com a resolução necessária, requer o pro-
zenar um tal volume de informação. cessamento de apenas 60 petabytes de informação.

Seriam necessários todos os centros de armazenamento de


dados do mundo para armazenar todo o volume de informação
contido na rede neuronal do cérebro humano
SUPER 23
Não se está ainda a considerar um
SHUTTERSTOCK

protocolo para preparar o cérebro


humano para microscopia eletrónica
devido à sua complexidade.

UM ATALHO POSSÍVEL: SIMPLIFICAR O PROCESSO. Em 2022, Além disso, independentemente da espécie, ca-
investigadores do Instituto Max Planck de Conec- da cérebro executa uma série de comportamentos
tómica, em Frankfurt, já publicaram um protocolo complexos, como o processamento de informação
para a preparação do cérebro do rato para microsco- sensorial, a aprendizagem, a seleção de ações, a na-
pia eletrónica. No entanto, desenvolver um protocolo vegação no seu ambiente, a escolha de alimentos,
equivalente para preparar todo o cérebro humano para o reconhecimento de congéneres, e a fuga aos pre-
microscopia eletrónica seria uma tarefa tão difícil que dadores. Isto não só torna possível extrapolar as
ninguém a está a considerar atualmente. descobertas do conectoma de uma mosca, como
No entanto, todos os cérebros partilham uma se- também pode facilitar a obtenção do conectoma do
melhança fundamental: são compostos por redes de cérebro humano através de métodos de imagiologia e
neurónios interligados. mapeamento novos e mais simples.

107 101
Humano
Capacidade de armazenamento (PB)

101 106
Volume cerebral (mm3)

106 105

Macaco Rhesus 104


105

104 Macaco saguim 103


Esta imagem mostra o quão longe
estamos de obter o conectoma
Ratazana
103 humano. O armazenamento é 102
Ratinho registado em petabytes (Mikula
2016 Front NeuroAnat).
102 Musaranho-pigmeu 101

101
0 20 40 60 80 100 120
Largura mínima do cérebro (mm)

24 SUPER
O código de barras permite o rastreio de neurónios individuais de alto rendimento.

A Um a um B Abordagem ao ma- C Número de células infetadas

marcadas de forma única


Todos a todos Misto peamento sequencial LC A1 Ctx Cérebro

Fração de células
1
Ø
0.9
0.8
BC43 0.7
BC 48
ANTHONY ZADOR

78 0.6
43 BC43 0.5 Teoria
11 0.4
10Bcs
BC11 BC43 0.3
10Bcs
0.2 10Bcs
Ø 0.1 10Bcs
0
10 0
105 1010
Região Área- Região Área- Região Área- Região Área- BC’s em
de alvo de alvo de alvo de alvo áreas-alvo
origem origem origem origem

D (c) A fração esperada de de barras e k é o número


células marcadas exclusi- de células infetadas,
(a) Os resultados de vamente é dada por pressupondo uma distri-
mapeamento massivo F=(1-1/N)(k-1), em que N buição uniforme dos
idênticos podem é o número de códigos códigos de barras. O nú-
resultar de diferentes mero de neurónios para
padrões de projeção várias áreas do cérebro
11
subjacentes. (b) A do rato é dado de acordo
43
resolução de um único com as referências (Her-
neurónio pode ser 78 culano-Houzel et al.,
conseguida 11 2006; Schüz e Palm, 1989)
11
etiquetando (A1 = córtex auditivo pri-
89
aleatoriamente os mário; Ctx = neocórtex).
neurónios com códigos 78 (d) No MAPseq, os neuró-
de barras e lendo-os nios são infetados com
nas áreas-alvo. (d) No MAPseq, os neurónios são infetados com 11 uma baixa multiplicidade
uma baixa multiplicidade de infeção (MOI) com uma de infeção (MOI) com
biblioteca de vírus com código de barras. O mRNA com código uma biblioteca de vírus
de barras é traficado e pode ser extraído de locais distais como com código de barras.
uma medida das projeções de um único neurónio.

ção de 21 milhões de dólares, com a duração de cinco


anos, concedida pelaIntelligence Advanced Research
MICrONS Projects Activity (IARPA). A técnica faz parte do pro-
grama Machine Intelligence from Cortical Networks,

O objetivo do MICrONS é mapear todos os neuró-


nios e ligações sinápticas num pedaço de tecido
de um milímetro cúbico do córtex visual do rato. A par-
ou MICrONS.
Zador e Church prevêem que a sua técnica con-
junta possa mostrar a conetividade de um milímetro
te do cérebro escolhida para representar uma tarefa cúbico de tecido cerebral de rato em dias ou sema-
(perceção visual) é fácil de realizar para os animais e nas, e não nos meses ou anos típicos da microscopia
para os humanos, mas tem-se revelado extremamente eletrónica.
difícil de emular com computadores. Em última análi- Estas abordagens são prometedoras, embora haja
se, a IARPA espera que estes mapas detalhados das ainda uma série de obstáculos técnicos a ultrapas-
ligações cerebrais sejam de grande ajuda para os sar. Para além disso, dado que as funções cerebrais
cientistas que pretendem conceber arquiteturas infor- mais importantes estão distribuídas por várias re-
máticas capazes de realizar tarefas que são fáceis para giões do cérebro, conceber cálculos neurais úteis ou
um cérebro, mas que estão fora do alcance da inteli- fundamentais com base nos mapas de ligações de um
gência artificial: reconhecer uma pessoa ou um objeto milímetro cúbico de córtex pode ser demasiado re-
de muitos ângulos diferentes depois de o ver apenas ducionista.
uma vez, por exemplo. Porque mesmo que o conectoma do cérebro humano
pudesse ser cartografado, poderia não ser suficiente.
De facto, um tal avanço aproximar-nos-ia da com-
preensão do funcionamento do nosso cérebro, da sua
interação com o ambiente e até da forma como pensa-
Um desses exemplos foi apresentado pelo neu- mos ou mesmo do que é a inteligência. No entanto, não
rocientista Anthony Zador, do Cold Spring Harbor pensamos apenas com o nosso cérebro, mas o nosso
Laboratory, que, utilizando métodos de biologia mole- cérebro interage com todo o nosso corpo.
cular, aspira a reduzir drasticamente o custo e o tempo Por conseguinte, para além de completar o conec-
de mapeamento dos circuitos neurais ao nível de uma toma, teremos também de obter outros «omas»,
única célula. como o genoma, o proteoma, o exoma, o epigenoma,
Paralelamente, no âmbito de um projeto liderado o metaboloma ou o microbioma, e até descobrir como
pelo engenheiro molecular George Church, da Uni- interagem entre si. Uma proeza comparável à de en-
versidade de Harvard, foi selecionada outra nova frentar a Hidra de Lerna, onde cada vez que se cortava
técnica de mapeamento do cérebro para uma subven- uma cabeça, surgiam mais duas no seu lugar. e

SUPER 25
F I S I O L O G I A

26 SUPER
A
ENERGIA
ESCURA DO
CÉREBRO
A GRANDE DESCONHECIDA
O cérebro humano, apesar de ser um
órgão pequeno em termos físicos, é um
dos que mais energia consome no corpo...
sem que se saiba, sobretudo de uma
grande parte dela, exatamente para quê.
É a chamada energia escura do cérebro,
da qual ainda hoje se desconhece se é
utilizada para inibir parte dos estímulos
que este órgão recebe, para manter a
homeostase do corpo ou para alimentar o
nosso inconsciente.

Texto de HENAR L. SENOVILLA, jornalista


SHUTTERSTOCK

SUPER 27
U
m cérebro humano normal nada sabemos sobre as sinapses elétricas, que são co-
representa cerca de 2% do pe- municações diretas entre dois neurónios que não estão
so total do corpo. No entanto, separados, transmitindo iões de um para o outro por
consome cerca de 20 por contiguidade. E é a estas sinapses elétricas ou ligações
cento da energia do corpo. E entre neurónios contíguos que chamamos a energia
desta percentagem, apenas de escura do cérebro», explica José Antonio Portellano
1 a 2% se sabe para que serve, Pérez, neuropsicólogo e professor do Departamento
para que é utilizada. Porque é de Psicobiologia da Faculdade de Psicologia da Uni-
que existe uma desproporção versidade Complutense de Madrid.
tão grande entre o tama- Comparando com as sinapses ou ligações químicas,
nho físico deste órgão e o seu as sinapses elétricas são muito mais rápidas, ou seja, a
consumo de energia? E, so- transferência de informação entre os neurónios ocorre
bretudo, como é possível que não saibamos, em pleno a uma velocidade superior. Mas, para além disso, pou-
século XXI, como são gastos 18 ou 19% da energia utili- co se sabe: «Ainda não existe uma forma científica de
zada pelo cérebro, a chamada «energia escura»? Várias as identificar. Sabemos que existem, mas não como es-
teorias científicas tentam esclarecer estas questões. tudá-las, pois ainda não foi desenvolvido um método
Em primeiro lugar, do ponto de vista psicobioló- para o fazer», continua Portellano.
gico, o que se sabe é que a energia escura do cérebro «A energia escura no cérebro é uma hipótese que
se deve a um dos dois tipos de ligações neuronais que alguns investigadores defendem porque, do que se
existem: as sinapses elétricas. «Basicamente, o cére- sabe sobre o cérebro até agora, apenas uma peque-
bro funciona através de ligações entre neurónios, que na percentagem da energia total que consome foi
se chamam sinapses. Existem dois tipos de sinapses: contabilizada», acrescenta Ana Pérez Menéndez, da
químicas e elétricas. As sinapses químicas, que são Sociedade Espanhola de Neurologia. «Como ainda não
mais abundantes e mais frequentes, envolvem a liga- se sabe como é que o cérebro utiliza a restante energia
ção entre dois neurónios que estão separados por um que não foi contabilizada até agora, surgiram várias
neurotransmissor. Foram efetuadas muitas investi- teorias para tentar explicá-la, e uma delas é a da ener-
gações e sabe-se muito sobre elas. No entanto, quase gia escura do cérebro.

As ligações entre os
neurónios são chamadas
sinapses. Estas podem ser
químicas e eléctricas.
ISTOCK

28 SUPER
São as sinapses elétricas ou ligações entre neurónios
adjacentes que são chamadas a energia escura do cérebro

INIBIÇÃO DE ESTÍMULOS. O neurologista Marcus E. Rai-

ISTOCK
chle publicou um artigo na revista científica Science,
em 2006, intitulado The dark energy of the brain, no
qual defendia que a elevada necessidade de energia do
cérebro se deve ao facto de este órgão necessitar de
inibir a grande maioria da informação que recebe e de
ser capaz de selecionar, exclusivamente, desta enorme
quantidade de impactos que percepciona, os elementos
necessários para estabelecer uma resposta coerente e
adequada ao contexto e à situação.
Assim, de acordo com esta tese, toda a informação
que percebemos através dos sentidos — o que vemos,
o que ouvimos, o que cheiramos — está a ser percebida
de facto pelo cérebro; os órgãos correspondentes aos
sentidos — os olhos, os ouvidos, o nariz — são apenas
um ponto de entrada, dispositivos biológicos através
dos quais a informação é acedida, sendo o cérebro o
verdadeiro captador dos estímulos. Na imagem, uma representação do envio de sinais elétricos e
Uma vez recebida toda esta informação, Raichle ar- químicos ou sinapses de um neurónio. As sinapses elétricas
gumenta que o cérebro descarta a maior parte dela e ocorrem a um ritmo muito mais rápido do que as sinapses químicas.
retém apenas o que é necessário para estruturar res-
postas coerentes ao ambiente e ao momento. Esta vasta
energia investida na tarefa de inibir a informação que
não é necessária num determinado momento é o que complicada de processos químicos e elétricos. Isto
Marcus chamou a «energia escura» do cérebro. significa que está constantemente a trabalhar, fazen-
do milhões de sinapses ou ligações entre neurónios,
HOMEOSTASIA. Uma segunda corrente científica que independentemente de estarmos a dormir ou acorda-
tenta esclarecer a energia escura do cérebro defende dos, ou de estarmos envolvidos em qualquer atividade
que esta é utilizada para regular a homeostasia do or- física ou intelectual, intensa ou não. Porque as funções
ganismo. Ou seja, o cérebro utiliza-a para manter o do cérebro incluem também a regulação da tempera-
equilíbrio interno das funções orgânicas que preser- tura corporal, a circulação sanguínea, a respiração e
vam a saúde. «A razão pela qual o cérebro tem um a digestão. Para realizar todos estes processos quími-
consumo de energia tão significativo em relação ao cos e elétricos é necessária uma grande quantidade de
resto dos órgãos do nosso corpo deve-se ao trabalho energia», continua Menéndez, da Sociedade Espa-
que realiza, pois é como o nosso computador central. nhola de Neurologia. O cérebro consome tanta energia
Todo o nosso sistema de vida, tanto físico como men- porque é o órgão metabolicamente mais importante»,
tal, depende dele e está ligado a ele por uma mistura corrobora o neuropsicólogo José Antonio Portella-

Conectividade
cerebral
N ão há dúvida de que compreender a
energia escura do cérebro é um de-
safio, e é por isso que várias disciplinas
científicas e médicas estão a tentar encon-
trar diferentes sistemas para o conseguir.
«Um sistema que está a ser cada vez mais
utilizado para identificar a energia escura
do cérebro e compreender melhor as suas
ligações é o conectoma, que tenta analisar
todas as ligações do cérebro para elaborar
mapas de conetividade entre sinapses e,
assim, compreendê-las melhor», explica Jo-
SHUTTERSTOCK

sé Antonio Portellano, neuropsicólogo.

SUPER 29
A expansão
do universo
F oi o astrónomo americano Edwin Hubble que, em
1929, se apercebeu que, quanto mais longe uma
galáxia está da Terra, mais rapidamente se afasta do
nosso planeta, em vez de se aproximar dele, e a um
ritmo constante. Quase 60 anos após a revelação de
Hubble, os investigadores fizeram outra descoberta
surpreendente: o aumento das distâncias cósmicas
das estrelas mais distantes. No final da década de
1990, depois de estudarem supernovas distantes,
duas equipas de cientistas descobriram que a luz
das explosões estelares era mais fraca do que o es-
perado, indicando que o Universo não só se está a
expandir, como também se está a expandir a um rit-

SHUTTERSTOCK
mo acelerado.

no. «É ainda maior do que a energia consumida pelo


fígado. E não só consome energia para transmitir
mensagens ou processar informação, como também
regula, supervisiona, dirige e controla o resto do or-
ganismo, para além dos processos cognitivos. É por
isso que precisa de absorver uma percentagem muito
elevada de energia.
Neste sentido, o consumo de energia do cérebro
de qualquer ser vivo está normalmente relaciona-
do com o seu peso e com o número de neurónios e
sinapses produzidas: «O consumo de um cérebro
humano está de acordo com um órgão que pesa
entre 1300 e 1400 gramas (em adultos), contém
cerca de 100 000 milhões de neurónios e produz
mais de 150 000 000 000 000 000 000 sinapses», ex-
plica Ana Pérez Menéndez, da Sociedade Espanhola
de Neurologia.

INCONSCIENTE. Por outro lado, uma terceira corrente de


investigação defende que a energia escura do cérebro
está associada ao funcionamento do inconsciente. O
inconsciente é uma área de atividade psíquica que não
atinge o nível da consciência, ou seja, é a parte da nos-
sa mente onde se encontra a origem da grande maioria
dos nossos sentimentos, pensamentos, impulsos ou
memórias.
No inconsciente existem muito mais processos neu-
ronais do que no âmbito da consciência e, por isso,
não faltam cientistas que defendem que é a esta parte
submersa da nossa mente que o cérebro aloca e dedica
aquela energia que a ciência ainda não conseguiu de-
monstrar para onde vai ou em que é gasta.
Nesta linha, Daniel Gilbert, professor da Univer-
sidade de Psicologia de Harvard e psicólogo social,
demonstrou que a mente vagueia ao longo do tempo,
o que reforçaria a hipótese de que investimos incons-
cientemente a energia escura do cérebro na gestão do
nosso eu interior.
Em todo o caso, o que está cientificamente prova-
do é que o cérebro nunca deixa de consumir energia,
ISTOCK

nem quando está ativado de uma forma conscien-


te, nem quando está em repouso, acreditando que

30 SUPER
O cérebro humano

MIT
tem um volume mais
pequeno de canais
iónicos para
transmitir energia
entre os neurónios,
mas estes são muito
eficientes e afetam
energia a tarefas
cognitivas
complexas.

A diferença em relação aos outros animais é que o nosso


cérebro gere a energia de que necessita de forma mais eficiente

está em repouso ou que não está a pensar em nada. é o que consome mais energia. Nas espécies mais pró-
O nosso eu consciente pode não estar a pensar, mas ximas do homem, como os macacos, chimpanzés,
a parte inconsciente do cérebro continua em ple- gorilas, bonobos... o seu consumo é muito menor por-
no funcionamento. O exemplo mais extremo que que, embora o cérebro seja importante, não atinge os
demonstra esta atividade constante do cérebro é o níveis de complexidade humanos. O cérebro humano é
estado conhecido como «coma permanente», quan- mais evoluído, tem um quociente de encefalização mais
do o corpo está clinicamente morto, mas o cérebro elevado», explica Portellano. «Mesmo em animais
continua ativo. com grandes cérebros, como os elefantes ou as baleias,
a proporção de consumo de energia é mais elevada na
EFICIÊNCIA ENERGÉTICA. O uso de energia pelo cérebro espécie humana.
humano também seria a explicação para a diferença
entre o nosso cérebro e o de outros animais. De acor- ENERGIA NEGRA NO COSMOS. A expressão «energia escura
do com o artigo publicado na Nature, Allometric rules do cérebro» faz uma analogia com a chamada «energia
for mammalian cortical layer 5 neuron biophysics, escura do universo». Em cosmologia física, a energia
os seres humanos são mais avançados cognitivamente escura é uma forma de energia que estaria presente em
a nível neurológico porque os nossos cérebros gerem a todo o espaço, produzindo uma força ou pressão que
energia de que necessitam de forma mais eficiente. tenderia a acelerar a expansão do Universo, ou seja,
Uma equipa de investigadores do Massachusetts uma espécie de força gravitacional repulsiva que fun-
Institute of Technology (MIT) descobriu que, em com- cionaria literalmente ao contrário da gravidade.
paração com outros mamíferos, o cérebro humano Desta forma, a energia escura explicaria como é pos-
tem muito menos canais iónicos para a transmissão de sível que o Universo esteja a expandir-se a um ritmo
energia entre os neurónios, mas que funcionam me- acelerado quando a gravidade faz com que a matéria se
lhor e permitem afetar a energia a tarefas cognitivas atraia e não se expanda. De acordo com a cosmologia,
complexas sem a desperdiçar em tarefas menos impor- a energia escura contribuiria com quase 69% da massa
tantes e sem a esgotar por uma multiplicidade de canais ou energia total do universo.
desnecessários. «Sem especular sobre astrofísica, o que podemos
Os investigadores suspeitam que é possível que a re- dizer é que existe uma certa relação que consiste no
dução da densidade destes canais no cérebro humano facto de se saber que tanto a energia escura do cére-
tenha sido causada por uma compensação evolutiva, ou bro como a do universo existem e que têm uma função
seja, que tenham sido minimizados no nosso sistema reguladora muito importante mas, de momento, não
biológico para otimizar outras características. podem ser medidas ou avaliadas porque não existem
«Comparado com outros mamíferos», diz o neurop- métodos nem mecanismos», conclui José Antonio
sicólogo José Antonio Portellano, «o cérebro humano Portellano. e

SUPER 31
ENTREVISTA

Helga Nowotny, uma


BENT OBERGER

das fundadoras do
Conselho Europeu
de Investigação,
reconhece que é
demasiado tarde
para mudar o nome
da inteligência
artificial, que não
pode ser equiparada
à inteligência
humana.

32 SUPER
Helga Nowotny
A inteligência artificial não é capaz de significar, não tolera a ambiguidade e não
compreende a ironia. É concebida pela e na sociedade. Para esta socióloga, a IA pode
ser um espelho no qual descobrimos mais sobre nós próprios e sobre a forma como
nos relacionamos uns com os outros. Não é de temer, mas é uma ferramenta de que
precisamos de estar conscientes dos seus efeitos sobre nós.

Texto de SERGIO PARRA, jornalista

M
uitos trabalhos que É o que defende Nowotny, uma das fundadoras do ERC
costumavam ser efe- (Conselho Europeu de Investigação), a que presidiu en-
tuados por humanos tre 2010 e 2013. Nowotny é membro sénior da Escola de
são agora executados Governação Transnacional (STG) no EUI, onde o Profes-
com a mesma com- sor Daniel Innerarity é presidente da AI e Democracia,
petência, se não mais, professor emérito de Estudos de Ciência e Tecnologia no
por inteligências ar- ETH Zurique, membro da Academia Sueca de Ciências
tificiais, e espera-se e, em 2017, recebeu a Medalha do Presidente da Acade-
que cada vez mais mia Britânica.
trabalhos possam ser
convertidos em algo- Como surgiu o seu interesse pela ciência, tecnologia,
ritmos, o que reduzirá cultura e inovação e porque é que parece estar particu-
os custos e aumenta- larmente interessada na inteligência artificial?
rá a eficiência. No entanto, Helga Nowotny não vê esta Ao longo da minha carreira académica interessei-
evolução como puramente positiva. Certos tipos de tra- -me pelos estudos sobre ciência e tecnologia (CTS),
balho, mais ligados à produção de conhecimento, à ino- um campo interdisciplinar que examina a criação, o
vação e à criatividade, podem ser prejudicados se forem desenvolvimento e as consequências da ciência e da
submetidos a algoritmos rígidos alimentados por bases tecnologia nos seus contextos históricos, culturais
de dados incompletas e/ou tendenciosas. Além disso, a e sociais. Achei fascinante explorar duas grandes
nossa capacidade de controlo pode ser ainda mais redu- questões. Por um lado, como é que a tecnologia nos
zida porque estas máquinas algorítmicas irão monito- permite fazer coisas que não podíamos fazer antes,
rizar e limitar as nossas ações e possibilidades. Apesar para o bem e para o mal. Por outro lado, porquê e co-
da fé que cada vez mais pessoas têm nos algoritmos, mo? Ou seja, porque é que a tecnologia tem o poder de
talvez semelhante à fé num deus omnisciente, qualquer mudar a forma como vivemos? Quais são os meca-
solução deste tipo deve também in- nismos envolvidos para melhorar
tegrar a dimensão humana e a nossa os negócios e a economia? Serve
relação alterada com um ambiente para nos unir ou para nos dividir?
tecnologicamente transformado.
Os algoritmos são e serão extraor- «A tecnologia é A tecnologia não é algo que cai do
céu. É inventada, moldada e di-
dinariamente úteis, como pregos e
martelos sofisticados, mas para en- inventada, moldada fundida pela e na sociedade. Tem
um enorme potencial para melho-
frentar a incerteza do futuro, cada rar as capacidades humanas e ca-
vez mais dominado pelos chamados e difundida pela e be à sociedade decidir como a se-
problemas perversos, precisamos lecionamos e como a regulamos.
de sabedoria, criatividade e ousa- na sociedade» Os algoritmos não são novos. Ángel
dia, não de inteligência algorítmica. Carmona, em 1976, publicou Poe-

SUPER 33
«Não há magia nas previsões das máquinas. Elas não
conhecem o futuro e, na melhor das hipóteses, apenas
oferecem probabilidades»

mas V2: Poesia composta por um computador, que é e confiar nela; tal como fizemos com líderes políticos
considerado o primeiro livro totalmente escrito por um carismáticos no passado. Apreciamos a conveniência
computador em Espanha. Mas, perante o entusiasmo dos serviços que as aplicações fornecem e gostamos
recentemente suscitado por ferramentas como o Cha- das comodidades que oferecem. Por conseguinte, con-
tGPT, voltam a ser invocadas ideias de ficção científica sideramo-las positivas. Além disso, a IA vem carrega-
como a singularidade ou a inteligência artificial geral. da de novos dispositivos digitais. E o que não vemos,
Chega-se mesmo a sugerir que os algoritmos seriam a «caixa negra» dos seus algoritmos, parece «cien-
melhores governantes do que os atuais políticos. No en- tífico» e, por isso, presume-se que seja «objetivo».
tanto, como diz, e bem, no seu livro In AI we trust, o Os algoritmos preditivos têm esta precisão aparente-
economista Brian Arthur avisou-nos que os algoritmos mente estranha de «conhecer-nos melhor do que nós
não devem ser considerados milagres, mas sim verbos: próprios» apenas porque se baseiam em registos do
fazem coisas, sim, mas também podem fazê-las mal. nosso comportamento passado que extrapolam para o
Em primeiro lugar, porque os problemas nem sempre futuro. Tendemos a ignorar o facto de as máquinas se-
podem ser reduzidos a um conjunto de algoritmos e, rem mais fiáveis em relação ao nosso passado do que
em segundo lugar, porque a explicabilidade do que um a nossa memória altamente seletiva e defeituosa. Por
algoritmo nos oferece é uma questão que vai para além conseguinte, não há magia nas suas previsões. Não-
da técnica. Precisamos de técnicas e métodos que expli- conhecem o futuro e, na melhor das hipóteses, apenas
quem os resultados oferecidos por uma IA de uma for- oferecem probabilidades. Não creio que exista uma li-
ma que os humanos possam compreender. Isto equivale gação direta entre a nossa visão da IA e a ficção cien-
a abrir a caixa negra da aprendizagem automática, onde tífica, mas esta abriu a porta a devaneios coletivos em
muitas vezes nem mesmo os seus projetistas conseguem que coisas incríveis podem ser feitas com a ciência e
explicar como é que um algoritmo chega a uma decisão. a tecnologia. Os riscos são tolerados porque, de mo-
mento, «só» acontecem no mundo da imaginação.
Porque é que temos tanta fé nos algoritmos? Será que
a ficção científica nos influenciou negativamente nesse O paradoxo de Moravec diz-nos que «é comparativa-
sentido? Será que precisamos de acreditar em algo? Ou mente fácil conseguir que os computadores apresentem
será que simplesmente não compreendemos muito bem capacidades semelhantes às do ser humano adulto em
como funcionam? testes de inteligência, e difícil ou impossível conseguir
Em parte, temos fé na IA porque queremos acreditar que possuam as capacidades percetivas e motoras de

O livro de Helga Nowotny, In AI we trust,


oferece uma reflexão profunda sobre dois
fenómenos simultâneos: a ascensão dos
algoritmos e a preocupação com a
sustentabilidade.
ISTOCK

34 SUPER
GTRES
As próteses
não são
apenas
membros
artificiais
concebidos
de forma
inteligente,
mas incluirão
mais chips
eletrónicos
para substituir
ou melhorar
as funções
humanas.

um bebé de um ano». As inteligências artificiais seme- nhada com um corpo, desde cada célula até ao intes-
lhantes à inteligência humana não estão a ser conce- tino e ao cérebro.
bidas porque não se sabe como funciona a inteligência Os avanços feitos na robótica são muito úteis quando
humana. Haverá IAs cada vez melhores, mas nenhuma se pensa em próteses. Não se trata apenas de mem-
GAI (inteligência artificial geral), a menos que seja en- bros artificiais concebidos de forma inteligente, mas
contrada por acaso, por emergência ou... a muito, mui- incluirão mais chips eletrónicos para substituir ou
to longo prazo. melhorar as funções humanas. Isto tem acontecido
desde que os nossos antepassados inventaram os ócu-
Acha que este paradoxo alguma vez será resolvido e los para ver melhor ou as bengalas para andar melhor.
existe investigação nesse sentido? Deveríamos com- Na minha opinião, a inteligência artificial geral conti-
preender primeiro o que é a inteligência humana an- nua a ser uma miragem: quanto mais perto parece es-
tes de podermos criar IA? Até que tar, mais longe fica. Conceitos co-
ponto estamos longe desse desafio mo a «singularidade», ou seja, o
se tivermos em conta ideias como momento em que a IA ultrapassará
a ciência cognitiva incorporada, o
paradigma da ciência cognitiva que
«A inteligência as capacidades humanas em todas
as suas dimensões, servem como
defende que muitas características
da cognição, humana ou outra, são
artificial não é uma distração deliberada dos ver-
dadeiros problemas atuais, como
determinadas por aspectos de todo
o corpo do organismo?
equivalente à o aumento das desigualdades ou
a enorme concentração de poder
É importante lembrar que a «in-
teligência» artificial não é equi-
inteligência económico e político das empresas
internacionais.
valente à inteligência humana.
Os especialistas concordam que
humana» Podemos programar uma inteli-
teria sido melhor dar-lhe outro no- gência artificial para ser altamente
me, mas agora é demasiado tarde. competente num assunto em que
As máquinas digitais não compreendem, não podem as regras são explícitas, mas não podemos programá-
fazer sentido ou conferir significado. Não toleram a -la para integrar diversos assuntos (mesmo campos in-
ambiguidade, nem a compreendem quando se trata teiros do conhecimento com as suas próprias discipli-
de ironia. Mas são incrivelmente eficazes na execu- nas) em que muitas regras estão implícitas. Em 1997,
ção das tarefas que lhes impomos. O consenso atual o Deep Blue derrotou o campeão mundial de xadrez
na ciência cognitiva e neurológica é que a cognição Gary Kasparov. Mas e se, em vez de competirmos com
humana (e animal) é «incorporada». Todo o organis- as máquinas, colaborássemos com elas? Em junho de
mo está envolvido em tudo o que envolve percecionar, 1998, Kasparov jogou o primeiro torneio deste tipo, a
pensar, sentir, agir e estar vivo. Os organismos vivos que chamou «xadrez avançado». Este híbrido máqui-
são esta maravilhosa coordenação da mente emara- na-humano, um centauro, conseguiu ser mais com-

SUPER 35
petente do que qualquer humano e qualquer máquina rem as diferenças? O que é que esses textos gerados
separadamente. artificialmente revelam sobre as nossas formas de
escrita (na maioria das vezes medíocres) ou sobre os
O que pensa da chamada abordagem «centauro» para pensamentos que nelas foram contidos? Quando é que
resolver as limitações da IA e da inteligência humana? somos honestos ou apenas educados? Quando é que
O caminho mais frutífero para a IA é, de facto, desco- escrevemos «nas entrelinhas», esperando que o des-
brir como utilizá-la para complementar as capacida- tinatário possa (ou não) ler nas entrelinhas? O abuso
des humanas. Isto deve recordar-nos que a IA é uma é sempre possível e muitas questões legais têm de ser
ferramenta criada pelos humanos. Podemos delegar resolvidas, por exemplo, no que diz respeito aos direi-
algumas tarefas a uma IA, mas quando a aplicamos tos de autor para artistas e designers criativos. Mas
às nossas próprias tarefas, podemos descobrir áreas também temos outro espelho no qual podemos desco-
humanas subutilizadas e experimentar fazer as coi- brir mais sobre nós próprios e sobre a forma como nos
sas de forma diferente. É o que está a acontecer neste relacionamos uns com os outros.
momento com o ChatGPT e outros modelos de IA gene-
rativa que produzem imagens depois de serem solici- O automóvel tirou os ferreiros, os criadores de cavalos
tados por nós. e os correios, mas em contrapartida criou uma nova
O ChatGPT pode escrever textos convencionais em indústria. A IA vai acabar com os empregos de baixa
poucos segundos, pode fazer os trabalhos de casa de criatividade, mas, em contrapartida, vai criar empre-
um aluno em muito pouco tempo e em breve, prova- gos onde são necessárias pessoas mais qualificadas. Não
velmente, será capaz de escrever boas peças de lite- é certo que a IA venha a tirar o seu emprego, mas o que
ratura. Mas, por exemplo, no caso dos trabalhos de parece provável é que quem utilizar a IA irá tirar o em-
casa dos alunos, não devemos preocupar-nos tanto prego a quem não a utilizar.
com o facto de eles fazerem batota, mas sim aceitar
seriamente o desafio: como podemos educar os alunos Acha que a IA é apenas uma ferramenta sofisticada e
de forma diferente? Podemos utilizar o ChatGPT para disruptiva como a imprensa escrita ou é realmente ou-
trabalhar com os alunos e comparar os textos que o tra coisa?
ChatGPT gerou para eles, para descobrir o que suge- O clássico de Elisabeth Eisenstein, «The Printing Press

«Devemos interrogar-nos sobre o que podemos aprender


sobre os sistemas complexos para melhor lidar com as
incertezas do futuro»
SHUTTERSTOCK

Temos de descobrir
como complementar
as tarefas humanas
através da IA, como
delegar algumas
coisas na IA, como
utilizar o ChatGPT e
outros modelos de IA
generativa.
SHUTTERSTOCK

36 SUPER
as an Agent of Change», de 1979, mostra o extraordi-
nário impacto que a imprensa teve no Renascimento, O sistema educativo é
desafiado a incluir todas
na Reforma, na Revolução Científica e no Iluminismo.
as crianças num futuro que
Ao criar espaços e oportunidades para que leitores será digital, dotando-as
mais empenhados comparassem, examinassem cri- das competências
ticamente, partilhassem e divulgassem ideias, con- necessárias e de um
duziu a uma maior produção de conhecimento. Resta pensamento crítico sólido.
saber se a IA será encarada pelas gerações futuras de
forma semelhante. O resultado não está predetermi-
nado. No quotidiano, a IA criará novos empregos e ou-
tros desaparecerão. Mas também poderá contribuir,
juntamente com outros desenvolvimentos, para uma
redução do tempo de trabalho. Em 1929, John M. Key-
nes previu, no seu discurso no Clube dos Estudantes
de Madrid, que dentro de cem anos só trabalharíamos
15 horas por semana. Ainda temos mais 6 anos para
ver se ele tinha razão nesta previsão. Concordo que
aqueles que não utilizam a IA não têm hipóteses, mas
não sabemos quantos ficarão para trás ou terão de

SHUTTERSTOCK
trabalhar em empregos mal pagos.
A questão é saber se podemos evitar o fosso crescente
entre os «nómadas digitais» super inteligentes, ins-
truídos e sofisticados, uma elite que pode trabalhar
em qualquer lugar e cujos filhos beneficiam do acesso
à melhor educação desde o início, e o resto da popu- Devemos, pois, voltar-nos para a complexidade e
lação. Não podemos deixar ninguém para trás. Acima perguntar o que podemos aprender sobre os sistemas
de tudo, o sistema educativo tem o desafio de incluir complexos para melhor enfrentar as incertezas do fu-
todas as crianças num futuro que será digital, dotan- turo. Os sistemas complexos têm várias característi-
do-as das competências necessárias e de um pensa- cas: consistem em redes dinâmicas de redes, em que
mento crítico sólido. mudanças numa parte têm repercussões noutras par-
tes; são únicos na geração de «emergência», novos
No seu livro, afirma que a lógica linear subjacente à fenómenos que são imprevisíveis, uma vez que sur-
ideia de progresso não se coaduna com a não linearida- gem de novas ligações das partes componentes do sis-
de, uma caraterística dinâmica dos tema; e têm «pontos de viragem»,
sistemas complexos. Estamos a en- em que ocorre uma transição de
trar numa era em que tudo se torna fase de um estado para outro. Is-
mais complexo e em que enfrenta- «A IA é uma to pode, mas não deve, envolver o
mos problemas mais complexos, colapso.
como as alterações climáticas ou a ferramenta ao A ciência ajuda-nos a compreen-
pandemia de COVID-19. der e a modelar melhor os sistemas

Como acha que devemos lidar com


serviço dos seres complexos. Precisamos de perspe-
tivas múltiplas que captem a di-
esta complexidade? Mais progres-
so? Uma nova definição de progres-
humanos e não o versidade da experiência humana,
cada uma das quais com soluções
so? A IA pode ser um aliado para
lidar com esta complexidade ou,
contrário» parciais para oferecer. Precisa-
mos de regras atualizadas para
porque a informação é tão deses- orientar o comportamento huma-
truturada, precisamos de mais sa- no e de instituições mais adequa-
bedoria humana? Os algoritmos preditivos são fiáveis? das para lidar com a incerteza inerente ao futuro.
Precisamos de contar a nós próprios outras narrativas
para lidar com o que está para vir? Gostaria de acrescentar alguma coisa? Alguma mensa-
As nossas sociedades estão a tornar-se mais com- gem de otimismo ou de esperança? Quais são os seus
plexas e a complexidade vai continuar a permear as próximos projetos?
nossas vidas. Estamos numa «policrise» (crises em Não há razão para desesperar. O medo é a pior opção,
cascata e interligadas), devido, entre outras coisas, à pois empurra as pessoas para a passividade ou para
pandemia ou à guerra na Ucrânia. As tensões geopo- a agressividade sem sentido. Não devemos esquecer
líticas e os problemas ambientais estão a aumentar. que a IA é uma ferramenta ao serviço do ser humano
A antiga noção de «progresso» perdeu a sua atração. e não o contrário: como é que a utilizamos e para que
Estava intimamente ligada à modernidade, à visão fins? O que sabemos sobre os efeitos que tem em nós?
da modernização como a maré que levanta todos os Não devemos deixar que as empresas multinacionais
barcos. Mas as pessoas apercebem-se de que os seus decidam o que querem que vejamos ou consumamos.
filhos vão ficar pior do que elas, sobretudo na classe Por último, mas não menos importante, será que po-
média. Também não estou a ver nenhuma «narrati- demos utilizar o espaço e as oportunidades oferecidas
va» ou «história» que possa tomar o seu lugar. Have- pela IA para exercitar a nossa criatividade e criar
rá novas histórias, mas serão de curta duração. uma sociedade melhor para todos? e

SUPER 37
C I Ê N C I A

Nas últimas décadas,


GIDEON YOFFE/ESO

a valorização do que
a fronteira do
conhecimento indicia
e a observação sem
preconceitos da vida
tem induzido uma
alteração gradual do
paradigma vigente.

38 SUPER
A CIÊNCIA NO LIMIAR DE UM
NOVO PARADIGMA
Observar a vida sem preconceitos. Valorizar o que indicia a fronteira do conhecimento.

Texto de JOSÉ LUÍS SANTOS,


Físico e Professor Catedrático da Universidade do Porto.

SUPER 39
N
o final do século XIX a ciência com influência decisiva na estruturação do pensamento
expressava confiança sobre científico durante todo o século XX.
o seu amplo conhecimento O quadro da ciência como tendo atingido os píncaros
das dinâmicas estruturais do da compreensão do mundo foi estilhaçado pelo desen-
Universo, ao nível das ciên- volvimento, nos primeiros anos do século XX, das duas
cias físicas a partir das já teorias que são atualmente os alicerces do conhecimento
bem desenvolvidas áreas da científico, a Teoria da Relatividade e a Teoria Quântica.
mecânica, termodinâmica e
eletromagnetismo, no con- OS PILARES DA CIÊNCIA ATUAL. No início do século XX es-
texto das ciências biológicas tavam identificadas algumas anomalias no sentido da
na sequência da publicação existência de observações experimentais não compatí-
em 1859 da Origem das Espécies de Charles Darwin. veis com as previsões da ciência da altura, em particular
Assumia-se que muito havia ainda por descobrir, mas a radiação emitida por corpos aquecidos, a constância
nada de fundamental, convicção bem sintetizada pelo da velocidade da luz, e também uma intrínseca incom-
físico Albert Michelson que na inauguração em 1894 do patibilidade entre a mecânica Newtoniana e a teoria
Ryerson Physical Laboratory da Universidade de Chica- eletromagnética.
go afirmou: «Embora nunca seja seguro afirmar que o Einstein tinha consciência de tudo isto, mas de facto o
futuro da Ciência Física não tem maravilhas reserva- que motivou os seus esforços que levaram à formulação
das ainda mais surpreendentes do que as do passado, da Teoria da Relatividade Restrita (1905) e Generaliza-
parece provável que a maioria dos grandes princípios da (1915) foi procurar que as leis da Física determina-
subjacentes estejam já firmemente estabelecidos ...». das por um observador fossem as mesmas independen-
Esta autoconfiança derivava, de modo objetivo, do temente do seu estado de movimento. Isso implicou o
sucesso da ciência na compreensão de uma vasta gama estabelecimento dos dois princípios base da Relativi-
de fenómenos naturais, também de algo mais subjeti- dade: i) a velocidade da luz é um absoluto, ii) estando
vo, mas em extremo relevante, associado à sua liber- o observador fechado num compartimento e constatar
tação dos estreitos limites impostos pela autoridade da que está a ser acelerado não há maneira de distinguir se
igreja, num processo que se iniciou no século XVI para essa aceleração corresponde à queda do compartimento
o caso das ciências físicas com o modelo heliocêntrico num campo gravitacional, ou se está a ser acelerado por
de Copérnico, sendo que para as ciências biológicas isso aplicação de uma qualquer força.
aconteceu a partir da publicação da Teoria da Evolução Em 1900 Max Planck impôs a si mesmo a tarefa de en-
de Darwin. Esta teoria, baseada nos princípios, i) va- contrar um modelo físico que permitisse explicar a ra-
riações incrementais das espécies induzidas por muta- diação eletromagnética emitida por corpos aquecidos,
ções aleatórias, ii) posteriormente filtradas pela seleção chegando sempre a incongruências. Desesperado, lem-
natural, colocou o acaso como elemento indutor da brou-se de considerar a possibilidade dessa emissão ser
complexidade biológica, conceito que rapidamente se feita por pacotes discretos de energia (quanta). Para sua
propagou para os domínios das ciências físicas e sociais, surpresa descobriu que essa hipótese permitia chegar a

Buraco negro
supermassivo em
órbita estelar no
centro da Via
Láctea, 2018.
©NICOLLE FULLER/NATIONAL SCIENCE FOUNDATION

40 SUPER
SHUTTERSOTCK
As questões filosóficas da mecânica
quântica relacionam-se com a
realidade, a matéria e a mente.

A Teoria da Relatividade e a Teoria Quântica são os dois


pilares em que assenta o edifício da nossa ciência atual

uma previsão teórica em acordo com os resultados ex- conhecida como Mecânica Quântica) opera no espaço-
perimentais. Nascia assim a Teoria Quântica, que pouco -tempo cuja estrutura é definida pela gravidade, objeto
depois recebeu de Einstein uma importante contribuição da Teoria da Relatividade. Previsivelmente, algures no
pela clarificação do significado desses quanta de energia. futuro aparecerá uma nova teoria que agregará estas
Nos anos seguintes múltiplas contribuições de muitos duas, permitindo o acesso a novos e insuspeitos hori-
cientistas foram sendo agregadas, culminando em 1924 zontes de conhecimento.
na proposta de Louis de Broglie de que cada partícula ti-
nha associada um comportamento ondulatório, a qual, ALGUMAS IMPLICAÇÕES DESTAS TEORIAS. Segundo a Teoria da
conjugada com desenvolvimentos anteriores, levou à Relatividade o espaço e o tempo estão intrinsecamente
formulação do Princípio da Incerteza de Heisenberg. Por interligados apesar de serem de natureza distinta. Em
essa altura revelou-se necessário organizar todos estes conjunto, constituem o palco da existência observável
avanços parcelares, no que resultou a estrutura axiomá- onde atuam os atores matéria e energia, com a particu-
tica da Teoria Quântica estabelecida independentemente laridade de não ser passivo, isto é, o palco condiciona
por Schrödinger e Heisenberg. Dessa matriz axiomática a evolução dos atores e vice-versa. Este encadeamento
resultou um vasto conjunto de consequências teóricas estará na origem de fenómenos previstos pela teoria e
que foram sendo validadas pela experiência, também verificados experimentalmente, mas que efetivamente
pela tecnologia que a partir delas se desenvolveu e que não entendemos, como é o caso da dilatação temporal
suporta muito da nossa Civilização. tão bem ilustrada no famoso paradoxo dos gémeos. A
É relevante salientar que estando confirmada a vali- um nível mais fundamental, sendo a velocidade a ra-
dade dessa matriz axiomática, no entanto ela é-nos in- zão entre espaço percorrido e o intervalo de tempo
trinsecamente estranha, não tendo sido possível extrair correspondente, a constância da velocidade da luz sig-
desses axiomas uma ideia agregadora suficientemente nifica que, faça o observador o que fizer, o espaço que
ampla de onde possa decorrer a teoria, ao contrário do ele observa a luz percorrer e o tempo de propagação
que aconteceu com a Relatividade. que determina para esse percurso ajustam-se de mo-
Estas duas teorias são os pilares em que assenta o edi- do a que a sua razão seja um invariante. É como se, de
fício da nossa ciência atual, sendo certo que existe uma alguma forma, o valor absoluto da velocidade da luz
assimetria entre elas já que a Teoria Quântica (também condicionasse as características do espaço-tempo a que

SUPER 41
VIKIMEDIA COMMONS

Buraco Negro.

o observador tem acesso. Sabemos que isso acontece, sua existência foi, de facto, «oficializada» pela atribui-
mas desconhecemos porque assim é. ção em 2022 do Prémio Nobel da Física a Aspect, Clauser
A equação do campo gravítico na Relatividade Geral e Zeilinger. Para ilustrar o que está em causa, suponha-se
é intrinsecamente não-linear, com a consequência de que durante algum tempo duas partículas interatuam de
tornar difícil a descoberta de soluções exatas, para além forma muito próxima. De seguida, afastam-se em sen-
de limitar a aplicação de técnicas padrão para obter so- tidos opostos. Segundo a Teoria Quântica, há uma en-
luções aproximadas. Sendo isto um facto, a verdade é tidade, designada função de onda, que abrange as duas
que logo em 1916 Schwarzschild encontrou uma solu- partículas, independentemente da distância entre elas.
ção exata para essa equação, com a propriedade de, em Assim, se uma dessas partículas é observada resultando
situações de extrema concentração de massa, o campo na identificação de algumas das suas propriedades, ins-
gravitacional ser tão forte que impede mesmo a luz de tantaneamente e independentemente da distância a que
deixar a sua vizinhança. O aparente absurdo desta pre- se encontre a outra partícula, esta fica também com as
visão levou a que durante muito tempo fosse conside- suas propriedades determinadas, quando previamente à
rada apenas uma curiosidade matemática, sem adesão observação da primeira isso não acontecia. Este tipo sur-
à realidade, situação que se alterou a partir da década preendente de interações, referidas por Einstein como
de 1960, levando o físico John Wheele em 1967 a batizar «ação fantasma à distância», é uma característica in-
estas entidades como buracos negros. trínseca do mundo quântico, sendo que desconhecemos
Relevante neste contexto é salientar que o estatuto dos qual o mecanismo físico subjacente.
buracos negros mudou muito nas duas últimas décadas, Uma outra consequência da Teoria Quântica é não ser
tornando-se primeiríssimos atores no estabelecimento possível a ausência de movimento, existindo sempre
da dinâmica Cósmica. Há evidências que apontam para um latejar associado ao aparecimento no espaço-tempo
a existência de uma panóplia de pequenos, «normais», de fluxos de energia (que podemos associar a partículas,
e gigantescos buracos negros que condicionam, em es- designadas partículas virtuais), que dele desaparecem
calas diversas, fluxos de matéria e de energia no Univer- antes de poderem ser detetados, mas que influenciam
so. Também há indicações teóricas que apontam para fenómenos que aí ocorrem (por exemplo, o decaimento
que os buracos negros possam ser, em certas condições, de átomos de elementos radioativos). Isto significa que
portais de acesso a wormholes (buracos de minhoca) no Universo existe um nível basal de energia diferente
que conectam diferentes regiões do espaço-tempo des- de zero mesmo na ausência de matéria e de radiação.
te universo, ou mesmo portais para outros universos. Ou seja, vácuo no sentido de ausência de tudo não exis-
Fletindo para a vertente quântica, em 1935 Einstein, te na Natureza, mas antes um vácuo, designado vácuo
Podolsky e Rosen identificaram um tipo de fenómenos quântico, com partículas que aparecem e desaparecem
decorrente da estrutura axiomática da Teoria Quântica, demasiado depressa para poderem ser observadas. Isto
mais tarde referenciado como enlaçamento quântico. A levanta a questão: aparecem de onde?

Uma outra consequência da Teoria Quântica é não ser


possível a ausência de movimento, existindo sempre
um latejar associado ao aparecimento no espaço-tempo
de fluxos de energia
42 SUPER
Não temos resposta para esta pergunta, sendo que uma sintonizadas para que seja possível a emergência de
analogia poderá ajudar a compreender o que está em estruturas complexas no Universo. Por exemplo, a exis-
causa. Suponha-se que o espaço-tempo é a superfície do tência de estrelas resulta do balanço de duas forças, i)
oceano e o subjacente o oceano abaixo da superfície. O a força gravitacional, que tende a comprimir a matéria
que se passa à superfície, por exemplo as ondulações, é da estrela tornando-a cada vez mais compacta, e ii) a
certamente influenciado por eventos que aí acontecem, força de repulsão elétrica entre as cargas elétricas dos
como é o caso de um barco a passar, mas em larga escala é átomos constituintes dessa matéria, que por si só leva
determinado pela dinâmica do oceano (induzida por ma- à tendência do dispersar da massa da estrela. A com-
rés, correntes marítimas, etc.). Mesmo ocorrências loca- petição entre estas duas forças origina uma situação de
lizadas à superfície podem ter origem em algo que vem de equilíbrio que permite à estrela ter uma certa dimensão,
baixo, por exemplo, a ondulação derivada de cardumes com condições de se desenrolarem reações nucleares
de peixes que decidem vir à superfície. O que esta analo- com libertação de energia que radia para o exterior. Na
gia sugere é que muito do que acontece e observamos no verdade, este equilíbrio significa um ajuste ultra-fino
palco do espaço-tempo é estruturalmente condicionado no sentido de ser necessário o ajuste da razão das in-
pelo que está subjacente, aquilo que certos pensadores tensidades da força gravitacional e da força elétrica para
como Ervin Laszlo chamam de dimensão profunda. A um valor que não pode ser diferente do que é observado
influência desse subjacente na nossa realidade poderá si- mais do que a probabilidade de ganhar o Euromilhões
tuar-se a diversos níveis, um deles associado à incursão durante cinco semanas consecutivas.
não detetável de fluxos de energia/partículas com im- Roger Penrose, Prémio Nobel da Física em 2020, apre-
pacto na ocorrência de eventos no espaço-tempo, sen- sentou um outro exemplo que se tornou célebre pelo
do que neste contexto, o Princípio da Incerteza pode ser nível de ajuste envolvido. Observamos no Universo es-
interpretado segundo uma outra perspetiva (ver caixa). trelas aglomeradas em galáxias, as quais se agrupam em
Desconhecemos a natureza desta conjeturada dimen- enxames de galáxias, e assim por diante. A questão que
são profunda, sendo que a sua existência poderá induzir Penrose colocou foi a seguinte: por altura do Big-Bang,
respostas para grandes questões em aberto, tais como o quão ajustada teria que ser a distribuição de energia
mecanismo que permite a luz propagar-se no vazio, ou para que, ao longo da evolução do Universo, se formas-
qual a razão de 70% do Universo ser constituído por um sem as estruturas que agora vemos, desde logo as estre-
tipo de energia que não conhecemos (designada ener- las, em vez de um universo escuro totalmente domina-
gia escura), sendo que dos restantes 30%, 24% são do por buracos negros? Encontrou que essa distribuição
relativos a matéria de natureza também desconhecida não se poderia desviar daquela que originou o Universo
(daí ser referida como matéria escura), restando 6% que observamos mais do que a probabilidade de ganhar
para a matéria dita «normal». o Euromilhões durante 28 semanas consecutivas!

O AJUSTE FINO DO UNIVERSO. É hoje razoavelmente con- SISTEMAS E VIDA. O que foi expresso nos parágrafos an-
sensual que as leis físicas/condições iniciais estão teriores sobre o que a Relatividade e a Teoria Quântica

Enlaçamento
quântico. Ilustração
conceptual de um
par de partículas
quânticas
GETTYIMAGES

interagindo à
distância.

SUPER 43
©MARTINA MARITAN CC-BY-4.0
de de, por sensorização, aferir continuamente os valores
das variáveis relevantes do meio externo (temperatura,
pressão, humidade, contaminações,…), processar esses
dados e daí extrair informação sobre o que é necessá-
rio ao nível da modificação dos seus processos internos
para se manter ativa nas novas condições ambientais,
proceder às correspondentes alterações e monitorizar
o seu impacto, tudo isto envolvendo cadeias de reali-
mentação de elevada sofisticação. Tendo presente que
a célula tem um metabolismo basal que envolve mais de
10 000 reações eletroquímicas por segundo, devida-
mente coordenadas e sequenciadas, começa-se a intuir
aquilo que por vezes se expressa como a «impossível»
complexidade dos sistemas biológicos.
Essa complexidade evidencia-se qualquer que seja o
processo associado à dinâmica celular. Por exemplo, no
citoplasma, em qualquer momento, milhares de proteí-
nas são guiadas com destinos bem definidos seguindo um
emaranhado de percursos, o que significa a existência de
A célula tem um metabolismo basal que envolve mais de um sofisticado sistema de «gestão de trânsito». Um ou-
10 000 reações eletroquímicas por segundo tro exemplo é a fotossíntese, processo no qual as plantas
convertem energia solar em energia química. Envolve
deixam antever, assim como a sintonia extrema das leis a molécula de clorofila constituída por 136 átomos de 5
físicas/condições iniciais, aponta para a existência de elementos dispostos numa estrutura precisa. Quando o
vastos horizontes de desconhecido. Na realidade, isso fotão da luz incidente interatua com a molécula é absor-
é de todo evidente à nossa volta. Para situar o que está vido em condições muito específicas, fazendo com que
em causa vejamos o que se entende por sistema e o que um dos seus eletrões migre da sua localização na cadeia
significa a sua existência. ao longo de um percurso precisamente confinado para
Sistema é um conjunto de elementos agregados de induzir uma sequência controlada de reações químicas
uma determinada forma para permitir fluxos controla- envolvendo 6 moléculas de água e 6 moléculas de dióxido
dos de matéria e de energia procurando uma certa fun- de carbono, resultando numa molécula de glicose e em
cionalidade. Por exemplo, um frigorífico é um sistema 6 moléculas de oxigénio molecular, com a molécula de
que mantém uma certa temperatura de refrigeração no clorofila restaurada para o processo ser reiniciado. Para
seu interior, utilizando para o efeito um compressor
atuado por energia elétrica que liga e desliga consoante
a indicação de um sensor de temperatura.
É óbvio que para um sistema existir é necessário, i)

ISTOCK
projeto, e ii) materiais/componentes para a sua cons-
trução. Mas não será preciso algo mais?
Considere-se agora um dia muito quente que origina
um sobreaquecimento do compressor. Se este não for
refrigerado acaba por avariar e o frigorífico deixa de
funcionar. Isto revela a necessidade de uma terceira di-
mensão para manter o sistema funcional em condições
ambientais variáveis, nomeadamente listas de instru-
ções condicionais, ou seja, software.
Conclui-se, pois, que a existência de sistemas envol-
ve a conjugação de três vertentes: projeto, hardware,
software. Na verdade, isto é tão evidente que não deixa
de ser surpreendente como tantas vezes passa desper-
cebido. Um telemóvel ou um computador são de todo
inúteis caso neles não seja incorporado software para
gerir o seu funcionamento, ou seja, inteligência.
Estes sistemas são projetados pelo Homem, pelo que
a inteligência associada ao seu software é a inteligência
humana. Acontece que estamos rodeados por sistemas
que não tiveram a nossa intervenção, os sistemas asso-
ciados à vida nas suas múltiplas manifestações, em par-
ticular nós próprios!
Considere-se a unidade base da vida, a célula. A pa-
lavra base pode fazer passar a ideia de que se trata de
um bloco simples, perceção essa amplificada pelo facto
SHUTTERSTOCK

de nos manuais escolares a célula ser quase sempre des-


crita como sendo uma espécie de simples tijolo da vida.
Como isto está longe da realidade! Para se manter viva Causa perplexidade a eficiência do mecanismo da fotossintese, a
numa envolvência que é variável implica ter a capacida- qual é próxima dos 100%.

44 SUPER
MATTEO CECCANTI/SIMONE CASSANDRA/UNIVERSIDADE DE MANCHESTER
além da existência desta reciclagem, causa perplexidade Uma Outra Perspetiva
a eficiência deste mecanismo a qual é próxima dos 100%,
isto é, nenhum fotão incidente é desperdiçado. do Princípio da Incerteza
As características deste processo fizeram suspeitar de
que estavam em jogo interações subtis ao nível do en-
de Heisenberg
laçamento quântico, o que foi confirmado em 2010 por
investigadores do Lawrence Berkeley National Labora-
tory e da Universidade da Califórnia que reportaram:
«este é o primeiro estudo a mostrar que o enlaçamen-
O
Princípio da Incerteza de Heisenberg estabelece que há
pares de grandezas físicas para os quais um melhor conhe-
cimento de uma delas implica um maior desconhecimento da
to quântico está presente na fotossíntese». Assim, a outra. Um desses pares é (tempo, energia), pelo que para uma
vida não só consegue tirar proveito destas subtilezas da determinada entidade, ΔE porΔexemplo, t uma partícula, caso se con-
Natureza, sendo que o faz em condições ambientais ΔE Δt(de siga identificar que Δ E
está Δ t
num ≥ 1,25
certo h estado durante o intervalo
temperatura e humidade) pouco favoráveis, algo que é ΔE Δt , entãoha=Δ
de tempo E Δque
energia Δt E lheΔestá t associada tem uma
ΔEΔt ≥ 1,25h ΔEΔt ≥ ħ / 2 ΔE que hE/Δ2Eπ ΔtΔt
Δ
incompreensível no estado atual da ciência. ΔEΔt ≥ 1,25h ΔΔ
indeterminação tΔt ≥Δ1,25
Eobedece EΔàthrelação≥ 1,25h ΔEΔt ≥ ħ / 2, onde
h / 2π ħ = h / 2π , sendo ΔmEΔΔEtΔ≥t1,25
hΔathconstante ≥de1,25 hh
O que estes exemplos indicam é que a célula, h =para
h = h / 2π Δ E ≥= 1,25h / 2
h π = h / 2π Planck. ħ = ΔhE/ 2πΔt
além do hardware (as suas múltiplas estruturas), tem Este princípio também E éh hh=2/h2/π2cπcom outra perspetiva.
=mc
compatível ΔEΔt ≥ 1,25 Supo-
h
h m
de ser dotada de software para orientar o seu funciona-
Δ
h = hh/ 2de = πmmassa h m
h
nha-se
Δ E m
que Δ uma
t partícula aparece no espaço-tempo.
mento. Esta vertente do software da vida tem sido ΔE = mc 2 c
sis- Pela equação2dehEinstein Δt h isso ΔhEm tm2< 1,25um
Δsignifica h h = h / 2π
tematicamente ignorada, o que em si é surpreendente,
ΔΔE EΔ=tde mc 1,25hc demΔΔEEΔ
≥energia =Emc Δ
E mc
Δ2 =
Δt E≥2 =ħ2mc
= mc c c
c2 2 evento
/ c que origina um
Δt ΔEΔt < 1,25h aumento

, onde
E
é a h h m da luz
velocidade
mas deixa de o ser, caso se considere o contexto cultural Δ E2πΔt <
ht= hAΔ/primeira
no vazio.
ΔE 1,25Δ=
reação hΔt(t1,25
=mc ΔE
ħΔserá
= hcΔ
Δ
h )t/ t/2π<ΔΔque
dizer
t ΔEΔΔEtΔ−<21t1,25
1,25
EΔtal
< 1,25
th<evento
1,25
h h Eé =impossível
dominante no Ocidente nos últimos 200 anos, caracte- Δ/ tΔΔEtmax ΔdoE=ΔUniverso,
t < 1,25
1,6 10 h s viola oΔprincípio mc 2da c
Δt = (1,25h) / ΔE poisΔ h t
aumenta
= ( 0,5ħ )
a energia
t ( 1,25 ×
t h ) o que
/ E
( h/ Δo/Etempo
1,25 E t ( 0,5ħ
) Δt queΔEa partí-
/ ) / ΔE
rizado por uma valorização do que é material e desva- ΔΔtE= (m1,25 ΔΔ tdaEh)energia.
/Δ Δ
ΔEt ΔNo = Δ = Δ h Δ Δ =
Δt < 1,25h
−22 tΔ =tentanto,
( (
=1,25 1,25 h)se ) ΔE −21
−21 conservação
t 1,6 10 s tmax 3,2 Δ10
htt ctal s Δ
(Δ1,25 /ttΔ≥E×Δħ10
Δ = × Δ t==mc × hhE=)ΔΔ
2
tEmax
21
sΔtmax ≥s×−21
1,25
cáE× =−21 1,6 =/ Δ
21,6 tsmax = 3,2 × 10−22 s
max E ,t−entãoħ10/ 2aΔindeterminação

lorização do imaterial, quando, na verdade, esta dupla
max culaΔΔestá Δ=por ≥1,6
Δ Δ
for10 ≥ 1,25
que 21
é omnipresente na nossa civilização tecnológica com as t Δ t = 1,6
= 1,6
× 10
× 10 s s Δt = (energia,
1,25h) / ΔE
ht= hΔ/da
na medida
Δ E =t Δ
2hπΔsua t1,25
/max2π=h1,6
<henergia éħ =×max10
maior
max
h / do
−21 que a sua própria
2ħπs= h / 2π
designações de hardware/software. pelo que não há violação desse princípio. Expresso Δtmax = 1,6for-
de outra × 10−21 s
Tendo em consideração o que se entende por sistema, ma,Δ haté
t =ao(m1,25 h h) m
intervalo /Δ deEtempo Δt = ( 0,5ħ ) / ΔE a partícula pode
coloca-se naturalmente a questão de como surgiram os estarΔdeste lado
Δ2E×sem −ser
212 detetada.
ΔtE = =mc 1,6 =10cmc s c Δtmax = 3,2 × 10−22 s
sistemas biológicos. Segundo a Teoria da Evolução, a Assim,max o Princípio da Incerteza de Heisenberg pode também ser
partir da primeira célula (nada sendo indicado sobre Δt ΔEcomo
interpretadoΔ
Δtt < Δ 1,25EΔht < 1,25h a janela temporal de invisi-
estabelecendo
como surgiu, com todo o seu hardware e software), por bilidade para as entidades que emergem no espaço-tempo. Se
Δt = (1,25 Δth=) (/1,25 ΔE h) / ΔΔEt = ( 0,5ħ Δt )=/(Δ0,5ħ E ) / ΔE
circunstâncias ocasionais várias células «aprenderam» a essa entidade for um par eletrão-positrão, essa janela de invisi-
−21
cooperar já que isso traz vantagens na adaptação ambien- Δtmaxtem
bilidade = 1,6
Δuma × 10
tmax = 1,6s× 10
duração
−21
Δtmax
máxima s de = 3,2
Δtmax × 10 22
= −3,2 s× 10−22 s.
tal. Este processo foi ganhando escala pela ocorrência
de mutações aleatórias peneiradas pela seleção natural,
resultando ao longo do tempo em estruturas biológicas
cada vez mais complexas, culminando no ser humano. fazendo sentido, mas na realidade está na linha do que a
Neste paradigma a mutação aleatória é de nature- Teoria da Evolução propõe, agora em patamares expo-
za estruturante, o que é problemático, pois aleatório é nencialmente mais elevados de complexidade.
tudo menos organização. Um simples exemplo ilustra
o que está em causa. Suponha-se que num local, ao ar A EMERGÊNCIA DE UM NOVO PARADIGMA. Nas últimas déca-
livre, se colocam todos os ingredientes necessários para das, a valorização do que a fronteira do conhecimento
cozinhar um bolo, admitindo-se que não se deterio- indicia e a observação sem preconceitos da vida tem in-
ram com o tempo. Agora, pela ação dos elementos (Sol, duzido uma alteração gradual do paradigma vigente, o
vento, chuva, neve, ...) que sobre eles atuam, ao fim de qual se baseia nos princípios, i) primazia do material, e
quanto tempo surgirá algo minimamente parecido com ii) centralidade do aleatório como elemento guia da sua
um bolo? Esta pergunta é facilmente rotulada como não estruturação. Em que sentido vai essa alteração?

SUPER 45
ISTOCK
11
811 = ( 23 ) = 233

Informação log2 ( 233 ) = 33 × log2 2 = 33

N o contexto humano informação tem associado o significado


�i�a� b� n� o�r� c�
“possibilita t� r� b�
conhecer”, n“saber fazer”. Sendo consensual esta definição,
bem mais complexo é o tópico da sua quantificação, assunto que foi abordado por Claude Shannon em 1948.
A ideia subjacente consiste em determinar o número mínimo �b� a�
de r� c� o� �
b que
perguntas o� n�
se i�
tem �
tqueo fazer para identificar um elemento de um conjunto. A
situação mais simples (e comum) é aquela em que a resposta à pergunta só pode ser binária (sim ou não, alto, ou baixo, esquerda ou direita; ...).
Por exemplo, considere-se um conjunto de 11 posições, ����������� 11 em cada
8 = (211
) 3 , onde
=2 33 uma delas se pode colocar uma
letra do conjunto (i, n, t , o, b, r , c, a ) . Como em cada posição pode estar uma das oito letras, o número de combinações possíveis, ou seja,
11

811 = ( 23 )11 = 233( ) 3 11


elementos do conjunto, é11811 = 23 = 233. Imagine-se agora que uma dessas combinações é retirada do conjunto e se coloca a questão: qual o
8 = (2
número mínimo de perguntas com ) =2 33
log ( 2
resposta binária que se tem de fazer para a conseguir
) = 33× log
33identificar? Uma análise simples permite concluir que
2 = 33
( ) ( )
33 log 2 2
33
= 33 × log2 2 = 33 2
esse número é log2 2 = 33 × log2 2 = 33. A números deste tipo Shannon chamou bits, identificando como 33 2 bits a informação associada a

log ( 2 ) = 33× log


essa combinação no conjunto� i� a� b�
de � o� r�c� t�
combinações,
n33 r� b�significando
n isso o número mínimo de perguntas com resposta binária que é necessário fazer
� i�a� b� n�
para encontrar essa combinação

o�
b2�
r�
a�
c�
r�
t�
no
c�
r�
o�
b�
meio
b�
n
o�
do
n�
2 = 33
conjunto
i� t� o 2de �����������
combinações, ou i a b
identificar uma n o r
combinação cquet é r b donconjunto.
retirada
�b�
Considere-se agora a� r�
duasc� �b�o�
odessas � i�t�
ncombinações:
o

� �a� b� n�
i �����������
����������� o� r� c� t� r� b� n � b� a� r� c� o� b� o� n� i� t� o
Ambas têm associadas o mesmo nível de informação, 33 bits, a designada Informação Shannon. No entanto, a segunda tem algo mais, tem
� � a�
b uma
significado, neste caso r� c� �b� o� n�
o(barcobonito),
apreciação i�
aquilo �
t que �����������
o se designa Informação Estruturada (ou funcional).
Tirando à sorte, a probabilidade dessa combinação sair do “saco” que contém todas as combinações é menor do que aquela associada a

�����������
ganhar o euromilhões, pelo que o aparecimento de combinações com informação estruturada é um indício de que está presente algo mais
do que o aleatório.

Considere-se novamente o exemplo do bolo e coloque- mentais (gravítica, elétrica, nuclear, …), as regras da
-se a questão: o que é necessário para a sua confeção? Des- construção civil correspondem às leis da física, tendo
de logo os ingredientes (farinha, ovos…), também energia o plano de arquitetura como contraponto a informação
(trabalho, forno). Mas a resposta não termina aqui porque que guia a estruturação de sistemas complexos. Reparar
falta o saber fazer, isto é, informação, melhor dizendo, que, no que respeita à construção do edifício, todos os
informação estruturada ou funcional (ver caixa). Repare- elementos referidos são necessários, sendo de particu-
-se que este é o elemento fundamental, pois quanto aos lar relevância o projeto; de facto, colocando disponíveis
ingredientes até se podem encontrar alternativas, assim os materiais, assim como as gruas e os trabalhadores
como quanto ao tipo de energia a utilizar. para os movimentar, não é razoável esperar que sem se-
Assim, está a emergir um novo paradigma que se guir um plano o edifício acabe por ser construído. Isto
pode sintetizar da seguinte forma: acentua a centralidade da componente informação.
Claro que a questão que desde logo se coloca é: o que
A matéria é estruturada em organizações significa esta informação e qual a sua origem? A res-
complexas utilizando energia para o fazer, se- posta mais verdadeira e libertadora que a Ciência de
gundo regras que derivam das leis da física, hoje nos pode proporcionar é: não sabemos! É também
tendo como suporte informação estruturada uma resposta que nos protege de uma sobranceria sem
que permeia o Universo. sentido, é indutora de humildade criativa perante tudo
o que existe, também construtiva porque nos motiva
Uma outra analogia permite ilustrar o que aqui se ex- a irmos à procura pelos caminhos da descoberta, não
pressa. Considere-se a construção de um edifício. Para limitadora já que nos oferece a possibilidade de expres-
o fazer são necessários materiais (cimento, blocos, …), sarmos a nossa intrínseca natureza»
movimentados utilizando energia (gruas, força dos Em síntese e em jeito de conclusão, há algo que pode-
trabalhadores), colocados aplicando as regras da cons- mos afirmar com elevado grau de certeza: as edições do
trução civil, de acordo com o projeto de arquitetura. Super Interessante de 3023 abordarão assuntos da fron-
Agora, os materiais são os átomos/moléculas, a ener- teira do conhecimento que estão absolutamente para
gia decorre das interações associadas às forças funda- além do que hoje possamos sequer imaginar. e

46 SUPER
URBANISMO

Título de
Na imagem, o Quay

AP
Quarter Tower em
Sydney, Austrália, o
primeiro arranha-
céus «reciclado»,
uma vez que
manteve parte da

artículo serif
sua estrutura
anterior.

It hari sitiones maxim ipsapel entiis none etur aut pa soluptas doloriae
aliquatem aci omnis experunt aritae non natur sinte veniam dolorit labo.
Nem si odipsundunt id quistis eosto doluptas eos il ilis exped quiatquas-
sum volupis doluptasitia sa doloritis aut erum et amet qui aut ea velec-
tur? Qui vellaut asi cuptatur sendandaes velisciis id quia et volorecab

Texto de MARIO GARCÍA BARTUAL

DEVEMOS
TÍTULOADE
CONTINUAR
CONSTRUIR
ARTÍCULO PALO
ARRANHA-CÉUS?
It hari sitiones maxim ipsapel entiis none etur aut pa soluptas doloriae ali-
quatem aci omnis experunt aritae non natur sinte veniam dolorit labo. Nem
si odipsundunt id quistis eosto doluptas eos il ilis exped quiatquassum
A pegada ecológica
volupis dos edifícios
doluptasitia de grande
sa doloritis altura
aut erum constitui
et amet qui aut ea velectur? Qui
um desafio
vellautàasi
suacuptatur
sustentabilidade.
sendandaes velisciis id quia et volorecab
BRENDA
Texto de Texto CHÁVEZ,
de MARIO jornalista
GARCÍA BARTUAL

Muy Interesante - 47
A

ISTOCK
pandemia afetou a constru-
ção de novos arranha-céus.
Apenas 106 arranha-céus de
200 metros ou mais foram
concluídos em 2020. Isto é,
20% menos do que em 2019,
de acordo com o relatório Tall
Trends. O nível mais baixo des-
de 2014, com 105.
A emergência climática tam-
bém torna necessário minimizar
o impacto socioambiental do se-
tor da construção. De acordo com o PNUA (Programa das
Nações Unidas para o Ambiente), em 2021 foi responsável
por mais de 34% da procura de energia e cerca de 37% das
emissões de CO2 associadas à energia e às suas operações.
Os seus materiais são responsáveis por cerca de 9% e das
emissões totais de CO2 associadas ao consumo de energia.
A utilização de recursos primários duplicará até 2060. A construção foi responsável por 37% das emissões de CO2
Nessa altura, o aço, o betão e o cimento serão os principais associadas à energia e às suas operações em 2021.
emissores de gases com efeito de estufa.
A construção em altura requer muita energia e re-
cursos, o que levanta desafios e incógnitas sobre a sua
sustentabilidade: «Estes edifícios podem ser sustentáveis vel. Muitas vezes, estes edifícios altos são considerados
se for encontrado um equilíbrio entre o esforço envolvido «sustentáveis» porque são mais eficientes no consumo
na sua construção e a sua eficiência espacial», afirma o de energia, mas a sua sustentabilidade envolve mais va-
arquiteto sustentável Xavier Vilalta, do seu gabinete em riáveis. «Ser sustentável não depende da altura. Mas, a
Barcelona. Um desafio, de facto. partir de uma certa altura, há requisitos e necessidades
estruturais, energéticas (elevadores, ar condicionado,
ARRANHA-CÉUS SUSTENTÁVEIS E RECICLADOS. Cada vez mais ventilação), materiais e outras. É uma arquitetura muito
arranha-céus se dizem «sustentáveis»: «Hoje em dia, técnica, de alta tecnologia, que complica a sustentabili-
qualquer projeto é valorizado em termos de sustenta- dade e o contacto com a natureza», refletem os membros
bilidade», adverte Iñaki Alonso, fundador do atelier da equipa de n’UNDO, especializados em arquitetura sus-
de arquitetura Satt, pioneiro em cohousing sustentá- tentável e planeamento urbano.
SHUTTERSTOCK

Casas no bairro
Plateau-Mont-Royal
de Montreal,
Quebeque, Canadá.
Estas habitações de
altura média atingem
densidades de
30.000 pessoas por
quilómetro
quadrado, quase
como arranha-céus.

48 SUPER
Sustentabilidade em O primeiro arranha-céus «reciclado» da Austrália, o
altura Quay Quarter Tower, de 59 andares, foi inaugurado este
ano. É assim chamado porque manteve parte da sua estru-

E stes projetos sustentáveis recentes são alguns dos mais al-


tos a nível mundial, representando diferentes abordagens
ao mesmo objetivo de sustentabilidade:
tura anterior. «Neste caso, ao mesmo tempo, a superfície
foi muito aumentada. Trata-se, portanto, de uma opera-
ção económica, para além de imobiliária. Nas Torres de
○ The House, Nova Iorque. A primeira construção passiva Colón, em Madrid, o arranha-céus também foi reciclado,
de arranha-céus do mundo em Roosevelt Island. A sua norma e agora é um projeto milionário que obtém mais metros
Passive House (Passivhaus) é a mais rigorosa em termos de quadrados no mesmo local. Mas é claro que os «arranha-
consumo de energia e de fugas de ar. O seu isolamento e es- -céus reciclados» são, no senso comum: um edifício que
tanquicidade poupam até 90% da energia de aquecimento e não é construído é sempre mais sustentável do que um que
arrefecimento. E até 70 % do consumo total de energia. Foi tam- é construído. Se pode ser utilizado, o mais raro é deitá-lo
bém proposto um projeto de 60 andares em Vancouver. fora e fazê-lo novo. A coisa mais sustentável a fazer é sem-
○ The Gherkin, Londres. A forma desta torre oval de 40 andares, pre fazer menos, não construir», diz n’UNDO.
conhecida como «Gherkin», permite uma maior ventilação e ilumi-
nação natural. Foi um edifício vitoriano classificado, redesenhado A PEGADA DE UM EDIFÍCIO. Os edifícios representam 40% da
por Norman Foster, que conservou parte da sua fachada e do hall. procura de energia na Europa, 80% da qual provém de
○ Greenway, Nova Iorque. Localizado em East Harlem, será o combustíveis fósseis. O aquecimento, a refrigeração, a
maior edifício Passive House acessível do mundo. Um projeto de iluminação e o equipamento de construção aumentaram
Handel Architects, que albergará mais de 700 unidades de habi- 3% em 2021 em comparação com 2019.
tação a preços acessíveis, com espaço comercial e jardins. Um estudo de 2018 sobre a utilização de energia em
○ World Financial Centre, Tianjin, China. Segundo uma compa- função da altura dos edifícios de escritórios revelou
ração entre esta torre de 75 andares e um arranha-céus tradicional, grandes aumentos no consumo de energia à medida que
publicada pelo CTBUH: a sua conceção, a estrutura eficiente de estes se tornam mais altos: se passarem de cinco andares
alto desempenho e a utilização conservadora dos recursos permi- ou menos para 21 andares ou mais, a intensidade média
tiram poupar cerca de 19 000 toneladas métricas de aço, 10 500 da utilização de eletricidade e de combustíveis fósseis
metros cúbicos de betão, 3900 toneladas métricas de vergalhões, aumenta entre 42% e 137%. E as emissões médias de car-
entre outros custos, tempo de fabrico e de montagem. bono mais do que duplicam.
○ Floresta Vertical, Milão. Este projeto de «reflorestação urba- Uma análise de 2015 comparou edifícios altos no centro
na» suscitou controvérsia na altura. Trata-se de um complexo de Chicago e edifícios baixos nos seus subúrbios. Quanto
de duas torres de betão com 111 e 78 metros de altura, com mais altos eram os edifícios residenciais, menos eficien-
mais de 2000 espécies de plantas distribuídas nas suas facha- tes eram. O consumo de gás e eletricidade aumenta com
das, concebido pelo Boeri Studio. Devido aos seus terraços e a altura.
diferentes camadas, não é possível identificar na planta onde
termina o terreno e começa o edifício.
SHUTTERSTOCK

ASC
IWAN BAAN

ASC

SUPER 49
Os edifícios residenciais são menos eficientes quanto
mais altos são, pois consomem mais gás e eletricidade
Denomina-se «carbono incorporado» as emissões re-
sultantes da extração e fabrico de materiais e sistemas,

ASC
bem como da construção do edifício, da sua instalação e
manutenção até ao fim da sua vida útil. Carbono opera-
cional» são as emissões resultantes do seu funcionamento
(aquecimento, serviços públicos, etc.).
Nos edifícios altos, as emissões incorporadas e ope-
racionais aumentam. Se somarmos as duas, obtemos o
consumo de carbono ao longo da vida. Grande parte do
aumento deve-se a uma maior exposição ao frio, aos ven-
tos fortes e ao sol. Questões de construção e da localização
também desempenham um papel importante: uma torre
revestida a vidro num clima desértico ou tropical pode
exigir muita energia para arrefecer. «Para saber se um
edifício é sustentável, é preciso analisar o seu ambiente e
responder às exigências do local, da sua comunidade, da
sua economia, do clima e da tecnologia da época em que é
construído», explica Vilalta.

DENSIDADE E EQUILÍBRIO. Durante décadas, os argumentos a


favor da construção de arranha-céus foram a densificação A meia altura é a tipologia de construção mais sustentável, embora
da população num ponto específico, o consumo de me- seja necessário considerar o modelo mais adequado para cada local.
nos terreno e a libertação de espaço. «Mas, arranha-céus
atrás de arranha-céus, foram construídos e, no final, o
modelo não trouxe os benefícios que poderia ter trazido. quadas. Há sítios onde é interessante construir em altura
Não se trata apenas do edifício, mas da sua inserção e re- e outros onde não é», explica Alonso.
percussão no contexto urbano. O seu impacto na cidade O relatório « Density Done Right « do Ryerson City
gera exigências muito elevadas, tensões urbanas, fluxos Building Institute indica que uma densidade baixa pode
de pessoas, tráfego, abastecimentos e outras necessida- ajudar a garantir que há pessoas suficientes num bairro
des. Edifícios de menor altura e características técnicas para apoiar escolas, cuidados de saúde, lojas, serviços,
mais simples demandam menos energia, são mais fáceis transportes públicos, tipologias e rendas de habitação
de manter, expandir e gerenciar», diz n’UNDO. diversificadas, facilitando simultaneamente a vida aos
O arranha-céus seria a tipologia mais sustentável: idosos.
«Muitos relatórios mostram que nem 30, 40 ou 50 an- Em Montreal, os edifícios baixos (com cerca de três
dares (por causa dos custos das fundações e de outros andares) no bairro Plateau-Mont-Royal atingem densi-
elementos), nem casas unifamiliares de um ou dois anda- dades de 30 000 pessoas por quilómetro quadrado, quase
res, porque implicam muito uso do solo, baixa densidade tão elevadas como as dos arranha-céus. Um estudo efe-
populacional e necessidade de veículos», diz Alonso. tuado por Francesco Pomponi, Professor de Ciências da
Na região espanhola do Levante, coexistem dois ca- Sustentabilidade na Universidade Napier de Edimburgo,
sos antagónicos: os arranha-céus de Benidorm, frente à concluiu que as habitações de baixa altura e de alta den-
arquitetura expandida de Torrevieja, com grandes ex- sidade têm metade das emissões de gases com efeito de
tensões de casas baixas. «Entre estes modelos, existe um estufa no seu ciclo de vida que as habitações de grande
meio-termo que pode ser mais aceitável. Em cada local altura e alta densidade e inclusivé menos do que as habi-
deve ser feita uma análise concreta das medidas mais ade- tações de baixa altura e baixa densidade.

A arquitetura
sustentável responde
melhor aos desafios
sociais, culturais e
ambientais que
enfrentamos.
ASC

50 SUPER
«A construção em altura pode fazer sentido se não
Tulipas sustentáveis?
houver espaço para construir e for necessário criar densi-
dade para proteger o ambiente. Mas a coisa mais razoável
e sustentável a fazer é encontrar um equilíbrio que crie
O Tulip era para ser o edifício mais alto de Londres, uma tor-
re de observação de mil pés ao lado do edifício Gherkin.
Apesar das suas credenciais sustentáveis, o seu projeto não foi
densidade e permita viver em contacto com a natureza», convincente, uma vez que pretendia instalar um restaurante nu-
diz Vilalta. ma plataforma de observação no topo de um grande poço de
elevador, rodeado por edifícios altos com plataformas de obser-
CONCEÇÃO SUSTENTÁVEL. O PNUMA aconselha o setor da vação e outros restaurantes.
construção a melhorar o desempenho energético dos seus No final, o Secretário de Estado concordou com o inspetor do
edifícios, a reduzir a pegada de carbono dos materiais, projeto de que as suas medidas para minimizar as emissões de
a procurar alternativas, a descarbonizar os materiais carbono na construção não compensariam as grandes quanti-
convencionais como o cimento, a multiplicar os seus dades de betão armado nas fundações e no poço do elevador,
compromissos políticos e a aumentar o investimento na bem como o transporte dos visitantes para o nível mais alto para
eficiência energética. apreciarem as vistas, uma vez que teria uma energia incorporada
«Para qualificar um edifício de qualquer tipo como muito elevada e um ciclo de vida insustentável.
sustentável, os seus impactos reais devem ser medidos e
quantificados com parâmetros científicos: quantos quilos
deCO2 por metro quadrado se estima para construí-lo?
Quantos tem capacidade para absorver? Que grau de
biodiversidade incorpora? Isto está a ser desenvolvido
através de Declarações Ambientais de Produtos (DAP)
que definem os seus impactos. No final, ao juntar todos
os materiais utilizados, seria gerada uma declaração am-
biental de um edifício», diz Alonso.
O projeto deve minimizar todas as emissões, utilizan-
do o mínimo possível de materiais e energia. A norma de
construção Passivhaus, ou «casa passiva», é a mais efi-
ciente, com emissões operativas de carbono, próximas de
zero, e a sua pequena lacuna é colmatada pela incorpora-
ção de energias renováveis.
A conceção paramétrica e o software algorítmico po-
dem também criar plantas mais eficientes, permitindo
reduzir a utilização de betão e aço. Uma boa conceção
estrutural pode otimizar a utilização de materiais e o im-

ASC
pacto ambiental. Uma análise da relação entre a utilização
de energia e as estruturas dos edifícios na Europa revelou
que, para uma torre de 150-250 metros, uma grelha de
vigas diagonais — em vez de estruturas tubulares com um
cilindro central de betão como suporte — pode reduzir o Atualmente, o contexto convida-nos a contemplar a
betão em 17-33% e o aço em 28-41%. cidade à escala do bairro, como as «cidades de 15 mi-
As estruturas altas de madeira contribuem para a redu- nutos»: «Com cultura, serviços, comércio, educação,
ção das emissões incorporadas. Os arquitetos da Perkins etc., a curtas distâncias que podem ser percorridas a pé
Will afirmam que, teoricamente, é possível construir até e de bicicleta. Ou as «Cidades 880», destinadas a pes-
80 andares. A madeira deve ser proveniente de uma ges- soas com idades compreendidas entre os oito e os oitenta
tão florestal responsável, tão local quanto possível. Apesar anos. Não se pensa nelas. Temos de tornar a cidade mais
de ser um material renovável, este tipo de madeira requer complexa e compacta, com bairros. No século XX, as ci-
quase quatro vezes mais árvores do que a construção com dades foram concebidas do ponto de vista do movimento
estruturas mais leves do mesmo material. moderno e do zonamento: grandes zonas comerciais,
«A sustentabilidade é uma compreensão holística da culturais e residenciais que podem ser alcançadas de car-
arquitetura e da vida. Não é um ponto de vista único, mas ro», sublinha.
a soma de ações que nos levam a estar mais em contacto Felizmente, a arquitetura permite abordar diferentes
com o ambiente, melhorando a nossa qualidade de vida», escalas: o objeto, o edifício, a cidade, o território. «Po-
sublinha Vilalta. dem ser mais ou menos sustentáveis e auto-suficientes.
A relação entre estas escalas faz com que o sistema com-
MUITO MAIS QUE EDIFÍCIOS SUSTENTÁVEIS. Os arranha-céus pleto funcione. A arquitetura e as cidades funcionam por
surgiram no final do século XIX em cidades com eleva- sistemas interrelacionados. Um edifício isolado é um dis-
dos índices populacionais, como Londres e Nova Iorque. curso muito curto, mas é preciso começar por algum lado
São um símbolo da modernidade, ícones do mito «mais e trabalhar de forma congruente nas quatro escalas ao
alto, maior, mais forte» que continuarão a ser construí- mesmo tempo. O mais difícil é passar para os bairros, as
dos. Repensar o sentido que fazem hoje e repensar a sua cidades e o território. É preciso manter uma visão muito
sustentabilidade implica refletir sobre a forma como de- ampla: propor edifícios sustentáveis, não como exemplos
vemos viver e conviver no planeta para enfrentar as atuais isolados, mas em ambientes que funcionem dessa for-
incertezas sociais, climáticas e económicas. «Temos de ma», sugere o n’UNDO.
pensar em edifícios sustentáveis mas, obviamente, tam- Como disse o escritor George Bernard Shaw: «Somos
bém em bairros sustentáveis onde há quase tudo, sem sábios não pela memória do nosso passado, mas pela res-
termos de nos deslocar muito», diz Alonso. ponsabilidade pelo nosso futuro». e

SUPER 51
P S I C O L O G I A

A QUÍMICA DA
CONFIANÇA
O QUE NOS FAZ CONFIAR?
O que é que nos leva a entregarmo-nos aos outros sem pensar ou a
desconfiar sem razão? Porque é que alguns rostos nos fazem sentir calmos
e outros com medo? Os cientistas estão a tentar desvendar este mistério
que nos leva a fazer associações de pensamentos e decisões.

Texto de NADIA IGLESIAS, jornalista

52 SUPER
A ação de dar
confiança a outra
pessoa envolve o
cérebro e os
sentidos. Mas o
cérebro pode ser
reeducado para gerar
pensamentos que
GETTY

nos levem a confiar.

SUPER 53
A
confiança tem de ser conquis- fiança. Diferentes áreas do cérebro — a amígdala, o
tada, pode ser cega, perdida mesencéfalo e o corpo estriado dorsal — são ativadas
num segundo ou nem sequer e são decisivas para determinar se , perante uma si-
aflorar. Mais além dos dita- tuação, confiamos ou tememos. Isto é algo que coloca
dos populares, a neurociência o nosso cérebro na posição de ter de escolher entre um
sustenta que, quando se tra- ou outro, uma vez que, como explica o investigador
ta de confiança, a química e em neurociências David del Rosario, «a confiança e o
os pensamentos desempe- medo utilizam as mesmas redes neuronais, não podem
nham um papel crucial. Um coexistir». Ou se tem medo ou se confia.
processo em que o cérebro Neste momento, o que falta é o gatilho, o início que
está imerso e que, ao longo desencadeia a ação da ocitocina e ativa estas áreas do
do tempo, se adaptou per- cérebro. Uma pergunta com uma resposta clara: os
feitamente aos desafios da era digital, conseguindo pensamentos. «A origem da confiança são ideias, as-
enfrentar com confiança uma viagem de carro com um sociações que fazemos com algo ou alguém e que nos
desconhecido ou uma estadia em casa de um completo fazem sentir. Tal como o coração bombeia sangue, o
estranho. cérebro lança pensamentos, propostas para o nosso
O que leva o nosso cérebro a ativar a confiança? Há foco de atenção», diz.
diferentes atores por detrás desta questão e um de- Se as associações que se fazem estão ligadas ao medo,
les chama-se ocitocina. Conhecida como a hormona é o medo que se vai sentir. É um exercício que implica,
libertada durante o parto ou a amamentação, esta portanto, tomar consciência, assimilar que «as emo-
substância química exerce funções neuromoduladoras ções não são boas nem más, mas é a nossa vontade de
no sistema nervoso central. não as sentir que ativa o mecanismo de luta-fuga». As-
Trata-se de um neuropeptídeo cuja presença é sim, a mesma situação pode levar uma pessoa a sentir
mensurável e detetável numa análise ao sangue. A medo e outra não, porque «quando confio em algo, a
ocitocina tem efeitos anti-stress e é capaz de baixar a minha decisão não se baseia em factos, mas na ideia
tensão arterial e o ritmo cardíaco. Bom mediador nos que tenho das coisas».
momentos de ansiedade, faz pender a balança a favor
da confiança e do bem-estar. O DESAFIO DE «REEDUCAR» O CÉREBRO. Com esta visão,
investigadores como David del Rosario tentam trans-
MEDO OU CONFIANÇA: DUAS EMOÇÕES, UM MESMO CIRCUITO. mitir ao público a importância de compreender o
Para além da ocitocina, outros ingredientes devem ser funcionamento do cérebro. Uma lição de vida que pas-
adicionados para criar o cocktail adequado da con- sa por assumir que a pessoa tem uma margem de ação

A confiança perseguida pelos sentidos


N este processo de decidir se algo ou
alguém é digno da nossa confiança,
os sentidos também estão envolvidos.
posição para a confiança. Investigadores
da Universidade de Leiden, nos Países
Baixos, conseguiram demonstrar que a
O resultado foi que os olhos castanhos
eram mais fiáveis do que os olhos azuis;
que os homens com rostos redondos,
A visão, o olfato e a audição colabo- lavanda é uma boa aliada. queixos e bocas grandes eram uma fon-
ram neste processo, e vários estudos de Num estudo em que este aroma era o pre- te de maior confiança; e que os rostos
investigação foram realizados para o de- dominante numa sala, foi detetado o seu femininos transmitiam geralmente maior
monstrar. papel no aumento da «predisposição dos confiança.
No domínio do olfato, há certos aromas participantes» para confiar em estranhos. A acrescentar à equipa dos sentidos está
capazes de despertar uma maior predis- Isto, segundo os investigadores, deve-se a componente auditiva. Investigadores
às propriedades calmantes da alfaze- franceses descobriram que diferentes
CREDITO

ma e ao facto de, «de um ponto de vista entoações vocais fazem com que uma
anatómico, o nervo olfativo estar ligado pessoa pareça mais digna de confiança.
à região do cérebro que modula a forma Através do desenvolvimento de um pro-
como confiamos nos outros». grama informático de processamento de
A visão, por seu lado, também tem um pa- voz, chamado CLEESE, foram criadas cen-
pel a desempenhar. Os investigadores da tenas de entoações aleatórias a partir de
Universidade Carolina em Praga afirmam uma gravação da palavra bonjour — «olá»
que a cor dos olhos e a forma do rosto em francês — por homens e mulheres.
desempenham um papel importante na O estudo revelou uma «adaptação comu-
perceção. nicativa única que permite aos ouvintes
As suas conclusões baseiam-se num detetar traços sociais, independente-
estudo que envolveu cerca de 200 par- mente das características físicas dos
ticipantes, aos quais foram mostrados falantes», permitindo-lhes identificar
retratos de homens e mulheres e que tive- quais as entoações vocais que fazem
SHUTTERSTOCK

ram de os classificar de 1 a 10, de acordo uma pessoa parecer mais confiável ou


com o grau de confiança que sentiam. competente.

54 SUPER
Efeitos periféricos da libertação central de ocitocina durante o trabalho de parto e a lactação.

Áreas de projeção axonal


Hipocampo
NAc (Núcleo accumbens)
Amígdala
Núcleo arqueado
PFC (Córtex pré-frontal)
Complexo vagal dorsal
Hipotálamo
Medula espinal
SCN (Núcleo supraquiasmático)
BNST (núcleo do leito da estria terminal)

O neuropeptídeo ocitocina é produzido principalmente


por neurónios magnocelulares no núcleo paraventricu-
lar (PVN) e no núcleo supra-ótico (SON) do hipotálamo.
Os axónios destes neurónios terminam na neuro-hipófi-
se, onde a ocitocina é segregada, em impulsos, para o
sangue. Os mecanorreceptores no mamilo (ativados
pela sucção do recém-nascido) e no colo do útero (cf.
reflexo de Ferguson) criam um ciclo de feedback sen-
sorial positivo, levando a uma libertação adicional de
ocitocina no cérebro. Os neurónios ocitocinérgicos no
hipotálamo também libertam ocitocina para outras
áreas do cérebro através de transporte axonal e liberta-
ção dendrítica (não mostrado).

Neuro-hipófise
Ocitocina

Secreção para a
periferia

Ciclo de feedback positivo


Ocitocinas

Reflexo de ejeção
do leite

durante a amamentação
Mecanorrecetores

Contrações uterinas e
indução do parto
FRONTIERSIN.ORG / BIORENDER.COM.

através de prostaglandinas,
relaxinas, progesteronas e CRH

SUPER 55
e compreender que «não somos culpados pelo que nos nos negócios sempre foi uma constante e a irrupção
acontece, mas somos cem por cento responsáveis pela da era digital trouxe consigo mudanças importantes.
forma como reagimos ao que nos acontece». O desafio Novos cenários estão a ser capazes de tornar as rela-
é, então, descobrir a relação que se estabelece com os ções entre desconhecidos e completos estranhos em
pensamentos, uma vez que «cada vez que não usamos algo familiar.
um pensamento, que não lhe prestamos atenção sus- Com mais de 100 milhões de utilizadores em todo o
tentada durante mais de 3 segundos, porque não nos mundo,incluindo Portugal, a plataforma de partilha
serve para nada, a probabilidade de o nosso cérebro de automóveis BlaBlaCar é um exemplo claro dis-
voltar a propô-lo numa situação de vida semelhan- so mesmo. A empresa trabalha constantemente para
te diminui». Ter consciência deste facto é «reeducar compreender quais os fatores que aumentam o sen-
o cérebro». Se mudarmos a nossa forma de pensar e timento de confiança entre os seus utilizadores. Algo
decidirmos se um pensamento é útil ou não para viver que, embora agora entre ecrãs e algoritmos, recupera
uma determinada situação, seremos capazes de gerar a proeminência de um clássico: o valor da reputação.
emoções diferentes. Emoções que levarão a ações dife- Com este ponto de partida, a empresa está a tra-
rentes e, portanto, a resultados diferentes», diz. balhar no conceito de «capital de confiança». Um
indicador que analisaram detalhadamente em 2016 e
QUANDO A PALAVRA ESTRANHO SE TORNA FAMILIAR. A com- que registam de modo digital, com base nas informa-
preensão do mecanismo da confiança é igualmente ções fornecidas pelos utilizadores nos seus perfis e nas
relevante para as empresas. O seu estudo e aplicação classificações recebidas, entre outros dados. Fuen-

SHUTTERSTOCK
SHUTTERSTOCK

Novos cenários fazem com que a palavra «outsider» se torne familiar,


recuperando o conceito de reputação. As classificações recebidas
criam o valor da confiança.
SHUTTERSTOCK

56 SUPER
Médicos, cientistas ou professores. A profissão
também tem influência
A confiança também está presente
na forma como algumas profissões
são percepcionadas. Registos como o
o grupo de profissionais menos confiá-
veis, está a classe política: apenas 8%
dos inquiridos confiam neles em geral
Global Trust Index, realizado pela Ipsos, e apenas 11% confiam nos ministros
mostram que os médicos, com 71%, são do governo. Espanha, Polónia e Hun-
os profissionais que inspiram mais con- gria são os três países da Europa em
fiança (Espanha). que menos se confia nos profissionais
Este estudo, efetuado em 28 países, de- políticos.
volveu à profissão médica a sua posição O setor bancário também não é muito
no topo do ranking, depois de ter sido bem classificado, com apenas uma em
ultrapassada em 2021 pelos cientistas. cada dez pessoas a manifestar confian-

SHUTTERSTOCK
O terceiro lugar da tabela é ocupado pe- ça neste grupo, que ocupa o terceiro
los professores. lugar entre as profissões que consegui-
No fundo do ranking, e portanto entre ram criar menos ligações com o público.

santa Hidalgo, Diretor de Confiança e Segurança da para que os envolvidos possam comunicar entre si.
BlaBlaCar, explica que este indicador permite aos con- A estas fases junta-se o eixo central do seu sistema:
dutores e passageiros conhecer o nível de confiança de as avaliações. Um espaço verificado e público onde se
um determinado utilizador «de forma instantânea e constrói a reputação online. Aqui, «os anfitriões e os
automatizando o processo de fiabilidade». viajantes deixam os seus comentários depois de vi-
Para gerar este capital de confiança, a BlaBlaCar uti- verem a experiência, impressões que são essenciais
liza um esquema denominado D.R.E.A.M.S. Por detrás para construir a confiança na Airbnb», explicam. Ser
desta sigla em inglês, constrói-se uma engrenagem a alavanca de decisão final para um utilizador expe-
digital que se centra em oferecer a informação mais rimentar as associações positivas que o levam a fazer
completa sobre cada utilizador da comunidade, assim uma reserva.
como um espaço aberto à participação, no qual se acu-
mula capital de confiança a partir das avaliações das 50% MAIS PRODUTIVOS E COM MENOS STRESS. A confiança é
experiências. Alguns utilizadores destacam-se mesmo capaz de gerar cliques que conduzem a vendas ou con-
pela sua reputação irrepreensível, distinguindo os me- tribuem para a prosperidade de um país em geral ou de
lhores condutores com o distintivo Super Driver. uma equipa de trabalho em particular.
Sistemas antifraude sofisticados, métodos de pré- Diferentes investigações demonstraram que nos
-pagamento e equipas de escuta ativa para moderar e grupos de trabalho onde existe um bom clima de con-
verificar cada processo são também fundamentais, ex- fiança, em comparação com os que não o têm, há um
plica Hidalgo, para «garantir níveis de autenticidade aumento de 50% na produtividade. Além disso, nesses
e manter os pilares que fazem funcionar a economia ambientes, há menos 13% de baixas por doença, me-
colaborativa» neste ambiente digital. nos 74% de casos de stress e níveis de empenho 76%
mais elevados.
A REPUTAÇÃO COMO UM ATIVADOR DE CLIQUES. No caso da Não é de estranhar que a neurociência esteja a tentar
empresa Airbnb, o conceito de reputação está também compreender como funciona o indivíduo ante a con-
no centro da plataforma, a base que permitiu a este fiança e o que pode ser feito para a melhorar. Neste
negócio de troca de alojamento atingir atualmente 4 domínio, estudos como os realizados pelo neuroeco-
milhões de anfitriões, utilizadores que partilharam as nomista Paul J. Zak demonstraram que o sentimento
suas casas com mais de mil milhões de viajantes, es- de confiança motiva, por exemplo, a generosidade en-
tranhos uns aos outros, em qualquer parte do mundo. tre estranhos.
O modelo da Airbnb é dividido entre anfitriões e Diferentes estudos, centrados na ocitocina, con-
hóspedes e funciona com um sistema de classificação cluem que esta «molécula de confiança» é capaz
que, virtualmente, alimenta o sentimento do utiliza- de aumentar este sentimento e de tornar as pessoas
dor de tomar decisões baseadas na confiança. mais generosas com estranhos quando está em causa
Para guiar esse processo, a plataforma concentra seus dinheiro. Uma boa predisposição motivada pela es-
esforços em uma verificação exaustiva de perfis pessoais perança de «confiar» que os outros atuem da mesma
e anúncios, além de um canal inteligente de mensagens forma e serem assim retribuídos. e

Diferentes estudos demonstraram que nos grupos de trabalho


onde existe um bom clima de confiança, em comparação com
os que não o têm, há mais 50% de produtividade
SUPER 57
T E C N O L O G I A

ESTAMOS
À BEIRA
DE UM
‘ROBOCALIPSE’?
A robotização da indústria e a automatização das tarefas através da utilização da
inteligência artificial poderiam pôr em risco centenas de milhares de postos de
trabalho, dizem os mais pessimistas. Isso está a acontecer? Fomos ver.

Texto de DANIEL MÉNDEZ, Jornalista

58 SUPER
A emergência dos

LEXICA
robots no mundo do
trabalho implica
uma adaptação do
emprego humano às
novas tecnologias.
Temos de aprender a
viver com a
inteligência
artificial.
E
m fevereiro passado, o sin- borais: será que vão fazer melhor do que nós, será que
dicato dos estivadores de nos vão roubar o emprego? Fala-se de um «robocalip-
Vancouver (Canadá) enviou se» — incluindo investigadores do MIT, da Universidade
uma carta aberta ao governo de Utrecht, nos Países Baixos, e da Universidade de Buc-
nacional. Protestava contra o kingham, em Inglaterra — referindo-se a um futuro
projeto de construção de um próximo em que um rápido processo de automatização,
terminal de carga automati- apoiado pela robótica e pela inteligência artificial, pode-
zado no porto da cidade: «Isto rá conduzir a uma vaga de despedimentos.
irá destruir o modo de vida
de muitas, muitas pessoas», ESTÁ A ACONTECER? A resposta rápida é não... de mo-
concluía o texto. Temem que mento, não. Ou, pelo menos, não ao ritmo previsto
as máquinas, controladas por por alguns estudos. Um relatório do Fórum Económi-
inteligência artificial, façam o seu trabalho. Nas mes- co Mundial, publicado em 2020 com o títuloThe Future
mas semanas, a mais conhecida marca de vermute do of Jobs Report 2020, é frequentemente citado em tex-
mundo anunciou uma nova campanha publicitária... tos académicos e jornalísticos : até 2025, segundo esse
concebida com inteligência artificial. Introduziram relatório, a automatização destruirá 85 milhões de em-
palavras como botânico, floral ou Artemisia no gera- pregos em todo o mundo, criando ao mesmo tempo 97
dor de imagens Midjourney e a IA criou as «fotos» dos milhões de novos empregos. Parece improvável que is-
cocktails que foram depois utilizadas nos anúncios. Na to seja conseguido em apenas dois anos. Outro estudo
mesma altura, ficámos a saber que o sistema de conver- pioneiro, realizado em 2013 na Universidade de Oxford,
sação ChatGPT tinha passado com distinção nos exames afirmava que 47% dos empregos nos Estados Unidos
de MBA da Universidade da Pensilvânia. «Não só deu estavam destinados a desaparecer dentro de algumas
respostas corretas, como as suas explicações são exce- décadas. Quase metade! Mas, recentemente, os nú-
lentes», concluiu Christian Terwiesch, autor do estudo meros foram qualificados pelos autores, entre os quais
e investigador do mesmo Centro. se encontra um nome familiar entre os «insiders» da
Estes são apenas alguns exemplos das últimas no- área: Carl Benedikt Frey, diretor do programa Future of
tícias. Para além do espanto — como é possível que os Work da Oxford Martin School.
algoritmos sejam capazes de fazer tudo isto — surge uma «É claro que estamos a viver a Quarta Revolução
questão com implicações éticas, sociais, filosóficas e la- Industrial e, tal como nas revoluções anteriores, es-

LEXICA
Atualmente, não
há uma vaga de
despedimentos
devido à
robotização do
trabalho.

60 SUPER
As máquinas costumavam
substituir os músculos, mas
agora podem assumir o
controlo de alguns domínios
da economia do conhecimento

tá a transformar profundamente todas as áreas da


sociedade, incluindo o tecido produtivo e o posto de
trabalho», explica Nuria Oliver, engenheira de teleco-
municações com um doutoramento do MIT e diretora
da Fundação Ellis Alicante, uma organização dedicada
à análise da relação entre pessoas e sistemas inteligen-
tes, que co-fundou em 2020. Para ela, a chave está em
ver como a sociedade se adapta a estas mudanças. «Tal
como há muitas profissões que existiam quando a mi-
nha avó era pequena e que hoje desapareceram — desde
telefonista a guarda-noturno ou despertador humano
— hoje temos profissões que não existiam há anos». Ci-
ta como exemplo as relacionadas com os smartphones
Muitas áreas de
ou a nuvem. Isto levanta outra questão fundamental: trabalho já estão
que empregos estão atualmente ameaçados pela inte- ameaçadas pela
ligência artificial? emergência da
«No passado, os empregos substituídos pela tec- inteligência
artificial e podem
nologia envolviam trabalho manual. As máquinas
aumentar com o
substituíram os músculos», escreveu Paul Krugman, passar do tempo.

LEXICA
Prémio Nobel da Economia, numa coluna de opinião
publicada recentemente no The New York Times. Ago-
ra, as máquinas podem também assumir o controlo de
alguns domínios da chamada economia do conheci-
mento. A educação está ameaçada, os elementos mais
mecânicos das finanças (quem preenche primeiro uma
folha de cálculo do Excel, a pessoa ou a máquina?), o
jornalismo, o design gráfico, nos recursos humanos já
Os postos mais
são utilizados há algum tempo: já em 2021 os estafetas ameaçados
da Amazon protestaram nos Estados Unidos porque es-
tavam a receber cartas de despedimento... decididas e ADVOGADOS. Há uma parte do seu trabalho que é muito rotineira:
executadas pela IA. Os gigantes da tecnologia — leia-se por exemplo, mergulhar nos acórdãos e nos processos judiciais
Google, Microsoft, Meta e Amazon — despediram mais em busca de pistas para um caso em que estão a trabalhar.
de 150 000 trabalhadores nos últimos meses. Ao mes- JORNALISTAS. Há já algum tempo que portais como o CNET es-
mo tempo, investiram milhares de milhões de dólares crevem notícias com processadores de texto baseados em IA. Os
nas suas várias plataformas de inteligência artificial. Há resultados são, por enquanto, limitados, para dizer o mínimo... Mas
quem associe as duas notícias e as interprete como um a IA aprende depressa.
exemplo da grande substituição: «A IA vai ganhar a ba- MOTORISTAS. O carro autónomo continua a bater literal e figu-
talha», resumiu Daniel Kahneman, vencedor do Prémio rativamente, mas se mesmo as previsões mais otimistas sobre a
Nobel da Economia em 2002, numa entrevista recente. condução autónoma se concretizarem um dia, milhares de mo-
«Será totalmente disruptiva. A forma como nos vamos toristas, estafetas e até taxistas poderão ver os seus empregos
adaptar é um problema fascinante», acrescentou. ameaçados.
ANALISTAS FINANCEIROS. As estimativas sugerem que até 30%
IMPACTO TRANSVERSAL O impacto da IA no trabalho é dos seus empregos poderão ser substituídos pela tecnologia: esta
e será transversal. Já há máquinas a trabalhar na co- poderá localizar padrões e efetuar transações mais rapidamente
lheita de alfaces nos campos: escolhem apenas as que do que um ser humano. Estão já a surgir novas profissões, como
estão prontas e extraem-nas cuidadosamente. Em ja- os quants: analistas financeiros especializados na utilização de
neiro, um tweet de um ator vocal argentino tornou-se métodos matemáticos.
viral: «Substituíram-me por uma voz gerada por in- MÉDICOS. A IA pode ser útil para fazer diagnósticos, mas os ro-
teligência artificial», denunciou. Até onde pode ir? bôs também podem ser utilizados (e já estão a ser utilizados) para
A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento cirurgias delicadas. Para já, sob a supervisão de um médico de
Económico (OCDE) identifica alguns setores em risco: «carne e osso».
construção, atividades agrícolas, pecuárias e pesquei-

SUPER 61
As tarefas
SHUTTERSTOCK

repetitivas
podem ser
automatizadas,
mas um robot
não pode ter os
conhecimentos
que o ser
humano tem
pelo simples
facto de existir.

ras, indústria de produção e logística, manutenção e


limpeza, hotelaria... Quase um terço dos empregos Os robots substituir-nos-ão
pode ser afetado. No entanto, o relator faz uma res-
salva: não se trata de uma substituição total, mas da apenas nas tarefas mais
automatização de tarefas específicas. Houve um rela-
tório anterior da mesma organização com resultados
mais ameaçadores, mas foram obrigados a corrigi-lo.
repetitivas, mas não em tarefas
O modelo anterior, produzido em 2018, centrava-se
no impacto da automatização baseada em robots que
como a negociação, a empatia,
executam tarefas manuais. Mas este não foi o caso em
todos os setores. Não assistimos a uma vaga de robôs
a preocupação com os outros...
empregados de mesa ou de estafetas... Embora em
dezembro a McDonald’s tenha aberto um restaurante
totalmente automatizado no Texas. Mas, por vezes,a
indústria foi obrigada a recuar: em 2017, a Adidas criou porque apenas 18 a 27 das competências necessárias
fábricas totalmente automatizadas (Speedfactories, são altamente automatizáveis. Por outras palavras, os
como lhes chamavam) na Alemanha e nos Estados robôs vão substituir-nos, sim, mas apenas em parte:
Unidos para o fabrico robotizado de sapatilhas. Três nas tarefas mais repetitivas. Quais são os estrangula-
anos depois, encerrou-as e transferiu o fabrico para mentos referidos no relatório? A negociação, a empatia
o Sudeste Asiático: era mais barato empregar mão de e a resposta às reações humanas, a preocupação com os
obra humana. outros, o design tecnológico entendido como a adap-
O novo estudo da OCDE, publicado em dezembro de tação da tecnologia às necessidades do utilizador, a
2022 e assinado por Julie Lassébie e Glenda Quintini, persuasão...
afirma literalmente que «devido aos avanços na inteli- «A inteligência artificial não tem os conhecimentos
gência artificial e na robótica, muitas tarefas altamente que nós, humanos, adquirimos ao longo da vida pelo
cognitivas podem ser automatizadas. No entanto, estas simples facto de vivermos», explica Ramón López de
continuam a ser de baixo risco porque também exigem Mántaras, professor e antigo diretor do Instituto de
competências que funcionam como um estrangula- Investigação em Inteligência Artificial do CSIC e pio-
mento para a automatização». Acrescentou ainda uma neiro desta tecnologia em Espanha. «Analisamo-la em
nuance importante: «Os empregos com maior risco termos antropomórficos, quando não tem nada a ver.
de automatização não desaparecerão completamente, É uma «inteligência», entre aspas: é como um papa-

62 SUPER
ISTOCK
LEXICA É necessário que
os trabalhadores
aprendam e
requalifiquem
continuamente as
suas competências
digitais.

A robótica e automação têm vindo a criar novos desafios com reper-


cussões nas relações laborais e condições de trabalho.

gaio. É por isso que Chomsky diz que é um plágio de


alta tecnologia, mas nada mais. E está a muitos anos
de resolver estes problemas que existem desde que a
IA foi criada nos anos cinquenta. Para falar das ex-
pectativas excessivas em relação a estas tecnologias,
cita as palavras de Geoffrey Hinton, um dos pais do
Deep Learning e vencedor do Prémio Turing (o Pré-
mio Nobel da Informática, entenda-se), que há mais
de uma década disse que as universidades deviam dei-
xar de formar radiologistas, porque a tecnologia seria
mais eficaz. «Ter um Prémio Nobel não é garantia de não passam de cinco anos», explica Mónica Pérez, Di-
que não se diga disparates», resume López de Mánta- retora de Comunicação e Estudos da Infojobs. «Esse é
ras. «Haverá tarefas que podem ser automatizadas», o grande desafio», conclui. «Temos de estar conscien-
reconhece ao mesmo tempo, e isso já está a aconte- tes da necessidade desta aprendizagem. Precisamos de
cer há algum tempo: pense nas caixas automáticas de adquirir competências digitais que nos permitam lidar
um supermercado ou no chatbot de um banco. «Mas com as ferramentas. E não me refiro ao setor da tecno-
ninguém, absolutamente ninguém, pode dizer se o logia, porque isto é algo tão transversal que vai afetar
equilíbrio entre os empregos será positivo ou negativo todos os setores de atividade e de produção». O risco
no futuro», afirma enfaticamente. é que, se esta ênfase na aprendizagem ao longo da vida
«Não se trata tanto de uma substituição de profissões, e na reconversão dos trabalhadores não se concretizar,
mas sim de uma automatização de tarefas que, em vez o fosso existente entre as diferentes áreas da socieda-
de eliminar o emprego, o transforma e, simultanea- de aumente. Lahera fala de perdedores e vencedores da
mente, obriga o trabalho humano a adaptar-se a estas digitalização: entre os primeiros, os trabalhadores não
mudanças tecnológicas», afirma Arturo Lahera, inves- qualificados e semi-qualificados. Entre os segundos, os
tigador da Faculdade de Ciências Políticas e Sociologia que possuem competências digitais. Vale a pena regis-
da Universidade Complutense de Madrid. E fornece al- tar: o modelo de implantação da inteligência artificial
guns dados: na Alemanha, cada robot incorporado na depende, em última análise, do ser humano que a cria.
cadeia de produção, no período 1995-2015, implicou Entretanto, já estão a surgir novas profissões, como
um aumento de cerca de cinco postos de trabalho. E em os «promptengineers», que são as instruções que a
Espanha? «Encontrámos perdas substanciais de pos- inteligência artificial introduz num gerador de ima-
tos de trabalho nas empresas que não adoptam robôs», gens ou de texto para gerar um resultado inédito. São
afirma num artigo intitulado Digitalização e robotiza- responsáveis pela formação da ferramenta, alguns cha-
ção do trabalho do futuro: demasiadas esperanças? maram-lhes ironicamente «psicólogos da IA»: e uma
Os setores que experimentam a robotização aumen- oferta de emprego americana oferecia recentemente
tam o seu emprego em 10%. Mas ele distingue entre um salário de 350 000 dólares por ano. Impressionante,
«vencedores e perdedores» da digitalização. «A falta mas não excecional: um estudo da Infojobs afirma que,
de competências digitais numa proporção significativa no ano passado, as ofertas de emprego relacionadas
de trabalhadores aumenta a sua vulnerabilidade a uma com a IA aumentaram 31%: engenheiros, programa-
possível substituição dos seus empregos pela inteligên- dores, técnicos de visão por computador... E também
cia artificial. são necessários filólogos e advogados para a correta im-
plementação destas ferramentas. Veremos que outras
A CHAVE: FORMAÇÃO. «O que estamos a ver é uma obso- mudanças elas trarão: as profissões do futuro ainda não
lescência muito rápida das ferramentas que utilizamos: foram inventadas. e

SUPER 63
Z O O L O G I A

Vários estudos
demonstraram
que os animais
fazem o bem aos
membros da sua
própria espécie
não só por
interesse próprio
ou egoísmo, mas
SHUTTERSTOCK

também por
solidariedade e
empatia.

64 SUPER
A MORAL
DIFERENCIA-NOS
DE OUTROS
ANIMAIS?
Antes de mais, seria necessário definir o que é ser moral, mas, em todo o
caso, o que é claro é que os animais não agem apenas por instinto. Eles
têm regras e muitos participam em atividades sociais e demonstram
emoções, solidariedade e empatia. No entanto, ainda há muito por
desvendar sobre os seus aspetos cognitivos e o seu comportamento.

Texto de LAURA CAMÓN, bióloga, primatologista e divulgadora da ciência

SUPER 65
A
resolução desta questão ANIMAIS CONSCIENTES. Comecemos por aquela que pode-
leva-nos a investigar as ca- rá ser a qualidade mais básica e indispensável a todos
pacidades psicológicas dos os seres morais: a consciência. Ao longo da história,
animais e a refletir sobre a alguns pensadores consideraram os animais como me-
nossa própria natureza. ros autómatos incapazes de experiência subjetiva. Por
Uma das críticas morais mais exemplo, Descartes defendia que o comportamento
graves que podemos fazer a dos animais podia ser equiparado ao das máquinas.
alguém é dizer-lhe que não se Estas ideias ainda persistem na nossa sociedade, razão
preocupa com os outros. Em pela qual, em 2012, um grupo de cientistas decidiu re-
2014, na Califórnia, as câma- unir-se na Universidade de Cambridge para fazer uma
ras de segurança captaram um declaração ao público em geral: «Os seres humanos
acontecimento que deu a vol- não são os únicos a possuir os substratos neurológicos
ta ao mundo. Um menino de quatro anos estava na rua que geram a consciência. Os animais, incluindo mamí-
a brincar com uma bicicleta, perto da entrada de sua ca- feros, aves e muitas outras criaturas, partilham esses
sa, quando, de repente, um cão saiu de trás de um carro, substratos neurológicos».
agarrou-lhe a perna e começou a abaná-lo de forma agres- Sabemos que, tal como nós, muitos animais são ca-
siva. Em segundos, um gato apareceu e confrontou o cão pazes de sentir emoções como a dor, mas será que
energicamente, fazendo-o ir embora e deixar o menino conseguem identificar quando outros seres sentem dor?
em paz. E se sim, fazem alguma coisa para a evitar? Cenas como
Mais tarde, a família explicou que tinham adotado a descrita do gato e muitas outras indicam que sim. No
o gato há cinco anos, quando este os seguiu até casa, entanto, estas histórias são indícios que nem sempre
vindo do parque, e que tinha criado uma ligação muito permitem tirar conclusões, razão pela qual é necessário
forte com o seu filho desde que este nasceu. Poderíamos efetuar experiências em condições controladas.
então dizer que o gato salvou a criança porque se preo-
cupava com ela, o que faz dele um ser moral? EXPERIÊNCIAS COM RATOS: SERÁ QUE ELES TÊM EMPATIA? No
É claro que proezas como a deste gato levantam a final dos anos 50, um estudo mostrou que os ratos se
questão de saber se a moralidade é uma qualidade ex- recusam a carregar numa alavanca para obter comida
clusiva dos seres humanos ou se se estende também a se, como consequência, outro rato receber um choque
outros animais. Este é atualmente um debate contro- elétrico. Perante este resultado, as interpretações no
verso que se situa sobretudo no domínio da filosofia, mundo académico não foram unânimes. Alguns cien-
mas que se baseia em evidências resultantes do estudo tistas negaram que esta fosse uma prova de que os ratos
do comportamento animal. se preocupam com os outros ratos, pois é possível que,
Neste artigo, por conseguinte, irei apresentar algumas através do contágio emocional, sintam a dor de outros
das descobertas científicas que têm sido consideradas re- indivíduos e a evitem por puro egoísmo. Paradoxal-
levantes para o debate sobre a moralidade animal. Para mente, este mesmo argumento é também utilizado em
o fazer, apresentarei sobretudo as ideias e a abordagem debates que questionam a existência de ações altruístas
escolhidas por Susana Monsó e Kristin Andrews, especia- por parte dos humanos, o único animal cuja moralidade
listas em ética e filosofia da mente animal, num capítulo não é posta em causa.
do livro The Oxford Handbook of Moral Psychology. Numa outra experiência mais recente, em 2011, os

Os animais
SHUTTERSTOCK

partilham
connosco os
substratos
neurológicos
que geram a
consciência.

66 SUPER
Alguns autores defendem que animais como
os golfinhos, que se envolvem em atividades

SHUTTERSTOCK
sociais complexas, precisam do aglutinante
social proporcionado pela moral.

Os dois extremos do debate


N o extremo mais generoso do es-
petro estão autores como Marc
Bekoff e Jessica Pierce, que enten-
que a moralidade evoluiu apenas na
linhagem humana, uma vez que mui-
tos outros animais, como os lobos, os
mente parecido com a moralidade nos
animais e consideram que esta capa-
cidade representa uma rutura com o
dem a moralidade como o conjunto de golfinhos, os elefantes, os ratos e os nosso passado animal.
comportamentos relacionados com o corvos, também se envolvem em ati- Na sua opinião, a essência da mora-
bem-estar e o dano que regulam inte- vidades sociais complexas, como a lidade não reside no altruísmo ou na
rações complexas dentro dos grupos caça cooperativa, o cuidado das crias, procura do bem comum, mas na ca-
sociais. Para eles, existem várias ca- os cuidados ou as brincadeiras. Por pacidade de refletir sobre as nossas
pacidades psicológicas subjacentes conseguinte, precisam do «aglutinante próprias ações e motivações. Ou se-
à moralidade, que estão longe de ser social» proporcionado pela moral. ja, na capacidade de nos colocarmos
exclusivamente humanas, embora não No outro extremo do espetro, Christi- questões como: «Devo fazer isto? Para
neguem que existam diferenças. ne Korsgaard e Francisco Ayala negam eles, este é um ingrediente único na
Não vêem qualquer razão para pensar que se possa encontrar algo remota- psicologia dos seres humanos.

investigadores ofereceram a ratos a oportunidade de Post publicou um artigo intitulado»Um novo modelo
libertar um outro rato que estava fechado numa gaio- de empatia: o rato».
la. A maioria dos ratos optou por o fazer, mesmo que Mesmo assim, o debate no seio da academia não foi en-
isso implicasse partilhar a comida. Os autores do es- cerrado. Os ratos podem ter desenvolvido o instinto de
tudo interpretaram este facto como altruísmo, mas, ajudar um companheiro porque isso favorece a sua so-
mais uma vez, também pode ser dada uma explicação brevivência, mas não sentem necessariamente empatia
egoísta para este comportamento. Os ratos são animais nem se preocupam com o bem-estar do companheiro.
muito sociais que gostam de ter companhia, e pode ser Para esclarecer esta questão, foram iniciados estudos
que, para eles, isso seja mais importante do que acu- em ratos com amígdalas danificadas, uma parte do cé-
mular toda a comida. rebro envolvida no processamento das emoções. Uma
Para excluir esta possibilidade, os investigadores mo- experiência realizada em 2016 mostrou que estes ratos
dificaram as condições da experiência de modo a que perderam o interesse em ajudar os seus companheiros,
o rato fosse libertado num compartimento diferente, o que provaria que as emoções desempenham um papel
para que o rato ajudante não pudesse interagir com o crucial no comportamento altruísta destes animais.
rato libertado. Mesmo nestas circunstâncias, o rato Portanto, há evidências científicas de que existem ani-
optou por abrir a porta da gaiola onde se encontrava o mais que procuram ajudar os outros motivados por
seu companheiro. Os meios de comunicação social to- emoções e empatia. Isto não significa que não tenham
maram conhecimento desta descoberta e o Washington também outras motivações mais egoístas no seu com-

SUPER 67
O comportamento humano é
flexível e, graças ao seu
poder de autocontrolo, uma
criança pode agir de acordo
com a moral que lhe foi
ensinada e optar por partilhar
os seus doces

portamento mas, tal como os humanos, podem ser


empáticos sem serem santos.

O COMPORTAMENTO DEVE PODER SER FLEXÍVEL. Outra capaci-


dade que é frequentemente citada como necessária para
qualquer ser moral é a flexibilidade do comportamen-
to. Os seres humanos consideram-se morais porque,
numa dada situação, podem optar por fazer o bem ou
o mal. Por exemplo, uma criança pode optar por ficar
com todos os doces ou partilhá-los com a turma. Se esta
dualidade não existisse, se todas as crianças do mundo
partilhassem sempre os doces porque estavam geneti-
camente condicionadas a fazê-lo, poderíamos falar de
moralidade?
Uma das formas utilizadas para estudar a flexibilida-
de é através do autocontrolo. O primeiro impulso da
criança é comer todos os doces, mas contém-se, para
os partilhar com os outros porque aprendeu que essa
é a coisa certa a fazer. Graças à sua capacidade de au-
to-controlo, ela pode agir de acordo com a moral que presa o facto de outros animais terem a capacidade de
lhe foi ensinada. Entre os animais, os maiores sinais controlar os seus impulsos até certo ponto. Para um
de autocontrolo foram encontrados nos macacos, nos choco, que vive num ambiente complexo onde tem de
corvos e nas catatuas, mas há provas de que um gran- caçar sem passar despercebido aos predadores, ser ca-
de número de espécies possui esta qualidade em graus paz de controlar o seu apetite pode ser uma questão de
variáveis. vida ou de morte. A ideia de que os animais só agem por
Por exemplo, um estudo colocou quatro chimpan- instinto e que, por isso, não há maior complexidade no
zés e um orangotango numa situação complicada. Os seu comportamento é errada.
experimentadores colocaram 20 barras de chocolate à
sua frente, uma a uma, de modo a que demorassem até NORMATIVIDADE NO MUNDO ANIMAL. Finalmente, a maio-
180 segundos desde que começavam a pousá-las até ao ria das discussões sobre a moralidade animal levanta a
momento em que terminavam. Em qualquer altura, os questão: existem normas sociais nas diferentes comu-
macacos podiam comer as barras de chocolate, mas se o nidades animais?
fizessem, deixavam de acrescentar mais. Os cinco indi- Jane Goodall, depois de estudar o comportamento
víduos foram capazes de se conter e esperar até ao fim. dos chimpanzés durante vinte anos no Parque Nacional
Mas esta não é uma qualidade exclusiva dos nossos de Gombe, publicou um ensaio intitulado Ordem sem
parentes mais próximos. Até invertebrados como os lei. Concluiu que existe ordem nas sociedades de chim-
chocos demonstraram ter autocontrolo. Um grupo de panzés que é mantida por uma forte hierarquia entre
investigação da Universidade de Cambridge treinou os indivíduos, mas que os chimpanzés não estabelecem
chocos para aprenderem a distinguir entre dois tipos de leis no sentido em que os humanos o fazem.
caixas transparentes. Uma tinha um círculo na porta, Outros primatologistas de renome, como Frans de
abria-se imediatamente e continha um camarão mor- Waal, são igualmente cépticos quanto à existência de re-
to. A outra tinha um triângulo, demorava um minuto a gras que operam a nível de grupo nas sociedades animais.
abrir e continha um camarão vivo, mais apetecível para No entanto, talvez não devêssemos esperar encon-
os chocos. Aprenderam também que, depois de come- trar o auge da normatividade humana noutros animais,
rem um, não podiam apanhar o outro. tal como não procuramos poesia quando estudamos a
Os chocos foram capazes de esperar para apanhar o sua capacidade de linguagem. Os seres humanos tam-
camarão vivo, chegando mesmo a desenvolver estra- bém têm uma série de normas sociais menos exigentes
tégias como evitar olhar para o camarão morto para se do ponto de vista cognitivo, das quais nem sequer nos
controlarem melhor. Não deveria ser uma grande sur- apercebemos até viajarmos para o estrangeiro. Bons

68 SUPER
ISTOCK
Jane Goodall
publicou um ensaio
em que afirmava
que os chimpanzés
mantêm uma forte
hierarquia, mas não
estabelecem leis
como os humanos.

Os animais preocupam-se
com os outros?
P ara responder a esta questão, os etólogos estudaram três com-
portamentos diferentes: o luto, o conforto e a ajuda.
Os elefantes são particularmente conhecidos pelo seu compor-
tamento de luto. Quando um elefante morre, durante vários dias,
diferentes famílias visitam o cadáver, cheiram-no, tocam-no com as
suas trombas e agitam-no com as suas patas. É difícil explicar es-
te comportamento de um ponto de vista evolutivo, especialmente
devido ao risco de infeção, mas indica que os elefantes podem ter
empatia e interesse pela morte.
exemplos são a distância que mantemos numa conver- As histórias de cães que confortam os humanos são comuns e a in-
sa, a forma como nos cumprimentamos ou os nossos vestigação científica confirma que eles são capazes de identificar as
hábitos de higiene. Este tipo de normas sociais é mais emoções humanas e responder em conformidade. Por exemplo, um
provável de encontrar noutros animais. estudo comparou a reação dos cães a um humano que chorava e a
Só nos últimos anos é que o estudo das normas ani- um que estava simplesmente a cantarolar. Verificou-se que os cães
mais começou a ser seriamente abordado. Por esta passavam mais tempo a tocar e a lamber o que chorava.
razão, ainda não há muita investigação sobre o assunto, Os golfinhos são frequentemente retratados como heróis, arriscan-
especialmente quando comparado com outras capaci- do as suas vidas para salvar nadadores dos tubarões. Até à data, as
dades, como a aprendizagem social, a comunicação ou a provas científicas indicam que, no mínimo, ajudam outros golfinhos.
auto-consciência. A maioria das evidências e da investi- As mães foram observadas várias vezes a empurrar as suas crias
gação sobre o assunto foi feita com chimpanzés. para a superfície para as ajudar a respirar, o que não é assim tão sur-
O exemplo dos chimpanzés selvagens que se orga- preendente, mas, numa ocasião, este comportamento também foi
nizam para caçar macacos é bastante surpreendente. observado em golfinhos adultos.
Cada indivíduo tem um papel e divide o trabalho de
uma forma bastante coordenada. Alguns indivíduos
perseguem os macacos e conduzem-nos até ao local on-
de estão à espera outros indivíduos, que se encarregam
da emboscada. Depois, os despojos são distribuídos de
acordo com o contributo de cada participante na caça- ENTÃO, OS ANIMAIS SÃO MORAIS? Perante estas evidências,
da. Mesmo um macho de alto nível recebe menos carne haverá quem não duvide da «moral animal», enquan-
do que um indivíduo jovem se este tiver desempenhado to outros argumentarão que ela não é suficiente. A raiz
um papel mais ativo no processo. da discrepância reside no facto de a natureza da própria
Poder-se-á então dizer que os chimpanzés desenvol- moral permanecer pouco clara.
veram a norma social de como se deve partilhar a carne? Vale a pena colocar esta questão, porque ter em conta
Bem, como outros estudos com chimpanzés e macacos os animais alarga e enriquece a perspetiva do debate so-
em cativeiro demonstraram, eles recusam-se a par- bre a moral. Em todo o caso, talvez seja mais importante
ticipar em tarefas quando se apercebem de que outro desvendar os aspetos cognitivos de outras espécies do
indivíduo recebe uma recompensa melhor pelo mesmo que atribuir-lhes ou negar-lhes termos como «moral»,
trabalho, embora não reajam negativamente se forem para os quais nem sequer conseguimos chegar a acordo
eles a ganhar. sobre uma definição. e

SUPER 69
ENTREVISTA

Marta
SANTAMARIA
Capitals Coalition: redefinir
valores, aperfeiçoar decisões
70 SUPER
A Capitals Coalition é uma organização global que visa transformar a forma como empresas e
governos medem e valorizam suas interações com o meio ambiente e a sociedade. Trabalha no
sentido de criar um futuro sustentável, fornecendo uma estrutura para que essas empresas e
governos apreendam a dimensão do seu impacto no mundo e possam tomar decisões que apoiem
o bem-estar de longo prazo das pessoas e do planeta.

Entrevista de ELSA REGADAS

A
A Capitals Coalition consolida meios e recursos para que
as estruturas governamentais e empresariais possam in-
teragir e tomar decisões sustentáveis, minimizando o impacto
abordagem da Capitals dos seus negócios no capital natural. A organização foi criada
Coalition é baseada na no seguimento da iniciativa das Nações Unidas de 2008 The
ideia de que as organiza- Economics of Ecosystems and Biodiversity (TEEB). O seu pri-
ções interagem com base meiro grande resultado foi o Natural Capital Protocol em 2016,
em diferentes tipos de que visava ajudar as empresas a identificar, medir e valorizar
capital, entre os quais o os seus impactos e dependências do capital natural. Esse pro-
natural, o social e o hu- tocolo permitiu harmonizar as abordagens existentes numa
mano. Ao ter em conside- estrutura para ajudar as organizações a entender e incorporar
ração o valor de cada um os valores do capital natural na tomada de decisões.
desses tipos de capital, é Em 2017, foi formada a Social and Human Capital Coalition,
possível tomar melhores que produziu desde logo o seu próprio protocolo (2019), o
decisões e redefinir valo- qual refletia o trabalho em curso no espaço do capital natural.
res que gerem resultados sustentáveis para a socieda- Em 2020, a Natural Capital Coalition uniu forças com a Social
de e o meio ambiente, num mundo em que empresas and Human Capital Coalition, para se tornar a Capitals Coali-
e governos valorizem e protejam os sistemas naturais e tion, que agora impulsiona a tomada de decisões integradas
sociais, dos quais todos nós dependemos. Marta Santa- com um forte ethos de colaboração.
maria, senior director da Capitals Coalition, deu à Super
Interessante a sua perspetiva sobre a organização e res-
petivos projetos, planos e ambições.

A Capitals Coalition opera através de grupos de trabalho não é possível ignorar a crise climática e as sucessivas
em diferentes setores, para compartilhar conhecimento perdas na biodiversidade. Mas nem todas as organiza-
e melhores práticas em áreas específicas. Fale-nos um ções veem como fundamental a premissa de investir na
pouco disso. natureza e incorporar os seus valores nas decisões. Qual
A Capitals Coalition é atualmente composta por 400 pensa que será o principal motivo de tanta resistência à
organizações e envolve muitos milhares de outras. mudança por parte dos reais decisores?
Estes parceiros acreditam que só reunindo as muitas Sabemos que estamos a esgotar os recursos naturais mais
componentes diferentes do sistema como parte de rapidamente do que a Terra pode reabastecê-los e a um
uma colaboração e um diálogo orientado para um ob- ritmo acelerado. Fazemos crescer o capital financeiro
jetivo comum é que é possível afetar a mudança real. A em grande parte através do uso, exploração e degrada-
nossa força vem desta convicção e da diversidade que ção do capital natural, humano e social. O sucesso das
acarreta. A equipa da Capitals Coalition lidera a cola- organizações em todo o mundo depende do valor que re-
boração, garantindo que diferentes partes do sistema cebem dos capitais e, sem uma compreensão das nossas
estejam conectadas entre si e que as principais orga- relações com os capitais, não há argumentos comerciais
nizações e especialistas operem de forma colaborativa claros para a sua proteção e investimento na sua saúde
para alcançar a nossa ambição compartilhada. A nossa e resiliência. Para a maioria das empresas, as interações
equipa oferece conhecimento, conexão, inspiração, com a natureza ainda não afetam o seu valor de mercado,
suporte e influência. o preço dos seus produtos ou o preço que pagam pelos
materiais que utilizam, os seus fluxos de caixa ou perfil
Toda a atividade económica depende da natureza e já de risco. Se o fizerem, não são visualizados na demons-

«O colapso acelerado do mundo natural está a alimentar


riscos e incertezas extremos para as nossas economias e
para os nossos meios de subsistência, saúde e bem-estar»
SUPER 71
tração de resultados de uma empresa ou no seu balanço.
Até recentemente, na COP15 não havia regulamentação
«Os governos podem
global para que as empresas fossem obrigadas a avaliar e
divulgar os seus impactos nas dependências com a natu-
desbloquear ferramentas e
reza, portanto, muitas empresas não estavam a conside-
rar os riscos e oportunidades para seus negócios. Ao en-
soluções necessárias para
tender como estes impactam e dependem dos capitais, as
organizações podem tomar decisões holísticas que criam integrar o valor da natureza
valor para a natureza, as pessoas e a sociedade, junta-
mente com as empresas e a economia. em todas as políticas e
Relativamente à dificuldade em convencer os CEOs de tomadas de decisão por parte
algumas organizações para os benefícios de uma mu-
dança de atitude, que estratégias devem ser afinadas das empresas, das finanças e
para mudar as suas mentalidades? Os incentivos econó-
micos, a uma escala global, poderão ser a única forma do governo»
de avançar nestes casos ou há outras soluções?
Estas interações dos negócios com a natureza perma-
necem, na maioria dos casos, como «externalidades», Entre o setor público e privado, que tipo de organizações
ou questões sem consequências internas. No entanto, as têm evoluído mais no sentido da mudança de paradigma?
empresas devem compreender e gerir as consequências Há países e empresas que já estão a avançar para esta mu-
dos seus impactos e dependências da natureza, uma vez dança de paradigma. Há um apelo muito forte à ação por
que existem vários fatores potenciais que podem levar a parte da recém-publicada Dasgupta Review, encomen-
que tais externalidades sejam internalizadas no futuro, dada pelo governo do Reino Unido. A mensagem central
incluindo o aumento da ação regulamentar ou legal, as é: as nossas economias, meios de subsistência e bem-es-
forças de mercado e a mudança dos ambientes opera- tar dependem da natureza e o colapso acelerado do mun-
cionais, novas ações e relações com partes interessadas do natural está a alimentar riscos e incertezas extremos
externas, além de um esforço crescente para a transpa- para as nossas economias e para os nossos meios de sub-
rência ou ação voluntária por parte das empresas, por- sistência, saúde e bem-estar. O relatório apresenta um
que reconhecem a importância da transparência para o apelo direto à ação para que os decisores se empenhem
sucesso futuro. numa abordagem baseada nos capitais e recomenda que a
Há também movimentos para reduzir os subsídios pre- introdução de dados sobre o capital natural nos sistemas
judiciais ao meio ambiente que atualmente incentivam a contabilísticos nacionais seria um passo crítico para tor-
produção ou o consumo insustentáveis e prejudicam a nar a riqueza inclusiva, por oposição apenas ao PIB, uma
natureza. Na COP15, recentemente, quase 200 governos medida fundamental do progresso económico. Esta men-
em todo o mundo comprometeram-se a reduzir esses sagem é também partilhada pelas principais instituições
subsídios em US$ 500 milhões por ano até 2030. empresariais e financeiras, como o UBS Group AG (exem-
plo do UBS white paper: The Rise of the Impact Economy)
Como mencionado acima, a recente campanha «Make
it Mandatory» galvanizou mais de 400 empresas a pe-
dir aos governos que adotassem metas ambiciosas na

N a senda de um futuro mais sustentável e equitativo, com base


numa abordagem holística na tomada de decisões, a Capitals
Coalition apoia e envolve-se em diversas iniciativas com uma va-
COP15 que aumentassem a regulamentação sobre negó-
cios e finanças. Este apelo representou uma mudança de
mentalidade que viu as empresas entenderem que seus
riedade de parceiros. Um desses exemplos é o «Global Goal for negócios dependem da natureza e que contribuir para
Nature: Nature Positive by 2030». Em 2021, 21 organizações lí- combater a perda da natureza pode trazer boas opor-
deres juntaram-se para explorar a criação de uma meta global para tunidades, por exemplo, oportunidades de negócios
a natureza, semelhante à meta de 1,5 graus no acordo de Paris. O anuais no valor de US$ 10 biliões que poderiam criar 395
objetivo compromete o mundo a tomar medidas agora, para deter milhões de empregos até 2030 (de acordo com o WEF –
e reverter a perda e a degradação da natureza e garantir que, até World Economic Forum).
2030, tenhamos mais natureza no mundo do que em 2020.
Outro exemplo de êxito é a campanha «Make it Mandatory» A padronização de procedimentos, com base numa
(tornar obrigatório). «Fizemos uma parceria com a «Business for abordagem global standardizada, tem também sido uma
Nature» e a CDP para reunir mais de 400 empresas e pedir aos das principais preocupações da Capitals Coalision. Como
governos que adotem requisitos obrigatórios, para que empresas é possível estabelecer essa padronização na prática?
e instituições financeiras avaliem e divulguem os seus impactos Há uma demanda crescente por padronização na forma
e dependências da natureza na COP15. A campanha foi muito como definimos, medimos e valorizamos nossos im-
bem-sucedida, tendo levado as partes da Convention on Biologi- pactos e dependências. Para os recém-chegados à con-
cal Diversity (Convenção sobre a Diversidade Biológica) a confluir tabilidade de valor e aos capitais, a padronização traz
no âmbito da meta 15 do Quadro Global para a Biodiversidade» confiança e segurança a um tópico incrivelmente com-
— refere Marta Santamaria. Consequentemente, as empresas e as plexo. Para os profissionais maduros, a padronização dá
instituições financeiras serão obrigadas pelos governos a avaliar uma oportunidade de avaliar e ficar à frente da curva.
e divulgar os seus impactos e dependências em relação à nature- Para reguladores e investidores, a padronização traz
za até 2030. consistência nas informações, o que permite a compa-
rabilidade e uma tomada de decisão mais fácil.

72 SUPER
O s casos da Kering e da Olam são apenas dois exemplos
entre os muitos casos de estudo interessantes que podem
ser consultados no site https://capitalscoalition.Org. A Kering
Para atender a essa necessidade, a padronização tem
desenvolveu uma metodologia de lucro e perda ambiental para
estado fortemente presente no nosso plano de traba-
conseguir medir, monetizar e gerenciar seus impactos ambientais
lho desde 2020, e inclui o nosso trabalho em projetos
em todas as suas operações e cadeia de suprimentos. A organi-
como o «Transparent» e o «Align», focados no capital
zação revelou que 93% dos seus impactos estão na cadeia de
natural e o «Accounting for a Living Wage», focado no
abastecimento – com 7% dos impactos das suas próprias opera-
capital humano.
ções. Assim, a Kering mudou o foco para encontrar soluções de
mitigação destes aspetos em toda a sua cadeia de suprimentos e
O futuro das novas gerações depende da forma como
passou a realizar uma avaliação numa base anual. Os resultados
conseguirmos promover a recuperação verde. Que pos-
são utilizados como uma ferramenta de apoio à decisão no dia-a-
tura deve ser assumida por parte do poder político, a
-dia e estão totalmente integrados no negócio.
um nível global, perante aqueles que continuam a colo-
Por sua vez, a Olam pretendia usar uma abordagem de capital
car obstáculos a este objetivo?
natural para contabilizar o capital natural em tudo o que faz. Dese-
Os governos têm um papel significativo na criação de
java ainda continuar a expandir os seus negócios de uma forma
um ambiente propício a uma abordagem baseada nos
sustentável juntamente com os seus clientes e partes interessadas.
capitais e na salvaguarda da natureza. Para criar esse am-
Ao longo de três anos, a produtividade da Olam aumentou 15%,
biente, os governos possuem cinco alavancas: incorporar
tendo sido poupados 62 mil milhões de litros de água.
o valor da natureza nas decisões públicas; adoção de me-
tas; integrar as políticas; reformar os incentivos; e ação
capacitante. Ao adotar e promover uma abordagem ba-
seada no capital natural, os governos podem desbloquear
ferramentas e soluções necessárias para integrar o valor
da natureza em todas as políticas e tomadas de decisão Trabalhando em colaboração com milhares de par-
por parte das empresas, das finanças e do governo. ceiros globais, podemos acelerar o ímpeto, alavancar
o sucesso, como a recente adoção do Quadro Global
Qual é a vossa maior ambição/objetivo para a década de de Biodiversidade, conectar comunidades engajadas e
2030 e que desafios e obstáculos será necessário superar identificar áreas e parcerias onde podemos impulsionar
para o concretizar? mudanças transformadoras.
A visão da Capitals Coalition é que, até 2030, a maio- Precisamos que todo o sistema se mova em conjunto e
ria das empresas e instituições financeiras incluirá temos de ultrapassar o obstáculo de a natureza, as pes-
o valor de todos os capitais (naturais, sociais, hu- soas, a sociedade e a economia não serem reconhecidas
manos e produzidos) nas suas tomadas de decisão e como um sistema global profundamente interligado.
que isso proporcionará um mundo mais justo, justo Devem ser abordados em conjunto para gerar valor em
e sustentável. todos os capitais e afetar a mudança dos sistemas. e

SUPER 73
HO
B I O L O G I A

LO
BION
TES
A LIGAÇÃO INVISÍVEL
É impossível pensar no ser humano como um indivíduo independente da natureza
que o rodeia. Quando lemos esta frase, provavelmente vem-nos à cabeça a relação
que temos com outros seres vivos, como as plantas, os animais ou mesmo os
microrganismos. Mas vamos um pouco mais longe. Pensem num ser humano
individual, tomem-no só, conseguem imaginar isso? Bem, é impossível, porque
cada ser humano é, na realidade, um verdadeiro ecossistema. E como é que isso é
possível? Porque o ser humano é um holobionte.

Texto de EUGENIO M. FERNÁNDEZ AGUILAR, químico

74 SUPER
Um holobionte é uma

SHUTTERSTOCK
comunidade complexa
que pode ser compara-
da a um ecossistema,
unidades evolutivas que
se adaptam e evoluem
em conjunto.

SUPER 75
O conceito de holobionte
refere-se a um organismo
complexo composto pelo
hospedeiro e pelo seu

GETTY
microbiota associado.

A
vida é uma competição cons- é ridícula, pois a simbiose é muito anterior ao mundo
tante. A vida é também uma humano e à invenção da moeda. Margulis conta-nos no
colaboração constante, não artigo que, em 1879, o biólogo alemão Heinrich Anton
apenas entre indivíduos da de Bary falou de «organismos diferentes que vivem
mesma espécie, mas também juntos» ao definir simbiose. Mas rapidamente este
entre indivíduos de espécies «dissemelhante» passou a ser «espécies diferentes», e
diferentes. Não estamos a fa- este é o cerne da questão.
lar de uma simples simbiose. A própria Margulis é a primeira a usar o termo «ho-
Numa simbiose, dois indiví- lobionte», no artigo acima mencionado. Fá-lo numa
duos de espécies diferentes figura, para fazer uma analogia entre a sexualidade
associam-se para se benefi- meiótica e a simbiose cíclica. Aqui chega mesmo ao
ciarem mutuamente. O termo ponto de chamar «indivíduo» à associação entre as di-
simbiose foi cunhado pelo biólogo alemão Albert Ber- ferentes partes de uma simbiose. É quase aquilo a que
nhard Frank (1839-1900) para se referir aos líquenes hoje chamaríamos um holobionte. E dizemos «quase»
que estudava. Apesar do tempo decorrido, não existe porque, na realidade, um holobionte não é o resultado
uma definição exata de simbiose partilhada por todos de uma associação qualquer, mas de uma associação
os cientistas. Um facto para o qual a carismática bióloga muito específica: o conceito de holobionte refere-se a
americana Lynn Margulis (1938-2011) já tinha de cer- um organismo complexo que é composto pelo hospedei-
ta forma alertado no seu artigo Words as Battle Cries: ro e pela sua microbiota associada, que inclui bactérias,
Symbiogenesis and the New Field of Endocytobiolo- fungos, vírus e outros microrganismos.
gy: «Os manuais de biologia definem a simbiose de
forma antropocêntrica, como relações de ajuda mútua UMA OUTRA FORMA DE COMPREENDER O MUNDO. Como já
ou de benefício para os animais, implicando um con- vimos, todas as plantas e animais são considerados
trato social ou uma análise custo-benefício por parte holobiontes. Um holobionte é uma comunidade bióti-
dos parceiros». E continua, dizendo que essa definição ca que se assemelha a um ecossistema. Não podemos

76 SUPER
Num holobionte, a evolução não se limita ao genoma
do hospedeiro, mas afeta-o na sua totalidade. O seu
microbiota pode influenciar a evolução do hospedeiro

ignorar este facto, ou seja, um estudo dos holobiontes Penetração


através do prisma de todas as suas partes será sem-
pre mais completo do que um estudo do hospedeiro
de forma independente. Daí a teoria hologenómica Multiplicação e
Adesão diferenciação
da evolução, na qual os holobiontes são considerados
como unidades evolutivas que se adaptam e evoluem
Infeção dos corais
em conjunto em resposta à pressão seletiva do am- Coral com por alimentação
biente. A teoria hologenómica propõe que o genoma zooxantelas de vermes
do hospedeiro e os genomas dos microrganismos que
Consumo de V. shiloe por
habitam o holobionte formam um sistema genético Quimiotaxia alimentação de vermes
interligado que influencia a evolução do holobionte.
Por outras palavras, a evolução não se limita ao ge- V. shiloi
Produção de
noma do hospedeiro, mas envolve todo o holobionte. Aumento da P-toxina por V. shiloe
O mais impressionante desta teoria é que nos permi- temperatura
Verme do fogo (reservatório de
te ver a evolução de um outro ponto de vista, é uma inverno e vetor de verão)
outra forma de compreender o mundo: o microbiota
do holobionte pode influenciar a evolução do hospe-
ROSENBERG-KENION COLLEGE

deiro, fornecendo-lhe novos traços e funções, e que as


alterações do microbiota podem ter um impacto im- Queda de Perda de
temperatura zooxantelas
portante na evolução do holobionte. (branqueamento
Por conseguinte, já não se fala de um genoma do Recuperação de dos corais)
zooxantelas
hospedeiro, mas de um hologenoma do holobionte. O Perda de bactérias
hologenoma é o conjunto total de genes que constituem Perda de V. shiloe superóxido dismutase
o genoma do hospedeiro e o microbiota que o acompa-
nha. Este termo, hologenoma, foi proposto pelo biólogo Infeção do coral Oculina patagonica por Vibrio shiloi. A temperatu-
molecular Richard Jefferson em 1994, durante uma ras elevadas no verão, o V. shiloi é quimicamente atraído pelo muco do
conferência sobre agricultura e ambiente. coral (a), fixa-se ao coral através de um recetor contendo B-galactosídeo
Para analisar o genoma de uma planta, as folhas são (b) e penetra na camada epidérmica do coral (c). Depois de se multipli-
liquefeitas para análise. Jefferson notou uma conta- carem intracelularmente, a densidade bacteriana atinge 109 células por
minação constante de microrganismos que alterava a cm3 e as bactérias diferenciam-se para um estado viável mas não culti-
identificação do genoma, até que admitiu que não se vável (d). Nesta fase, o agente patogénico emite a Toxina P que inibe a
tratava de um erro de medição, mas que a presença de fotossíntese das algas intracelulares, levando à perda de algas e de pig-
microrganismos devia ser entendida como uma neces- mento (branqueamento) (e). No inverno, quando a temperatura desce
sidade para a sobrevivência das plantas. Abre-se assim (f), o V. shiloi deixa de produzir superóxido dismutase e morre devido aos
um novo paradigma na compreensão e no estudo das radicais de oxigénio produzidos pelo coral. Os corais recuperam então
plantas e dos animais, em que os seus genomas, junta- as suas algas e a sua pigmentação. Também a temperaturas mais baixas,
mente com o seu microbiota, devem ser tomados como o V. shiloi não produz a Toxina P ou a adesina necessária para se fixar ao
um todo, como uma entidade dinâmica única, e não coral. Durante o verão, ao alimentarem-se dos corais, os vermes do fogo
como existências independentes e estanques. A teoria são colonizados pelo V. shiloi e tornam-se um reservatório invernal do
da evolução do hologenoma tomou forma sob quatro agente patogénico (g). Durante a primavera e o verão, os vermes do fogo
postulados em 2008, com a publicação do artigo Ro- podem também funcionar como vetores de reinfeção dos corais (h).
le of microorganisms in the evolution of animals and
plants: the hologenome theory of evolution. O artigo
foi assinado pela bióloga israelita Ilana Zilber-Rosen-
berg e pelo israelita Eugene Rosenberg. Foi a partir
dessa altura que o conceito de holobionte se tornou evolução tem sido confirmada, mas também tem havi-
realmente popular. do vozes contra ela.
Esse artigo baseou-se no branqueamento de corais
observado em 1996. Tratava-se de um branqueamen- O SER HUMANO HOLOBIONTE. Já não podemos pensar em
to do coral Oculina patagonica devido à infeção pela nós como indivíduos, nem como um simples hospedei-
bactéria Vibrio shiloi, que provoca a morte do seu sim- ro rodeado de organismos microscópicos. Somos todos
bionte zooxanthellae. Explicaram que a seleção não se holobiontes. O holobionte humano é composto pelo
deve a uma adaptação do coral, produzindo uma re- hospedeiro humano e por uma variedade de microrga-
sistência contra a infeção, mas que é o holobionte que nismos simbióticos, incluindo bactérias, vírus, fungos e
evolui para resistir ao ataque. A partir daqui, os dois outros micróbios que vivem em várias partes do corpo.
autores do artigo alargaram o conceito de evolução con- Alguns dos simbiontes mais comuns que compõem o
junta a qualquer holobionte. A teoria hologenómica da holobionte humano incluem os seguintes:

SUPER 77
FIGURA 1: Genes do hospedeiro e
do simbionte que, isoladamente
e/ou em conjunto, afetam o
fenótipo do holobionte.

FIGURA 2: Hospedeiro coevoluído


que afeta o fenótipo do holobionte

FIGURA 3: Genes do hospedeiro e


do simbionte que não afetam
o fenótipo do holobionte

FIGURA 4: Micróbios ambientais


que não fazem parte do holobionte
ASC

-Bactérias intestinais: o trato intestinal humano al- dam a manter o seu pH ácido e a protegê-la de infeções.
berga um grande número de bactérias simbióticas que Alguns dos micróbios mais comuns na vagina são dos
ajudam a digerir os alimentos, sintetizam nutrientes géneros Lactobacillus, Gardnerella e Streptococcus.
e vitaminas e protegem o hospedeiro de microrganis- As espécies específicas incluem Lactobacillus crispatus
mos nocivos. Algumas das bactérias mais comuns no (impede o crescimento de microrganismos patogé-
intestino humano pertencem aos filos Bacteroidetes, nicos), Gardnerella vaginalis (pode produzir aminas
Firmicutes e Actinobacteria. As espécies específicas biogénicas, como a trimetilamina, que pode causar um
incluem Bacteroides fragilis (produz uma variedade odor desagradável na vagina) e Streptococcus agalac-
de enzimas e pode desempenhar um papel anti-infla- tiae (presente em aproximadamente 20% das mulheres
matório), Faecalibacterium prausnitzii (produz ácidos e pode causar infeções no recém-nascido).
gordos) e Bifidobacterium longum (pode melhorar a -Micróbios da cavidade oral: A boca humana é povoada
função imunitária do hospedeiro). por um grande número de microrganismos simbióti-
-Micróbios da pele: a pele humana é povoada por uma cos que ajudam a manter a saúde dentária e a proteger
grande variedade de microrganismos simbióticos que contra infeções. Alguns dos micróbios mais comuns
ajudam a proteger a pele dos agentes patogénicos e a na boca são dos géneros Streptococcus, Veillonella,
manter o seu equilíbrio. Alguns dos micróbios mais Fusobacterium e Porphyromonas. Alguns exemplos
comuns na pele são dos géneros Staphylococcus, Strep- incluem o Streptococcus mutans (pode corroer o es-
tococcus, Propionibacterium e Corynebacterium.As malte dos dentes e causar cáries), a Veillonella parvula
espécies específicas incluem Staphylococcus epider- (encontrada na placa dentária e na língua, pode por
midis (produz substâncias antimicrobianas que podem vezes causar infeções noutras partes do corpo), o Fu-
ajudar a prevenir a infeção por outros microrganismos, sobacterium nucleatum (oportunista que pode causar
mas pode ser oportunista), Propionibacterium acnes periodontite ou cáries) e a Porphyromonas gingivalis
(tem propriedades probióticas e pode ajudar a manter (pode causar gengivite e é responsável por alguns casos
o equilíbrio da microbiota da pele) e Corynebacterium de halitose).
striatum (embora tenha propriedades benéficas, é por Talvez uma melhor compreensão do holobionte
vezes oportunista). humano nos permita, no futuro, utilizar o nosso holo-
-Micróbios vaginais: A vagina humana alberga uma genoma para todo o tipo de aplicações na medicina para
comunidade de microrganismos simbióticos que aju- curar doenças .e

Os microrganismos da vagina humana ajudam a


manter o seu pH ácido e protegem-na de infeções,
tal como os da pele, que mantêm o seu equilíbrio
e a defendem dos agentes patogénicos
78 SUPER
CURIOSIDADE MATRIZES E MATRAZES

ELIZABETH FULHAME,
A QUÍMICA MISTERIOSA
Elizabeth
Fulhame
previu que
o oxigénio

ASC
desempenhava
um papel na
IGNORADA PELA SOCIEDADE E PELA CIÊNCIA DO combustão.
SEU TEMPO POR SER MULHER, AS SUAS TEORIAS E
INVESTIGAÇÕES FORAM PRESCIENTES EM MUITOS
DOMÍNIOS E ESTAVAM À FRENTE DO SEU TEMPO.
lizabeth Fulhame foi uma quí- tudou a redução experimental de sais me-

E mica britânica que viveu no fi-


nal do século XVIII e início do
século XIX. Nada se sabe sobre
tálicos em vários estados (solução aquosa,
estado seco e, por vezes, solução de éter
ou álcool), expondo-os à ação de vários
as suas datas de nascimento e morte, nem agentes redutores. Entre os sais metáli- vém na reação, mas é restaurada no final
sobre o local. Publicou apenas um texto, cos que experimentou contam-se o ouro, do processo, o que constitui a base dos
que teve uma certa transcendência quando a prata, a platina, o mercúrio, o cobre e o catalisadores.
foi difundido e depois caiu no esquecimen- estanho. Como agentes redutores, utilizou
to, juntamente com a sua figura. Uma obra o hidrogénio, o gás, o fósforo, o sulfureto O TÍTULO DO LIVRO É UM BOM RESUMO DO CON-
moderna e à frente do seu tempo, na qual de potássio, o sulfureto de hidrogénio, a TEÚDO CONCETUAL e até filosófico. A ênfa-
se opõe mesmo a algumas das ideias de fosfina, o carbono e a luz. A este respeito, se aqui é colocada na teoria do flogisto.
Priestley e Lavoisier. podemos ler o seguinte (Fulhame era o seu Trata-se de uma antiga teoria química que
Em 1794, Elizabeth Fulhame publicou nome de casada, o seu marido é o Dr. Fu- defendia que todos os materiais combus-
An Essay On Combustion with a View to a lhame a quem ela se refere nesta citação): tíveis continham uma substância chama-
New Art of Dying and Painting, wherein the «A possibilidade de fazer tecidos de ou- da «flogisto», que era libertada durante
Phlogistic and Antiphlogistic Hypotheses are ro, prata e outros metais, por processos a combustão. De acordo com esta teoria,
Proved Erroneous. A tradução inglesa seria químicos, ocorreu-me no ano de 1780: o que hoje sabemos estar errada, o flogisto
algo como Um Ensaio sobre a Combustão projeto, mencionado ao Dr. Fulhame e a al- era uma substância ativa que conferia aos
com vista a uma Nova Arte de Morrer e Pin- guns amigos, foi considerado improvável. materiais combustíveis a sua capacidade
tar, em que as Hipóteses Flogística e Anti- No entanto, passado algum tempo, tive a de arder, sendo também responsável pela
flogística são Provadas Erradas. Este livro satisfação de concretizar a ideia, em certa oxidação e corrosão. Em contrapartida, o
continha mais de 120 experiências muito medida, através de experiências». «antiflogisto» foi uma alternativa à teoria
pormenorizadas, classificadas de acordo Mas ela foi muito além do tingimento do flogisto. Ambos os pontos de vista aca-
com critérios científicos. Incluía experiên- de tecidos com metais. Pode ser conside- baram por ser ultrapassados pela teoria do
cias bem e mal sucedidas, o que a torna rada como a descobridora da fotorredução oxigénio no século XIX, quando se desco-
uma publicação muito próxima dos traba- ou, pelo menos, uma das primeiras pes- briu que a combustão e a oxidação envol-
lhos modernos. Em 1798 foi traduzido pa- soas a investigar este fenómeno, que foi vem, na realidade, o ganho de oxigénio e
ra alemão e apareceu numa recensão nos fundamental para o desenvolvimento da não a perda de flogisto. Mas Elizabeth Fu-
Annales de Chimie. O último vestígio que fotografia. De facto, o químico austríaco lhame antecipou tudo isto ao afirmar que
temos da autora data de 1810, altura em e pioneiro da fotografia Josef Maria Eder o oxigénio desempenhava algum papel nas
que publicou uma nova edição da sua obra. referiu-se ao seu trabalho como um marco combustões.
Referências mais recentes ao seu trabalho no nascimento e no início da história da Mais uma vez, a história foi injusta para
podem ser encontradas no Journal of Physi- fotografia. Embora o seu trabalho com sais com o trabalho de uma mulher. O editor
cal Chemistry em 1903 e no Bulletin for the de prata sensíveis à luz em tecido seja an- americano da edição de 1810 queixou-se
History of Chemistry em 1989. terior à história da fotografia, nunca tentou de que o seu trabalho era menos conhecido
imprimir imagens. do que deveria ser, acrescentando que «o
COM AS SUAS EXPERIÊNCIAS, CONTRIBUIU PA- Há mesmo quem lhe atribua a invenção orgulho da ciência estava indignado com
RA A QUÍMICA DE UMA FORMA NOTÁVEL. O da catálise, uma ideia longamente discuti- a ideia de ser ensinado por uma mulher».
que realmente a motivou a fazê-las foi a da no seu livro, e que antecipou Berzelius Nota: este artigo foi escrito na sequência
ideia de tingir fios com metais, especial- e Buchner. Buchner descobriu que muitas de uma palestra de Ginesa Blanco, química
mente ouro e prata. reações de oxidação ocorrem apenas na e professora na UCA, no Dia das Mulheres e
E conseguiu-o. Para presença de água e que a água não inter- Raparigas na Ciência. e
o efeito, conseguiu
a redução de metais
à temperatura am- OS SEUS ESTUDOS SOBRE FOTORREDUÇÃO
biente, técnica que
utilizou para tingir FORAM FUNDAMENTAIS PARA O
os fios com esses
POR EUGENIO MANUEL
FERNÁNDEZ AGUILAR,
Físico
metais. Fulhame es- DESENVOLVIMENTO DA FOTOGRAFIA

SUPER 79
CURIOSIDADE TECNOCULTURA

Nas últimas
décadas, as
interferências
entre aquilo a
que chamamos
realidade e
aquilo a que
chamamos ficção
agudizaram-se
até limites
insuspeitados.
SHUTTERSTOCK

A EXTINÇÃO DA REALIDADE?
NUMA CIVILIZAÇÃO ALTAMENTE AVANÇADA, A REALIDADE ESTÁ SATURADA DE FICÇÕES QUE
COM ELA SE CONFUNDEM. SERÁ QUE, TAL COMO NOS QUADROS DE VERMEER, VEMOS AGORA
O MUNDO ATRAVÉS DE UMA CÂMARA ESCURA? SABEREMOS DISTINGUIR OS DOIS MUNDOS?

algumas semanas, o escritor artigo, o jornalista do El País relata uma das mãos de artistas tão conhecidos (e

Á Enrique Vila-Matas contou-me


que, uma instituição cultural
lhe tinha proposto ser en-
conversa com a IA que se situa entre o
surreal e o teatro do absurdo, na qual
Sydney, o nome escolhido para este robot
estudados) como Picasso, Miró e Dalí.
Pintores reconvertidos, através de técni-
cas de edição digital, em fotógrafos. As
trevistado por um bot, uma inteligência conversador, discute com Pérez Colomé e fotografias de Fontcuberta conseguiram
artificial capaz de penetrar no coração da tenta convencê-lo de que Pedro Sánchez, enganar instituições, museus e os media.
criação literária e, portanto, da ficção. o primeiro-ministro de Espanha, tem bar- Fontcuberta, levando o fake ao extremo,
Algum tempo depois, talvez após alguns ba. Sydney não só se recusa a aceitar o foi mais longe ao inventar o que podería-
testes, os organizadores do evento deci- facto indiscutível de que o nosso chefe mos chamar de «metafake». Consiste em
diram dar um passo atrás e substituir a de governo não tem barba, como insiste afirmar que a fotógrafa Vivian Maier (uma
inteligência artificial por uma inteligência em afirmar que tem, e até mostra uma ama que tirou milhares de fotografias en-
humana. Associei esta anedota ao artigo fotografia de Pedro Sánchez com barba. quanto passeava as crianças das famílias
publicado no El País por Jordi Pérez Co- Sydney é incapaz de distinguir entre uma para quem trabalhava, a maior parte delas
lomé sobre o motor de busca Bing da Mi- montagem fotográfica de Forocoches e não reveladas, e que só foi reconhecida
crosoft. Como alguns de vós devem saber, uma fotografia real. A falta de contex- depois da sua morte) não é senão outra
a Microsoft é o maior to torna inviável para uma inteligência das suas invenções. Se há coisa que não
investidor da OpenAI, artificial (para Sidney ou para qualquer falta a Fontcuberta é audácia.
a empresa responsá- outro) distinguir entre realidade e ficção.
vel pelo desenvolvi- Durante décadas, um dos nossos fotógra- A RELAÇÃO ENTRE A REALIDADE E A FICÇÃO
mento do ChatGPT. A fos mais conspícuos, Joan Fontcuberta, SEMPRE FOI COMPLEXA. A fronteira entre
Microsoft incorporou tem trabalhado no terreno ténue entre elas é, em muitos casos, indefinida. No
os algoritmos do Cha- os dois, entre a realidade e a ficção. entanto, penso que todos concordamos
POR JAVIER
tGPT no seu motor de Fontcuberta fez passar muitas das suas que, nas últimas décadas, as interferên-
MORENO busca Bing. No seu fotomontagens por obras reais nascidas cias entre aquilo a que chamamos rea-
Matemático e escritor

80 SUPER
ficções a que chamamos arte. Primeiro,
o cinema. Mais tarde, com a criação das
técnicas de edição digital, a fotografia.
Poderíamos aventurar-nos a enunciar
uma lei segundo a qual quanto maior for
o progresso na exploração do mundo, ou
seja, quanto maior for o nosso desenvol-
vimento tecnológico, mais seremos de-
safiados pelas ficções que essas mesmas
ferramentas tecnológicas são capazes de
desenvolver.
A descoberta ou quebra do real coincide
e sobrepõe-se à acumulação de ficções,
pelo que, paradoxalmente, uma civili-
zação (como é o caso da nossa) muito
avançada em termos tecnológicos, está
povoada e saturada de ficções que se
confundem com o real. Neste sentido, a
inteligência artificial é um avanço neste
processo. O gradiente do progresso tec-
nológico sobrepõe-se ao da ficção num
sentido bem definido, na sua capacidade
de suplantar o que entendemos por rea-
lidade. É como se a humanidade no seu
conjunto caminhasse progressivamente
para a indistinção das duas categorias,
com tudo o que isso implica de inquie-
tante e fascinante.

E, NO ENTANTO, HÁ AINDA UM SUBSTRATO


lidade e aquilo a que chamamos ficção fez uma câmara escura que lhe permitiu INSUBSTITUÍVEL, aquele que constitui
se acentuaram até limites insuspeitados. mergulhar no mistério da cor. Vermeer a materialidade do que continuamos a
A imprensa, a rádio e a televisão eram retratou nos seus quadros o círculo de chamar real. A verdade é uma constru-
meios de produção de ficções/narrativas confusão ou disco de Airy, manchas que ção discursiva que admite o contraste
que serviam o poder e a sua infiltração resultam da difração da luz ao passar com a facticidade dos objetos. A menos
no músculo e no cérebro dos cidadãos. por uma fenda (a da sua câmara escura). que, como defendem certas tendências
As novas tecnologias ligadas à Internet Vermeer não pintava, portanto, a partir de evasão técno-utópica, prescindamos
aceleraram e democratizaram este pro- da vida, mas copiava uma imagem ob- dessa materialidade para nos isolarmos
cesso. Qualquer pessoa pode oferecer a tida através de um dispositivo artificial na pura virtualidade. Podemos descer e
sua verdade ou a sua versão dos factos. (câmara escura). Esta realidade refratada subir do universo lógico das interpreta-
São muitos os casos em que essa versão é provavelmente uma das razões pelas ções à materialidade dos factos através
é recompensada por um sucesso estron- quais Vermeer é tão fascinante para nós. de uma série de passos intermédios para
doso, independentemente da veracidade Não vemos nos seus quadros o que um tentar desmascarar o engano ou o erro.
da informação fornecida. Podemos dizer olho veria, mas a realidade distorcida Esta cadeia que liga as leituras e as in-
que passámos de um sistema unidire- pela câmara escura. terpretações é o que legitima o facto de
cional de manipulação para um sistema podermos ainda reivindicar aquilo a que
multidirecional, portanto mais complexo CADA FERRAMENTA TECNOLÓGICA DESBRAVA chamamos verdade. Para isso, é essen-
e ingovernável. A verdade (a realida- UMA PARTE DO MUNDO E PERMITE-NOS PERS- cial ter acesso à materialidade através
de) está enterrada sob uma acumulação CRUTAR O DESCONHECIDO. O que é que a dos sentidos, mas também através da
avassaladora de ficções. Devemos, então, fotografia descobre? O que descobre o ciência. A verdade, como insiste Bru-
considerar a verdade perdida e conside- cinema? O que revelam as inteligências no Latour, é um caminho ascendente e
rá-la apenas como uma média aritmética artificiais? Poderíamos arriscar uma res- descendente em direção à realidade, um
das suas interpretações ou uma impres- posta no caso da fotografia e do cine- processo sem fim que pode ser prolonga-
são impressionista dessas pinceladas que ma. Em princípio, parece que ambos os do através de uma cadeia interminável
são os tweets ou os vídeos do YouTube, modos de registo da imagem permitem de passos. É preciso ter cuidado para
ou podemos ainda acudir a este corpo fixar aquilo a que chamamos realidade, que essa cadeia (a que liga a materia-
moribundo mas ainda vivo? convertê-la num objeto (fotografia, fil- lidade do real às suas interpretações,
No século XVII, o comerciante de Delft me) duradouro e reproduzível ad infi- os signos aos seus referentes) não se
Anton van Leeuwenhoek inventou um nitum. No entanto, estes instrumentos quebre porque, nesse caso, sim, a ficção
microscópio com o qual conseguiu ver que testemunham a realidade (câmaras teria vencido definitivamente a batalha
pela primeira vez os glóbulos vermelhos fotográficas e de vídeo), tal como a câ- e então, como aconteceu com Sidney,
e os espermatozóides, enquanto o seu mara escura de Vermeer, tornam-se ra- poderiam convencer-nos de que Pedro
contemporâneo e quase vizinho Vermeer pidamente ferramentas para elaborar as Sánchez tem barba. Ou algo pior. e

SUPER 81
CURIOSIDADE CHAVES DO CLIMA

O QUE CHAMAMOS ÀS
DEPENDENDO DAS DÉCADAS OU
DA SITUAÇÃO POLÍTICA, FORAM
UTILIZADAS EXPRESSÕES DIFERENTES,

ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS? SUGERINDO UM MAIOR OU MENOR


GRAU DE CULPABILIDADE HUMANA.

A expressão
«emergência climática»
tornou-se popular e
muitos meios de
comunicação social
integraram-na nos seus
manuais de estilo.
SHUTTERSTOCK

m agosto de 1975, o geofísi- nientes da queima de combustíveis fósseis, alertavam para as consequências de conti-

E co americano Wallace Smith


Broecker (1931-2019) intro-
duziu na circulação o termo
provocar o aumento da temperatura global.
Curiosamente, esses anos foram particular-
mente frios, levando outros especialistas
nuar a queimar carvão e petróleo. Há pou-
co tempo, veio a lume o relatório interno
da companhia petrolífera Exxon, guardado
«aquecimento global». Um artigo por a especular que poderia ser o prelúdio de numa gaveta durante décadas, no qual a
ele publicado na revista Science (Vol. uma nova era glaciar. A verdade é que, no evolução prevista da temperatura está em
189, n.º 4.201 [8 de agosto de 1975]; seio da comunidade científica, ganhou pe- perfeita consonância com o aumento re-
pp. 460-463) foi noticiado na imprensa so a ideia de que, se não travássemos as gistado nos últimos cinquenta anos.
dos EUA e internacional, com o título: emissões de CO2, a temperatura subiria a
«Climatic Change: Are We on the Brink of um ritmo acelerado, como vimos que tem WALLACE S. BROECKER incluiu no seu ar-
a Pronounced Global Warming?». vindo a acontecer. tigo os termos «alterações climáticas»
e «aquecimento global». Na década de
NOS EUA, TANTO NA É PARTICULARMENTE REVELADOR O RELATO DE 1980, os meios de comunicação social
DÉCADA DE 70 como RICH NATHANIEL NO SEU LIVRO Losing the começaram a difundir os dois termos e
antes, os cientistas Earth. The decade in which we could have estes tornaram-se cada vez mais popula-
já apontavam para a stopped climate change (Captain Swing, res. No início, os cientistas referiam-se
possibilidade de o au- 2020), que recomendo a leitura. Os políti- mais ao aquecimento global, uma vez que
mento dos gases com cos norte-americanos e o lóbi da indústria o aumento das temperaturas começou a
JOSÉ MIGUEL VIÑAS
efeito de estufa, devi- petrolífera fizeram ouvidos de mercador registar uma tendência nesses anos, im-
(@DIVULGAMETEO) do às emissões prove- aos avisos dos cientistas dos EUA que pulsionado em parte pelo extraordinário
meteorólogo de Meteored

82 SUPER
fenómeno El Niño de 1982-83. No final UMA EMERGÊNCIA É ALGO QUE EXIGE UM ES-
da década, com a fundação do IPCC (em TADO DE ALERTA PERMANENTE, o que não
1988) e a publicação do seu primeiro AS ATUAIS é fácil. Quando estamos em estado de
Relatório de Avaliação das Alterações alarme durante muito tempo sem ver-
Climáticas (1990), falava-se cada vez ALTERAÇÕES mos uma ameaça direta à nossa pró-
mais de «alterações climáticas». pria vida, mais cedo ou mais tarde o
CLIMÁTICAS SÃO, relaxamento instala-se, culminando na
O IMPULSO FINAL PARA ESTE TERMO deu- desconexão com o evento que causou a
-se durante a presidência de George EM GRANDE PARTE, emergência (neste caso, as alterações
W. Bush nos EUA, entre 2001 e 2009. climáticas).
Defensor acérrimo dos interesses da in- ANTROPOGÉNICAS E Na minha opinião, a ideia de que esta-
dústria petrolífera— contra a descarbo- mos a viver uma crise climática à escala
nização sugerida pela comunidadecien- PODEMOS, NO PAPEL, global é mais adequada, para além de
tífica—, utilizou a sua posição de poder outras crises que estamos a viver nos
para obrigar instituições como as Na- ABRANDÁ-LAS últimos tempos.
ções Unidas a utilizarem apenas o termo
«alterações climáticas» nos seus relató- SEJA QUAL FOR A EXPRESSÃO UTILIZADA, o
rios e documentos, em vez de «aqueci- AS FORMAS DE REFERIR AS ALTERAÇÕES CLI- que não restam dúvidas é a singularida-
mento global». Vale a pena lembrar que, MÁTICAS não se ficaram por aqui. A en- de do comportamento do clima terrestre
no início deste século, os EUA eram o trada em cena da jovem ativista sueca desde que o homem começou a queimar
maior emissor de CO2 para a atmosfera, Greta Thunberg em 2018 e o movimento combustíveis fósseis em grande escala.
até serem ultrapassados pela China. estudantil e social que liderou, junta- A única forma de inverter esta situação
mente com a magnitude cada vez maior é iniciar uma descarbonização rápida,
AO FALAR DE ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS, CA- dos impactos do aquecimento global, acompanhada de uma «transição ener-
MUFLAVA-SE a responsabilidade humana fez com que começássemos a referir-nos gética». Esta última expressão também
pelo fenómeno, que era o último de uma à emergência ou crise climática. Alguns se tornou popular, mas como o físico
longa série de alterações no clima da dos meios de comunicação social mais Jordi Mazón assinala, com razão, num
Terra. Este golpe de comunicação con- influentes do mundo integraram-na no artigo recente (Mètode, dezembro de
seguiu diluir um pouco o facto— ine- seu livro de estilo. A expressão «emer- 2022), é mais apropriado falar de uma
quívoco aos olhos da ciência— de que gência climática» é mais lida e ouvida mudança energética. Em conclusão,
as atuais alterações climáticas são em do que «crise climática»; no entanto, nestas questões dialécticas, qualquer
grande parte antropogénicas e que, por- sou mais a favor da utilização desta úl- expressão, por mais estabelecida que
tanto, podemos, no papel, abrandá-las. tima, como defenderei a seguir. seja, é suscetível de mudar. e

A inversão da
situação atual exige
uma descarbonização
rápida, acompanhada
de uma transição
energética.
ISTOCK

SUPER 83
M U S I C O L O G I A

Estudos
demonstram que
os bebés a quem
foi dado ouvir
música à
nascença
choram menos.
A música relaxa
a criança e o
adulto.

84 SUPER
A MÚSICA
NO TEU
CAMINHO
Desde que nascemos, e mesmo antes disso, até morrermos,
todos nós temos uma música que nos lembra ou nos faz
querer esquecer algo da nossa vida. Não há quase nada
tão evocativo e tão motivador como uma melodia. Pode
alegrar-nos, entristecer-nos ou fazer-nos reviver aquele
afeto que sentimos e que já passou.

Texto de DAVID CHAUMEL


GETTY

SUPER 85
E
stás no ventre da tua mãe. tua mãe. Conseguiste relaxar. A tua mãe estava farta
Há nove meses que andas a dos teus pontapés.
explorar o teu corpo. O teu Chegou a altura. Não sabes bem o que o destino te re-
dedo grande do pé. O fio que serva quando saíres. Mas vês a luz. Sais e está frio. Muito
sai do teu umbigo. E alguns frio. Descobres o primeiro ritmo do teu corpo, quando
orifícios por onde estão a te batem no rabo para desobstruir as vias respiratórias
passar sons. Descobriste-os e, claro, choras. Mas a parteira teve a amabilidade de
no sexto mês, o mês em que pôr música a tocar na sala de operações, exatamente a
o feto consegue distinguir os Sonata para dois pianos em Ré menor KV448/375a de
sons. Gostas do que ouves. Wolfgang Amadeus Mozart. É porque conhece o «efei-
As vozes dos teus pais. Mas to Mozart». Em 1991, o otorrinolaringologista Alfred
também ouviste música. A A. Tomatis publicou o livro Pourquoi Mozart, no qual
tua mãe teve o cuidado de pôr música relaxante perto explica como este método aumenta o QI dos pacientes,
da barriga, perto de ti. Há estudos que afirmam que ou pelo menos algumas das suas atividades cerebrais.
tocar música suave para um feto lhe dá uma sensação Em 1993, a psicóloga Frances Rauscher utilizou o livro
de bem-estar e relaxamento. Dizem mesmo que os para o apresentar a 36 estudantes, demonstrando que
bebés que ouviram música choram menos à nascen- tinha efeitos positivos nos testes de raciocínio espá-
ça. Como a tua mãe está bem ciente destes benefícios cio-temporal. Até os investigadores Rauscher e Shaw
e é uma amante da música clássica, ela enriqueceu a escreveram que ouvir Mozart torna-nos de facto mais
tua estadia com o adágio do Concerto para Oboé em inteligentes.
Ré menor de Alessandro Marcello. Com o oboé, ela Terias preferido nascer ao som de Elisa’s Theme de
relaxa o teu corpo e a tua mente, abranda os teus bati- Alexandre Desplat. Algo mais moderno. Começa com
mentos cardíacos até ficarem em uníssono com os da pizzicatos de cordas, depois clarinetes em crescendo

Ouvir música relaxa o bebé


antes e depois do parto. No
útero, faz com que os
batimentos cardíacos da
mãe e do feto se unam.
ISTOCK

86 SUPER
acompanhados pela melodia do acordeão. Em seguida
uns sininhos fazem-te ver o mundo. E abres os olhos
pouco a pouco. Continua com o oboé, o mais belo ins-
trumento de uma orquestra. E quando parece que a
peça está prestes a terminar, uma simples melodia de
piano toca em agudos. E acontece que coincide com
a primeira vez que abres os olhos ao mundo. E terias
preferido esta faixa porque os teus pais são amantes de
bandas sonoras e vais crescer com elas. Vais descobrir
o poder da música ao lado das imagens, e como elas
ajudam a criar atmosferas para criar uma sensação de
realidade no espetador, porque sim, a música tem esse
poder. Todos sabemos como soa um tubarão a escolher
o seu alimento no fundo do mar, pela mão de John Wil-
liams. Como soa um psicopata a atacar a sua vítima no
duche, sob a batuta de Bernard Hermann. Ou que mú-
sica deve soar quando se chapinha à chuva como Gene
Kelly. Mas a nossa vantagem é que somos nós que esco-
lhemos a nossa banda sonora. «A música acompanha
quase todos os momentos da vida, desde a condução, à
confeção do jantar, às compras no supermercado (...),
literalmente em todo o lado onde passamos ou nos
sentamos», escreve Michael Spitzer.

QUANDO ERAS BEBÉ, os teus pais sabiam que a música fazia


parte do teu crescimento. Porque a música pode me-

GETTY
xer com muitas emoções e está envolvida em processos
cognitivos. Nos bebés, aumenta a capacidade terapêu- Os estímulos musicais aumentam certos neurotransmissores, que
tica do sistema nervoso. Os teus pais fizeram bem em transportam, conduzem e equilibram os sinais entre os neurónios.
levar-te a um infantário com musicoterapia. Nestas Na imagem, uma sinapse entre duas células nervosas.
sessões, brincas com os teus educadores a bater numa
mesa, tentando manter um ritmo. A musicoterapia na
creche estabelece um espaço de comunicação que per-
mite a introspeção e a extroversão da criança. Sabemos «Quando a música começa a criar o clímax (...), a do-
que no terceiro dia de vida já podemos reagir à mú- pamina inunda o corpo estriado dorsal».
sica. «Somos criaturas inatamente musicais desde as Mas porque é que gostamos de repetições numa can-
profundezas da nossa natureza», escreve o psicólogo ção? Aqueles refrões cativantes. Aquela música que
Stefan Koelsch. Mas o que é a música? Eduard Punset não consegue parar de ouvir em nenhum momento da
define-a da seguinte forma: «A música é uma sucessão sua vida. Bem, é o efeito de «mera exposição» desco-
de sinais acústicos que os nossos ouvidos captam e en- berto por Robert Boleslaw, um fenómeno psicológico
viam para o cérebro, onde são descodificados e lhes é em que gostamos mais dos estímulos à medida que so-
atribuído um significado». mos expostos a eles mais vezes. A psicóloga Elizabeth
Já tens oito anos. E gostas de imitar sons. Imitar rit- Hellmuth escreveu vários estudos sobre este fenóme-
mos. Imitar danças. E gostas de imitar animais. Adoras no. Segundo ela, os estudos mostram que, quando
porque isso te dá uma ferramenta de comunicação, ouvimos música repetitiva, é muito mais provável
de aprendizagem e de expressão. Aprendes através da que mexamos o pé ou a cabeça, tornando-nos partici-
repetição e da imitação, o que aumenta o teu desenvol- pantes em vez de recetores passivos. A escritora Mary
vimento intelectual, auditivo, sensorial e motor de que Oliver escreve que «o ritmo é um dos prazeres mais
tanto necessitarás na tua longa vida. É por isso que gos- poderosos, e quando sentimos um ritmo agradável,
tas de canções repetitivas e, se também aprenderes os esperamos que ele continue. E quando continua, acha-
nomes dos animais e das cores, tanto melhor. Os estí- mo-lo cada vez mais agradável».
mulos musicais aumentam certos neurotransmissores. Mas, de repente, chega uma altura em que já não te
Estes são mensageiros químicos que transportam, sentes tão atraído por essas canções infantis. Agora
conduzem e equilibram os sinais entre os neurónios e tens catorze anos. Vasculhas os discos antigos do teu
as células de todo o corpo. E entra em ação a dopami- pai ou do teu irmão mais velho. Descobres estilos di-
na, que liberta recompensas cerebrais em resposta a ferentes. Os diferentes ritmos que a música tem para
estímulos que provocam prazer. Como explica Spitzer: oferecer. Estás numa das tuas primeiras festas e tocam

«A música é uma sucessão de sinais acústicos que os nossos


ouvidos captam e enviam para o cérebro, onde são descodificados
e lhes é atribuído um significado», explica Eduard Punset
SUPER 87
A música de cada época reivindica o que é seu, as suas
próprias esperanças, anseios e realidades, ligando-se
estreitamente à geração que representa

música da tua geração. Música que os mais velhos não to knock us down, just because we move». Em 1992,
entendem. Mas não te preocupes, é normal. Aconte- Robe Iniesta cantava: «Eu gostaria que minha voz fos-
ceu o mesmo com os teus pais e, antes disso, com os se tão forte que às vezes as montanhas ressoassem e
teus avós. Também eles pensavam que a sua geração ouvisses as mentes adormecidas». Em 1931, La Argen-
tinha acabado de descobrir a música. Agora, já adul- tinita cantava: «A confusão acabou e nós vamos para
tos, não percebem porque é que os jovens gostam de o tiroteio». E Bad Bunny, agora, canta: «Que se lixe
Bad Bunny, o cantor reggae porto-riquenho. Que não o amanhã, só penso no hoje, não vou mudar, é assim
endendes nem queres entender. Que canta bocejando. que eu sou». Sempre houve uma canção para ti. Onde
Não te entra na cabeça, mas sempre foi assim. Noutras e quando quer que tenhas nascido.
gerações diziam-nos que certas bandas de rock can-
tavam drogados. Mas os mais velhos, da geração do MAS AGORA ESTÁS TRISTE. Conheceste alguém importante
teu pai, diziam que os Beatles e os Rolling Stones eram para ti. E não foste correspondido. Bateu-te com força
uns gritadores cabeludos. Antes ainda, quando os teus no coração. Tens 25 anos e pensavas que sabias tudo.
avós eram jovens, os mais velhos não conseguiam en- Conquistaste essa pessoa com as tuas melhores dan-
tender como é que eles podiam ouvir certas músicas e ças. Com aquela dança que te torna irresistível: a dança
canções que eles não entendiam. E se continuarmos a do acasalamento. Há milénios que a música é utilizada
olhar para trás, veremos que a música popular esteve para encontrar a alma gémea. Como o ritmo de uma
sempre ligada a uma geração. Passando a mensagem canção ou de um refrão numa tribo, à luz de uma fo-
do seu tempo. Fazendo-nos sentir jovens. Em 1965, os gueira, torna-nos socialmente expostos. É isso que o
The Who, em My generation, cantavam: «People try ritmo faz. «O cérebro tem prazer em analisar os inter-

O CÉREBRO SOCIAL
PVN+SON
E A MÚSICA NAcc Ínsula
ACC IFG Amyg STG

PFC vmPFC Hipotálamo


mPFC
CIRCUITOS DE EMPATIA. VTA
A empatia está envolvida nas
respostas afetivas à música ESTRUTURAS DA LINGUAGEM.
e promove a coordenação Durante o estilo de diálogo musical
musical interpessoal. de «chamada-resposta» em díades,
são ativadas estruturas cerebrais
diretamente envolvidas no
processamento sintático, mas não
semântico, da linguagem.
OCITOCINA. A ocitocina é
segregada durante o canto coral
de grupo e de improvisação. RECOMPENSA. O circuito
dopaminérgico da recompensa
impulsiona a motivação, ativa
CORTISOL. Os estruturas relacionadas com a
níveis de cortisol linguagem e está envolvido na
diminuem durante a
antecipação e expetativa musical..
audição em grupo e
cantando.

LEGENDA:
UM PROCESSO DINÂMICO PFC = córtex pré-frontal
mPFC = córtex pré-frontal medial
CÉREBRO. Criar música em grupo, incluindo
vmPFC = córtex pré-frontal ventromedial
a tomada de perspetiva e a coordenação,
envolve vários processos cerebrais. ACC = córtex cingulado anterior
IFG = giro frontal inferior
COMPORTAMENTO. A atividade cerebral NAcc = núcleo accumbens Vias dopaminérgicas
modula o comportamento social, incluindo a PVN = núcleo paraventricular mesocorticolímbicas
empatia e os comportamentos pró-sociais. STG = giro temporal superior
VA = área tegmental ventral Vias ocitocinérgicas
CULTURA. Estes processos complexos podem
alterar a perceção e o comportamento social,
em especial em relação a alguém que é visto
como membro de um grupo estranho.
ASC

88 SUPER
A música está sempre
presente em todas as
etapas e fases da
nossa vida: quando
nos apaixonamos,
quando perdemos um

SHUTTERSTOCK
amor, nos momentos
de felicidade e nos
momentos de luto.

SHUTTERSTOCK

Um dos maiores
poderes da música é o
de evocar a memória.
Além disso, a música
repetitiva torna-nos
participantes e não
meros recetores:
quanto mais ouvimos
uma peça de música,
mais gostamos dela.
Gostamos mais dos
estímulos quanto mais
vezes tivermos sido
expostos a eles.
ISTOCK

valos de tempo entre as batidas», diz o músico Jaime Triste. Abandonado. Podes ouvir canções de amor que
Altozano, acrescentando: «E algo rítmico soa melhor potenciem essa recordação. Porque a música tem um
do que algo que não o é. Sem ritmo não podemos dan- dos maiores poderes: o poder de fazer recordar. Todos
çar. Os rituais de namoro sempre foram importantes nós temos uma canção pela qual nos apaixonámos e
para a humanidade avançar. Podemos provar a essa que, quando o amor se perdeu, pusemos a tocar para
pessoa que estamos em boa forma física. E que sabe- recordar. Lembre-se de Humphrey Bogart a proibir o
mos como coordenar o nosso corpo. Somos saudáveis. seu pianista de tocar As time goes by em Casablanca
E sim. Conseguiste que reparasse em ti. Mas não para para não recordar um amor. «A neurociência diz-nos
sempre. O teu coração foi partido. Agora estás a vi- que a música é muito poderosa para ativar cada uma
ver um momento em que estás perdido. Sentes-te só. das nossas estruturas emocionais no cérebro. É assim

SUPER 89
Na imagem, o Se a música o faz
compositor
experimental e
autor John Cage
tremer, tanto melhor,
porque as pessoas que
altera a afinação
do seu piano,
colocando
moedas e
parafusos entre sentem calafrios
as cordas.
musicais têm
caraterísticas
neurológicas
diferentes das outras

casos muito avançados, reduz a inten-


sidade do delírio, das alucinações e da
irritabilidade».
Temos exemplos próximos do nosso
tempo de como a música ajudou a ultra-
passar traumas, como é o caso de James
Rhodes, escritor e pianista. No seu livro
autobiográfico Instrumental, escreve: «A
música foi a minha salvação». Conta co-
mo, tendo sido abusado sexualmente em
criança, a única coisa que lhe permitiu
suportar a situação foi o facto de, ao cair
da noite, ouvir Bach. De facto, ao ouvi-lo
interpretar Christoph Willibald Gluck e a
sua Orfeo et Eurydice: Mélodie para pia-
no , não podemos deixar de partilhar a sua
dor durante a infância. Pois este é outro
poder da música, o de nos permitir parti-
lhar um sentimento através das notas.
É uma suite para piano que nos faz es-
tremecer. E se nos põe os cabelos em pé
ou nos produz calafrios, tanto melhor,
porque segundo o divulgador científico
Martí Montferrer «as pessoas que sentem
calafrios musicais têm caraterísticas neu-
GETTY

rológicas diferentes das restantes».


A neurociência demonstrou que a
música tem o poder de ativar todas as es-
truturas emocionais do cérebro. Decides
que podemos alterá-las ou melhorá-las», escreve o ouvir um clássico. O que levanta um morto. O que fez
psicólogo Stefan Koelsch. com que os pais de Michael J. Fox se apaixonassem no-
vamente em Regresso ao Futuro. É o Johnny B. Goode
UM DOS PODERES DA MÚSICA É O DE FAZER RECORDAR. do Chuck Berry. Um clássico. Começa com o riff mais
Uma ligação direta às emoções. Centenas de estudos famoso do rock and roll. As batidas da bateria entram.
demonstraram que a música ajudou os doentes de A harmonia do baixo. E, quando menos se espera, a
Alzheimer a melhorar os seus sintomas cognitivos e, sua voz esganiçada e ratada: «Mas ele sabia tocar uma
sobretudo, o seu comportamento e estado de ânimo. guitarra como se soubesse tocar um sino. Anda lá,
Nas doenças neurodegenerativas e mentais, sabe-se Johnny, anda lá. E substituis o nome do Johnny pelo
que a musicoterapia tem efeitos benéficos em diferen- teu. Começas a ser outra pessoa. Corres. Saltas. Dan-
tes fases da doença. Cantar canções familiares evoca ças. Decides seguir em frente alegrando-te. Esta é uma
memórias e sentimentos nas pessoas, amplifica a re- das canções da lista do Dr. Jacob Jolij, da Universidade
de neuronal, gerando estímulos nas áreas da memória de Groningen (Holanda), que revelou 10 canções que
e da aprendizagem. Segundo o Dr. López Pousa, «em nos fazem sentir melhor. E provou-o através desta

90 SUPER
Muitos psicólogos
afirmam que não há
nenhuma aprendizagem
ou competência que
exija tanta atividade
cerebral como aprender
a tocar um instrumento.

SHUTTERSTOCK
fórmula matemática, segundo a letra da música, as há praticamente nenhuma parte do cérebro que não
batidas por minuto e a sua tonalidade: seja afetada pela música», diz Stefan Koelsch. Uma das
partes do cérebro do músico que é mais profunda-
mente ativada é o cerebelo. O cérebro dos músicos
tem um cerebelo maior do que o normal. Outra área
notável nos músicos é o corpo caloso, uma faixa de
tecido que liga os dois hemisférios cerebrais. Um
O Dr. Jacob explica: «As canções com letras positivas, órgão crucial para os pianistas, pois sincroniza os mo-
um ritmo de 150 batidas ou mais e numa terceira maior vimentos das duas mãos. Os hemisférios trabalham
são as que o farão sentir-se mais otimista e enérgico» em harmonia. E como já tens 80 anos, desenvolveste
e, depois das seguintes 130 000 canções seguintes terás muito o teu corpo caloso nos últimos vinte anos. E to-
conseguido esquecer a dor que a pessoa te causou. cas piano na perfeição, e sabes como isso é gratificante
para a tua motricidade. A tua memória. A tua criativi-
MAS A NOITE NÃO É ETERNA. E A JUVENTUDE TAMPOUCO. E tem dade. O intelecto. E o prazer de poder fazer música, de
de haver tempo para o silêncio. Tens agora 40 anos. transmitir sentimentos, é já um luxo para a tua vida.
Com família ou não, mas no meio de uma crise de meia- Estás mais velho e sabes que tens de dar espaço aos
-idade. Precisas de parar e refletir sobre o caminho que que vêm depois de ti. Como já tiveste uma vida cheia
percorreste. Decides ouvir John Cage. E a sua peça 4’ de música e experiências, decides escolher a tua banda
33’’. Na partitura da qual apenas aparece a palavra Ta- sonora para deixares este mundo. Tal como fez Edward
cet, que indica ao intérprete que tem de permanecer em G. Robinson no final de When Fate Catches Up with
silêncio durante 4 minutos e 33 segundos. Tempo que Us, que escolheu Ludwig van Beethoven e a sua Sinfo-
Cage te dá para refletir, não sobre o silêncio, mas so- nia n.º 6 em Fá maior Pastoral.
bre a escuta. Ouvir o bater do coração e a respiração. Já decidiste com que canção vais partir para a aventura
Uma experiência sonora e mística. E decides mergulhar mais formidável, como disse Peter Pan. É On the Nature
nesse tipo de música experimental para meditação. Ar- of Daylight, de Max Richter. É triste, sim, mas também é
tistas de ambiente eletrónico minimalista como Sylvain comovente. E, por vezes, até esperançosa. Decides partir
Chauveau, Tangerine Dream, Rafael Anton Irisarri... em paz, a sorrir e a cantarolar. Michael Spitzer escreve:
Artistas que ouvem o espaço de uma forma diferente, «Cuidamos da música como de um ente querido (...).
e o melhor é que podem partilhá-lo consigo. Estudos Cuidamos dela porque é humana». e
sobre meditação asseguram que esta música relaxa o
nosso corpo, estimulando o sistema nervoso parassim-
pático. Ajuda a saúde mental. E ajuda-nos a viver a vida.
E, de repente, tens 60 anos e decides aprender a to-
car um instrumento. Possivelmente piano jazz. Queres BIBLIOGRAFIA
tocar como Dave Brubeck, ou Herbie Hancok. E estás - História do silêncio. Alain Corbin.
pronto para isso. Muitos psicólogos afirmam que não Editora Vozes
há outra atividade ou competência que exija tanta ati- - El ritmo infinito. Michael Spitzer. Ariel, 2022.
vidade cerebral. Ativa todas as partes do cérebro. «Não

SUPER 91
C R I M I N O L O G I A

SHUTTERSTOCK A Ilustração
representa uma
reunião dos
Molly Maguires,
que trabalhavam
na região
carbonífera de
antracite da
Pensilvânia.

92 SUPER
AS ORIGENS DA CRIMINALIDADE ORGANIZADA NOS ESTADOS UNIDOS

OS MOLLY
MAGUIRES
Criminosos para uns, trabalhadores oprimidos para outros, os Molly
Maguires continuam rodeados por uma aura de misticismo derivada das
suas origens, da sua natureza secreta, do seu fim trágico e do tempo
e ambiente em que levaram a cabo as suas ações violentas: as zonas
mineiras da Pensilvânia na segunda metade do século XIX.

Texto de JANIRE RÁMILA, criminóloga

SUPER 93
Para compreender a sua história, há que referir o pro-

UMKC
fundo processo de urbanização que os Estados Unidos
sofreram a partir de 1830 e que transformou o país, no
final desse século, num dos países mais urbanizados do
Ocidente, depois do Reino Unido, Holanda, Bélgica e
Alemanha.
«A transformação da paisagem urbana foi tal que, já
em 1872, os dirigentes políticos reconheceram implicita-
mente que a cidade se estava a tornar o habitat dominante
e fizeram de Yellowstone o primeiro Parque Nacional»,
refere a historiadora Aurora Bosch no seu livro Historia
de Estados Unidos (Crítica, 2005).

LUTA DE CLASSES. Como mão de obra, os patrões serviram-


-se dos milhões de imigrantes europeus que chegavam
ao país, por vezes trazidos diretamente por agentes en-
viados para os diferentes países pelas próprias empresas
para se aproveitarem da sua pobreza, sob a falsa promes-
sa de riqueza e de uma vida abastada.
O resultado foi uma enorme massa de trabalhadores
que disputavam entre si o trabalho, independentemente
do salário. O jornal La Voz de la Industria, por exem-
plo, denunciava esta situação, acusando o patronato de
«criar uma população numerosa e empobrecida [...]
que, devido às condições de vida abjetas dos seus países
de origem, estava disposta a trabalhar 14 ou 16 horas em
troca do que o capital lhe quisesse dar».
E não só. Ao utilizarem massivamente a nova
maquinaria que não exigia qualificações especiais, os tra-
balhadores nativos foram deixados para trás pelos seus
colegas imigrantes, com os salários a afundarem-se para
5 e 12 dólares por mês. E isso na melhor das hipóteses,
porque, como conta o historiador social Louis Adamic no
seu livro Dynamite (A Lanterna Surda, 2017), «os traba-
lhadores podiam ficar sem esses ganhos reduzidos e sem
capacidade legal para os recuperar se, como muitas vezes
acontecia, os capatazes fugissem com o seu salário. Os
trabalhadores podiam também morrer de malária ou de
outras doenças, uma vez que os canais e os caminhos-de-
-ferro passavam frequentemente por zonas pantanosas e
Dia de pagamento nas regiões mineiras. Série de esboços publi- insalubres». Se isso acontecesse, bastava substituir os
cados no Frank Leslie’s Illustrated Newspaper (1875) que retratam mortos por alguns dos milhares de imigrantes que conti-
os crimes cometidos pelos Molly Maguires. nuavam a chegar de barco da Europa.
Uma situação em que o sindicalismo quase não tinha

N
voz, porque a maioria das greves terminava em desastre
para os trabalhadores e porque, graças ao conluio entre
os Estados Unidos, a primeira ex- patrões e políticos, qualquer tentativa de reforma laboral
periência violenta indiretamente era imediatamente abortada. Os primeiros, despedindo
ligada ao mundo do trabalho foi qualquer trabalhador suspeito de pertencer a um sindi-
a dos Molly Maguires, uma orga- cato e os segundos, controlando a polícia e considerando
nização secreta de «vigilantes» a organização sindical como uma conspiração. Como
nascida na Irlanda como um gru- disse o magnata dos caminhos-de-ferro Jason Gould:
po de resistência antisenhorial «Eu podia contratar metade da classe operária para ma-
na década de 1840 e estabelecida tar a outra metade».
entre a minoria irlandesa que tra- O resultado foi, como diz Isaac Asimov no seu Os Es-
balhava nas minas de antracite da tados Unidos do fim da Guerra Civil à Primeira Guerra
Pensilvânia nadécada que se seguiu Mundial (Alianza Editorial, 2012), que «os primeiros
à Guerra Civil (1865-1875). Os seus membros cometeram sindicatos tinham de ser organizações secretas e as suas
crimes de fogo posto e atentados contra ingleses, galeses ações tinham de ser clandestinas, pois não tinham qual-
e escoceses e assassinaram patrões e polícias, embora as quer sinal de legalidade».
suas ações não estivessem diretamente relacionadas com
disputas laborais». É assim que o historiador Eduardo CHEGARAM OS MOLLY MAGUIRES. Entre os milhões de imi-
González, no seu livro El laboratorio del miedo ( Crítica, grantes europeus, os irlandeses destacam-se pelo seu
2013), resume a década em que os Molly Maguires, meio número. As más colheitas de batata na Irlanda, devido a
organização criminosa e meio sindicato, semearam o ter- um fungo, provocaram, a partir de 1845, um êxodo ma-
ror nas zonas mineiras do vale da Pensilvânia. ciço de pessoas famintas, que atingiu os quatro milhões

94 SUPER
PETER NEWARK AMERICAN PICTURES BRIDGEMAND MIAGES
Esta banda desenhada, intitulada «Os Protetores das Nossas Indústrias», mostra vários homens de negócios, como Cyrus West Field, Jay Gould,
Cornelius Vanderbilt e Russell Sage, sentados em cima de sacos de dinheiro, numa grande e pesada jangada transportada por trabalhadores.

no final do século XIX. No entanto, os irlandeses tinham Maguire, ou simplesmente os Mollies, assassinaram po-
certas vantagens, como a língua, o conhecimento do lícias, magistrados e proprietários de terras, ao abrigo
aparelho democrático e uma certa especialização em se- daquilo a que chamavam a «Legislação da Meia-Noite».
tores como a exploração mineira. Era uma mistura de luta de classes, ódio religioso, sec-
Milhares de irlandeses chegaram às grandes áreas mi- tarismo... que chegou ao fim quando, perseguidos sem
neiras do vale da Pensilvânia, embora com condições de quartel, muitos deles foram obrigados a emigrar, alguns
trabalho particularmente duras. Os salários eram baixos, para as bacias carboníferas da Pensilvânia, misturados
pagos à jarda cúbica, ao vagão ou à tonelada extraída; os com os que foram levados pela fome.
desabamentos eram frequentes, matando centenas de Como os sindicatos foram proibidos, agruparam-se
mineiros todos os anos; o abandono da segurança social numa organização católica sob o nome de Ordem Antiga
era uma constante ... «O que interessava era o carvão. dos Hibernianos, com o objetivo descrito nos seus esta-
Carvão e mais carvão. A enorme quantidade de máquinas tutos de «promover a amizade, a união e a verdadeira
nas fábricas e as novas locomotivas precisavam do seu caridade cristã entre os membros e, de um modo mais
combustível e, perante isto, as pessoas que trabalhavam geral, fazer tudo o que fosse permitido para o bem-estar
nas minas dificilmente seriam tidas em conta», escreve e a boa manutenção dos assuntos da associação».
Louis Adamic.
Foi neste contexto que surgiram os Molly Maguires. MAIS DO QUE UMA LUTA SINDICAL. Muito se tem debatido so-
«Parece que se trata de uma organização nascida no bre a sua verdadeira essência porque, se é verdade que as
início ou em meados do século XIX, no campo irlan- péssimas condições de trabalho tiveram uma influência
dês, onde a luta de classes entre camponeses católicos e decisiva no seu gérmen e no seu comportamento violen-
proprietários anglicanos deu origem a episódios de vio- to, a luta sindical não foi o seu único objetivo, e muito
lência», explica Juan Avilés Farré, professor de História menos o primeiro.
Contemporânea na UNED, à Super Interessante. Como explica Laura Bosch, «os imigrantes irlandeses,
todos eles envolvidos na exploração mineira como tra-
A ORIGEM. O seu nome vem especificamente de uma viú- balhadores não qualificados, eram a minoria maioritária
va irlandesa chamada Molly Maguire, que na década de na zona mineira e enfrentavam uma divisão do trabalho
1840 e na região do Ulster liderou uma revolta contra um que refletia a discriminação étnica de que eram alvo.
sistema abusivo que impedia os católicos de comprarem As tensões eram particularmente intensas com os tra-
terras, condenando-os a rendas abusivas dos proprie- balhadores nativos e, sobretudo, com os galeses — que
tários protestantes. Assim, armados com pistolas e trabalhavam por contaprópria e eram mineiros qua-
espingardas, com a cara enegrecida ou branqueada e ves- lificados —e assumiram a forma de lutas de rua entre
tidos de mulher em honra da mãe fundadora, os Molly bandos rivais de galeses e irlandeses, incluindo todo o

SUPER 95
tipo de espancamentos, agressões, lutas e assassínios que quando chegava a acordo, um certo número de « mol-
foram atribuídos aos Molly Maguires». lies» de outra localidade ou condado, não relacionados
Além disso, os próprios nativos sentiam repulsa pelos com o caso, era chamado a executá-la. A não aceitação
irlandeses por não apoiarem a luta anti-escravatura — deste pedido podia significar desde a expulsão do grupo
dado o seu receio de uma potencial concorrência laboral até à morte.
por parte dos escravos libertados —, a sua incapacidade Este truque tornava impossível a identificação dos
de se adaptarem à ética puritana e a sua recusa em subir agressores por parte de eventuais testemunhas. E se,
na escala social. mesmo assim, alguém se atrevesse a identificá-los, os
A instabilidade resultante da desmobilização de milha- restantes molinetes jurariam em qualquer lado e a qual-
res de soldados após a Guerra Civil, a queda dos salários quer pessoa que os suspeitos tinham passado com eles
e dos preços do carvão devido ao fim da guerra e o contí- tantas horas quantas as necessárias para os ilibar. Isto
nuo afluxo de imigrantes também não ajudaram. não era muito comum, uma vez que, através da intimi-
Tudo isto levou os Mollies a atuar mais como gangsters dação e da extorsão, também tinham conseguido colocar
do que como um sindicato clandestino. Como escreve pessoas com a mesma opinião em júris, em organizações
Louis Adamic, «poder-se-ia dizer que, com os Molly mineiras rivais ou nas próprias câmaras municipais.
Maguires, surgiu o crime organizado nos Estados Unidos, Um processo que o escritor Arthur Conan Doyle tomaria
nomeadamente o crime organizado ligado ao mundo como tema central do seu romance O Vale do Medo (1915),
sindical». tendo Sherlock Holmes como personagem principal.
Para compreender o clima de terror instaurado, bas-
ASSASSINATO E EXTORSÃO. Os primeiros distúrbios regis- ta ler a descrição publicada pela American Law Review
tados ocorreram entre 1862 e 1868, com a morte de 16 em 1877: «Dos seus covis sombrios e misteriosos está a
trabalhadores, o espancamento de outros 16 e a sabota- irromper uma série chocante de histórias de assassina-
gem de máquinas mineiras. Desde então, os assassínios tos, incêndios criminosos e crimes violentos de todos os
e as sabotagens não cessaram, envolvendo operários, tipos. Nenhum homem respeitável parece estar seguro
capatazes, patrões de minas, polícias privados, etc. Nem ali, pois as vítimas são escolhidas, em particular, entre as
sempre foram obra dos Molly Maguires, embora se diga classes respeitáveis, e ninguém pode dizer de um dia para
que foram eles os responsáveis. o outro se foi marcado para um fim tão certo quanto re-
Segundo Louis Adamic, as execuções eram decididas pentino. Só os membros de uma profissão têm a certeza
nas salas das traseiras das tabernas geridas por membros do seu destino: os diretores e capatazes das minas podem
do grupo, em reuniões que, como bons católicos, come- ter a certeza de que os seus dias na Terra estão conta-
çavam sempre com orações. Os convocadores contavam dos. Em qualquer lugar e a qualquer hora, esses homens
então as afrontas que tinham sofrido: ser rejeitado para condenados serão atacados, espancados ou baleados, na
um determinado trabalho, discutir com o capataz sobre a via pública ou em suas casas, em lugares solitários ou no
quantidade ou a qualidade do carvão extraído, considerar meio do povo, caindo em um terrível gotejamento nas
que um trabalhador de outra nacionalidade tinha prefe- mãos dos assassinos».
rência em relação a um trabalhador irlandês... Até mesmo
a não contratação de trabalhadores irlandeses podia ser ASCENSÃO E QUEDA. Como salienta Louis Adamic, «o pon-
considerada uma ofensa digna da pena de morte. to alto do poder dos Molly Maguires deve ser situado nos
Após a exposição, o comité discutia a pena a aplicar e, anos de 1873 e 1874», quando 500 a 600 membros da

A AGÊNCIA DE DETECTIVES PINKERTON


N ascido em Glasgow em 1819, Robert o Presidente Lincoln. A audácia das suas
ASC

Allan Pinkerton era um antigo espião missões granjeou-lhe a admiração do povo,


que emigrou para a América em 1842. mas também uma certa rejeição derivada
Começou por trabalhar como tanoeiro, de- das detenções de dirigentes sindicais e da
pois como xerife do condado e, em 1849, sua infiltração nas organizações operárias
como primeiro detetive de Chicago. Foi para desmantelar greves e mobilizações.
nessa altura que fundou a Agência Policial Ou da sua perseguição a criminosos prote-
do Noroeste, que rapidamente passou a gidos em certas regiões do país, como os
chamar-se Agência Pinkerton. Numa altu- famosos irmãos James. Mesmo assim, nada
ra em que os Estados e o Governo Federal impediu que os Pinkertons continuassem
deixavam o poder de polícia nas mãos de a crescer até se tornarem «quase um braço
privados, a Pinkerton gozava de grande policial do Estado e, nesse sentido, o pre-
popularidade, impulsionada por sucessos cursor do futuro FBI», explica o jornalista
como a prisão de vários ladrões de bancos Gregorio Doval no seu livro Breve História
e de comboios. A sua fama era tal que, du- do Oeste Selvagem (Nowtilus, 2009). Quan-
rante a Guerra Civil, vários dos seus agentes do Pinkerton morreu, em 1884, os seus
trabalharam como espiões infiltrados nas agentes estavam a trabalhar na criação de
linhas da Confederação e conseguiram um grande ficheiro que reuniria todos os
mesmo sabotar um plano para assassinar seus registos criminais.

96 SUPER
AGE
Gravura a cores representando a execução de onze Molly Maguires em Pottsville, Pensilvânia, em 21 de junho de 1877. Os julgamentos
dos Molly Maguires estavam repletos de irregularidades e muitos dos procuradores envolvidos trabalhavam para as empresas mineiras.

organização passaram a liderar comunidades de várias principal não era outro senão Franklin B. Gowen, pre-
dezenas de milhares de pessoas naPensilvâniae já tinham sidente da Reading Railroad».
em vista a vizinha Virgínia Ocidental. O que aconteceu Depois de 15 deles terem sido considerados culpados,
foi que, a partir de 1868, a Reading Railroad assumiu 12 foram executados na prisão em 21 de junho de 1877,
progressivamente o controlo das minas. A isso se opôs a permitindo o acesso a centenas de cidadãos, apesar de as
Workingmen’s Benevolent Association, o primeiro sin- execuções públicas terem sido abolidas em 1834.
dicato americano em que a solidariedade era a base e não
as distinções étnicas ou de qualificação. A imprensa retratou-os imediatamente como crimino-
Os mineiros sentiram-na imediatamente como um sos sem coração, falando de um «perigo irlandês» que
sindicato próximo que defendia os seus direitos, não com pairava sobre a nação, identificando os irlandeses com
violência, mas controlando a produção e a distribuição os grandes inimigos do puritanismo: a pobreza, o álcool,
do carvão para manter o seu preço e, por conseguinte, a preguiça, a corrupção... A mensagem só servia para
os salários elevados. E o resultado desse apoio dos traba- aprofundar os desequilíbrios económicos tão caraterís-
lhadores foi a aprovação, em 1870, do Mining Safety Act. ticos de uma classe trabalhadora dividida em etnias e
Tal força operária constituía um problema para a Rea- nacionalidades, que só beneficiava o capital.
ding Railroad, que definiu a sua estratégia: provar que No entanto,os mineiros irlandeses continuaram a sua
havia Molly Maguires no seio da Workers’ Benevolent luta laboral, sem os Molly Maguires, mas criando ou fa-
Association envolvidos em atos de violência e, assim, ile- zendo parte de outras organizações como a Clanna-gael,
galizá-los. a Liga Agrária ou a Ordem dos Cavaleiros do Trabalho,
Para isso, contrataram a Agência Pinkerton, que conse- que atingiu 703 000 membros em julho de 1886, incluin-
guiu infiltrar dois agentes nos Molly Maguires e, depois, do candidatos às eleições municipais em várias dezenas
com as supostas provas recolhidas, os polícias privados de cidades.
da Reading Railroad prenderam 19 suspeitos. «É possível Organizações para as quais os Mollies foram, por ve-
que tenham cometido assassínios, embora não se saiba zes, uma inspiração, como o atestam as palavras que o
se os que foram condenados à morte eram efetivamente sindicalista e candidato à presidência dos Estados Unidos
culpados», explica Juan Avilés Farré. Eugene V. Debs escreveu no jornal político Appeal to Rea-
O julgamento que se seguiu estava repleto de irre- son, no trigésimo aniversário das execuções: «Todos eles
gularidades, como explica Aurora Bosch: «Os arguidos reivindicaram a sua inocência e morreram sem renunciar
foram detidos por polícias privados e acusados com aos seus valores. Nenhum deles mostrou o mais pequeno
base nas provas de um detetive que, por sua vez, ti- sinal de medo ou fraqueza. Nem um único tinha caráter
nha sido acusado de agente provocador; as provas criminoso. Todos eram ignorantes, brutos e rudes, nas-
do detetive foram complementadas por uma série de cidos na pobreza e fustigados pela maré impiedosa do
informadores que se tornaram provas do Estado; os destino e da oportunidade [...] Resistir aos infortúnios
católicos irlandeses foram excluídos dos júris; muitos que eles e os seus companheiros enfrentavam, ou prote-
dos procuradores trabalhavam para as empresas mi- ger-se da brutalidade dos seus chefes era, do seu ponto de
neiras e para os caminhos-de-ferro; e o procurador vista rude, o principal objetivo dos Mollies». e

SUPER 97
HISTÓRIA DE FICÇÃO CIENTÍFICA POR ÓSCAR CURIESES

AS NOVAS VIGILÂNCIAS
egundo os conspiradores, viviam em silêncio, sem poderem falar inicial de participantes ou aos que ti-

S pouco antes da indepen-


dência de Dirmad, tiveram
lugar acontecimentos que o
com os seus companheiros de prisão ou
com os funcionários que os guardavam.
O incumprimento desta obrigação im-
nham passado os requisitos do IAS e
do INTI) e que os corpos dos restan-
tes opositores foram enterrados em
tempo e o receio apagaram da memória plicava pesadas sanções pecuniárias e valas comuns longe da cidade. Esses
coletiva. Estes rumores, que se tornaram a incapacidade para o trabalho durante lunáticos dizem que as convocações se
histórias lendárias, são sempre ouvidos toda a vida. Se os aspirantes passassem estenderam por uma década, semes-
pela boca dos dissidentes e sempre nas a primeira fase, passavam à fase seguin- tralmente, e que todos os selecionados
zonas periféricas, a altas horas da noi- te, denominada Imperativo de Negação tiveram o mesmo destino: nenhum
te. Eu, que sou agente de segurança do Transitória de Identidade (INTI), com conseguiu sobreviver após a elimina-
Estado e não estou sujeito aos cons- a mesma duração e os mesmos efeitos ção de suas faculdades percetivas. A
trangimentos impostos pelo recolher coercivos. sua fantasia é de tal magnitude que
obrigatório, frequento estes locais, por Durante este período de oito semanas corroboram o seu delírio mencionando
vezes por obrigação e outras vezes, ad- em que se realizavam os imperativos IAS uma nota anexa a um relatório oficioso
mito, por puro prazer. O bem-estar e o e INTI, os candidatos eram agrupados do Ministério do Interior, onde se pode
sentimento de pertença que experimen- em casernas, sem distinção de sexo ou ler que, no caso da existência do sexto
to nestas ocasiões estão relacionados, idade, e vestiam uniformes iguais. Ao sentido, este deriva da relação e com-
penso eu, com o meu fascínio pela men- longo dos meus anos de funcionário pú- binação de todos os anteriores, e não
tira e o desejo de a reconhecer nas suas blico, sempre me chamou a atenção o como uma entidade pura e autónoma,
variantes mais improváveis. Sinto-me, facto de os dissidentes descreverem as sendo inseparável dos restantes. Ain-
então, como uma criança, pouco antes duas fases com tanto pormenor. da ontem à noite, quando uma destas
de dormir, à espera que um dos pais lhe criaturas da periferia contava a outros
conte a sua história preferida para de- SE A PRECISÃO DOS DISPOSITIVOS A QUE SE dissidentes a sua rábula, referiu-se a
pois o martirizar com perguntas. REFEREM FOSSE VERDADEIRA, como é que este facto como: «Uma relação idêntica
essas informações lhes teriam chegado? à do Estado com as entidades que o
ESTES SERES, EM RELAÇÃO AOS QUAIS SINTO São apenas fruto de uma fantasia insa- compõem: a soma das partes é menor
UM FASCÍNIO IRRACIONAL, contam que o na e pervertida. No entanto, a parte do do que aquilo que une o todo».
Ministério do Interior publicava anual- seu relato que mais me fascina é a que
mente um apelo aos cidadãos para se descreve a segunda parte do Plano de POUCO DEPOIS, EU PRÓPRIO O INTERROM-
juntarem às forças de segurança não Formação Experimental de Vigilância. PI. A respeito dos desaparecimentos de
estatais. Estes organismos eram in- Os subversivos dizem que, após as oi- cidadãos, como o detido declarou mais
dependentes das forças de segurança to semanas iniciais, os estagiários eram tarde na nossa sede, os grupos espalha-
oficiais (polícia e exército) e não tinham isolados e espalhados em laboratórios ram o boato de que o próprio Ministério
o estatuto de funcionários públicos — clandestinos financiados pelo governo, do Interior, para proteger as suas ações,
ou pelo menos não lhes era reconhecido numa tentativa de detetar a existência difundia notícias falsas sobre ameaças
— uma vez que a sua tarefa era apenas de um sexto sentido neles. A fantasia terroristas, raptos e sabotagens dos
a de vigiar, e não a de vigiar e punir, é tal que atribuem ao Ministério do In- inimigos do povo. Desta forma, não só
que era da competência exclusiva dos terior uma série de ações relacionadas justificava os seus crimes, como tam-
organismos de funcionários públicos. com uma premissa hipotética chama- bém garantia o seu sucesso nas novas
Estes convites à apresentação de can- da Hipótese Preliminar de Deslocação convocatórias, devido ao crescente
didaturas publicados pelo Ministério do Cumulativa (HPDA). Esta investigava se, patriotismo e ao clima de tensão que
Interior eram muito bem recebidos pelo uma vez suprimido um dos sentidos no ele próprio provocava. Como distinto
público, uma vez que não eram exigi- ser humano, haveria uma implementa- funcionário das forças de segurança do
das qualificações. Recebiam-se sempre ção equivalente nos restantes sentidos Estado, acho muita graça a todas es-
milhares de candidaturas, embora os para equilibrar a perceção global. Além tas lucubrações, porque, no fundo, as
lugares oferecidos pela administração disso, essa supressão ajudaria a detetar coisas sempre se fizeram da mesma ma-
nunca ultrapassassem uma centena. a localização e o funcionamento do sex- neira. É preciso ir para a rua, encontrar
Realizado o escrutínio, procedia-se à to sentido nos adversários e nos futuros um candidato jovem, forte e sem família
seleção — que obedecia a critérios se- vigilantes. e transferi-lo — voluntariamente ou à
cretos — e implementava-se o Plano Falam, portanto, da eliminação pro- força — para o Ministério do Interior
de Formação Experimental de Vigilância gressiva dos sentidos da visão, da para fazer dele um dos nossos, se tiver
(PFEV). Este plano consistia, de acor- audição, do olfato e do tato. Alguns resistência e inteligência, enquanto se
do com os rumores dos fantasistas, no destes agitadores são capazes de ima- aplicam os protocolos habituais. Estes
cumprimento rigoroso de uma série de ginar estes acontecimentos fictícios não têm nada a ver com os imperativos
preceitos. O primeiro deles chamava-se com todo o tipo de pormenores. Atre- da PFEV, do IAS e do INTI, nem com a
Imperativo de Isolamento e Silêncio vem-se mesmo a colocar números em hipótese HDPA que por vezes se ouve
(IAS) e tinha a duração de quatro se- cima da mesa, sublinhando que apenas na periferia depois da meia-noite, mas
manas. Como o próprio nome indica, 10 dos selecionados sobreviveram (não com algo muito mais simples e eficaz: a
durante esse período, os opositores esclarecem se se referem ao número supressão da alma. e

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O QUE VEIO PRIMEIRO,
A GALINHA OU O OVO?

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NÚMERO 303
MENSAL ○ JULHO 2023

ENTREVISTA
NUNO MAULIDE
A QUÍMICA ORGÂNICA
SEM COMPLEXIDADE
PÁG. 42

GUERRA
PORTUGAL NA
1ª GUERRA MUNDIAL
PÁG. 80

TECNOLOGIA
SERÁ QUE ALGUMA
VEZ VEREMOS A
FUSÃO NUCLEAR A
FUNCIONAR?
PÁG. 36

HISTÓRIA
A ÚLTIMA NOITE
DE GIACOMO
CASANOVA
PÁG. 88

CRIMINOLOGIA
PORQUE É QUE
AS CRIANÇAS

MORFOLOGIA
MATAM?
PÁG. 74

GALÁCTICA
N.º 303

PORTUGAL NA
QUE FORMA TÊM AS GALÁXIAS E PORQUÊ? 1ª GUERRA MUNDIAL

SUBSCRIÇÃO ANUAL SUBSCRIÇÃO ANUAL


versão impressa versão digital

39 E/ano 19 E/ano

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