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(20230900-PT) Super Interessante
(20230900-PT) Super Interessante
ESPAÇO ENTREVISTA
COMO SERÁ MARTA SANTAMARIA
A NOSSA CASA NA LUA CAPITALS COALITION
PÁG. 10 REDEFINIR VALORES.
APERFEIÇOAR DECISÕES
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL PÁG. 70
ESTAMOS A CAMINHAR
PARA UM ‘ROBOCALIPSE’? FISIOLOGIA
PÁG. 58 A ENERGIA ESCURA
DO CÉREBRO
ZOOLOGIA PÁG. 26
OS ANIMAIS
SÃO MORAIS?
PÁG. 64
PSICOLOGIA
A QUÍMICA DA
CONFIANÇA
PÁG. 52
ECOSSISTEMA
PORQUE É QUE
OS HUMANOS SÃO
HOLOBIONTES
PÁG. 74
PENSAR A CIÊNCIA
O REPTO FILOSÓFICO DA INVESTIGAÇÃO
ND A
A!
VE R
À AGO
VIVER A HISTÓRIA
COM PAIXÃO
EDIÇÃO BIBLIOTECA
EDIÇÃO
BIBLIOTECA
LIVRO DOS
MORTOS
A viagem ao Além
PORTUGAL ORIGENS DE UMA NAÇAO
contra os faraós
VALE DO CÔA
Território de
memória MAGIA
E AMULETOS
GRUTA DO ESCOURAL As ferramentas
Marco do paleolítico dos deuses
no Alentejo
MISTÉRIO ENIGMAS
Stonehenge e outros Do país de Punt
santuários megalíticos às lâmpadas
de Dendera
PALEOARTE
Onde e quando surgiu
GRANDES MISTÉRIOS
o nosso impulso artístico DO EGITO
A arte acompanha o ser humano A vasta cultura da terra do Nilo
desde os tempos mais remotos, ao e o seu fascínio pela vida após a
longo da sua evolução. O que é que morte continuam a surpreender-
os artistas das cavernas pretendiam Conheça a formação de Portugal como Nação nos. Aqui encontrará as últimas
alcançar com as suas pinturas? O através de grandes historiadores: conhecerá investigações sobre o assunto.
que é que elas simbolizam? os protagonistas, os momentos decisivos, os
desafios e as bases do futuro império.
NotíciasFlix
EDITORIAL
Mais SUPER no
Na fronteira do conhecimento seu quiosque:
Q
uando, no nosso dia-a-dia falamos em Ciência, temos imediatamente
tendência a associá-la às suas aplicações tecnológicas e benefícios
práticos para a vida. E, de facto estas têm ocorrido a uma EDIÇÃO BIBLIOTECA
velocidade tão vertiginosa, que leva muitos de nós a considerar a Ciência AFONSO
HENRIQUES
e o nascimento de
como um «quase- —deus», infalível, que tudo sabe ou virá a saber. Porém O MILAGRE DE
OURIQUE
ou o mito nacional
de sobrevivência
temos também de considerar os seus limites, porque há ainda muitos aspetos D.DINIS, A
CONSOLIDAÇÃO
DO TERRITÓRIO
e afirmação
Universidade do Porto, José Luís Santos, conduz-nos neste artigo pelos meandros
de algumas destas grandes interrogações que se situam nos limites da ciência
PALEOARTE
VALE DO CÔA
Território de
memória
um novo paradigma, encontrará nestas páginas outros artigos que certamente PALEOARTE
Onde e quando surgiu
despertarão a sua curiosidade: Será que a moral nos diferencia dos outros animais? o nosso impulso artístico
Como será a nossa casa na lua? Devemos continuar a construir NÚMERO 1 ○ ABRIL 2023
Carmen Sabalete,
diretora
forma como empresas e governos medem e valorizam as suas Cor nos animais - para
namoriscar ou para Quando é que ocorre o
Júlio César
tinha um
assustar? crime de peculato? piercing?
csabalete@zinetmedia.es interações com o meio ambiente e a sociedade. Boa leitura. 1 E mais 150 Perguntas e Respostas
SUPER 3
Sumário
18
AGE
CA PA
10 Como será a nossa
casa na Lua
O habitat terrestre que a NASA está a
preparar.
38 No Limiar de um novo
paradigma REPORTAGENS EN T R E V ISTA
A Ciência na fonteiras do seu conheci-
32 Helga Nowotny
mento.
18 Descoberto o mapa do Para esta socióloga, a IA pode ser um
52 A química da confiança cérebro de uma mosca espelho que nos permite descobrir mais
sobre nós próprios.
Porque é que nos entregamos sem Uma descoberta científica que nos ajudará a
pensar? mapear o cérebro humano.
RÚBRICAS
58 'Robocalipse' 26 A energia escura do 8 Falar de ciência
A IA já está a pôr em risco centenas de
milhares de empregos?
nosso cérebro Miguel Ángel Sabadell fala das mulheres na
É o órgão que mais energia consome, História da Evolução Humana.
mas, na maior parte das vezes, não
64 A moral distingue-nos sabemos para quê. 79 Matrizes e Matrazes
dos outros animais? Eugenio Manuel fala-nos da química
Ainda há muito por saber sobre o
comportamento dos animais, mas eles
47 Devemos continuar a Elizabeth Fulhame.
EN T R E V ISTA
de distinguir o real da ficção.
84 O papel da música nas 82 Chaves do clima
70 Marta Santamaria nossas vidas José Miguel Viñas escreve sobre o clima e
Capitals Coalition.
Não há quase nada tão evocativo e tão as suas alterações.
Redefinir Valores. Aperfeiçoar decisões.
motivador.
4 SUPER
WIKEMEDIA COMMONS ESA GETTY SHUTTERSTOCK
10
AGE SHUTTERSTOCK
64 74
92
52
38
SUPER 5
DISCOVERY NOTÍCIAS ATUAIS
SHUTTERSTOCK
Os peixes grandes em águas sobre espécies que vivem muito
pouco profundas são presas perto dos humanos.
ASC
ATRIBULAÇÕES DE UMA ESCULTURA DE
MIGUEL ÂNGELO
San Juanito de Úbeda, é uma escultura em
mármore realizada por Miguel Ângelo en-
tre 1495 e 1496, encomendada por Loren-
zo de Pierfrancesco de Medici para o seu
palácio florentino. Cosimo I de’ Medici, que
conseguiu estabelecer o seu poder em Flo-
rença em 1537 graças ao apoio de Carlos
V, adquiriu a propriedade e presenteou
Francisco de los Cobos com a estátua,
que foi enviada para Espanha, para a
sua villa em Sabiote. Depois da sua
morte, a estátua foi colocada na capela
sepulcral que mandou construir na sua OS CENTROS DE DADOS
cidade natal de Úbeda.
O San Juanito encontrava-se junto
DESLOCAM-SE PARA O ESPAÇO
ao retábulo-mor da Sagrada Capela A atual era da Internet é uma grande consumidora de dados.
do Salvador de Úbeda (Jaén), quan- O aumento exponencial da computação pode significar que,
do, num ato de vandalismo no início em breve, serão necessárias instalações extraterrestres de
da Guerra Civil, foi despedaçado e processamento e armazenamento. Tal como a nuvem não é
a cabeça queimada. Só foi possível tão gasosa como parece e requer uma infraestrutura gigan-
recuperar catorze fragmentos, o equi- tesca e milhares de quilómetros de cabos, o armazenamento
valente a 40 por cento do seu volume e o processamento de dados são consumidores de energia.
original. O delicado e complexo projeto Estima-se que, em breve, representarão 10% do consumo
de recuperação da obra começou em mundial e poderão ser responsáveis por 4% dos gases com
1994, em Florença. Foram utilizados métodos efeito de estufa. A boa notícia é que alguns dos maiores
inovadores, como a utilização de lasers para consumidores de dados estão a recorrer a fontes de energia
limpar a superfície negra e queimada da ca- renováveis e a instalar grandes parques solares, mas isso não
beça, e a reconstrução virtual em 3D com ba- é suficiente.
se em fotografias tiradas antes da sua destrui- A União Europeia decidiu explorar a possibilidade de instalar
ção. Uma vez montada com os fragmentos de grandes centros de dados no espaço, alimentados por velas
mármore originais, foram integradas as partes solares. Trata-se do programa ASCEND, European Space Cloud
em falta, feitas com fibra de vidro. Atualmen- for Zero Emission Networks and Data Sovereignty. A grande
te, está à guarda da Fundación Casa Ducal vantagem deste sistema é a temperatura: cerca de metade da
de Medinaceli e aguarda o seu regresso à energia consumida pelos centros de dados é utilizada para dis-
capela de El Salvador em Úbeda. sipar o calor que geram. E na órbita terrestre, pode atingir 180
graus Celsius negativos nas zonas de sombra.
ASC
6 SUPER
O NOVO FATO LUNAR DA NASA
A agência espacial ameri- protótipo seja preto com de-
cana, em colaboração com talhes em laranja e azul (para
a Axiom Space, apresentou esconder elementos do fato
o primeiro protótipo do fato que estão sob patente), o de-
que os astronautas usarão na sign final será feito com uma
missão Artemis III. O AxEMU camada exterior branca, como
(Axiom Extravehicular Mobility os anteriores fatos espaciais,
Unit), como é designado o uma vez que esta cor permite
fato, tem um desenho modular que o calor seja refletido em
que proporcionará uma maior temperaturas extremas.
flexibilidade para se adaptar A missão, prevista para 2025,
às caraterísticas físicas dos deverá levar a primeira mulher à
astronautas. Proporcionará Lua. De acordo com Bill Nelson,
uma maior proteção contra administrador da NASA: «Com
o ambiente lunar e permitirá base nos anos de investigação
uma melhor exploração. Será e experiência da NASA, os fatos
Embora o uma alternativa mais leve aos espaciais de nova geração da
protótipo seja
enormes e volumosos fatos do Axiom não só permitirão que
preto, os fatos
serão brancos passado, uma vez que serão a primeira mulher caminhe na
para refletir o mais apertados e leves. Terão Lua, como também abrirão
calor quando as também avanços nos sistemas oportunidades para que mais
temperaturas de suporte de vida, sistemas pessoas possam explorar e in-
forem extremas.
de pressão, etc. Embora este vestigar na Lua.
ASC
R
O perfume de
Universidade do Hawaii em Manoa, recriaram o Cleópatra teria
que poderá ter sido o perfume de Cleópatra VII, um aroma mais
forte do que os
rainha da dinastia ptolomaica e última governan-
perfumes atuais e
te do Egito (51-30 a.C.) antes da conquista romana. Muitos duraria mais
arqueólogos sonharam em lançar expedições para encontrar o tempo.
seu túmulo ou qualquer objeto que lhe tenha pertencido. Isso
não foi possível, mas foi possível recriar os perfumes mais co-
muns do mundo antigo, incluindo o que se crê que ela usava.
Uma escavação que durou uma década perto do Cairo, num
local chamado Tell-El Timai (conhecido na antiguidade co-
mo «a cidade de Thmuis»), descobriu os ingredientes através
de amostras e restos que ainda restavam nos recipientes: os
frascos não cheiravam, mas a análise química da lama encon-
trada dentro de uma ânfora — uma elegante garrafa grega
ou romana antiga com duas pegas e um gargalo estreito en-
contrada na área — revelou alguns dos ingredientes. Os in-
vestigadores levaram as suas descobertas a dois especialistas
em perfumes egípcios, Dora Goldsmith e Sean Coughlin, que,
utilizando estes dados e seguindo as fórmulas encontradas
em antigos textos gregos de perfume Mendesiano (originário
da cidade de Mendes e popular entre a classe alta egípcia),
ajudaram a recriar os aromas. A sua reprodução resultou nu-
ma mistura espessa à base de mirra (uma resina extraída de
uma árvore espinhosa nativa do Corno de África e da Penín-
sula Arábica), bem como de cardamomo, canela e azeite (na
verdade, tem uma consistência semelhante à do azeite). O
aroma é muito mais forte do que o dos perfumes modernos e
dura muito mais tempo. Segundo a perfumista Mandy Aftel,
não é certo que Cleópatra tenha usado esta fórmula, uma vez
que tinha a sua própria fábrica e provavelmente criava fra-
SHUTTERSTOCK
SUPER 7
CURIOSIDADE FALAR DE CIÊNCIA...
O SEXO INVISÍVEL
NA HISTÓRIA DA EVOLUÇÃO HUMANA, A MULHER NÃO TEM TIDO GRANDE PRESENÇA,
SENDO A SUA IMPORTÂNCIA IGNORADA DEVIDO ÀS SUPOSTAS CARACTERÍSTICAS DO SEU SEXO.
maginemos que na gruta de primeiros cuidados fazem-nas esquecer tu- finais da evolução humana». Os homens
8 SUPER
ISTOCK
ASC
GETTY
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E S P A Ç O
10 SUPER
A NASA planeia um habitat terrestre na superfície do satélite, juntamente com uma
plataforma móvel e um rover de exploração, todos equipados com sistemas robotizados.
Estes serão os pilares para a continuação da vida humana no nosso vizinho celeste,
que não visitamos desde que Eugene Cernan levantou o pé da superfície do regolito
no final da missão Apollo 17, a 13 de dezembro de 1972.
AP
SUPER 11
a quarta-feira, 13 de dezembro UM HABITAT, UMA PLATAFORMA MÓVEL E UM ROVER PARA
de 1972, o astronauta Eugene EXPLORAÇÃO. A NASA já está a trabalhar numa versão
Cernan, depois de completar preliminar do projeto. Com base nisso, começou a co-
o seu terceiro passeio pelo vale laborar com outras agências espaciais e empresas do
lunar Taurus-Littrow, entrou setor para desenvolver a tecnologia necessária para
no vaivém que o traria de vol- alcançar este desafio. Na primeira fase, esta casa para
ta à Terra, juntamente com humanos na Lua permitirá estadias de apenas alguns
o seu companheiro Harrison dias, mas o objetivo final é que o acampamento base
Schmitt, que já se encontrava possa acomodar até quatro astronautas durante vários
no interior do vaivém. Cernan meses de cada vez e que, durante esse tempo, tenham
dirigiu-se então ao posto de mobilidade suficiente para explorar grandes regiões
controlo na Terra: «Aqui é Ge- do satélite. Para tal, o conceito do acampamento base
ne», disse, «enquanto dou o último passo humano da Artemis inclui, para além do habitat de superfície, um
superfície, de volta a casa por algum tempo, mas acre- escritório-casa sobre uma plataforma móvel e um veí-
ditamos que não muito no futuro, gostaria apenas de culo rover para exploração.
dizer [que] partimos como viemos e como voltaremos: A administradora associada da NASA para voos es-
com paz e esperança para toda a humanidade». peciais, Kathy Lueders, descreveu o processo: «A cada
Passaram mais de 51 anos e Cernan continua a ser nova viagem, os astronautas terão um nível de confor-
o último homem a ter pisado a Lua. Para alterar es- to cada vez maior, com mais capacidades do que nunca
ta situação, a NASA lançou o seu projeto Artemis em para explorar e estudar a Lua. Estamos a desenvolver
2017: em 2024, a agência espacial americana coloca- as tecnologias para conseguir uma presença humana
rá a primeira mulher e outro homem na superfície do e robótica sem precedentes a 386 240 quilómetros de
satélite. E não só: esta etapa será o primeiro passo de casa. A nossa experiência na Lua nesta década prepa-
outro projeto muito mais ambicioso, a chegada a Marte rar-nos-á para uma aventura ainda maior no universo:
na próxima década. Para isso, a Lua será uma estação a exploração humana de Marte».
intermédia fundamental, e estas palavras não são ape- Prevê-se que a base esteja operacional em meados
nas um mero slogan: a NASA planeia instalar a primeira da próxima década. Um primeiro elemento que teve
base espacial no satélite, o primeiro assentamento hu- de ser resolvido foi: haverá uma base, tudo bem, mas
mano na superfície de outro corpo celeste. É assim que onde a colocar? O local já é conhecido: o Pólo Sul lu-
será o acampamento base lunar da missão Artemis. nar. Será construída neste ponto do satélite por duas
Fundação do
Habitat de superfície
NASA
Orion é a nova
nave espacial
razões: o sol brilha aí quase todo o ano, o que o tor- interplanetária da
NASA que será
na ideal para a obtenção de energia solar, e existem projetada para
enormes quantidades de gelo sob a superfície, o que além da Lua para
permitiria a obtenção de água e o acesso a recursos levar os astronautas
naturais, que poderiam mesmo ser transferidos para a ao planeta vermelho.
Terra e explorados comercialmente.
De acordo com o Plano de Exploração e Desenvol-
vimento Lunar da NASA, «todas as missões humanas
até agora ocorreram na região equatorial, numa área
de menos de 100 quilómetros quadrados, de uma su-
perfície lunar total do tamanho de África». Além
disso, o documento recorda que, no total, os humanos
estiveram na Lua apenas 16 dias. Todos estes números
serão largamente ultrapassados pela missão Artemis.
NASA
nautas explorar a Lua mais longe do que nunca», diz água para futuras missões. No entanto, a localização
Lara Kearney, diretora do programa de Atividade Ex- exata da base precisa de ser definida, e a NASA pla-
traveicular (EVA) e Mobilidade da Superfície Humana neia enviar o rover VIPER para procurar estas fontes
(HSM) no Centro Espacial Johnson da NASA, em Hous- de água e outros recursos potenciais. A agência nor-
ton. Segundo Kearney, espera-se que seja capaz de te-americana espera que o VIPER chegue à superfície
percorrer até 20 quilómetros. lunar no final de 2024, numa missão que durará cerca
Este novo rover também não surgirá do nada. Co- de 100 dias. No entanto, o primeiro candidato na lista
mo refere a NASA, o agora icónico rover «estreou-se de sítios é a cratera Shackleton.
durante as missões Apollo e é uma pedra angular dos
planos da NASA para desenvolver uma presença a lon- QUANTO À FONTE DE ENERGIA, A NASA ESTÁ A TRABALHAR COM
go prazo na superfície lunar. Embora esses veículos OUTRAS AGÊNCIAS ESPACIAIS E COM A indústria privada
pilotados por humanos tenham expandido significati- num sistema de energia baseado na fusão nuclear, que
vamente as capacidades de exploração lunar, o novo forneceria energia limpa e abundante. Uma diferen-
LTV Artemis apresentará múltiplas melhorias e tec- ça fundamental entre a missão Artemis e as missões
nologia avançada. Tendo em conta que as missões Apollo será que nas missões Artemis para habitar e
Artemis terão como objetivo a área do Pólo Sul lunar, explorar a Lua, a NASA terá o orbitador Gateway, que
o novo LTV deve ser capaz de suportar e funcionar em orbitará sempre a Lua, com ou sem tripulação, e quan-
condições únicas de frio e luminosidade. do o fizer, será operado de forma autónoma, como se
A NASA espera que o LTV Artemis seja capaz de per- espera que aconteça com muita da tecnologia que será
correr uma distância de centenas de quilómetros por desenvolvida para a missão Artemis. O Gateway será o
ano, permitindo o acesso a uma variedade de locais espaço intermédio para as tripulações entre a Terra e a
que facilitarão a descoberta científica, prospeção e ex- vida na Lua.
ploração de recursos. Os três pilares do acampamento base Artemis — o
LTV para transportar a tripulação pelo local, a pla-
O POLO SUL LUNAR: FONTE DE LUZ E DE ÁGUA. Uma ques- taforma de mobilidade habitável para viagens de
tão essencial para garantir a habitabilidade de uma longa duração para fora do acampamento base e o
base lunar será a disponibilidade de energia e água. O habitat de superfície da fundação, que permitirá es-
pólo sul do satélite está quase sempre exposto à luz so- tadias curtas para quatro membros da tripulação no
lar, pelo que esta fonte permanente de energia estará Pólo Sul lunar — serão apoiados por infra-estruturas
disponível. A presença de água abundante na subsu- que irão sendo acrescentadas em áreas como comu-
perfície desta região garantiria o abastecimento de nicações, energia, proteção contra radiações, uma
14 SUPER
NASA
Demonstração
das operações
de proximidade
plataforma de aterragem, eliminação de resíduos e Os humanos foram à Lua nove vezes entre 1968 e
planeamento do armazenamento. Sem dúvida que o 1972, no âmbito do programa Apollo. Eram os anos di-
desenvolvimento de novos sistemas robóticos, que fíceis da Guerra Fria. Precisamente este novo impulso
permitam que tudo seja autónomo, será fundamen- para a exploração lunar está a ter lugar num contexto
tal para a exploração lunar e para a continuação da não muito diferente. Foi Donald Trump que iniciou o
vida no satélite. programa Artemis como presidente dos Estados Uni-
Em conjunto, o rover, a plataforma móvel e o habitat dos em 2017, no meio de uma dura guerra comercial
de superfície serão os pilares que, segundo a agência com a China. Esta situação foi agravada pelo início
espacial americana, permitirão às tripulações viver na da guerra da Rússia na Ucrânia em fevereiro de 2022.
superfície lunar durante meses. Ambos os elementos trouxeram de volta ao mundo a
visão de dois blocos concorrentes que estão mais uma
YURI GAGARIN ABRIU O CAMINHO EM 1961. Habitar a Lua vez a utilizar a corrida espacial e os seus avanços co-
encerrará, mais de meio século depois, o primeiro ca- mo mais uma etapa dessa luta. De facto, em maio de
pítulo da exploração humana do espaço in situ, aberto 2021, a agência espacial chinesa aterrou um rover em
na década de 1960, os anos da corrida espacial. O so- Marte e anunciou planos para construir a sua própria
viético Yuri Gagarin tornou-se o primeiro ser humano estação espacial internacional e levar astronautas à
a chegar ao espaço quando completou uma órbita à Lua até 2030.
volta da Terra a bordo da cápsula Vostok 1, em 12 de
abril de 1961. Foi o golpe de misericórdia soviético que UMA NOVA GERAÇÃO DE MEGA-FOGUETÕES. Mas há outro
desencadeou a corrida espacial na sua luta contra os elemento decisivo em toda esta história. A base lunar
Estados Unidos. A NASA tinha sido criada apenas três Artemis não terá apenas as suas fundações assentes no
anos antes, em julho de 1958. Menos de dez anos após o regolito do satélite, mas também num elemento-chave
voo de Gagarin, a 20 de julho de 1969, Neil Armstrong da tecnologia humana, o pilar que ligará fisicamente a
tornou-se o primeiro ser humano a pisar a superfície Lua e a Terra: a nave espacial Orion da NASA e o Siste-
da lua. Em dezembro de 1972, com a Apollo 17 de Cer- ma de Lançamento Espacial (SLS).
nan e Schmidt, esta primeira fase das missões lunares A nave espacial Orion foi concebida pela NASA
chegou ao fim. para operações com um máximo de quatro tripulan-
NASA
meira fase, denominado Super Heavy, e por uma nave
espacial de fase superior, denominada Starship. Am- Na imagem, o então Presidente dos EUA, Donald Trump, assina
bos os elementos são reutilizáveis e alimentados pelo em 2017 a Diretiva de Política Espacial-1, que alterou a que tinha
motor Raptor da próxima geração da SpaceX, que é sido assinada pelo anterior Presidente Barack Obama.
consideravelmente mais potente do que o Merlin. Es-
tima-se que o gigantesco propulsor do mega-foguetão
gere até 16 milhões de libras de impulso na descola-
gem, o dobro do impulso do SLS. meira casa da humanidade fora da Terra. Afinal, como
James Green explicou à Super Interessante numa en-
ESTE SISTEMA DE TRANSPORTE, SE CORRESPONDER ÀS EXPECTA- trevista em novembro passado, «os humanos vivem na
TIVAS, TORNARÁ FINALMENTE possível a futura colonização órbita da Terra há mais de 20 anos a bordo da Estação
da humanidade em Marte. Mas antes disso, os humanos Espacial Internacional. Não há razão para pensar que
terão um primeiro passo: a base lunar Artemis, a pri- não podemos também viver na Lua. e
SUPER 17
Z O O L O G I A
DESCOBERTO
O MAPA DO
CÉÉREBRO DE
UMA MOSCA
UM PASSO GIGANTE
PARA COMPREENDER
O CÉREBRO HUMANO
Esta mosca tem sido utilizada pela ciência como um
organismo modelo para diferentes estudos. Agora, a
publicação do diagrama das suas ligações neuronais
aproxima-nos do estudo e da compreensão do cérebro
humano e da sua biologia. Mas, embora existam muitos
paralelos, a possibilidade de mapear este último parece
ainda distante devido à sua complexidade.
18 SUPER
AGE
SUPER 19
UNIVERSTIY OF CAMBRIDGE
O
minúsculo cérebro de uma nos Estados Unidos. O resultado foi a publicação na
mosca da fruta (Drosophi- revista Science do primeiro conectoma (diagrama de
la melanogaster) tem cerca ligações neuronais) completo do cérebro de uma larva
de 100 000 neurónios (me- de mosca do vinagre.
tade dos quais pertencem ao Embora o cérebro da larva seja mais pequeno do
sistema visual), apenas um que o da mosca adulta, as larvas realizam quase todas
milionésimo dos existen- as mesmas ações que as moscas adultas, como voar e
tes no cérebro humano. No acasalar. Ainda assim, o mapeamento deste cérebro
entanto, o seu cérebro mi- minúsculo demorou cerca de um dia por neurónio
núsculo, do tamanho de uma para analisar meticulosamente os mais de 3000 neu-
cabeça de alfinete, é suficien- rónios e as respetivas ligações aos neurónios vizinhos.
te para efetuar manobras aerodinâmicas espantosas, e
até mesmo para ser capaz de seguir rituais de corteja- UM PROCESSO LONGO E LABORIOSO. A ideia para este pro-
mento, aprender e até mostrar medo e agressividade. jeto partiu da neurocientista do MRC Marta Zlatic. A
Assim, apesar das evidências claras quanto à com- partir daí, ela e os seus colegas começaram a captar
plexidade, há muitos paralelos entre o cérebro de uma imagens de microscópio eletrónico de todo o cérebro
mosca e o cérebro de um ser humano. E, ao mesmo
tempo, existem paralelos com o resto da sua biologia,
incluindo o seu genoma.
Neste sentido, observou-se que 75% dos genes
ligados a doenças humanas têm um equivalente no
código genético da mosca da fruta, e até 50% das
suas proteínas também têm equivalentes no ser
A mosca da ciência
humano. Estas semelhanças fizeram com que um or-
ganismo aparentemente tão simples como a mosca
tenha sido utilizado em numerosos estudos rela-
D esde o início do século passado, a Drosophila me-
lanogaster tem sido amplamente utilizada como
organismo modelo para estudos genéticos, devido ao
cionados com doenças como Parkinson, Alzheimer, seu tamanho, elevada capacidade reprodutiva e curto
diabetes, cancro e dependência, entre outros cam- período de gestação, bem como a certas características
pos de investigação. genéticas únicas, como a sua composição cromossómica
Em conclusão, uma melhor compreensão do cére- constituída por apenas quatro cromossomas e a ausência
bro de uma mosca pode permitir-nos compreender de recombinação meiótica nos machos. Foi por isso que
melhor o cérebro humano, bem como o resto da sua um dos seus alunos, Seymour Benzer, começou a fazer
biologia. E é aí que reside a importância de um esforço experiências com elas na Universidade de Columbia, em
de 12 anos desenvolvido por investigadores do Labo- Nova Iorque: Seymour Benzer. Além disso, desde 2000,
ratório de Biologia Molecular do MRC, em Cambridge, dispomos do genoma completo desta espécie.
Inglaterra, e de outro da Universidade Johns Hopkins,
20 SUPER
Graças à inteligência artificial, a equipa rastreou todos os
neurónios do cérebro da larva do vinagre para criar uma
representação tridimensional das células
GETTY
gera o comportamento. De facto, os mapas anteriores
Diagrama do
MICHAEL WINDING
conectoma de
uma mosca.
SUPER 21
que estamos a comparar um órgão com cerca de 3000 ajuste dos pesos das ligações, são capazes de aprender
neurónios com outro que tem mais de 85 mil milhões. e generalizar padrões nos dados de entrada para reali-
No entanto, um dos grandes valores deste estudo re- zar tarefas específicas, como a classificação, a previsão
side no facto de poder inspirar novas arquiteturas nas e o reconhecimento de padrões, entre outras.
diferentes abordagens à inteligência artificial, como Por exemplo, o conectoma da mosca revelou que
as redes neuronais artificiais. As redes neuronais ar- certos circuitos relacionados com a aprendizagem têm
tificiais são um conjunto de algoritmos e técnicas de um grande número de ligações nervosas recorrentes e
aprendizagem automática inspirados na estrutura e abundantes. Esta descoberta sugere como a natureza
funcionamento das redes neuronais biológicas pre- fornece circuitos neurais para facilitar a importante
sentes no cérebro humano. Através da retroação e do função da aprendizagem. Em suma, a presença desta
estrutura organizacional confere ao sistema a capaci-
dade de reter informações.
Graças a esta descoberta, é possível tirar lições pa-
JANLIA RESARCH CAMPUS
A decifração do conectoma
ISCTOCK
22 SUPER
Morfologia Conectividade
Neurónios pós-sinápticos
3016 neurónios
Neurónios pré-sinápticos
548 000 ligações
sinápticas
MICHAEL WINDING
artificiais, como a ResNet e a U-Net, caracterizadas Contudo, os cientistas fizeram recentemente pro-
por um número reduzido de neurónios (ou unidades gressos significativos no registo do cérebro humano
computacionais). Certamente que existem outros ele- e no rastreio da atividade neuronal em ratos, mas a
mentos da arquitetura do circuito desconhecidos dos atenção centrou-se apenas em regiões específicas.
cientistas informáticos que trabalham em inteligência Também se conseguiram conectomas parciais
artificial que os inspirarão a melhorar o desempenho e de áreas específicas do cérebro humano, como um
a precisão das novas redes neurais artificiais. projeto de 2021 da Google e de investigadores da
Universidade de Harvard, em que um segmento de
O DESAFIO TITÂNICO DE MAPEAR O CONECTOMA HUMANO. tecido cerebral de um doente epilético foi cortado
Decifrar o conectoma do cérebro humano poderia em cerca de 5300 secções individuais de 30 nanóme-
permitir-nos dar um salto extraordinário em muitos tros (um bilionésimo de metro). Em seguida, foram
domínios do conhecimento. Os investigadores chega- obtidas 225 milhões de imagens 2D de cada uma das
ram mesmo a colocar a hipótese de algumas doenças fatias utilizando um microscópio eletrónico. Por fim,
neurológicas e psiquiátricas, como a esquizofrenia e o foi utilizado um computador para fundir estas ima-
autismo, serem «conectopatias», ou seja, problemas gens e criar uma representação 3D do tecido cerebral
causados por «ligações defeituosas». No entanto, a ob- original. Os investigadores utilizaram algoritmos de
tenção do conectoma humano é ainda uma enteléquia. aprendizagem automática para caraterizar 130 mi-
Em apenas 1400 gramas de cérebro, temos entre lhões de sinapses.
80 mil milhões e 100 mil milhões de neurónios. Cada Os dados do projeto ascendem atualmente a mais
neurónio estabelece entre 5000 e 50 000 ligações com de 1,4 petabytes, o equivalente a armazenar mais de
as células vizinhas. Isto equivale a construir uma rede 4.000 fotografias digitais por dia durante toda a nossa
neuronal interligada por 5 000 000 000 000 000 000 vida. Estes dados realçam a complexidade desconcer-
000 000 000 000 000 000 000 ligações. Uma com- tante com que os investigadores se deparam.
plexidade tão avassaladora que nem sequer é possível Assim, antes do conectoma humano, surge o conec-
calcular a que distância estamos de a compreender. toma do saguim (um macaco muito pequeno) e, ainda
Poderá acontecer dentro de alguns anos, ou talvez antes, do rato e do ratinho, ambos de enorme impor-
nunca. Tudo o que se sabe, explica Cardona, é que «se- tância para a medicina e a investigação em geral.
riam necessários aproximadamente todos os centros Atualmente, o horizonte é mais claro para o cérebro
de armazenamento de dados do mundo» para arma- do rato, que, com a resolução necessária, requer o pro-
zenar um tal volume de informação. cessamento de apenas 60 petabytes de informação.
UM ATALHO POSSÍVEL: SIMPLIFICAR O PROCESSO. Em 2022, Além disso, independentemente da espécie, ca-
investigadores do Instituto Max Planck de Conec- da cérebro executa uma série de comportamentos
tómica, em Frankfurt, já publicaram um protocolo complexos, como o processamento de informação
para a preparação do cérebro do rato para microsco- sensorial, a aprendizagem, a seleção de ações, a na-
pia eletrónica. No entanto, desenvolver um protocolo vegação no seu ambiente, a escolha de alimentos,
equivalente para preparar todo o cérebro humano para o reconhecimento de congéneres, e a fuga aos pre-
microscopia eletrónica seria uma tarefa tão difícil que dadores. Isto não só torna possível extrapolar as
ninguém a está a considerar atualmente. descobertas do conectoma de uma mosca, como
No entanto, todos os cérebros partilham uma se- também pode facilitar a obtenção do conectoma do
melhança fundamental: são compostos por redes de cérebro humano através de métodos de imagiologia e
neurónios interligados. mapeamento novos e mais simples.
107 101
Humano
Capacidade de armazenamento (PB)
101 106
Volume cerebral (mm3)
106 105
101
0 20 40 60 80 100 120
Largura mínima do cérebro (mm)
24 SUPER
O código de barras permite o rastreio de neurónios individuais de alto rendimento.
Fração de células
1
Ø
0.9
0.8
BC43 0.7
BC 48
ANTHONY ZADOR
78 0.6
43 BC43 0.5 Teoria
11 0.4
10Bcs
BC11 BC43 0.3
10Bcs
0.2 10Bcs
Ø 0.1 10Bcs
0
10 0
105 1010
Região Área- Região Área- Região Área- Região Área- BC’s em
de alvo de alvo de alvo de alvo áreas-alvo
origem origem origem origem
SUPER 25
F I S I O L O G I A
26 SUPER
A
ENERGIA
ESCURA DO
CÉREBRO
A GRANDE DESCONHECIDA
O cérebro humano, apesar de ser um
órgão pequeno em termos físicos, é um
dos que mais energia consome no corpo...
sem que se saiba, sobretudo de uma
grande parte dela, exatamente para quê.
É a chamada energia escura do cérebro,
da qual ainda hoje se desconhece se é
utilizada para inibir parte dos estímulos
que este órgão recebe, para manter a
homeostase do corpo ou para alimentar o
nosso inconsciente.
SUPER 27
U
m cérebro humano normal nada sabemos sobre as sinapses elétricas, que são co-
representa cerca de 2% do pe- municações diretas entre dois neurónios que não estão
so total do corpo. No entanto, separados, transmitindo iões de um para o outro por
consome cerca de 20 por contiguidade. E é a estas sinapses elétricas ou ligações
cento da energia do corpo. E entre neurónios contíguos que chamamos a energia
desta percentagem, apenas de escura do cérebro», explica José Antonio Portellano
1 a 2% se sabe para que serve, Pérez, neuropsicólogo e professor do Departamento
para que é utilizada. Porque é de Psicobiologia da Faculdade de Psicologia da Uni-
que existe uma desproporção versidade Complutense de Madrid.
tão grande entre o tama- Comparando com as sinapses ou ligações químicas,
nho físico deste órgão e o seu as sinapses elétricas são muito mais rápidas, ou seja, a
consumo de energia? E, so- transferência de informação entre os neurónios ocorre
bretudo, como é possível que não saibamos, em pleno a uma velocidade superior. Mas, para além disso, pou-
século XXI, como são gastos 18 ou 19% da energia utili- co se sabe: «Ainda não existe uma forma científica de
zada pelo cérebro, a chamada «energia escura»? Várias as identificar. Sabemos que existem, mas não como es-
teorias científicas tentam esclarecer estas questões. tudá-las, pois ainda não foi desenvolvido um método
Em primeiro lugar, do ponto de vista psicobioló- para o fazer», continua Portellano.
gico, o que se sabe é que a energia escura do cérebro «A energia escura no cérebro é uma hipótese que
se deve a um dos dois tipos de ligações neuronais que alguns investigadores defendem porque, do que se
existem: as sinapses elétricas. «Basicamente, o cére- sabe sobre o cérebro até agora, apenas uma peque-
bro funciona através de ligações entre neurónios, que na percentagem da energia total que consome foi
se chamam sinapses. Existem dois tipos de sinapses: contabilizada», acrescenta Ana Pérez Menéndez, da
químicas e elétricas. As sinapses químicas, que são Sociedade Espanhola de Neurologia. «Como ainda não
mais abundantes e mais frequentes, envolvem a liga- se sabe como é que o cérebro utiliza a restante energia
ção entre dois neurónios que estão separados por um que não foi contabilizada até agora, surgiram várias
neurotransmissor. Foram efetuadas muitas investi- teorias para tentar explicá-la, e uma delas é a da ener-
gações e sabe-se muito sobre elas. No entanto, quase gia escura do cérebro.
As ligações entre os
neurónios são chamadas
sinapses. Estas podem ser
químicas e eléctricas.
ISTOCK
28 SUPER
São as sinapses elétricas ou ligações entre neurónios
adjacentes que são chamadas a energia escura do cérebro
ISTOCK
chle publicou um artigo na revista científica Science,
em 2006, intitulado The dark energy of the brain, no
qual defendia que a elevada necessidade de energia do
cérebro se deve ao facto de este órgão necessitar de
inibir a grande maioria da informação que recebe e de
ser capaz de selecionar, exclusivamente, desta enorme
quantidade de impactos que percepciona, os elementos
necessários para estabelecer uma resposta coerente e
adequada ao contexto e à situação.
Assim, de acordo com esta tese, toda a informação
que percebemos através dos sentidos — o que vemos,
o que ouvimos, o que cheiramos — está a ser percebida
de facto pelo cérebro; os órgãos correspondentes aos
sentidos — os olhos, os ouvidos, o nariz — são apenas
um ponto de entrada, dispositivos biológicos através
dos quais a informação é acedida, sendo o cérebro o
verdadeiro captador dos estímulos. Na imagem, uma representação do envio de sinais elétricos e
Uma vez recebida toda esta informação, Raichle ar- químicos ou sinapses de um neurónio. As sinapses elétricas
gumenta que o cérebro descarta a maior parte dela e ocorrem a um ritmo muito mais rápido do que as sinapses químicas.
retém apenas o que é necessário para estruturar res-
postas coerentes ao ambiente e ao momento. Esta vasta
energia investida na tarefa de inibir a informação que
não é necessária num determinado momento é o que complicada de processos químicos e elétricos. Isto
Marcus chamou a «energia escura» do cérebro. significa que está constantemente a trabalhar, fazen-
do milhões de sinapses ou ligações entre neurónios,
HOMEOSTASIA. Uma segunda corrente científica que independentemente de estarmos a dormir ou acorda-
tenta esclarecer a energia escura do cérebro defende dos, ou de estarmos envolvidos em qualquer atividade
que esta é utilizada para regular a homeostasia do or- física ou intelectual, intensa ou não. Porque as funções
ganismo. Ou seja, o cérebro utiliza-a para manter o do cérebro incluem também a regulação da tempera-
equilíbrio interno das funções orgânicas que preser- tura corporal, a circulação sanguínea, a respiração e
vam a saúde. «A razão pela qual o cérebro tem um a digestão. Para realizar todos estes processos quími-
consumo de energia tão significativo em relação ao cos e elétricos é necessária uma grande quantidade de
resto dos órgãos do nosso corpo deve-se ao trabalho energia», continua Menéndez, da Sociedade Espa-
que realiza, pois é como o nosso computador central. nhola de Neurologia. O cérebro consome tanta energia
Todo o nosso sistema de vida, tanto físico como men- porque é o órgão metabolicamente mais importante»,
tal, depende dele e está ligado a ele por uma mistura corrobora o neuropsicólogo José Antonio Portella-
Conectividade
cerebral
N ão há dúvida de que compreender a
energia escura do cérebro é um de-
safio, e é por isso que várias disciplinas
científicas e médicas estão a tentar encon-
trar diferentes sistemas para o conseguir.
«Um sistema que está a ser cada vez mais
utilizado para identificar a energia escura
do cérebro e compreender melhor as suas
ligações é o conectoma, que tenta analisar
todas as ligações do cérebro para elaborar
mapas de conetividade entre sinapses e,
assim, compreendê-las melhor», explica Jo-
SHUTTERSTOCK
SUPER 29
A expansão
do universo
F oi o astrónomo americano Edwin Hubble que, em
1929, se apercebeu que, quanto mais longe uma
galáxia está da Terra, mais rapidamente se afasta do
nosso planeta, em vez de se aproximar dele, e a um
ritmo constante. Quase 60 anos após a revelação de
Hubble, os investigadores fizeram outra descoberta
surpreendente: o aumento das distâncias cósmicas
das estrelas mais distantes. No final da década de
1990, depois de estudarem supernovas distantes,
duas equipas de cientistas descobriram que a luz
das explosões estelares era mais fraca do que o es-
perado, indicando que o Universo não só se está a
expandir, como também se está a expandir a um rit-
SHUTTERSTOCK
mo acelerado.
30 SUPER
O cérebro humano
MIT
tem um volume mais
pequeno de canais
iónicos para
transmitir energia
entre os neurónios,
mas estes são muito
eficientes e afetam
energia a tarefas
cognitivas
complexas.
está em repouso ou que não está a pensar em nada. é o que consome mais energia. Nas espécies mais pró-
O nosso eu consciente pode não estar a pensar, mas ximas do homem, como os macacos, chimpanzés,
a parte inconsciente do cérebro continua em ple- gorilas, bonobos... o seu consumo é muito menor por-
no funcionamento. O exemplo mais extremo que que, embora o cérebro seja importante, não atinge os
demonstra esta atividade constante do cérebro é o níveis de complexidade humanos. O cérebro humano é
estado conhecido como «coma permanente», quan- mais evoluído, tem um quociente de encefalização mais
do o corpo está clinicamente morto, mas o cérebro elevado», explica Portellano. «Mesmo em animais
continua ativo. com grandes cérebros, como os elefantes ou as baleias,
a proporção de consumo de energia é mais elevada na
EFICIÊNCIA ENERGÉTICA. O uso de energia pelo cérebro espécie humana.
humano também seria a explicação para a diferença
entre o nosso cérebro e o de outros animais. De acor- ENERGIA NEGRA NO COSMOS. A expressão «energia escura
do com o artigo publicado na Nature, Allometric rules do cérebro» faz uma analogia com a chamada «energia
for mammalian cortical layer 5 neuron biophysics, escura do universo». Em cosmologia física, a energia
os seres humanos são mais avançados cognitivamente escura é uma forma de energia que estaria presente em
a nível neurológico porque os nossos cérebros gerem a todo o espaço, produzindo uma força ou pressão que
energia de que necessitam de forma mais eficiente. tenderia a acelerar a expansão do Universo, ou seja,
Uma equipa de investigadores do Massachusetts uma espécie de força gravitacional repulsiva que fun-
Institute of Technology (MIT) descobriu que, em com- cionaria literalmente ao contrário da gravidade.
paração com outros mamíferos, o cérebro humano Desta forma, a energia escura explicaria como é pos-
tem muito menos canais iónicos para a transmissão de sível que o Universo esteja a expandir-se a um ritmo
energia entre os neurónios, mas que funcionam me- acelerado quando a gravidade faz com que a matéria se
lhor e permitem afetar a energia a tarefas cognitivas atraia e não se expanda. De acordo com a cosmologia,
complexas sem a desperdiçar em tarefas menos impor- a energia escura contribuiria com quase 69% da massa
tantes e sem a esgotar por uma multiplicidade de canais ou energia total do universo.
desnecessários. «Sem especular sobre astrofísica, o que podemos
Os investigadores suspeitam que é possível que a re- dizer é que existe uma certa relação que consiste no
dução da densidade destes canais no cérebro humano facto de se saber que tanto a energia escura do cére-
tenha sido causada por uma compensação evolutiva, ou bro como a do universo existem e que têm uma função
seja, que tenham sido minimizados no nosso sistema reguladora muito importante mas, de momento, não
biológico para otimizar outras características. podem ser medidas ou avaliadas porque não existem
«Comparado com outros mamíferos», diz o neurop- métodos nem mecanismos», conclui José Antonio
sicólogo José Antonio Portellano, «o cérebro humano Portellano. e
SUPER 31
ENTREVISTA
das fundadoras do
Conselho Europeu
de Investigação,
reconhece que é
demasiado tarde
para mudar o nome
da inteligência
artificial, que não
pode ser equiparada
à inteligência
humana.
32 SUPER
Helga Nowotny
A inteligência artificial não é capaz de significar, não tolera a ambiguidade e não
compreende a ironia. É concebida pela e na sociedade. Para esta socióloga, a IA pode
ser um espelho no qual descobrimos mais sobre nós próprios e sobre a forma como
nos relacionamos uns com os outros. Não é de temer, mas é uma ferramenta de que
precisamos de estar conscientes dos seus efeitos sobre nós.
M
uitos trabalhos que É o que defende Nowotny, uma das fundadoras do ERC
costumavam ser efe- (Conselho Europeu de Investigação), a que presidiu en-
tuados por humanos tre 2010 e 2013. Nowotny é membro sénior da Escola de
são agora executados Governação Transnacional (STG) no EUI, onde o Profes-
com a mesma com- sor Daniel Innerarity é presidente da AI e Democracia,
petência, se não mais, professor emérito de Estudos de Ciência e Tecnologia no
por inteligências ar- ETH Zurique, membro da Academia Sueca de Ciências
tificiais, e espera-se e, em 2017, recebeu a Medalha do Presidente da Acade-
que cada vez mais mia Britânica.
trabalhos possam ser
convertidos em algo- Como surgiu o seu interesse pela ciência, tecnologia,
ritmos, o que reduzirá cultura e inovação e porque é que parece estar particu-
os custos e aumenta- larmente interessada na inteligência artificial?
rá a eficiência. No entanto, Helga Nowotny não vê esta Ao longo da minha carreira académica interessei-
evolução como puramente positiva. Certos tipos de tra- -me pelos estudos sobre ciência e tecnologia (CTS),
balho, mais ligados à produção de conhecimento, à ino- um campo interdisciplinar que examina a criação, o
vação e à criatividade, podem ser prejudicados se forem desenvolvimento e as consequências da ciência e da
submetidos a algoritmos rígidos alimentados por bases tecnologia nos seus contextos históricos, culturais
de dados incompletas e/ou tendenciosas. Além disso, a e sociais. Achei fascinante explorar duas grandes
nossa capacidade de controlo pode ser ainda mais redu- questões. Por um lado, como é que a tecnologia nos
zida porque estas máquinas algorítmicas irão monito- permite fazer coisas que não podíamos fazer antes,
rizar e limitar as nossas ações e possibilidades. Apesar para o bem e para o mal. Por outro lado, porquê e co-
da fé que cada vez mais pessoas têm nos algoritmos, mo? Ou seja, porque é que a tecnologia tem o poder de
talvez semelhante à fé num deus omnisciente, qualquer mudar a forma como vivemos? Quais são os meca-
solução deste tipo deve também in- nismos envolvidos para melhorar
tegrar a dimensão humana e a nossa os negócios e a economia? Serve
relação alterada com um ambiente para nos unir ou para nos dividir?
tecnologicamente transformado.
Os algoritmos são e serão extraor- «A tecnologia é A tecnologia não é algo que cai do
céu. É inventada, moldada e di-
dinariamente úteis, como pregos e
martelos sofisticados, mas para en- inventada, moldada fundida pela e na sociedade. Tem
um enorme potencial para melho-
frentar a incerteza do futuro, cada rar as capacidades humanas e ca-
vez mais dominado pelos chamados e difundida pela e be à sociedade decidir como a se-
problemas perversos, precisamos lecionamos e como a regulamos.
de sabedoria, criatividade e ousa- na sociedade» Os algoritmos não são novos. Ángel
dia, não de inteligência algorítmica. Carmona, em 1976, publicou Poe-
SUPER 33
«Não há magia nas previsões das máquinas. Elas não
conhecem o futuro e, na melhor das hipóteses, apenas
oferecem probabilidades»
mas V2: Poesia composta por um computador, que é e confiar nela; tal como fizemos com líderes políticos
considerado o primeiro livro totalmente escrito por um carismáticos no passado. Apreciamos a conveniência
computador em Espanha. Mas, perante o entusiasmo dos serviços que as aplicações fornecem e gostamos
recentemente suscitado por ferramentas como o Cha- das comodidades que oferecem. Por conseguinte, con-
tGPT, voltam a ser invocadas ideias de ficção científica sideramo-las positivas. Além disso, a IA vem carrega-
como a singularidade ou a inteligência artificial geral. da de novos dispositivos digitais. E o que não vemos,
Chega-se mesmo a sugerir que os algoritmos seriam a «caixa negra» dos seus algoritmos, parece «cien-
melhores governantes do que os atuais políticos. No en- tífico» e, por isso, presume-se que seja «objetivo».
tanto, como diz, e bem, no seu livro In AI we trust, o Os algoritmos preditivos têm esta precisão aparente-
economista Brian Arthur avisou-nos que os algoritmos mente estranha de «conhecer-nos melhor do que nós
não devem ser considerados milagres, mas sim verbos: próprios» apenas porque se baseiam em registos do
fazem coisas, sim, mas também podem fazê-las mal. nosso comportamento passado que extrapolam para o
Em primeiro lugar, porque os problemas nem sempre futuro. Tendemos a ignorar o facto de as máquinas se-
podem ser reduzidos a um conjunto de algoritmos e, rem mais fiáveis em relação ao nosso passado do que
em segundo lugar, porque a explicabilidade do que um a nossa memória altamente seletiva e defeituosa. Por
algoritmo nos oferece é uma questão que vai para além conseguinte, não há magia nas suas previsões. Não-
da técnica. Precisamos de técnicas e métodos que expli- conhecem o futuro e, na melhor das hipóteses, apenas
quem os resultados oferecidos por uma IA de uma for- oferecem probabilidades. Não creio que exista uma li-
ma que os humanos possam compreender. Isto equivale gação direta entre a nossa visão da IA e a ficção cien-
a abrir a caixa negra da aprendizagem automática, onde tífica, mas esta abriu a porta a devaneios coletivos em
muitas vezes nem mesmo os seus projetistas conseguem que coisas incríveis podem ser feitas com a ciência e
explicar como é que um algoritmo chega a uma decisão. a tecnologia. Os riscos são tolerados porque, de mo-
mento, «só» acontecem no mundo da imaginação.
Porque é que temos tanta fé nos algoritmos? Será que
a ficção científica nos influenciou negativamente nesse O paradoxo de Moravec diz-nos que «é comparativa-
sentido? Será que precisamos de acreditar em algo? Ou mente fácil conseguir que os computadores apresentem
será que simplesmente não compreendemos muito bem capacidades semelhantes às do ser humano adulto em
como funcionam? testes de inteligência, e difícil ou impossível conseguir
Em parte, temos fé na IA porque queremos acreditar que possuam as capacidades percetivas e motoras de
34 SUPER
GTRES
As próteses
não são
apenas
membros
artificiais
concebidos
de forma
inteligente,
mas incluirão
mais chips
eletrónicos
para substituir
ou melhorar
as funções
humanas.
um bebé de um ano». As inteligências artificiais seme- nhada com um corpo, desde cada célula até ao intes-
lhantes à inteligência humana não estão a ser conce- tino e ao cérebro.
bidas porque não se sabe como funciona a inteligência Os avanços feitos na robótica são muito úteis quando
humana. Haverá IAs cada vez melhores, mas nenhuma se pensa em próteses. Não se trata apenas de mem-
GAI (inteligência artificial geral), a menos que seja en- bros artificiais concebidos de forma inteligente, mas
contrada por acaso, por emergência ou... a muito, mui- incluirão mais chips eletrónicos para substituir ou
to longo prazo. melhorar as funções humanas. Isto tem acontecido
desde que os nossos antepassados inventaram os ócu-
Acha que este paradoxo alguma vez será resolvido e los para ver melhor ou as bengalas para andar melhor.
existe investigação nesse sentido? Deveríamos com- Na minha opinião, a inteligência artificial geral conti-
preender primeiro o que é a inteligência humana an- nua a ser uma miragem: quanto mais perto parece es-
tes de podermos criar IA? Até que tar, mais longe fica. Conceitos co-
ponto estamos longe desse desafio mo a «singularidade», ou seja, o
se tivermos em conta ideias como momento em que a IA ultrapassará
a ciência cognitiva incorporada, o
paradigma da ciência cognitiva que
«A inteligência as capacidades humanas em todas
as suas dimensões, servem como
defende que muitas características
da cognição, humana ou outra, são
artificial não é uma distração deliberada dos ver-
dadeiros problemas atuais, como
determinadas por aspectos de todo
o corpo do organismo?
equivalente à o aumento das desigualdades ou
a enorme concentração de poder
É importante lembrar que a «in-
teligência» artificial não é equi-
inteligência económico e político das empresas
internacionais.
valente à inteligência humana.
Os especialistas concordam que
humana» Podemos programar uma inteli-
teria sido melhor dar-lhe outro no- gência artificial para ser altamente
me, mas agora é demasiado tarde. competente num assunto em que
As máquinas digitais não compreendem, não podem as regras são explícitas, mas não podemos programá-
fazer sentido ou conferir significado. Não toleram a -la para integrar diversos assuntos (mesmo campos in-
ambiguidade, nem a compreendem quando se trata teiros do conhecimento com as suas próprias discipli-
de ironia. Mas são incrivelmente eficazes na execu- nas) em que muitas regras estão implícitas. Em 1997,
ção das tarefas que lhes impomos. O consenso atual o Deep Blue derrotou o campeão mundial de xadrez
na ciência cognitiva e neurológica é que a cognição Gary Kasparov. Mas e se, em vez de competirmos com
humana (e animal) é «incorporada». Todo o organis- as máquinas, colaborássemos com elas? Em junho de
mo está envolvido em tudo o que envolve percecionar, 1998, Kasparov jogou o primeiro torneio deste tipo, a
pensar, sentir, agir e estar vivo. Os organismos vivos que chamou «xadrez avançado». Este híbrido máqui-
são esta maravilhosa coordenação da mente emara- na-humano, um centauro, conseguiu ser mais com-
SUPER 35
petente do que qualquer humano e qualquer máquina rem as diferenças? O que é que esses textos gerados
separadamente. artificialmente revelam sobre as nossas formas de
escrita (na maioria das vezes medíocres) ou sobre os
O que pensa da chamada abordagem «centauro» para pensamentos que nelas foram contidos? Quando é que
resolver as limitações da IA e da inteligência humana? somos honestos ou apenas educados? Quando é que
O caminho mais frutífero para a IA é, de facto, desco- escrevemos «nas entrelinhas», esperando que o des-
brir como utilizá-la para complementar as capacida- tinatário possa (ou não) ler nas entrelinhas? O abuso
des humanas. Isto deve recordar-nos que a IA é uma é sempre possível e muitas questões legais têm de ser
ferramenta criada pelos humanos. Podemos delegar resolvidas, por exemplo, no que diz respeito aos direi-
algumas tarefas a uma IA, mas quando a aplicamos tos de autor para artistas e designers criativos. Mas
às nossas próprias tarefas, podemos descobrir áreas também temos outro espelho no qual podemos desco-
humanas subutilizadas e experimentar fazer as coi- brir mais sobre nós próprios e sobre a forma como nos
sas de forma diferente. É o que está a acontecer neste relacionamos uns com os outros.
momento com o ChatGPT e outros modelos de IA gene-
rativa que produzem imagens depois de serem solici- O automóvel tirou os ferreiros, os criadores de cavalos
tados por nós. e os correios, mas em contrapartida criou uma nova
O ChatGPT pode escrever textos convencionais em indústria. A IA vai acabar com os empregos de baixa
poucos segundos, pode fazer os trabalhos de casa de criatividade, mas, em contrapartida, vai criar empre-
um aluno em muito pouco tempo e em breve, prova- gos onde são necessárias pessoas mais qualificadas. Não
velmente, será capaz de escrever boas peças de lite- é certo que a IA venha a tirar o seu emprego, mas o que
ratura. Mas, por exemplo, no caso dos trabalhos de parece provável é que quem utilizar a IA irá tirar o em-
casa dos alunos, não devemos preocupar-nos tanto prego a quem não a utilizar.
com o facto de eles fazerem batota, mas sim aceitar
seriamente o desafio: como podemos educar os alunos Acha que a IA é apenas uma ferramenta sofisticada e
de forma diferente? Podemos utilizar o ChatGPT para disruptiva como a imprensa escrita ou é realmente ou-
trabalhar com os alunos e comparar os textos que o tra coisa?
ChatGPT gerou para eles, para descobrir o que suge- O clássico de Elisabeth Eisenstein, «The Printing Press
Temos de descobrir
como complementar
as tarefas humanas
através da IA, como
delegar algumas
coisas na IA, como
utilizar o ChatGPT e
outros modelos de IA
generativa.
SHUTTERSTOCK
36 SUPER
as an Agent of Change», de 1979, mostra o extraordi-
nário impacto que a imprensa teve no Renascimento, O sistema educativo é
desafiado a incluir todas
na Reforma, na Revolução Científica e no Iluminismo.
as crianças num futuro que
Ao criar espaços e oportunidades para que leitores será digital, dotando-as
mais empenhados comparassem, examinassem cri- das competências
ticamente, partilhassem e divulgassem ideias, con- necessárias e de um
duziu a uma maior produção de conhecimento. Resta pensamento crítico sólido.
saber se a IA será encarada pelas gerações futuras de
forma semelhante. O resultado não está predetermi-
nado. No quotidiano, a IA criará novos empregos e ou-
tros desaparecerão. Mas também poderá contribuir,
juntamente com outros desenvolvimentos, para uma
redução do tempo de trabalho. Em 1929, John M. Key-
nes previu, no seu discurso no Clube dos Estudantes
de Madrid, que dentro de cem anos só trabalharíamos
15 horas por semana. Ainda temos mais 6 anos para
ver se ele tinha razão nesta previsão. Concordo que
aqueles que não utilizam a IA não têm hipóteses, mas
não sabemos quantos ficarão para trás ou terão de
SHUTTERSTOCK
trabalhar em empregos mal pagos.
A questão é saber se podemos evitar o fosso crescente
entre os «nómadas digitais» super inteligentes, ins-
truídos e sofisticados, uma elite que pode trabalhar
em qualquer lugar e cujos filhos beneficiam do acesso
à melhor educação desde o início, e o resto da popu- Devemos, pois, voltar-nos para a complexidade e
lação. Não podemos deixar ninguém para trás. Acima perguntar o que podemos aprender sobre os sistemas
de tudo, o sistema educativo tem o desafio de incluir complexos para melhor enfrentar as incertezas do fu-
todas as crianças num futuro que será digital, dotan- turo. Os sistemas complexos têm várias característi-
do-as das competências necessárias e de um pensa- cas: consistem em redes dinâmicas de redes, em que
mento crítico sólido. mudanças numa parte têm repercussões noutras par-
tes; são únicos na geração de «emergência», novos
No seu livro, afirma que a lógica linear subjacente à fenómenos que são imprevisíveis, uma vez que sur-
ideia de progresso não se coaduna com a não linearida- gem de novas ligações das partes componentes do sis-
de, uma caraterística dinâmica dos tema; e têm «pontos de viragem»,
sistemas complexos. Estamos a en- em que ocorre uma transição de
trar numa era em que tudo se torna fase de um estado para outro. Is-
mais complexo e em que enfrenta- «A IA é uma to pode, mas não deve, envolver o
mos problemas mais complexos, colapso.
como as alterações climáticas ou a ferramenta ao A ciência ajuda-nos a compreen-
pandemia de COVID-19. der e a modelar melhor os sistemas
SUPER 37
C I Ê N C I A
a valorização do que
a fronteira do
conhecimento indicia
e a observação sem
preconceitos da vida
tem induzido uma
alteração gradual do
paradigma vigente.
38 SUPER
A CIÊNCIA NO LIMIAR DE UM
NOVO PARADIGMA
Observar a vida sem preconceitos. Valorizar o que indicia a fronteira do conhecimento.
SUPER 39
N
o final do século XIX a ciência com influência decisiva na estruturação do pensamento
expressava confiança sobre científico durante todo o século XX.
o seu amplo conhecimento O quadro da ciência como tendo atingido os píncaros
das dinâmicas estruturais do da compreensão do mundo foi estilhaçado pelo desen-
Universo, ao nível das ciên- volvimento, nos primeiros anos do século XX, das duas
cias físicas a partir das já teorias que são atualmente os alicerces do conhecimento
bem desenvolvidas áreas da científico, a Teoria da Relatividade e a Teoria Quântica.
mecânica, termodinâmica e
eletromagnetismo, no con- OS PILARES DA CIÊNCIA ATUAL. No início do século XX es-
texto das ciências biológicas tavam identificadas algumas anomalias no sentido da
na sequência da publicação existência de observações experimentais não compatí-
em 1859 da Origem das Espécies de Charles Darwin. veis com as previsões da ciência da altura, em particular
Assumia-se que muito havia ainda por descobrir, mas a radiação emitida por corpos aquecidos, a constância
nada de fundamental, convicção bem sintetizada pelo da velocidade da luz, e também uma intrínseca incom-
físico Albert Michelson que na inauguração em 1894 do patibilidade entre a mecânica Newtoniana e a teoria
Ryerson Physical Laboratory da Universidade de Chica- eletromagnética.
go afirmou: «Embora nunca seja seguro afirmar que o Einstein tinha consciência de tudo isto, mas de facto o
futuro da Ciência Física não tem maravilhas reserva- que motivou os seus esforços que levaram à formulação
das ainda mais surpreendentes do que as do passado, da Teoria da Relatividade Restrita (1905) e Generaliza-
parece provável que a maioria dos grandes princípios da (1915) foi procurar que as leis da Física determina-
subjacentes estejam já firmemente estabelecidos ...». das por um observador fossem as mesmas independen-
Esta autoconfiança derivava, de modo objetivo, do temente do seu estado de movimento. Isso implicou o
sucesso da ciência na compreensão de uma vasta gama estabelecimento dos dois princípios base da Relativi-
de fenómenos naturais, também de algo mais subjeti- dade: i) a velocidade da luz é um absoluto, ii) estando
vo, mas em extremo relevante, associado à sua liber- o observador fechado num compartimento e constatar
tação dos estreitos limites impostos pela autoridade da que está a ser acelerado não há maneira de distinguir se
igreja, num processo que se iniciou no século XVI para essa aceleração corresponde à queda do compartimento
o caso das ciências físicas com o modelo heliocêntrico num campo gravitacional, ou se está a ser acelerado por
de Copérnico, sendo que para as ciências biológicas isso aplicação de uma qualquer força.
aconteceu a partir da publicação da Teoria da Evolução Em 1900 Max Planck impôs a si mesmo a tarefa de en-
de Darwin. Esta teoria, baseada nos princípios, i) va- contrar um modelo físico que permitisse explicar a ra-
riações incrementais das espécies induzidas por muta- diação eletromagnética emitida por corpos aquecidos,
ções aleatórias, ii) posteriormente filtradas pela seleção chegando sempre a incongruências. Desesperado, lem-
natural, colocou o acaso como elemento indutor da brou-se de considerar a possibilidade dessa emissão ser
complexidade biológica, conceito que rapidamente se feita por pacotes discretos de energia (quanta). Para sua
propagou para os domínios das ciências físicas e sociais, surpresa descobriu que essa hipótese permitia chegar a
Buraco negro
supermassivo em
órbita estelar no
centro da Via
Láctea, 2018.
©NICOLLE FULLER/NATIONAL SCIENCE FOUNDATION
40 SUPER
SHUTTERSOTCK
As questões filosóficas da mecânica
quântica relacionam-se com a
realidade, a matéria e a mente.
uma previsão teórica em acordo com os resultados ex- conhecida como Mecânica Quântica) opera no espaço-
perimentais. Nascia assim a Teoria Quântica, que pouco -tempo cuja estrutura é definida pela gravidade, objeto
depois recebeu de Einstein uma importante contribuição da Teoria da Relatividade. Previsivelmente, algures no
pela clarificação do significado desses quanta de energia. futuro aparecerá uma nova teoria que agregará estas
Nos anos seguintes múltiplas contribuições de muitos duas, permitindo o acesso a novos e insuspeitos hori-
cientistas foram sendo agregadas, culminando em 1924 zontes de conhecimento.
na proposta de Louis de Broglie de que cada partícula ti-
nha associada um comportamento ondulatório, a qual, ALGUMAS IMPLICAÇÕES DESTAS TEORIAS. Segundo a Teoria da
conjugada com desenvolvimentos anteriores, levou à Relatividade o espaço e o tempo estão intrinsecamente
formulação do Princípio da Incerteza de Heisenberg. Por interligados apesar de serem de natureza distinta. Em
essa altura revelou-se necessário organizar todos estes conjunto, constituem o palco da existência observável
avanços parcelares, no que resultou a estrutura axiomá- onde atuam os atores matéria e energia, com a particu-
tica da Teoria Quântica estabelecida independentemente laridade de não ser passivo, isto é, o palco condiciona
por Schrödinger e Heisenberg. Dessa matriz axiomática a evolução dos atores e vice-versa. Este encadeamento
resultou um vasto conjunto de consequências teóricas estará na origem de fenómenos previstos pela teoria e
que foram sendo validadas pela experiência, também verificados experimentalmente, mas que efetivamente
pela tecnologia que a partir delas se desenvolveu e que não entendemos, como é o caso da dilatação temporal
suporta muito da nossa Civilização. tão bem ilustrada no famoso paradoxo dos gémeos. A
É relevante salientar que estando confirmada a vali- um nível mais fundamental, sendo a velocidade a ra-
dade dessa matriz axiomática, no entanto ela é-nos in- zão entre espaço percorrido e o intervalo de tempo
trinsecamente estranha, não tendo sido possível extrair correspondente, a constância da velocidade da luz sig-
desses axiomas uma ideia agregadora suficientemente nifica que, faça o observador o que fizer, o espaço que
ampla de onde possa decorrer a teoria, ao contrário do ele observa a luz percorrer e o tempo de propagação
que aconteceu com a Relatividade. que determina para esse percurso ajustam-se de mo-
Estas duas teorias são os pilares em que assenta o edi- do a que a sua razão seja um invariante. É como se, de
fício da nossa ciência atual, sendo certo que existe uma alguma forma, o valor absoluto da velocidade da luz
assimetria entre elas já que a Teoria Quântica (também condicionasse as características do espaço-tempo a que
SUPER 41
VIKIMEDIA COMMONS
Buraco Negro.
o observador tem acesso. Sabemos que isso acontece, sua existência foi, de facto, «oficializada» pela atribui-
mas desconhecemos porque assim é. ção em 2022 do Prémio Nobel da Física a Aspect, Clauser
A equação do campo gravítico na Relatividade Geral e Zeilinger. Para ilustrar o que está em causa, suponha-se
é intrinsecamente não-linear, com a consequência de que durante algum tempo duas partículas interatuam de
tornar difícil a descoberta de soluções exatas, para além forma muito próxima. De seguida, afastam-se em sen-
de limitar a aplicação de técnicas padrão para obter so- tidos opostos. Segundo a Teoria Quântica, há uma en-
luções aproximadas. Sendo isto um facto, a verdade é tidade, designada função de onda, que abrange as duas
que logo em 1916 Schwarzschild encontrou uma solu- partículas, independentemente da distância entre elas.
ção exata para essa equação, com a propriedade de, em Assim, se uma dessas partículas é observada resultando
situações de extrema concentração de massa, o campo na identificação de algumas das suas propriedades, ins-
gravitacional ser tão forte que impede mesmo a luz de tantaneamente e independentemente da distância a que
deixar a sua vizinhança. O aparente absurdo desta pre- se encontre a outra partícula, esta fica também com as
visão levou a que durante muito tempo fosse conside- suas propriedades determinadas, quando previamente à
rada apenas uma curiosidade matemática, sem adesão observação da primeira isso não acontecia. Este tipo sur-
à realidade, situação que se alterou a partir da década preendente de interações, referidas por Einstein como
de 1960, levando o físico John Wheele em 1967 a batizar «ação fantasma à distância», é uma característica in-
estas entidades como buracos negros. trínseca do mundo quântico, sendo que desconhecemos
Relevante neste contexto é salientar que o estatuto dos qual o mecanismo físico subjacente.
buracos negros mudou muito nas duas últimas décadas, Uma outra consequência da Teoria Quântica é não ser
tornando-se primeiríssimos atores no estabelecimento possível a ausência de movimento, existindo sempre
da dinâmica Cósmica. Há evidências que apontam para um latejar associado ao aparecimento no espaço-tempo
a existência de uma panóplia de pequenos, «normais», de fluxos de energia (que podemos associar a partículas,
e gigantescos buracos negros que condicionam, em es- designadas partículas virtuais), que dele desaparecem
calas diversas, fluxos de matéria e de energia no Univer- antes de poderem ser detetados, mas que influenciam
so. Também há indicações teóricas que apontam para fenómenos que aí ocorrem (por exemplo, o decaimento
que os buracos negros possam ser, em certas condições, de átomos de elementos radioativos). Isto significa que
portais de acesso a wormholes (buracos de minhoca) no Universo existe um nível basal de energia diferente
que conectam diferentes regiões do espaço-tempo des- de zero mesmo na ausência de matéria e de radiação.
te universo, ou mesmo portais para outros universos. Ou seja, vácuo no sentido de ausência de tudo não exis-
Fletindo para a vertente quântica, em 1935 Einstein, te na Natureza, mas antes um vácuo, designado vácuo
Podolsky e Rosen identificaram um tipo de fenómenos quântico, com partículas que aparecem e desaparecem
decorrente da estrutura axiomática da Teoria Quântica, demasiado depressa para poderem ser observadas. Isto
mais tarde referenciado como enlaçamento quântico. A levanta a questão: aparecem de onde?
O AJUSTE FINO DO UNIVERSO. É hoje razoavelmente con- SISTEMAS E VIDA. O que foi expresso nos parágrafos an-
sensual que as leis físicas/condições iniciais estão teriores sobre o que a Relatividade e a Teoria Quântica
Enlaçamento
quântico. Ilustração
conceptual de um
par de partículas
quânticas
GETTYIMAGES
interagindo à
distância.
SUPER 43
©MARTINA MARITAN CC-BY-4.0
de de, por sensorização, aferir continuamente os valores
das variáveis relevantes do meio externo (temperatura,
pressão, humidade, contaminações,…), processar esses
dados e daí extrair informação sobre o que é necessá-
rio ao nível da modificação dos seus processos internos
para se manter ativa nas novas condições ambientais,
proceder às correspondentes alterações e monitorizar
o seu impacto, tudo isto envolvendo cadeias de reali-
mentação de elevada sofisticação. Tendo presente que
a célula tem um metabolismo basal que envolve mais de
10 000 reações eletroquímicas por segundo, devida-
mente coordenadas e sequenciadas, começa-se a intuir
aquilo que por vezes se expressa como a «impossível»
complexidade dos sistemas biológicos.
Essa complexidade evidencia-se qualquer que seja o
processo associado à dinâmica celular. Por exemplo, no
citoplasma, em qualquer momento, milhares de proteí-
nas são guiadas com destinos bem definidos seguindo um
emaranhado de percursos, o que significa a existência de
A célula tem um metabolismo basal que envolve mais de um sofisticado sistema de «gestão de trânsito». Um ou-
10 000 reações eletroquímicas por segundo tro exemplo é a fotossíntese, processo no qual as plantas
convertem energia solar em energia química. Envolve
deixam antever, assim como a sintonia extrema das leis a molécula de clorofila constituída por 136 átomos de 5
físicas/condições iniciais, aponta para a existência de elementos dispostos numa estrutura precisa. Quando o
vastos horizontes de desconhecido. Na realidade, isso fotão da luz incidente interatua com a molécula é absor-
é de todo evidente à nossa volta. Para situar o que está vido em condições muito específicas, fazendo com que
em causa vejamos o que se entende por sistema e o que um dos seus eletrões migre da sua localização na cadeia
significa a sua existência. ao longo de um percurso precisamente confinado para
Sistema é um conjunto de elementos agregados de induzir uma sequência controlada de reações químicas
uma determinada forma para permitir fluxos controla- envolvendo 6 moléculas de água e 6 moléculas de dióxido
dos de matéria e de energia procurando uma certa fun- de carbono, resultando numa molécula de glicose e em
cionalidade. Por exemplo, um frigorífico é um sistema 6 moléculas de oxigénio molecular, com a molécula de
que mantém uma certa temperatura de refrigeração no clorofila restaurada para o processo ser reiniciado. Para
seu interior, utilizando para o efeito um compressor
atuado por energia elétrica que liga e desliga consoante
a indicação de um sensor de temperatura.
É óbvio que para um sistema existir é necessário, i)
ISTOCK
projeto, e ii) materiais/componentes para a sua cons-
trução. Mas não será preciso algo mais?
Considere-se agora um dia muito quente que origina
um sobreaquecimento do compressor. Se este não for
refrigerado acaba por avariar e o frigorífico deixa de
funcionar. Isto revela a necessidade de uma terceira di-
mensão para manter o sistema funcional em condições
ambientais variáveis, nomeadamente listas de instru-
ções condicionais, ou seja, software.
Conclui-se, pois, que a existência de sistemas envol-
ve a conjugação de três vertentes: projeto, hardware,
software. Na verdade, isto é tão evidente que não deixa
de ser surpreendente como tantas vezes passa desper-
cebido. Um telemóvel ou um computador são de todo
inúteis caso neles não seja incorporado software para
gerir o seu funcionamento, ou seja, inteligência.
Estes sistemas são projetados pelo Homem, pelo que
a inteligência associada ao seu software é a inteligência
humana. Acontece que estamos rodeados por sistemas
que não tiveram a nossa intervenção, os sistemas asso-
ciados à vida nas suas múltiplas manifestações, em par-
ticular nós próprios!
Considere-se a unidade base da vida, a célula. A pa-
lavra base pode fazer passar a ideia de que se trata de
um bloco simples, perceção essa amplificada pelo facto
SHUTTERSTOCK
44 SUPER
MATTEO CECCANTI/SIMONE CASSANDRA/UNIVERSIDADE DE MANCHESTER
além da existência desta reciclagem, causa perplexidade Uma Outra Perspetiva
a eficiência deste mecanismo a qual é próxima dos 100%,
isto é, nenhum fotão incidente é desperdiçado. do Princípio da Incerteza
As características deste processo fizeram suspeitar de
que estavam em jogo interações subtis ao nível do en-
de Heisenberg
laçamento quântico, o que foi confirmado em 2010 por
investigadores do Lawrence Berkeley National Labora-
tory e da Universidade da Califórnia que reportaram:
«este é o primeiro estudo a mostrar que o enlaçamen-
O
Princípio da Incerteza de Heisenberg estabelece que há
pares de grandezas físicas para os quais um melhor conhe-
cimento de uma delas implica um maior desconhecimento da
to quântico está presente na fotossíntese». Assim, a outra. Um desses pares é (tempo, energia), pelo que para uma
vida não só consegue tirar proveito destas subtilezas da determinada entidade, ΔE porΔexemplo, t uma partícula, caso se con-
Natureza, sendo que o faz em condições ambientais ΔE Δt(de siga identificar que Δ E
está Δ t
num ≥ 1,25
certo h estado durante o intervalo
temperatura e humidade) pouco favoráveis, algo que é ΔE Δt , entãoha=Δ
de tempo E Δque
energia Δt E lheΔestá t associada tem uma
ΔEΔt ≥ 1,25h ΔEΔt ≥ ħ / 2 ΔE que hE/Δ2Eπ ΔtΔt
Δ
incompreensível no estado atual da ciência. ΔEΔt ≥ 1,25h ΔΔ
indeterminação tΔt ≥Δ1,25
Eobedece EΔàthrelação≥ 1,25h ΔEΔt ≥ ħ / 2, onde
h / 2π ħ = h / 2π , sendo ΔmEΔΔEtΔ≥t1,25
hΔathconstante ≥de1,25 hh
O que estes exemplos indicam é que a célula, h =para
h = h / 2π Δ E ≥= 1,25h / 2
h π = h / 2π Planck. ħ = ΔhE/ 2πΔt
além do hardware (as suas múltiplas estruturas), tem Este princípio também E éh hh=2/h2/π2cπcom outra perspetiva.
=mc
compatível ΔEΔt ≥ 1,25 Supo-
h
h m
de ser dotada de software para orientar o seu funciona-
Δ
h = hh/ 2de = πmmassa h m
h
nha-se
Δ E m
que Δ uma
t partícula aparece no espaço-tempo.
mento. Esta vertente do software da vida tem sido ΔE = mc 2 c
sis- Pela equação2dehEinstein Δt h isso ΔhEm tm2< 1,25um
Δsignifica h h = h / 2π
tematicamente ignorada, o que em si é surpreendente,
ΔΔE EΔ=tde mc 1,25hc demΔΔEEΔ
≥energia =Emc Δ
E mc
Δ2 =
Δt E≥2 =ħ2mc
= mc c c
c2 2 evento
/ c que origina um
Δt ΔEΔt < 1,25h aumento
tΔ
, onde
E
é a h h m da luz
velocidade
mas deixa de o ser, caso se considere o contexto cultural Δ E2πΔt <
ht= hAΔ/primeira
no vazio.
ΔE 1,25Δ=
reação hΔt(t1,25
=mc ΔE
ħΔserá
= hcΔ
Δ
h )t/ t/2π<ΔΔque
dizer
t ΔEΔΔEtΔ−<21t1,25
1,25
EΔtal
< 1,25
th<evento
1,25
h h Eé =impossível
dominante no Ocidente nos últimos 200 anos, caracte- Δ/ tΔΔEtmax ΔdoE=ΔUniverso,
t < 1,25
1,6 10 h s viola oΔprincípio mc 2da c
Δt = (1,25h) / ΔE poisΔ h t
aumenta
= ( 0,5ħ )
a energia
t ( 1,25 ×
t h ) o que
/ E
( h/ Δo/Etempo
1,25 E t ( 0,5ħ
) Δt queΔEa partí-
/ ) / ΔE
rizado por uma valorização do que é material e desva- ΔΔtE= (m1,25 ΔΔ tdaEh)energia.
/Δ Δ
ΔEt ΔNo = Δ = Δ h Δ Δ =
Δt < 1,25h
−22 tΔ =tentanto,
( (
=1,25 1,25 h)se ) ΔE −21
−21 conservação
t 1,6 10 s tmax 3,2 Δ10
htt ctal s Δ
(Δ1,25 /ttΔ≥E×Δħ10
Δ = × Δ t==mc × hhE=)ΔΔ
2
tEmax
21
sΔtmax ≥s×−21
1,25
cáE× =−21 1,6 =/ Δ
21,6 tsmax = 3,2 × 10−22 s
max E ,t−entãoħ10/ 2aΔindeterminação
−
lorização do imaterial, quando, na verdade, esta dupla
max culaΔΔestá Δ=por ≥1,6
Δ Δ
for10 ≥ 1,25
que 21
é omnipresente na nossa civilização tecnológica com as t Δ t = 1,6
= 1,6
× 10
× 10 s s Δt = (energia,
1,25h) / ΔE
ht= hΔ/da
na medida
Δ E =t Δ
2hπΔsua t1,25
/max2π=h1,6
<henergia éħ =×max10
maior
max
h / do
−21 que a sua própria
2ħπs= h / 2π
designações de hardware/software. pelo que não há violação desse princípio. Expresso Δtmax = 1,6for-
de outra × 10−21 s
Tendo em consideração o que se entende por sistema, ma,Δ haté
t =ao(m1,25 h h) m
intervalo /Δ deEtempo Δt = ( 0,5ħ ) / ΔE a partícula pode
coloca-se naturalmente a questão de como surgiram os estarΔdeste lado
Δ2E×sem −ser
212 detetada.
ΔtE = =mc 1,6 =10cmc s c Δtmax = 3,2 × 10−22 s
sistemas biológicos. Segundo a Teoria da Evolução, a Assim,max o Princípio da Incerteza de Heisenberg pode também ser
partir da primeira célula (nada sendo indicado sobre Δt ΔEcomo
interpretadoΔ
Δtt < Δ 1,25EΔht < 1,25h a janela temporal de invisi-
estabelecendo
como surgiu, com todo o seu hardware e software), por bilidade para as entidades que emergem no espaço-tempo. Se
Δt = (1,25 Δth=) (/1,25 ΔE h) / ΔΔEt = ( 0,5ħ Δt )=/(Δ0,5ħ E ) / ΔE
circunstâncias ocasionais várias células «aprenderam» a essa entidade for um par eletrão-positrão, essa janela de invisi-
−21
cooperar já que isso traz vantagens na adaptação ambien- Δtmaxtem
bilidade = 1,6
Δuma × 10
tmax = 1,6s× 10
duração
−21
Δtmax
máxima s de = 3,2
Δtmax × 10 22
= −3,2 s× 10−22 s.
tal. Este processo foi ganhando escala pela ocorrência
de mutações aleatórias peneiradas pela seleção natural,
resultando ao longo do tempo em estruturas biológicas
cada vez mais complexas, culminando no ser humano. fazendo sentido, mas na realidade está na linha do que a
Neste paradigma a mutação aleatória é de nature- Teoria da Evolução propõe, agora em patamares expo-
za estruturante, o que é problemático, pois aleatório é nencialmente mais elevados de complexidade.
tudo menos organização. Um simples exemplo ilustra
o que está em causa. Suponha-se que num local, ao ar A EMERGÊNCIA DE UM NOVO PARADIGMA. Nas últimas déca-
livre, se colocam todos os ingredientes necessários para das, a valorização do que a fronteira do conhecimento
cozinhar um bolo, admitindo-se que não se deterio- indicia e a observação sem preconceitos da vida tem in-
ram com o tempo. Agora, pela ação dos elementos (Sol, duzido uma alteração gradual do paradigma vigente, o
vento, chuva, neve, ...) que sobre eles atuam, ao fim de qual se baseia nos princípios, i) primazia do material, e
quanto tempo surgirá algo minimamente parecido com ii) centralidade do aleatório como elemento guia da sua
um bolo? Esta pergunta é facilmente rotulada como não estruturação. Em que sentido vai essa alteração?
SUPER 45
ISTOCK
11
811 = ( 23 ) = 233
� �a� b� n�
i �����������
����������� o� r� c� t� r� b� n � b� a� r� c� o� b� o� n� i� t� o
Ambas têm associadas o mesmo nível de informação, 33 bits, a designada Informação Shannon. No entanto, a segunda tem algo mais, tem
� � a�
b uma
significado, neste caso r� c� �b� o� n�
o(barcobonito),
apreciação i�
aquilo �
t que �����������
o se designa Informação Estruturada (ou funcional).
Tirando à sorte, a probabilidade dessa combinação sair do “saco” que contém todas as combinações é menor do que aquela associada a
�����������
ganhar o euromilhões, pelo que o aparecimento de combinações com informação estruturada é um indício de que está presente algo mais
do que o aleatório.
Considere-se novamente o exemplo do bolo e coloque- mentais (gravítica, elétrica, nuclear, …), as regras da
-se a questão: o que é necessário para a sua confeção? Des- construção civil correspondem às leis da física, tendo
de logo os ingredientes (farinha, ovos…), também energia o plano de arquitetura como contraponto a informação
(trabalho, forno). Mas a resposta não termina aqui porque que guia a estruturação de sistemas complexos. Reparar
falta o saber fazer, isto é, informação, melhor dizendo, que, no que respeita à construção do edifício, todos os
informação estruturada ou funcional (ver caixa). Repare- elementos referidos são necessários, sendo de particu-
-se que este é o elemento fundamental, pois quanto aos lar relevância o projeto; de facto, colocando disponíveis
ingredientes até se podem encontrar alternativas, assim os materiais, assim como as gruas e os trabalhadores
como quanto ao tipo de energia a utilizar. para os movimentar, não é razoável esperar que sem se-
Assim, está a emergir um novo paradigma que se guir um plano o edifício acabe por ser construído. Isto
pode sintetizar da seguinte forma: acentua a centralidade da componente informação.
Claro que a questão que desde logo se coloca é: o que
A matéria é estruturada em organizações significa esta informação e qual a sua origem? A res-
complexas utilizando energia para o fazer, se- posta mais verdadeira e libertadora que a Ciência de
gundo regras que derivam das leis da física, hoje nos pode proporcionar é: não sabemos! É também
tendo como suporte informação estruturada uma resposta que nos protege de uma sobranceria sem
que permeia o Universo. sentido, é indutora de humildade criativa perante tudo
o que existe, também construtiva porque nos motiva
Uma outra analogia permite ilustrar o que aqui se ex- a irmos à procura pelos caminhos da descoberta, não
pressa. Considere-se a construção de um edifício. Para limitadora já que nos oferece a possibilidade de expres-
o fazer são necessários materiais (cimento, blocos, …), sarmos a nossa intrínseca natureza»
movimentados utilizando energia (gruas, força dos Em síntese e em jeito de conclusão, há algo que pode-
trabalhadores), colocados aplicando as regras da cons- mos afirmar com elevado grau de certeza: as edições do
trução civil, de acordo com o projeto de arquitetura. Super Interessante de 3023 abordarão assuntos da fron-
Agora, os materiais são os átomos/moléculas, a ener- teira do conhecimento que estão absolutamente para
gia decorre das interações associadas às forças funda- além do que hoje possamos sequer imaginar. e
46 SUPER
URBANISMO
Título de
Na imagem, o Quay
AP
Quarter Tower em
Sydney, Austrália, o
primeiro arranha-
céus «reciclado»,
uma vez que
manteve parte da
artículo serif
sua estrutura
anterior.
It hari sitiones maxim ipsapel entiis none etur aut pa soluptas doloriae
aliquatem aci omnis experunt aritae non natur sinte veniam dolorit labo.
Nem si odipsundunt id quistis eosto doluptas eos il ilis exped quiatquas-
sum volupis doluptasitia sa doloritis aut erum et amet qui aut ea velec-
tur? Qui vellaut asi cuptatur sendandaes velisciis id quia et volorecab
DEVEMOS
TÍTULOADE
CONTINUAR
CONSTRUIR
ARTÍCULO PALO
ARRANHA-CÉUS?
It hari sitiones maxim ipsapel entiis none etur aut pa soluptas doloriae ali-
quatem aci omnis experunt aritae non natur sinte veniam dolorit labo. Nem
si odipsundunt id quistis eosto doluptas eos il ilis exped quiatquassum
A pegada ecológica
volupis dos edifícios
doluptasitia de grande
sa doloritis altura
aut erum constitui
et amet qui aut ea velectur? Qui
um desafio
vellautàasi
suacuptatur
sustentabilidade.
sendandaes velisciis id quia et volorecab
BRENDA
Texto de Texto CHÁVEZ,
de MARIO jornalista
GARCÍA BARTUAL
Muy Interesante - 47
A
ISTOCK
pandemia afetou a constru-
ção de novos arranha-céus.
Apenas 106 arranha-céus de
200 metros ou mais foram
concluídos em 2020. Isto é,
20% menos do que em 2019,
de acordo com o relatório Tall
Trends. O nível mais baixo des-
de 2014, com 105.
A emergência climática tam-
bém torna necessário minimizar
o impacto socioambiental do se-
tor da construção. De acordo com o PNUA (Programa das
Nações Unidas para o Ambiente), em 2021 foi responsável
por mais de 34% da procura de energia e cerca de 37% das
emissões de CO2 associadas à energia e às suas operações.
Os seus materiais são responsáveis por cerca de 9% e das
emissões totais de CO2 associadas ao consumo de energia.
A utilização de recursos primários duplicará até 2060. A construção foi responsável por 37% das emissões de CO2
Nessa altura, o aço, o betão e o cimento serão os principais associadas à energia e às suas operações em 2021.
emissores de gases com efeito de estufa.
A construção em altura requer muita energia e re-
cursos, o que levanta desafios e incógnitas sobre a sua
sustentabilidade: «Estes edifícios podem ser sustentáveis vel. Muitas vezes, estes edifícios altos são considerados
se for encontrado um equilíbrio entre o esforço envolvido «sustentáveis» porque são mais eficientes no consumo
na sua construção e a sua eficiência espacial», afirma o de energia, mas a sua sustentabilidade envolve mais va-
arquiteto sustentável Xavier Vilalta, do seu gabinete em riáveis. «Ser sustentável não depende da altura. Mas, a
Barcelona. Um desafio, de facto. partir de uma certa altura, há requisitos e necessidades
estruturais, energéticas (elevadores, ar condicionado,
ARRANHA-CÉUS SUSTENTÁVEIS E RECICLADOS. Cada vez mais ventilação), materiais e outras. É uma arquitetura muito
arranha-céus se dizem «sustentáveis»: «Hoje em dia, técnica, de alta tecnologia, que complica a sustentabili-
qualquer projeto é valorizado em termos de sustenta- dade e o contacto com a natureza», refletem os membros
bilidade», adverte Iñaki Alonso, fundador do atelier da equipa de n’UNDO, especializados em arquitetura sus-
de arquitetura Satt, pioneiro em cohousing sustentá- tentável e planeamento urbano.
SHUTTERSTOCK
Casas no bairro
Plateau-Mont-Royal
de Montreal,
Quebeque, Canadá.
Estas habitações de
altura média atingem
densidades de
30.000 pessoas por
quilómetro
quadrado, quase
como arranha-céus.
48 SUPER
Sustentabilidade em O primeiro arranha-céus «reciclado» da Austrália, o
altura Quay Quarter Tower, de 59 andares, foi inaugurado este
ano. É assim chamado porque manteve parte da sua estru-
ASC
IWAN BAAN
ASC
SUPER 49
Os edifícios residenciais são menos eficientes quanto
mais altos são, pois consomem mais gás e eletricidade
Denomina-se «carbono incorporado» as emissões re-
sultantes da extração e fabrico de materiais e sistemas,
ASC
bem como da construção do edifício, da sua instalação e
manutenção até ao fim da sua vida útil. Carbono opera-
cional» são as emissões resultantes do seu funcionamento
(aquecimento, serviços públicos, etc.).
Nos edifícios altos, as emissões incorporadas e ope-
racionais aumentam. Se somarmos as duas, obtemos o
consumo de carbono ao longo da vida. Grande parte do
aumento deve-se a uma maior exposição ao frio, aos ven-
tos fortes e ao sol. Questões de construção e da localização
também desempenham um papel importante: uma torre
revestida a vidro num clima desértico ou tropical pode
exigir muita energia para arrefecer. «Para saber se um
edifício é sustentável, é preciso analisar o seu ambiente e
responder às exigências do local, da sua comunidade, da
sua economia, do clima e da tecnologia da época em que é
construído», explica Vilalta.
A arquitetura
sustentável responde
melhor aos desafios
sociais, culturais e
ambientais que
enfrentamos.
ASC
50 SUPER
«A construção em altura pode fazer sentido se não
Tulipas sustentáveis?
houver espaço para construir e for necessário criar densi-
dade para proteger o ambiente. Mas a coisa mais razoável
e sustentável a fazer é encontrar um equilíbrio que crie
O Tulip era para ser o edifício mais alto de Londres, uma tor-
re de observação de mil pés ao lado do edifício Gherkin.
Apesar das suas credenciais sustentáveis, o seu projeto não foi
densidade e permita viver em contacto com a natureza», convincente, uma vez que pretendia instalar um restaurante nu-
diz Vilalta. ma plataforma de observação no topo de um grande poço de
elevador, rodeado por edifícios altos com plataformas de obser-
CONCEÇÃO SUSTENTÁVEL. O PNUMA aconselha o setor da vação e outros restaurantes.
construção a melhorar o desempenho energético dos seus No final, o Secretário de Estado concordou com o inspetor do
edifícios, a reduzir a pegada de carbono dos materiais, projeto de que as suas medidas para minimizar as emissões de
a procurar alternativas, a descarbonizar os materiais carbono na construção não compensariam as grandes quanti-
convencionais como o cimento, a multiplicar os seus dades de betão armado nas fundações e no poço do elevador,
compromissos políticos e a aumentar o investimento na bem como o transporte dos visitantes para o nível mais alto para
eficiência energética. apreciarem as vistas, uma vez que teria uma energia incorporada
«Para qualificar um edifício de qualquer tipo como muito elevada e um ciclo de vida insustentável.
sustentável, os seus impactos reais devem ser medidos e
quantificados com parâmetros científicos: quantos quilos
deCO2 por metro quadrado se estima para construí-lo?
Quantos tem capacidade para absorver? Que grau de
biodiversidade incorpora? Isto está a ser desenvolvido
através de Declarações Ambientais de Produtos (DAP)
que definem os seus impactos. No final, ao juntar todos
os materiais utilizados, seria gerada uma declaração am-
biental de um edifício», diz Alonso.
O projeto deve minimizar todas as emissões, utilizan-
do o mínimo possível de materiais e energia. A norma de
construção Passivhaus, ou «casa passiva», é a mais efi-
ciente, com emissões operativas de carbono, próximas de
zero, e a sua pequena lacuna é colmatada pela incorpora-
ção de energias renováveis.
A conceção paramétrica e o software algorítmico po-
dem também criar plantas mais eficientes, permitindo
reduzir a utilização de betão e aço. Uma boa conceção
estrutural pode otimizar a utilização de materiais e o im-
ASC
pacto ambiental. Uma análise da relação entre a utilização
de energia e as estruturas dos edifícios na Europa revelou
que, para uma torre de 150-250 metros, uma grelha de
vigas diagonais — em vez de estruturas tubulares com um
cilindro central de betão como suporte — pode reduzir o Atualmente, o contexto convida-nos a contemplar a
betão em 17-33% e o aço em 28-41%. cidade à escala do bairro, como as «cidades de 15 mi-
As estruturas altas de madeira contribuem para a redu- nutos»: «Com cultura, serviços, comércio, educação,
ção das emissões incorporadas. Os arquitetos da Perkins etc., a curtas distâncias que podem ser percorridas a pé
Will afirmam que, teoricamente, é possível construir até e de bicicleta. Ou as «Cidades 880», destinadas a pes-
80 andares. A madeira deve ser proveniente de uma ges- soas com idades compreendidas entre os oito e os oitenta
tão florestal responsável, tão local quanto possível. Apesar anos. Não se pensa nelas. Temos de tornar a cidade mais
de ser um material renovável, este tipo de madeira requer complexa e compacta, com bairros. No século XX, as ci-
quase quatro vezes mais árvores do que a construção com dades foram concebidas do ponto de vista do movimento
estruturas mais leves do mesmo material. moderno e do zonamento: grandes zonas comerciais,
«A sustentabilidade é uma compreensão holística da culturais e residenciais que podem ser alcançadas de car-
arquitetura e da vida. Não é um ponto de vista único, mas ro», sublinha.
a soma de ações que nos levam a estar mais em contacto Felizmente, a arquitetura permite abordar diferentes
com o ambiente, melhorando a nossa qualidade de vida», escalas: o objeto, o edifício, a cidade, o território. «Po-
sublinha Vilalta. dem ser mais ou menos sustentáveis e auto-suficientes.
A relação entre estas escalas faz com que o sistema com-
MUITO MAIS QUE EDIFÍCIOS SUSTENTÁVEIS. Os arranha-céus pleto funcione. A arquitetura e as cidades funcionam por
surgiram no final do século XIX em cidades com eleva- sistemas interrelacionados. Um edifício isolado é um dis-
dos índices populacionais, como Londres e Nova Iorque. curso muito curto, mas é preciso começar por algum lado
São um símbolo da modernidade, ícones do mito «mais e trabalhar de forma congruente nas quatro escalas ao
alto, maior, mais forte» que continuarão a ser construí- mesmo tempo. O mais difícil é passar para os bairros, as
dos. Repensar o sentido que fazem hoje e repensar a sua cidades e o território. É preciso manter uma visão muito
sustentabilidade implica refletir sobre a forma como de- ampla: propor edifícios sustentáveis, não como exemplos
vemos viver e conviver no planeta para enfrentar as atuais isolados, mas em ambientes que funcionem dessa for-
incertezas sociais, climáticas e económicas. «Temos de ma», sugere o n’UNDO.
pensar em edifícios sustentáveis mas, obviamente, tam- Como disse o escritor George Bernard Shaw: «Somos
bém em bairros sustentáveis onde há quase tudo, sem sábios não pela memória do nosso passado, mas pela res-
termos de nos deslocar muito», diz Alonso. ponsabilidade pelo nosso futuro». e
SUPER 51
P S I C O L O G I A
A QUÍMICA DA
CONFIANÇA
O QUE NOS FAZ CONFIAR?
O que é que nos leva a entregarmo-nos aos outros sem pensar ou a
desconfiar sem razão? Porque é que alguns rostos nos fazem sentir calmos
e outros com medo? Os cientistas estão a tentar desvendar este mistério
que nos leva a fazer associações de pensamentos e decisões.
52 SUPER
A ação de dar
confiança a outra
pessoa envolve o
cérebro e os
sentidos. Mas o
cérebro pode ser
reeducado para gerar
pensamentos que
GETTY
SUPER 53
A
confiança tem de ser conquis- fiança. Diferentes áreas do cérebro — a amígdala, o
tada, pode ser cega, perdida mesencéfalo e o corpo estriado dorsal — são ativadas
num segundo ou nem sequer e são decisivas para determinar se , perante uma si-
aflorar. Mais além dos dita- tuação, confiamos ou tememos. Isto é algo que coloca
dos populares, a neurociência o nosso cérebro na posição de ter de escolher entre um
sustenta que, quando se tra- ou outro, uma vez que, como explica o investigador
ta de confiança, a química e em neurociências David del Rosario, «a confiança e o
os pensamentos desempe- medo utilizam as mesmas redes neuronais, não podem
nham um papel crucial. Um coexistir». Ou se tem medo ou se confia.
processo em que o cérebro Neste momento, o que falta é o gatilho, o início que
está imerso e que, ao longo desencadeia a ação da ocitocina e ativa estas áreas do
do tempo, se adaptou per- cérebro. Uma pergunta com uma resposta clara: os
feitamente aos desafios da era digital, conseguindo pensamentos. «A origem da confiança são ideias, as-
enfrentar com confiança uma viagem de carro com um sociações que fazemos com algo ou alguém e que nos
desconhecido ou uma estadia em casa de um completo fazem sentir. Tal como o coração bombeia sangue, o
estranho. cérebro lança pensamentos, propostas para o nosso
O que leva o nosso cérebro a ativar a confiança? Há foco de atenção», diz.
diferentes atores por detrás desta questão e um de- Se as associações que se fazem estão ligadas ao medo,
les chama-se ocitocina. Conhecida como a hormona é o medo que se vai sentir. É um exercício que implica,
libertada durante o parto ou a amamentação, esta portanto, tomar consciência, assimilar que «as emo-
substância química exerce funções neuromoduladoras ções não são boas nem más, mas é a nossa vontade de
no sistema nervoso central. não as sentir que ativa o mecanismo de luta-fuga». As-
Trata-se de um neuropeptídeo cuja presença é sim, a mesma situação pode levar uma pessoa a sentir
mensurável e detetável numa análise ao sangue. A medo e outra não, porque «quando confio em algo, a
ocitocina tem efeitos anti-stress e é capaz de baixar a minha decisão não se baseia em factos, mas na ideia
tensão arterial e o ritmo cardíaco. Bom mediador nos que tenho das coisas».
momentos de ansiedade, faz pender a balança a favor
da confiança e do bem-estar. O DESAFIO DE «REEDUCAR» O CÉREBRO. Com esta visão,
investigadores como David del Rosario tentam trans-
MEDO OU CONFIANÇA: DUAS EMOÇÕES, UM MESMO CIRCUITO. mitir ao público a importância de compreender o
Para além da ocitocina, outros ingredientes devem ser funcionamento do cérebro. Uma lição de vida que pas-
adicionados para criar o cocktail adequado da con- sa por assumir que a pessoa tem uma margem de ação
ma e ao facto de, «de um ponto de vista entoações vocais fazem com que uma
anatómico, o nervo olfativo estar ligado pessoa pareça mais digna de confiança.
à região do cérebro que modula a forma Através do desenvolvimento de um pro-
como confiamos nos outros». grama informático de processamento de
A visão, por seu lado, também tem um pa- voz, chamado CLEESE, foram criadas cen-
pel a desempenhar. Os investigadores da tenas de entoações aleatórias a partir de
Universidade Carolina em Praga afirmam uma gravação da palavra bonjour — «olá»
que a cor dos olhos e a forma do rosto em francês — por homens e mulheres.
desempenham um papel importante na O estudo revelou uma «adaptação comu-
perceção. nicativa única que permite aos ouvintes
As suas conclusões baseiam-se num detetar traços sociais, independente-
estudo que envolveu cerca de 200 par- mente das características físicas dos
ticipantes, aos quais foram mostrados falantes», permitindo-lhes identificar
retratos de homens e mulheres e que tive- quais as entoações vocais que fazem
SHUTTERSTOCK
54 SUPER
Efeitos periféricos da libertação central de ocitocina durante o trabalho de parto e a lactação.
Neuro-hipófise
Ocitocina
Secreção para a
periferia
Reflexo de ejeção
do leite
durante a amamentação
Mecanorrecetores
Contrações uterinas e
indução do parto
FRONTIERSIN.ORG / BIORENDER.COM.
através de prostaglandinas,
relaxinas, progesteronas e CRH
SUPER 55
e compreender que «não somos culpados pelo que nos nos negócios sempre foi uma constante e a irrupção
acontece, mas somos cem por cento responsáveis pela da era digital trouxe consigo mudanças importantes.
forma como reagimos ao que nos acontece». O desafio Novos cenários estão a ser capazes de tornar as rela-
é, então, descobrir a relação que se estabelece com os ções entre desconhecidos e completos estranhos em
pensamentos, uma vez que «cada vez que não usamos algo familiar.
um pensamento, que não lhe prestamos atenção sus- Com mais de 100 milhões de utilizadores em todo o
tentada durante mais de 3 segundos, porque não nos mundo,incluindo Portugal, a plataforma de partilha
serve para nada, a probabilidade de o nosso cérebro de automóveis BlaBlaCar é um exemplo claro dis-
voltar a propô-lo numa situação de vida semelhan- so mesmo. A empresa trabalha constantemente para
te diminui». Ter consciência deste facto é «reeducar compreender quais os fatores que aumentam o sen-
o cérebro». Se mudarmos a nossa forma de pensar e timento de confiança entre os seus utilizadores. Algo
decidirmos se um pensamento é útil ou não para viver que, embora agora entre ecrãs e algoritmos, recupera
uma determinada situação, seremos capazes de gerar a proeminência de um clássico: o valor da reputação.
emoções diferentes. Emoções que levarão a ações dife- Com este ponto de partida, a empresa está a tra-
rentes e, portanto, a resultados diferentes», diz. balhar no conceito de «capital de confiança». Um
indicador que analisaram detalhadamente em 2016 e
QUANDO A PALAVRA ESTRANHO SE TORNA FAMILIAR. A com- que registam de modo digital, com base nas informa-
preensão do mecanismo da confiança é igualmente ções fornecidas pelos utilizadores nos seus perfis e nas
relevante para as empresas. O seu estudo e aplicação classificações recebidas, entre outros dados. Fuen-
SHUTTERSTOCK
SHUTTERSTOCK
56 SUPER
Médicos, cientistas ou professores. A profissão
também tem influência
A confiança também está presente
na forma como algumas profissões
são percepcionadas. Registos como o
o grupo de profissionais menos confiá-
veis, está a classe política: apenas 8%
dos inquiridos confiam neles em geral
Global Trust Index, realizado pela Ipsos, e apenas 11% confiam nos ministros
mostram que os médicos, com 71%, são do governo. Espanha, Polónia e Hun-
os profissionais que inspiram mais con- gria são os três países da Europa em
fiança (Espanha). que menos se confia nos profissionais
Este estudo, efetuado em 28 países, de- políticos.
volveu à profissão médica a sua posição O setor bancário também não é muito
no topo do ranking, depois de ter sido bem classificado, com apenas uma em
ultrapassada em 2021 pelos cientistas. cada dez pessoas a manifestar confian-
SHUTTERSTOCK
O terceiro lugar da tabela é ocupado pe- ça neste grupo, que ocupa o terceiro
los professores. lugar entre as profissões que consegui-
No fundo do ranking, e portanto entre ram criar menos ligações com o público.
santa Hidalgo, Diretor de Confiança e Segurança da para que os envolvidos possam comunicar entre si.
BlaBlaCar, explica que este indicador permite aos con- A estas fases junta-se o eixo central do seu sistema:
dutores e passageiros conhecer o nível de confiança de as avaliações. Um espaço verificado e público onde se
um determinado utilizador «de forma instantânea e constrói a reputação online. Aqui, «os anfitriões e os
automatizando o processo de fiabilidade». viajantes deixam os seus comentários depois de vi-
Para gerar este capital de confiança, a BlaBlaCar uti- verem a experiência, impressões que são essenciais
liza um esquema denominado D.R.E.A.M.S. Por detrás para construir a confiança na Airbnb», explicam. Ser
desta sigla em inglês, constrói-se uma engrenagem a alavanca de decisão final para um utilizador expe-
digital que se centra em oferecer a informação mais rimentar as associações positivas que o levam a fazer
completa sobre cada utilizador da comunidade, assim uma reserva.
como um espaço aberto à participação, no qual se acu-
mula capital de confiança a partir das avaliações das 50% MAIS PRODUTIVOS E COM MENOS STRESS. A confiança é
experiências. Alguns utilizadores destacam-se mesmo capaz de gerar cliques que conduzem a vendas ou con-
pela sua reputação irrepreensível, distinguindo os me- tribuem para a prosperidade de um país em geral ou de
lhores condutores com o distintivo Super Driver. uma equipa de trabalho em particular.
Sistemas antifraude sofisticados, métodos de pré- Diferentes investigações demonstraram que nos
-pagamento e equipas de escuta ativa para moderar e grupos de trabalho onde existe um bom clima de con-
verificar cada processo são também fundamentais, ex- fiança, em comparação com os que não o têm, há um
plica Hidalgo, para «garantir níveis de autenticidade aumento de 50% na produtividade. Além disso, nesses
e manter os pilares que fazem funcionar a economia ambientes, há menos 13% de baixas por doença, me-
colaborativa» neste ambiente digital. nos 74% de casos de stress e níveis de empenho 76%
mais elevados.
A REPUTAÇÃO COMO UM ATIVADOR DE CLIQUES. No caso da Não é de estranhar que a neurociência esteja a tentar
empresa Airbnb, o conceito de reputação está também compreender como funciona o indivíduo ante a con-
no centro da plataforma, a base que permitiu a este fiança e o que pode ser feito para a melhorar. Neste
negócio de troca de alojamento atingir atualmente 4 domínio, estudos como os realizados pelo neuroeco-
milhões de anfitriões, utilizadores que partilharam as nomista Paul J. Zak demonstraram que o sentimento
suas casas com mais de mil milhões de viajantes, es- de confiança motiva, por exemplo, a generosidade en-
tranhos uns aos outros, em qualquer parte do mundo. tre estranhos.
O modelo da Airbnb é dividido entre anfitriões e Diferentes estudos, centrados na ocitocina, con-
hóspedes e funciona com um sistema de classificação cluem que esta «molécula de confiança» é capaz
que, virtualmente, alimenta o sentimento do utiliza- de aumentar este sentimento e de tornar as pessoas
dor de tomar decisões baseadas na confiança. mais generosas com estranhos quando está em causa
Para guiar esse processo, a plataforma concentra seus dinheiro. Uma boa predisposição motivada pela es-
esforços em uma verificação exaustiva de perfis pessoais perança de «confiar» que os outros atuem da mesma
e anúncios, além de um canal inteligente de mensagens forma e serem assim retribuídos. e
ESTAMOS
À BEIRA
DE UM
‘ROBOCALIPSE’?
A robotização da indústria e a automatização das tarefas através da utilização da
inteligência artificial poderiam pôr em risco centenas de milhares de postos de
trabalho, dizem os mais pessimistas. Isso está a acontecer? Fomos ver.
58 SUPER
A emergência dos
LEXICA
robots no mundo do
trabalho implica
uma adaptação do
emprego humano às
novas tecnologias.
Temos de aprender a
viver com a
inteligência
artificial.
E
m fevereiro passado, o sin- borais: será que vão fazer melhor do que nós, será que
dicato dos estivadores de nos vão roubar o emprego? Fala-se de um «robocalip-
Vancouver (Canadá) enviou se» — incluindo investigadores do MIT, da Universidade
uma carta aberta ao governo de Utrecht, nos Países Baixos, e da Universidade de Buc-
nacional. Protestava contra o kingham, em Inglaterra — referindo-se a um futuro
projeto de construção de um próximo em que um rápido processo de automatização,
terminal de carga automati- apoiado pela robótica e pela inteligência artificial, pode-
zado no porto da cidade: «Isto rá conduzir a uma vaga de despedimentos.
irá destruir o modo de vida
de muitas, muitas pessoas», ESTÁ A ACONTECER? A resposta rápida é não... de mo-
concluía o texto. Temem que mento, não. Ou, pelo menos, não ao ritmo previsto
as máquinas, controladas por por alguns estudos. Um relatório do Fórum Económi-
inteligência artificial, façam o seu trabalho. Nas mes- co Mundial, publicado em 2020 com o títuloThe Future
mas semanas, a mais conhecida marca de vermute do of Jobs Report 2020, é frequentemente citado em tex-
mundo anunciou uma nova campanha publicitária... tos académicos e jornalísticos : até 2025, segundo esse
concebida com inteligência artificial. Introduziram relatório, a automatização destruirá 85 milhões de em-
palavras como botânico, floral ou Artemisia no gera- pregos em todo o mundo, criando ao mesmo tempo 97
dor de imagens Midjourney e a IA criou as «fotos» dos milhões de novos empregos. Parece improvável que is-
cocktails que foram depois utilizadas nos anúncios. Na to seja conseguido em apenas dois anos. Outro estudo
mesma altura, ficámos a saber que o sistema de conver- pioneiro, realizado em 2013 na Universidade de Oxford,
sação ChatGPT tinha passado com distinção nos exames afirmava que 47% dos empregos nos Estados Unidos
de MBA da Universidade da Pensilvânia. «Não só deu estavam destinados a desaparecer dentro de algumas
respostas corretas, como as suas explicações são exce- décadas. Quase metade! Mas, recentemente, os nú-
lentes», concluiu Christian Terwiesch, autor do estudo meros foram qualificados pelos autores, entre os quais
e investigador do mesmo Centro. se encontra um nome familiar entre os «insiders» da
Estes são apenas alguns exemplos das últimas no- área: Carl Benedikt Frey, diretor do programa Future of
tícias. Para além do espanto — como é possível que os Work da Oxford Martin School.
algoritmos sejam capazes de fazer tudo isto — surge uma «É claro que estamos a viver a Quarta Revolução
questão com implicações éticas, sociais, filosóficas e la- Industrial e, tal como nas revoluções anteriores, es-
LEXICA
Atualmente, não
há uma vaga de
despedimentos
devido à
robotização do
trabalho.
60 SUPER
As máquinas costumavam
substituir os músculos, mas
agora podem assumir o
controlo de alguns domínios
da economia do conhecimento
LEXICA
Prémio Nobel da Economia, numa coluna de opinião
publicada recentemente no The New York Times. Ago-
ra, as máquinas podem também assumir o controlo de
alguns domínios da chamada economia do conheci-
mento. A educação está ameaçada, os elementos mais
mecânicos das finanças (quem preenche primeiro uma
folha de cálculo do Excel, a pessoa ou a máquina?), o
jornalismo, o design gráfico, nos recursos humanos já
Os postos mais
são utilizados há algum tempo: já em 2021 os estafetas ameaçados
da Amazon protestaram nos Estados Unidos porque es-
tavam a receber cartas de despedimento... decididas e ADVOGADOS. Há uma parte do seu trabalho que é muito rotineira:
executadas pela IA. Os gigantes da tecnologia — leia-se por exemplo, mergulhar nos acórdãos e nos processos judiciais
Google, Microsoft, Meta e Amazon — despediram mais em busca de pistas para um caso em que estão a trabalhar.
de 150 000 trabalhadores nos últimos meses. Ao mes- JORNALISTAS. Há já algum tempo que portais como o CNET es-
mo tempo, investiram milhares de milhões de dólares crevem notícias com processadores de texto baseados em IA. Os
nas suas várias plataformas de inteligência artificial. Há resultados são, por enquanto, limitados, para dizer o mínimo... Mas
quem associe as duas notícias e as interprete como um a IA aprende depressa.
exemplo da grande substituição: «A IA vai ganhar a ba- MOTORISTAS. O carro autónomo continua a bater literal e figu-
talha», resumiu Daniel Kahneman, vencedor do Prémio rativamente, mas se mesmo as previsões mais otimistas sobre a
Nobel da Economia em 2002, numa entrevista recente. condução autónoma se concretizarem um dia, milhares de mo-
«Será totalmente disruptiva. A forma como nos vamos toristas, estafetas e até taxistas poderão ver os seus empregos
adaptar é um problema fascinante», acrescentou. ameaçados.
ANALISTAS FINANCEIROS. As estimativas sugerem que até 30%
IMPACTO TRANSVERSAL O impacto da IA no trabalho é dos seus empregos poderão ser substituídos pela tecnologia: esta
e será transversal. Já há máquinas a trabalhar na co- poderá localizar padrões e efetuar transações mais rapidamente
lheita de alfaces nos campos: escolhem apenas as que do que um ser humano. Estão já a surgir novas profissões, como
estão prontas e extraem-nas cuidadosamente. Em ja- os quants: analistas financeiros especializados na utilização de
neiro, um tweet de um ator vocal argentino tornou-se métodos matemáticos.
viral: «Substituíram-me por uma voz gerada por in- MÉDICOS. A IA pode ser útil para fazer diagnósticos, mas os ro-
teligência artificial», denunciou. Até onde pode ir? bôs também podem ser utilizados (e já estão a ser utilizados) para
A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento cirurgias delicadas. Para já, sob a supervisão de um médico de
Económico (OCDE) identifica alguns setores em risco: «carne e osso».
construção, atividades agrícolas, pecuárias e pesquei-
SUPER 61
As tarefas
SHUTTERSTOCK
repetitivas
podem ser
automatizadas,
mas um robot
não pode ter os
conhecimentos
que o ser
humano tem
pelo simples
facto de existir.
62 SUPER
ISTOCK
LEXICA É necessário que
os trabalhadores
aprendam e
requalifiquem
continuamente as
suas competências
digitais.
SUPER 63
Z O O L O G I A
Vários estudos
demonstraram
que os animais
fazem o bem aos
membros da sua
própria espécie
não só por
interesse próprio
ou egoísmo, mas
SHUTTERSTOCK
também por
solidariedade e
empatia.
64 SUPER
A MORAL
DIFERENCIA-NOS
DE OUTROS
ANIMAIS?
Antes de mais, seria necessário definir o que é ser moral, mas, em todo o
caso, o que é claro é que os animais não agem apenas por instinto. Eles
têm regras e muitos participam em atividades sociais e demonstram
emoções, solidariedade e empatia. No entanto, ainda há muito por
desvendar sobre os seus aspetos cognitivos e o seu comportamento.
SUPER 65
A
resolução desta questão ANIMAIS CONSCIENTES. Comecemos por aquela que pode-
leva-nos a investigar as ca- rá ser a qualidade mais básica e indispensável a todos
pacidades psicológicas dos os seres morais: a consciência. Ao longo da história,
animais e a refletir sobre a alguns pensadores consideraram os animais como me-
nossa própria natureza. ros autómatos incapazes de experiência subjetiva. Por
Uma das críticas morais mais exemplo, Descartes defendia que o comportamento
graves que podemos fazer a dos animais podia ser equiparado ao das máquinas.
alguém é dizer-lhe que não se Estas ideias ainda persistem na nossa sociedade, razão
preocupa com os outros. Em pela qual, em 2012, um grupo de cientistas decidiu re-
2014, na Califórnia, as câma- unir-se na Universidade de Cambridge para fazer uma
ras de segurança captaram um declaração ao público em geral: «Os seres humanos
acontecimento que deu a vol- não são os únicos a possuir os substratos neurológicos
ta ao mundo. Um menino de quatro anos estava na rua que geram a consciência. Os animais, incluindo mamí-
a brincar com uma bicicleta, perto da entrada de sua ca- feros, aves e muitas outras criaturas, partilham esses
sa, quando, de repente, um cão saiu de trás de um carro, substratos neurológicos».
agarrou-lhe a perna e começou a abaná-lo de forma agres- Sabemos que, tal como nós, muitos animais são ca-
siva. Em segundos, um gato apareceu e confrontou o cão pazes de sentir emoções como a dor, mas será que
energicamente, fazendo-o ir embora e deixar o menino conseguem identificar quando outros seres sentem dor?
em paz. E se sim, fazem alguma coisa para a evitar? Cenas como
Mais tarde, a família explicou que tinham adotado a descrita do gato e muitas outras indicam que sim. No
o gato há cinco anos, quando este os seguiu até casa, entanto, estas histórias são indícios que nem sempre
vindo do parque, e que tinha criado uma ligação muito permitem tirar conclusões, razão pela qual é necessário
forte com o seu filho desde que este nasceu. Poderíamos efetuar experiências em condições controladas.
então dizer que o gato salvou a criança porque se preo-
cupava com ela, o que faz dele um ser moral? EXPERIÊNCIAS COM RATOS: SERÁ QUE ELES TÊM EMPATIA? No
É claro que proezas como a deste gato levantam a final dos anos 50, um estudo mostrou que os ratos se
questão de saber se a moralidade é uma qualidade ex- recusam a carregar numa alavanca para obter comida
clusiva dos seres humanos ou se se estende também a se, como consequência, outro rato receber um choque
outros animais. Este é atualmente um debate contro- elétrico. Perante este resultado, as interpretações no
verso que se situa sobretudo no domínio da filosofia, mundo académico não foram unânimes. Alguns cien-
mas que se baseia em evidências resultantes do estudo tistas negaram que esta fosse uma prova de que os ratos
do comportamento animal. se preocupam com os outros ratos, pois é possível que,
Neste artigo, por conseguinte, irei apresentar algumas através do contágio emocional, sintam a dor de outros
das descobertas científicas que têm sido consideradas re- indivíduos e a evitem por puro egoísmo. Paradoxal-
levantes para o debate sobre a moralidade animal. Para mente, este mesmo argumento é também utilizado em
o fazer, apresentarei sobretudo as ideias e a abordagem debates que questionam a existência de ações altruístas
escolhidas por Susana Monsó e Kristin Andrews, especia- por parte dos humanos, o único animal cuja moralidade
listas em ética e filosofia da mente animal, num capítulo não é posta em causa.
do livro The Oxford Handbook of Moral Psychology. Numa outra experiência mais recente, em 2011, os
Os animais
SHUTTERSTOCK
partilham
connosco os
substratos
neurológicos
que geram a
consciência.
66 SUPER
Alguns autores defendem que animais como
os golfinhos, que se envolvem em atividades
SHUTTERSTOCK
sociais complexas, precisam do aglutinante
social proporcionado pela moral.
investigadores ofereceram a ratos a oportunidade de Post publicou um artigo intitulado»Um novo modelo
libertar um outro rato que estava fechado numa gaio- de empatia: o rato».
la. A maioria dos ratos optou por o fazer, mesmo que Mesmo assim, o debate no seio da academia não foi en-
isso implicasse partilhar a comida. Os autores do es- cerrado. Os ratos podem ter desenvolvido o instinto de
tudo interpretaram este facto como altruísmo, mas, ajudar um companheiro porque isso favorece a sua so-
mais uma vez, também pode ser dada uma explicação brevivência, mas não sentem necessariamente empatia
egoísta para este comportamento. Os ratos são animais nem se preocupam com o bem-estar do companheiro.
muito sociais que gostam de ter companhia, e pode ser Para esclarecer esta questão, foram iniciados estudos
que, para eles, isso seja mais importante do que acu- em ratos com amígdalas danificadas, uma parte do cé-
mular toda a comida. rebro envolvida no processamento das emoções. Uma
Para excluir esta possibilidade, os investigadores mo- experiência realizada em 2016 mostrou que estes ratos
dificaram as condições da experiência de modo a que perderam o interesse em ajudar os seus companheiros,
o rato fosse libertado num compartimento diferente, o que provaria que as emoções desempenham um papel
para que o rato ajudante não pudesse interagir com o crucial no comportamento altruísta destes animais.
rato libertado. Mesmo nestas circunstâncias, o rato Portanto, há evidências científicas de que existem ani-
optou por abrir a porta da gaiola onde se encontrava o mais que procuram ajudar os outros motivados por
seu companheiro. Os meios de comunicação social to- emoções e empatia. Isto não significa que não tenham
maram conhecimento desta descoberta e o Washington também outras motivações mais egoístas no seu com-
SUPER 67
O comportamento humano é
flexível e, graças ao seu
poder de autocontrolo, uma
criança pode agir de acordo
com a moral que lhe foi
ensinada e optar por partilhar
os seus doces
68 SUPER
ISTOCK
Jane Goodall
publicou um ensaio
em que afirmava
que os chimpanzés
mantêm uma forte
hierarquia, mas não
estabelecem leis
como os humanos.
Os animais preocupam-se
com os outros?
P ara responder a esta questão, os etólogos estudaram três com-
portamentos diferentes: o luto, o conforto e a ajuda.
Os elefantes são particularmente conhecidos pelo seu compor-
tamento de luto. Quando um elefante morre, durante vários dias,
diferentes famílias visitam o cadáver, cheiram-no, tocam-no com as
suas trombas e agitam-no com as suas patas. É difícil explicar es-
te comportamento de um ponto de vista evolutivo, especialmente
devido ao risco de infeção, mas indica que os elefantes podem ter
empatia e interesse pela morte.
exemplos são a distância que mantemos numa conver- As histórias de cães que confortam os humanos são comuns e a in-
sa, a forma como nos cumprimentamos ou os nossos vestigação científica confirma que eles são capazes de identificar as
hábitos de higiene. Este tipo de normas sociais é mais emoções humanas e responder em conformidade. Por exemplo, um
provável de encontrar noutros animais. estudo comparou a reação dos cães a um humano que chorava e a
Só nos últimos anos é que o estudo das normas ani- um que estava simplesmente a cantarolar. Verificou-se que os cães
mais começou a ser seriamente abordado. Por esta passavam mais tempo a tocar e a lamber o que chorava.
razão, ainda não há muita investigação sobre o assunto, Os golfinhos são frequentemente retratados como heróis, arriscan-
especialmente quando comparado com outras capaci- do as suas vidas para salvar nadadores dos tubarões. Até à data, as
dades, como a aprendizagem social, a comunicação ou a provas científicas indicam que, no mínimo, ajudam outros golfinhos.
auto-consciência. A maioria das evidências e da investi- As mães foram observadas várias vezes a empurrar as suas crias
gação sobre o assunto foi feita com chimpanzés. para a superfície para as ajudar a respirar, o que não é assim tão sur-
O exemplo dos chimpanzés selvagens que se orga- preendente, mas, numa ocasião, este comportamento também foi
nizam para caçar macacos é bastante surpreendente. observado em golfinhos adultos.
Cada indivíduo tem um papel e divide o trabalho de
uma forma bastante coordenada. Alguns indivíduos
perseguem os macacos e conduzem-nos até ao local on-
de estão à espera outros indivíduos, que se encarregam
da emboscada. Depois, os despojos são distribuídos de
acordo com o contributo de cada participante na caça- ENTÃO, OS ANIMAIS SÃO MORAIS? Perante estas evidências,
da. Mesmo um macho de alto nível recebe menos carne haverá quem não duvide da «moral animal», enquan-
do que um indivíduo jovem se este tiver desempenhado to outros argumentarão que ela não é suficiente. A raiz
um papel mais ativo no processo. da discrepância reside no facto de a natureza da própria
Poder-se-á então dizer que os chimpanzés desenvol- moral permanecer pouco clara.
veram a norma social de como se deve partilhar a carne? Vale a pena colocar esta questão, porque ter em conta
Bem, como outros estudos com chimpanzés e macacos os animais alarga e enriquece a perspetiva do debate so-
em cativeiro demonstraram, eles recusam-se a par- bre a moral. Em todo o caso, talvez seja mais importante
ticipar em tarefas quando se apercebem de que outro desvendar os aspetos cognitivos de outras espécies do
indivíduo recebe uma recompensa melhor pelo mesmo que atribuir-lhes ou negar-lhes termos como «moral»,
trabalho, embora não reajam negativamente se forem para os quais nem sequer conseguimos chegar a acordo
eles a ganhar. sobre uma definição. e
SUPER 69
ENTREVISTA
Marta
SANTAMARIA
Capitals Coalition: redefinir
valores, aperfeiçoar decisões
70 SUPER
A Capitals Coalition é uma organização global que visa transformar a forma como empresas e
governos medem e valorizam suas interações com o meio ambiente e a sociedade. Trabalha no
sentido de criar um futuro sustentável, fornecendo uma estrutura para que essas empresas e
governos apreendam a dimensão do seu impacto no mundo e possam tomar decisões que apoiem
o bem-estar de longo prazo das pessoas e do planeta.
A
A Capitals Coalition consolida meios e recursos para que
as estruturas governamentais e empresariais possam in-
teragir e tomar decisões sustentáveis, minimizando o impacto
abordagem da Capitals dos seus negócios no capital natural. A organização foi criada
Coalition é baseada na no seguimento da iniciativa das Nações Unidas de 2008 The
ideia de que as organiza- Economics of Ecosystems and Biodiversity (TEEB). O seu pri-
ções interagem com base meiro grande resultado foi o Natural Capital Protocol em 2016,
em diferentes tipos de que visava ajudar as empresas a identificar, medir e valorizar
capital, entre os quais o os seus impactos e dependências do capital natural. Esse pro-
natural, o social e o hu- tocolo permitiu harmonizar as abordagens existentes numa
mano. Ao ter em conside- estrutura para ajudar as organizações a entender e incorporar
ração o valor de cada um os valores do capital natural na tomada de decisões.
desses tipos de capital, é Em 2017, foi formada a Social and Human Capital Coalition,
possível tomar melhores que produziu desde logo o seu próprio protocolo (2019), o
decisões e redefinir valo- qual refletia o trabalho em curso no espaço do capital natural.
res que gerem resultados sustentáveis para a socieda- Em 2020, a Natural Capital Coalition uniu forças com a Social
de e o meio ambiente, num mundo em que empresas and Human Capital Coalition, para se tornar a Capitals Coali-
e governos valorizem e protejam os sistemas naturais e tion, que agora impulsiona a tomada de decisões integradas
sociais, dos quais todos nós dependemos. Marta Santa- com um forte ethos de colaboração.
maria, senior director da Capitals Coalition, deu à Super
Interessante a sua perspetiva sobre a organização e res-
petivos projetos, planos e ambições.
A Capitals Coalition opera através de grupos de trabalho não é possível ignorar a crise climática e as sucessivas
em diferentes setores, para compartilhar conhecimento perdas na biodiversidade. Mas nem todas as organiza-
e melhores práticas em áreas específicas. Fale-nos um ções veem como fundamental a premissa de investir na
pouco disso. natureza e incorporar os seus valores nas decisões. Qual
A Capitals Coalition é atualmente composta por 400 pensa que será o principal motivo de tanta resistência à
organizações e envolve muitos milhares de outras. mudança por parte dos reais decisores?
Estes parceiros acreditam que só reunindo as muitas Sabemos que estamos a esgotar os recursos naturais mais
componentes diferentes do sistema como parte de rapidamente do que a Terra pode reabastecê-los e a um
uma colaboração e um diálogo orientado para um ob- ritmo acelerado. Fazemos crescer o capital financeiro
jetivo comum é que é possível afetar a mudança real. A em grande parte através do uso, exploração e degrada-
nossa força vem desta convicção e da diversidade que ção do capital natural, humano e social. O sucesso das
acarreta. A equipa da Capitals Coalition lidera a cola- organizações em todo o mundo depende do valor que re-
boração, garantindo que diferentes partes do sistema cebem dos capitais e, sem uma compreensão das nossas
estejam conectadas entre si e que as principais orga- relações com os capitais, não há argumentos comerciais
nizações e especialistas operem de forma colaborativa claros para a sua proteção e investimento na sua saúde
para alcançar a nossa ambição compartilhada. A nossa e resiliência. Para a maioria das empresas, as interações
equipa oferece conhecimento, conexão, inspiração, com a natureza ainda não afetam o seu valor de mercado,
suporte e influência. o preço dos seus produtos ou o preço que pagam pelos
materiais que utilizam, os seus fluxos de caixa ou perfil
Toda a atividade económica depende da natureza e já de risco. Se o fizerem, não são visualizados na demons-
72 SUPER
O s casos da Kering e da Olam são apenas dois exemplos
entre os muitos casos de estudo interessantes que podem
ser consultados no site https://capitalscoalition.Org. A Kering
Para atender a essa necessidade, a padronização tem
desenvolveu uma metodologia de lucro e perda ambiental para
estado fortemente presente no nosso plano de traba-
conseguir medir, monetizar e gerenciar seus impactos ambientais
lho desde 2020, e inclui o nosso trabalho em projetos
em todas as suas operações e cadeia de suprimentos. A organi-
como o «Transparent» e o «Align», focados no capital
zação revelou que 93% dos seus impactos estão na cadeia de
natural e o «Accounting for a Living Wage», focado no
abastecimento – com 7% dos impactos das suas próprias opera-
capital humano.
ções. Assim, a Kering mudou o foco para encontrar soluções de
mitigação destes aspetos em toda a sua cadeia de suprimentos e
O futuro das novas gerações depende da forma como
passou a realizar uma avaliação numa base anual. Os resultados
conseguirmos promover a recuperação verde. Que pos-
são utilizados como uma ferramenta de apoio à decisão no dia-a-
tura deve ser assumida por parte do poder político, a
-dia e estão totalmente integrados no negócio.
um nível global, perante aqueles que continuam a colo-
Por sua vez, a Olam pretendia usar uma abordagem de capital
car obstáculos a este objetivo?
natural para contabilizar o capital natural em tudo o que faz. Dese-
Os governos têm um papel significativo na criação de
java ainda continuar a expandir os seus negócios de uma forma
um ambiente propício a uma abordagem baseada nos
sustentável juntamente com os seus clientes e partes interessadas.
capitais e na salvaguarda da natureza. Para criar esse am-
Ao longo de três anos, a produtividade da Olam aumentou 15%,
biente, os governos possuem cinco alavancas: incorporar
tendo sido poupados 62 mil milhões de litros de água.
o valor da natureza nas decisões públicas; adoção de me-
tas; integrar as políticas; reformar os incentivos; e ação
capacitante. Ao adotar e promover uma abordagem ba-
seada no capital natural, os governos podem desbloquear
ferramentas e soluções necessárias para integrar o valor
da natureza em todas as políticas e tomadas de decisão Trabalhando em colaboração com milhares de par-
por parte das empresas, das finanças e do governo. ceiros globais, podemos acelerar o ímpeto, alavancar
o sucesso, como a recente adoção do Quadro Global
Qual é a vossa maior ambição/objetivo para a década de de Biodiversidade, conectar comunidades engajadas e
2030 e que desafios e obstáculos será necessário superar identificar áreas e parcerias onde podemos impulsionar
para o concretizar? mudanças transformadoras.
A visão da Capitals Coalition é que, até 2030, a maio- Precisamos que todo o sistema se mova em conjunto e
ria das empresas e instituições financeiras incluirá temos de ultrapassar o obstáculo de a natureza, as pes-
o valor de todos os capitais (naturais, sociais, hu- soas, a sociedade e a economia não serem reconhecidas
manos e produzidos) nas suas tomadas de decisão e como um sistema global profundamente interligado.
que isso proporcionará um mundo mais justo, justo Devem ser abordados em conjunto para gerar valor em
e sustentável. todos os capitais e afetar a mudança dos sistemas. e
SUPER 73
HO
B I O L O G I A
LO
BION
TES
A LIGAÇÃO INVISÍVEL
É impossível pensar no ser humano como um indivíduo independente da natureza
que o rodeia. Quando lemos esta frase, provavelmente vem-nos à cabeça a relação
que temos com outros seres vivos, como as plantas, os animais ou mesmo os
microrganismos. Mas vamos um pouco mais longe. Pensem num ser humano
individual, tomem-no só, conseguem imaginar isso? Bem, é impossível, porque
cada ser humano é, na realidade, um verdadeiro ecossistema. E como é que isso é
possível? Porque o ser humano é um holobionte.
74 SUPER
Um holobionte é uma
SHUTTERSTOCK
comunidade complexa
que pode ser compara-
da a um ecossistema,
unidades evolutivas que
se adaptam e evoluem
em conjunto.
SUPER 75
O conceito de holobionte
refere-se a um organismo
complexo composto pelo
hospedeiro e pelo seu
GETTY
microbiota associado.
A
vida é uma competição cons- é ridícula, pois a simbiose é muito anterior ao mundo
tante. A vida é também uma humano e à invenção da moeda. Margulis conta-nos no
colaboração constante, não artigo que, em 1879, o biólogo alemão Heinrich Anton
apenas entre indivíduos da de Bary falou de «organismos diferentes que vivem
mesma espécie, mas também juntos» ao definir simbiose. Mas rapidamente este
entre indivíduos de espécies «dissemelhante» passou a ser «espécies diferentes», e
diferentes. Não estamos a fa- este é o cerne da questão.
lar de uma simples simbiose. A própria Margulis é a primeira a usar o termo «ho-
Numa simbiose, dois indiví- lobionte», no artigo acima mencionado. Fá-lo numa
duos de espécies diferentes figura, para fazer uma analogia entre a sexualidade
associam-se para se benefi- meiótica e a simbiose cíclica. Aqui chega mesmo ao
ciarem mutuamente. O termo ponto de chamar «indivíduo» à associação entre as di-
simbiose foi cunhado pelo biólogo alemão Albert Ber- ferentes partes de uma simbiose. É quase aquilo a que
nhard Frank (1839-1900) para se referir aos líquenes hoje chamaríamos um holobionte. E dizemos «quase»
que estudava. Apesar do tempo decorrido, não existe porque, na realidade, um holobionte não é o resultado
uma definição exata de simbiose partilhada por todos de uma associação qualquer, mas de uma associação
os cientistas. Um facto para o qual a carismática bióloga muito específica: o conceito de holobionte refere-se a
americana Lynn Margulis (1938-2011) já tinha de cer- um organismo complexo que é composto pelo hospedei-
ta forma alertado no seu artigo Words as Battle Cries: ro e pela sua microbiota associada, que inclui bactérias,
Symbiogenesis and the New Field of Endocytobiolo- fungos, vírus e outros microrganismos.
gy: «Os manuais de biologia definem a simbiose de
forma antropocêntrica, como relações de ajuda mútua UMA OUTRA FORMA DE COMPREENDER O MUNDO. Como já
ou de benefício para os animais, implicando um con- vimos, todas as plantas e animais são considerados
trato social ou uma análise custo-benefício por parte holobiontes. Um holobionte é uma comunidade bióti-
dos parceiros». E continua, dizendo que essa definição ca que se assemelha a um ecossistema. Não podemos
76 SUPER
Num holobionte, a evolução não se limita ao genoma
do hospedeiro, mas afeta-o na sua totalidade. O seu
microbiota pode influenciar a evolução do hospedeiro
SUPER 77
FIGURA 1: Genes do hospedeiro e
do simbionte que, isoladamente
e/ou em conjunto, afetam o
fenótipo do holobionte.
-Bactérias intestinais: o trato intestinal humano al- dam a manter o seu pH ácido e a protegê-la de infeções.
berga um grande número de bactérias simbióticas que Alguns dos micróbios mais comuns na vagina são dos
ajudam a digerir os alimentos, sintetizam nutrientes géneros Lactobacillus, Gardnerella e Streptococcus.
e vitaminas e protegem o hospedeiro de microrganis- As espécies específicas incluem Lactobacillus crispatus
mos nocivos. Algumas das bactérias mais comuns no (impede o crescimento de microrganismos patogé-
intestino humano pertencem aos filos Bacteroidetes, nicos), Gardnerella vaginalis (pode produzir aminas
Firmicutes e Actinobacteria. As espécies específicas biogénicas, como a trimetilamina, que pode causar um
incluem Bacteroides fragilis (produz uma variedade odor desagradável na vagina) e Streptococcus agalac-
de enzimas e pode desempenhar um papel anti-infla- tiae (presente em aproximadamente 20% das mulheres
matório), Faecalibacterium prausnitzii (produz ácidos e pode causar infeções no recém-nascido).
gordos) e Bifidobacterium longum (pode melhorar a -Micróbios da cavidade oral: A boca humana é povoada
função imunitária do hospedeiro). por um grande número de microrganismos simbióti-
-Micróbios da pele: a pele humana é povoada por uma cos que ajudam a manter a saúde dentária e a proteger
grande variedade de microrganismos simbióticos que contra infeções. Alguns dos micróbios mais comuns
ajudam a proteger a pele dos agentes patogénicos e a na boca são dos géneros Streptococcus, Veillonella,
manter o seu equilíbrio. Alguns dos micróbios mais Fusobacterium e Porphyromonas. Alguns exemplos
comuns na pele são dos géneros Staphylococcus, Strep- incluem o Streptococcus mutans (pode corroer o es-
tococcus, Propionibacterium e Corynebacterium.As malte dos dentes e causar cáries), a Veillonella parvula
espécies específicas incluem Staphylococcus epider- (encontrada na placa dentária e na língua, pode por
midis (produz substâncias antimicrobianas que podem vezes causar infeções noutras partes do corpo), o Fu-
ajudar a prevenir a infeção por outros microrganismos, sobacterium nucleatum (oportunista que pode causar
mas pode ser oportunista), Propionibacterium acnes periodontite ou cáries) e a Porphyromonas gingivalis
(tem propriedades probióticas e pode ajudar a manter (pode causar gengivite e é responsável por alguns casos
o equilíbrio da microbiota da pele) e Corynebacterium de halitose).
striatum (embora tenha propriedades benéficas, é por Talvez uma melhor compreensão do holobionte
vezes oportunista). humano nos permita, no futuro, utilizar o nosso holo-
-Micróbios vaginais: A vagina humana alberga uma genoma para todo o tipo de aplicações na medicina para
comunidade de microrganismos simbióticos que aju- curar doenças .e
ELIZABETH FULHAME,
A QUÍMICA MISTERIOSA
Elizabeth
Fulhame
previu que
o oxigénio
ASC
desempenhava
um papel na
IGNORADA PELA SOCIEDADE E PELA CIÊNCIA DO combustão.
SEU TEMPO POR SER MULHER, AS SUAS TEORIAS E
INVESTIGAÇÕES FORAM PRESCIENTES EM MUITOS
DOMÍNIOS E ESTAVAM À FRENTE DO SEU TEMPO.
lizabeth Fulhame foi uma quí- tudou a redução experimental de sais me-
SUPER 79
CURIOSIDADE TECNOCULTURA
Nas últimas
décadas, as
interferências
entre aquilo a
que chamamos
realidade e
aquilo a que
chamamos ficção
agudizaram-se
até limites
insuspeitados.
SHUTTERSTOCK
A EXTINÇÃO DA REALIDADE?
NUMA CIVILIZAÇÃO ALTAMENTE AVANÇADA, A REALIDADE ESTÁ SATURADA DE FICÇÕES QUE
COM ELA SE CONFUNDEM. SERÁ QUE, TAL COMO NOS QUADROS DE VERMEER, VEMOS AGORA
O MUNDO ATRAVÉS DE UMA CÂMARA ESCURA? SABEREMOS DISTINGUIR OS DOIS MUNDOS?
algumas semanas, o escritor artigo, o jornalista do El País relata uma das mãos de artistas tão conhecidos (e
80 SUPER
ficções a que chamamos arte. Primeiro,
o cinema. Mais tarde, com a criação das
técnicas de edição digital, a fotografia.
Poderíamos aventurar-nos a enunciar
uma lei segundo a qual quanto maior for
o progresso na exploração do mundo, ou
seja, quanto maior for o nosso desenvol-
vimento tecnológico, mais seremos de-
safiados pelas ficções que essas mesmas
ferramentas tecnológicas são capazes de
desenvolver.
A descoberta ou quebra do real coincide
e sobrepõe-se à acumulação de ficções,
pelo que, paradoxalmente, uma civili-
zação (como é o caso da nossa) muito
avançada em termos tecnológicos, está
povoada e saturada de ficções que se
confundem com o real. Neste sentido, a
inteligência artificial é um avanço neste
processo. O gradiente do progresso tec-
nológico sobrepõe-se ao da ficção num
sentido bem definido, na sua capacidade
de suplantar o que entendemos por rea-
lidade. É como se a humanidade no seu
conjunto caminhasse progressivamente
para a indistinção das duas categorias,
com tudo o que isso implica de inquie-
tante e fascinante.
SUPER 81
CURIOSIDADE CHAVES DO CLIMA
O QUE CHAMAMOS ÀS
DEPENDENDO DAS DÉCADAS OU
DA SITUAÇÃO POLÍTICA, FORAM
UTILIZADAS EXPRESSÕES DIFERENTES,
A expressão
«emergência climática»
tornou-se popular e
muitos meios de
comunicação social
integraram-na nos seus
manuais de estilo.
SHUTTERSTOCK
m agosto de 1975, o geofísi- nientes da queima de combustíveis fósseis, alertavam para as consequências de conti-
82 SUPER
fenómeno El Niño de 1982-83. No final UMA EMERGÊNCIA É ALGO QUE EXIGE UM ES-
da década, com a fundação do IPCC (em TADO DE ALERTA PERMANENTE, o que não
1988) e a publicação do seu primeiro AS ATUAIS é fácil. Quando estamos em estado de
Relatório de Avaliação das Alterações alarme durante muito tempo sem ver-
Climáticas (1990), falava-se cada vez ALTERAÇÕES mos uma ameaça direta à nossa pró-
mais de «alterações climáticas». pria vida, mais cedo ou mais tarde o
CLIMÁTICAS SÃO, relaxamento instala-se, culminando na
O IMPULSO FINAL PARA ESTE TERMO deu- desconexão com o evento que causou a
-se durante a presidência de George EM GRANDE PARTE, emergência (neste caso, as alterações
W. Bush nos EUA, entre 2001 e 2009. climáticas).
Defensor acérrimo dos interesses da in- ANTROPOGÉNICAS E Na minha opinião, a ideia de que esta-
dústria petrolífera— contra a descarbo- mos a viver uma crise climática à escala
nização sugerida pela comunidadecien- PODEMOS, NO PAPEL, global é mais adequada, para além de
tífica—, utilizou a sua posição de poder outras crises que estamos a viver nos
para obrigar instituições como as Na- ABRANDÁ-LAS últimos tempos.
ções Unidas a utilizarem apenas o termo
«alterações climáticas» nos seus relató- SEJA QUAL FOR A EXPRESSÃO UTILIZADA, o
rios e documentos, em vez de «aqueci- AS FORMAS DE REFERIR AS ALTERAÇÕES CLI- que não restam dúvidas é a singularida-
mento global». Vale a pena lembrar que, MÁTICAS não se ficaram por aqui. A en- de do comportamento do clima terrestre
no início deste século, os EUA eram o trada em cena da jovem ativista sueca desde que o homem começou a queimar
maior emissor de CO2 para a atmosfera, Greta Thunberg em 2018 e o movimento combustíveis fósseis em grande escala.
até serem ultrapassados pela China. estudantil e social que liderou, junta- A única forma de inverter esta situação
mente com a magnitude cada vez maior é iniciar uma descarbonização rápida,
AO FALAR DE ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS, CA- dos impactos do aquecimento global, acompanhada de uma «transição ener-
MUFLAVA-SE a responsabilidade humana fez com que começássemos a referir-nos gética». Esta última expressão também
pelo fenómeno, que era o último de uma à emergência ou crise climática. Alguns se tornou popular, mas como o físico
longa série de alterações no clima da dos meios de comunicação social mais Jordi Mazón assinala, com razão, num
Terra. Este golpe de comunicação con- influentes do mundo integraram-na no artigo recente (Mètode, dezembro de
seguiu diluir um pouco o facto— ine- seu livro de estilo. A expressão «emer- 2022), é mais apropriado falar de uma
quívoco aos olhos da ciência— de que gência climática» é mais lida e ouvida mudança energética. Em conclusão,
as atuais alterações climáticas são em do que «crise climática»; no entanto, nestas questões dialécticas, qualquer
grande parte antropogénicas e que, por- sou mais a favor da utilização desta úl- expressão, por mais estabelecida que
tanto, podemos, no papel, abrandá-las. tima, como defenderei a seguir. seja, é suscetível de mudar. e
A inversão da
situação atual exige
uma descarbonização
rápida, acompanhada
de uma transição
energética.
ISTOCK
SUPER 83
M U S I C O L O G I A
Estudos
demonstram que
os bebés a quem
foi dado ouvir
música à
nascença
choram menos.
A música relaxa
a criança e o
adulto.
84 SUPER
A MÚSICA
NO TEU
CAMINHO
Desde que nascemos, e mesmo antes disso, até morrermos,
todos nós temos uma música que nos lembra ou nos faz
querer esquecer algo da nossa vida. Não há quase nada
tão evocativo e tão motivador como uma melodia. Pode
alegrar-nos, entristecer-nos ou fazer-nos reviver aquele
afeto que sentimos e que já passou.
SUPER 85
E
stás no ventre da tua mãe. tua mãe. Conseguiste relaxar. A tua mãe estava farta
Há nove meses que andas a dos teus pontapés.
explorar o teu corpo. O teu Chegou a altura. Não sabes bem o que o destino te re-
dedo grande do pé. O fio que serva quando saíres. Mas vês a luz. Sais e está frio. Muito
sai do teu umbigo. E alguns frio. Descobres o primeiro ritmo do teu corpo, quando
orifícios por onde estão a te batem no rabo para desobstruir as vias respiratórias
passar sons. Descobriste-os e, claro, choras. Mas a parteira teve a amabilidade de
no sexto mês, o mês em que pôr música a tocar na sala de operações, exatamente a
o feto consegue distinguir os Sonata para dois pianos em Ré menor KV448/375a de
sons. Gostas do que ouves. Wolfgang Amadeus Mozart. É porque conhece o «efei-
As vozes dos teus pais. Mas to Mozart». Em 1991, o otorrinolaringologista Alfred
também ouviste música. A A. Tomatis publicou o livro Pourquoi Mozart, no qual
tua mãe teve o cuidado de pôr música relaxante perto explica como este método aumenta o QI dos pacientes,
da barriga, perto de ti. Há estudos que afirmam que ou pelo menos algumas das suas atividades cerebrais.
tocar música suave para um feto lhe dá uma sensação Em 1993, a psicóloga Frances Rauscher utilizou o livro
de bem-estar e relaxamento. Dizem mesmo que os para o apresentar a 36 estudantes, demonstrando que
bebés que ouviram música choram menos à nascen- tinha efeitos positivos nos testes de raciocínio espá-
ça. Como a tua mãe está bem ciente destes benefícios cio-temporal. Até os investigadores Rauscher e Shaw
e é uma amante da música clássica, ela enriqueceu a escreveram que ouvir Mozart torna-nos de facto mais
tua estadia com o adágio do Concerto para Oboé em inteligentes.
Ré menor de Alessandro Marcello. Com o oboé, ela Terias preferido nascer ao som de Elisa’s Theme de
relaxa o teu corpo e a tua mente, abranda os teus bati- Alexandre Desplat. Algo mais moderno. Começa com
mentos cardíacos até ficarem em uníssono com os da pizzicatos de cordas, depois clarinetes em crescendo
86 SUPER
acompanhados pela melodia do acordeão. Em seguida
uns sininhos fazem-te ver o mundo. E abres os olhos
pouco a pouco. Continua com o oboé, o mais belo ins-
trumento de uma orquestra. E quando parece que a
peça está prestes a terminar, uma simples melodia de
piano toca em agudos. E acontece que coincide com
a primeira vez que abres os olhos ao mundo. E terias
preferido esta faixa porque os teus pais são amantes de
bandas sonoras e vais crescer com elas. Vais descobrir
o poder da música ao lado das imagens, e como elas
ajudam a criar atmosferas para criar uma sensação de
realidade no espetador, porque sim, a música tem esse
poder. Todos sabemos como soa um tubarão a escolher
o seu alimento no fundo do mar, pela mão de John Wil-
liams. Como soa um psicopata a atacar a sua vítima no
duche, sob a batuta de Bernard Hermann. Ou que mú-
sica deve soar quando se chapinha à chuva como Gene
Kelly. Mas a nossa vantagem é que somos nós que esco-
lhemos a nossa banda sonora. «A música acompanha
quase todos os momentos da vida, desde a condução, à
confeção do jantar, às compras no supermercado (...),
literalmente em todo o lado onde passamos ou nos
sentamos», escreve Michael Spitzer.
GETTY
xer com muitas emoções e está envolvida em processos
cognitivos. Nos bebés, aumenta a capacidade terapêu- Os estímulos musicais aumentam certos neurotransmissores, que
tica do sistema nervoso. Os teus pais fizeram bem em transportam, conduzem e equilibram os sinais entre os neurónios.
levar-te a um infantário com musicoterapia. Nestas Na imagem, uma sinapse entre duas células nervosas.
sessões, brincas com os teus educadores a bater numa
mesa, tentando manter um ritmo. A musicoterapia na
creche estabelece um espaço de comunicação que per-
mite a introspeção e a extroversão da criança. Sabemos «Quando a música começa a criar o clímax (...), a do-
que no terceiro dia de vida já podemos reagir à mú- pamina inunda o corpo estriado dorsal».
sica. «Somos criaturas inatamente musicais desde as Mas porque é que gostamos de repetições numa can-
profundezas da nossa natureza», escreve o psicólogo ção? Aqueles refrões cativantes. Aquela música que
Stefan Koelsch. Mas o que é a música? Eduard Punset não consegue parar de ouvir em nenhum momento da
define-a da seguinte forma: «A música é uma sucessão sua vida. Bem, é o efeito de «mera exposição» desco-
de sinais acústicos que os nossos ouvidos captam e en- berto por Robert Boleslaw, um fenómeno psicológico
viam para o cérebro, onde são descodificados e lhes é em que gostamos mais dos estímulos à medida que so-
atribuído um significado». mos expostos a eles mais vezes. A psicóloga Elizabeth
Já tens oito anos. E gostas de imitar sons. Imitar rit- Hellmuth escreveu vários estudos sobre este fenóme-
mos. Imitar danças. E gostas de imitar animais. Adoras no. Segundo ela, os estudos mostram que, quando
porque isso te dá uma ferramenta de comunicação, ouvimos música repetitiva, é muito mais provável
de aprendizagem e de expressão. Aprendes através da que mexamos o pé ou a cabeça, tornando-nos partici-
repetição e da imitação, o que aumenta o teu desenvol- pantes em vez de recetores passivos. A escritora Mary
vimento intelectual, auditivo, sensorial e motor de que Oliver escreve que «o ritmo é um dos prazeres mais
tanto necessitarás na tua longa vida. É por isso que gos- poderosos, e quando sentimos um ritmo agradável,
tas de canções repetitivas e, se também aprenderes os esperamos que ele continue. E quando continua, acha-
nomes dos animais e das cores, tanto melhor. Os estí- mo-lo cada vez mais agradável».
mulos musicais aumentam certos neurotransmissores. Mas, de repente, chega uma altura em que já não te
Estes são mensageiros químicos que transportam, sentes tão atraído por essas canções infantis. Agora
conduzem e equilibram os sinais entre os neurónios e tens catorze anos. Vasculhas os discos antigos do teu
as células de todo o corpo. E entra em ação a dopami- pai ou do teu irmão mais velho. Descobres estilos di-
na, que liberta recompensas cerebrais em resposta a ferentes. Os diferentes ritmos que a música tem para
estímulos que provocam prazer. Como explica Spitzer: oferecer. Estás numa das tuas primeiras festas e tocam
música da tua geração. Música que os mais velhos não to knock us down, just because we move». Em 1992,
entendem. Mas não te preocupes, é normal. Aconte- Robe Iniesta cantava: «Eu gostaria que minha voz fos-
ceu o mesmo com os teus pais e, antes disso, com os se tão forte que às vezes as montanhas ressoassem e
teus avós. Também eles pensavam que a sua geração ouvisses as mentes adormecidas». Em 1931, La Argen-
tinha acabado de descobrir a música. Agora, já adul- tinita cantava: «A confusão acabou e nós vamos para
tos, não percebem porque é que os jovens gostam de o tiroteio». E Bad Bunny, agora, canta: «Que se lixe
Bad Bunny, o cantor reggae porto-riquenho. Que não o amanhã, só penso no hoje, não vou mudar, é assim
endendes nem queres entender. Que canta bocejando. que eu sou». Sempre houve uma canção para ti. Onde
Não te entra na cabeça, mas sempre foi assim. Noutras e quando quer que tenhas nascido.
gerações diziam-nos que certas bandas de rock can-
tavam drogados. Mas os mais velhos, da geração do MAS AGORA ESTÁS TRISTE. Conheceste alguém importante
teu pai, diziam que os Beatles e os Rolling Stones eram para ti. E não foste correspondido. Bateu-te com força
uns gritadores cabeludos. Antes ainda, quando os teus no coração. Tens 25 anos e pensavas que sabias tudo.
avós eram jovens, os mais velhos não conseguiam en- Conquistaste essa pessoa com as tuas melhores dan-
tender como é que eles podiam ouvir certas músicas e ças. Com aquela dança que te torna irresistível: a dança
canções que eles não entendiam. E se continuarmos a do acasalamento. Há milénios que a música é utilizada
olhar para trás, veremos que a música popular esteve para encontrar a alma gémea. Como o ritmo de uma
sempre ligada a uma geração. Passando a mensagem canção ou de um refrão numa tribo, à luz de uma fo-
do seu tempo. Fazendo-nos sentir jovens. Em 1965, os gueira, torna-nos socialmente expostos. É isso que o
The Who, em My generation, cantavam: «People try ritmo faz. «O cérebro tem prazer em analisar os inter-
O CÉREBRO SOCIAL
PVN+SON
E A MÚSICA NAcc Ínsula
ACC IFG Amyg STG
LEGENDA:
UM PROCESSO DINÂMICO PFC = córtex pré-frontal
mPFC = córtex pré-frontal medial
CÉREBRO. Criar música em grupo, incluindo
vmPFC = córtex pré-frontal ventromedial
a tomada de perspetiva e a coordenação,
envolve vários processos cerebrais. ACC = córtex cingulado anterior
IFG = giro frontal inferior
COMPORTAMENTO. A atividade cerebral NAcc = núcleo accumbens Vias dopaminérgicas
modula o comportamento social, incluindo a PVN = núcleo paraventricular mesocorticolímbicas
empatia e os comportamentos pró-sociais. STG = giro temporal superior
VA = área tegmental ventral Vias ocitocinérgicas
CULTURA. Estes processos complexos podem
alterar a perceção e o comportamento social,
em especial em relação a alguém que é visto
como membro de um grupo estranho.
ASC
88 SUPER
A música está sempre
presente em todas as
etapas e fases da
nossa vida: quando
nos apaixonamos,
quando perdemos um
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amor, nos momentos
de felicidade e nos
momentos de luto.
SHUTTERSTOCK
Um dos maiores
poderes da música é o
de evocar a memória.
Além disso, a música
repetitiva torna-nos
participantes e não
meros recetores:
quanto mais ouvimos
uma peça de música,
mais gostamos dela.
Gostamos mais dos
estímulos quanto mais
vezes tivermos sido
expostos a eles.
ISTOCK
valos de tempo entre as batidas», diz o músico Jaime Triste. Abandonado. Podes ouvir canções de amor que
Altozano, acrescentando: «E algo rítmico soa melhor potenciem essa recordação. Porque a música tem um
do que algo que não o é. Sem ritmo não podemos dan- dos maiores poderes: o poder de fazer recordar. Todos
çar. Os rituais de namoro sempre foram importantes nós temos uma canção pela qual nos apaixonámos e
para a humanidade avançar. Podemos provar a essa que, quando o amor se perdeu, pusemos a tocar para
pessoa que estamos em boa forma física. E que sabe- recordar. Lembre-se de Humphrey Bogart a proibir o
mos como coordenar o nosso corpo. Somos saudáveis. seu pianista de tocar As time goes by em Casablanca
E sim. Conseguiste que reparasse em ti. Mas não para para não recordar um amor. «A neurociência diz-nos
sempre. O teu coração foi partido. Agora estás a vi- que a música é muito poderosa para ativar cada uma
ver um momento em que estás perdido. Sentes-te só. das nossas estruturas emocionais no cérebro. É assim
SUPER 89
Na imagem, o Se a música o faz
compositor
experimental e
autor John Cage
tremer, tanto melhor,
porque as pessoas que
altera a afinação
do seu piano,
colocando
moedas e
parafusos entre sentem calafrios
as cordas.
musicais têm
caraterísticas
neurológicas
diferentes das outras
90 SUPER
Muitos psicólogos
afirmam que não há
nenhuma aprendizagem
ou competência que
exija tanta atividade
cerebral como aprender
a tocar um instrumento.
SHUTTERSTOCK
fórmula matemática, segundo a letra da música, as há praticamente nenhuma parte do cérebro que não
batidas por minuto e a sua tonalidade: seja afetada pela música», diz Stefan Koelsch. Uma das
partes do cérebro do músico que é mais profunda-
mente ativada é o cerebelo. O cérebro dos músicos
tem um cerebelo maior do que o normal. Outra área
notável nos músicos é o corpo caloso, uma faixa de
tecido que liga os dois hemisférios cerebrais. Um
O Dr. Jacob explica: «As canções com letras positivas, órgão crucial para os pianistas, pois sincroniza os mo-
um ritmo de 150 batidas ou mais e numa terceira maior vimentos das duas mãos. Os hemisférios trabalham
são as que o farão sentir-se mais otimista e enérgico» em harmonia. E como já tens 80 anos, desenvolveste
e, depois das seguintes 130 000 canções seguintes terás muito o teu corpo caloso nos últimos vinte anos. E to-
conseguido esquecer a dor que a pessoa te causou. cas piano na perfeição, e sabes como isso é gratificante
para a tua motricidade. A tua memória. A tua criativi-
MAS A NOITE NÃO É ETERNA. E A JUVENTUDE TAMPOUCO. E tem dade. O intelecto. E o prazer de poder fazer música, de
de haver tempo para o silêncio. Tens agora 40 anos. transmitir sentimentos, é já um luxo para a tua vida.
Com família ou não, mas no meio de uma crise de meia- Estás mais velho e sabes que tens de dar espaço aos
-idade. Precisas de parar e refletir sobre o caminho que que vêm depois de ti. Como já tiveste uma vida cheia
percorreste. Decides ouvir John Cage. E a sua peça 4’ de música e experiências, decides escolher a tua banda
33’’. Na partitura da qual apenas aparece a palavra Ta- sonora para deixares este mundo. Tal como fez Edward
cet, que indica ao intérprete que tem de permanecer em G. Robinson no final de When Fate Catches Up with
silêncio durante 4 minutos e 33 segundos. Tempo que Us, que escolheu Ludwig van Beethoven e a sua Sinfo-
Cage te dá para refletir, não sobre o silêncio, mas so- nia n.º 6 em Fá maior Pastoral.
bre a escuta. Ouvir o bater do coração e a respiração. Já decidiste com que canção vais partir para a aventura
Uma experiência sonora e mística. E decides mergulhar mais formidável, como disse Peter Pan. É On the Nature
nesse tipo de música experimental para meditação. Ar- of Daylight, de Max Richter. É triste, sim, mas também é
tistas de ambiente eletrónico minimalista como Sylvain comovente. E, por vezes, até esperançosa. Decides partir
Chauveau, Tangerine Dream, Rafael Anton Irisarri... em paz, a sorrir e a cantarolar. Michael Spitzer escreve:
Artistas que ouvem o espaço de uma forma diferente, «Cuidamos da música como de um ente querido (...).
e o melhor é que podem partilhá-lo consigo. Estudos Cuidamos dela porque é humana». e
sobre meditação asseguram que esta música relaxa o
nosso corpo, estimulando o sistema nervoso parassim-
pático. Ajuda a saúde mental. E ajuda-nos a viver a vida.
E, de repente, tens 60 anos e decides aprender a to-
car um instrumento. Possivelmente piano jazz. Queres BIBLIOGRAFIA
tocar como Dave Brubeck, ou Herbie Hancok. E estás - História do silêncio. Alain Corbin.
pronto para isso. Muitos psicólogos afirmam que não Editora Vozes
há outra atividade ou competência que exija tanta ati- - El ritmo infinito. Michael Spitzer. Ariel, 2022.
vidade cerebral. Ativa todas as partes do cérebro. «Não
SUPER 91
C R I M I N O L O G I A
SHUTTERSTOCK A Ilustração
representa uma
reunião dos
Molly Maguires,
que trabalhavam
na região
carbonífera de
antracite da
Pensilvânia.
92 SUPER
AS ORIGENS DA CRIMINALIDADE ORGANIZADA NOS ESTADOS UNIDOS
OS MOLLY
MAGUIRES
Criminosos para uns, trabalhadores oprimidos para outros, os Molly
Maguires continuam rodeados por uma aura de misticismo derivada das
suas origens, da sua natureza secreta, do seu fim trágico e do tempo
e ambiente em que levaram a cabo as suas ações violentas: as zonas
mineiras da Pensilvânia na segunda metade do século XIX.
SUPER 93
Para compreender a sua história, há que referir o pro-
UMKC
fundo processo de urbanização que os Estados Unidos
sofreram a partir de 1830 e que transformou o país, no
final desse século, num dos países mais urbanizados do
Ocidente, depois do Reino Unido, Holanda, Bélgica e
Alemanha.
«A transformação da paisagem urbana foi tal que, já
em 1872, os dirigentes políticos reconheceram implicita-
mente que a cidade se estava a tornar o habitat dominante
e fizeram de Yellowstone o primeiro Parque Nacional»,
refere a historiadora Aurora Bosch no seu livro Historia
de Estados Unidos (Crítica, 2005).
N
voz, porque a maioria das greves terminava em desastre
para os trabalhadores e porque, graças ao conluio entre
os Estados Unidos, a primeira ex- patrões e políticos, qualquer tentativa de reforma laboral
periência violenta indiretamente era imediatamente abortada. Os primeiros, despedindo
ligada ao mundo do trabalho foi qualquer trabalhador suspeito de pertencer a um sindi-
a dos Molly Maguires, uma orga- cato e os segundos, controlando a polícia e considerando
nização secreta de «vigilantes» a organização sindical como uma conspiração. Como
nascida na Irlanda como um gru- disse o magnata dos caminhos-de-ferro Jason Gould:
po de resistência antisenhorial «Eu podia contratar metade da classe operária para ma-
na década de 1840 e estabelecida tar a outra metade».
entre a minoria irlandesa que tra- O resultado foi, como diz Isaac Asimov no seu Os Es-
balhava nas minas de antracite da tados Unidos do fim da Guerra Civil à Primeira Guerra
Pensilvânia nadécada que se seguiu Mundial (Alianza Editorial, 2012), que «os primeiros
à Guerra Civil (1865-1875). Os seus membros cometeram sindicatos tinham de ser organizações secretas e as suas
crimes de fogo posto e atentados contra ingleses, galeses ações tinham de ser clandestinas, pois não tinham qual-
e escoceses e assassinaram patrões e polícias, embora as quer sinal de legalidade».
suas ações não estivessem diretamente relacionadas com
disputas laborais». É assim que o historiador Eduardo CHEGARAM OS MOLLY MAGUIRES. Entre os milhões de imi-
González, no seu livro El laboratorio del miedo ( Crítica, grantes europeus, os irlandeses destacam-se pelo seu
2013), resume a década em que os Molly Maguires, meio número. As más colheitas de batata na Irlanda, devido a
organização criminosa e meio sindicato, semearam o ter- um fungo, provocaram, a partir de 1845, um êxodo ma-
ror nas zonas mineiras do vale da Pensilvânia. ciço de pessoas famintas, que atingiu os quatro milhões
94 SUPER
PETER NEWARK AMERICAN PICTURES BRIDGEMAND MIAGES
Esta banda desenhada, intitulada «Os Protetores das Nossas Indústrias», mostra vários homens de negócios, como Cyrus West Field, Jay Gould,
Cornelius Vanderbilt e Russell Sage, sentados em cima de sacos de dinheiro, numa grande e pesada jangada transportada por trabalhadores.
no final do século XIX. No entanto, os irlandeses tinham Maguire, ou simplesmente os Mollies, assassinaram po-
certas vantagens, como a língua, o conhecimento do lícias, magistrados e proprietários de terras, ao abrigo
aparelho democrático e uma certa especialização em se- daquilo a que chamavam a «Legislação da Meia-Noite».
tores como a exploração mineira. Era uma mistura de luta de classes, ódio religioso, sec-
Milhares de irlandeses chegaram às grandes áreas mi- tarismo... que chegou ao fim quando, perseguidos sem
neiras do vale da Pensilvânia, embora com condições de quartel, muitos deles foram obrigados a emigrar, alguns
trabalho particularmente duras. Os salários eram baixos, para as bacias carboníferas da Pensilvânia, misturados
pagos à jarda cúbica, ao vagão ou à tonelada extraída; os com os que foram levados pela fome.
desabamentos eram frequentes, matando centenas de Como os sindicatos foram proibidos, agruparam-se
mineiros todos os anos; o abandono da segurança social numa organização católica sob o nome de Ordem Antiga
era uma constante ... «O que interessava era o carvão. dos Hibernianos, com o objetivo descrito nos seus esta-
Carvão e mais carvão. A enorme quantidade de máquinas tutos de «promover a amizade, a união e a verdadeira
nas fábricas e as novas locomotivas precisavam do seu caridade cristã entre os membros e, de um modo mais
combustível e, perante isto, as pessoas que trabalhavam geral, fazer tudo o que fosse permitido para o bem-estar
nas minas dificilmente seriam tidas em conta», escreve e a boa manutenção dos assuntos da associação».
Louis Adamic.
Foi neste contexto que surgiram os Molly Maguires. MAIS DO QUE UMA LUTA SINDICAL. Muito se tem debatido so-
«Parece que se trata de uma organização nascida no bre a sua verdadeira essência porque, se é verdade que as
início ou em meados do século XIX, no campo irlan- péssimas condições de trabalho tiveram uma influência
dês, onde a luta de classes entre camponeses católicos e decisiva no seu gérmen e no seu comportamento violen-
proprietários anglicanos deu origem a episódios de vio- to, a luta sindical não foi o seu único objetivo, e muito
lência», explica Juan Avilés Farré, professor de História menos o primeiro.
Contemporânea na UNED, à Super Interessante. Como explica Laura Bosch, «os imigrantes irlandeses,
todos eles envolvidos na exploração mineira como tra-
A ORIGEM. O seu nome vem especificamente de uma viú- balhadores não qualificados, eram a minoria maioritária
va irlandesa chamada Molly Maguire, que na década de na zona mineira e enfrentavam uma divisão do trabalho
1840 e na região do Ulster liderou uma revolta contra um que refletia a discriminação étnica de que eram alvo.
sistema abusivo que impedia os católicos de comprarem As tensões eram particularmente intensas com os tra-
terras, condenando-os a rendas abusivas dos proprie- balhadores nativos e, sobretudo, com os galeses — que
tários protestantes. Assim, armados com pistolas e trabalhavam por contaprópria e eram mineiros qua-
espingardas, com a cara enegrecida ou branqueada e ves- lificados —e assumiram a forma de lutas de rua entre
tidos de mulher em honra da mãe fundadora, os Molly bandos rivais de galeses e irlandeses, incluindo todo o
SUPER 95
tipo de espancamentos, agressões, lutas e assassínios que quando chegava a acordo, um certo número de « mol-
foram atribuídos aos Molly Maguires». lies» de outra localidade ou condado, não relacionados
Além disso, os próprios nativos sentiam repulsa pelos com o caso, era chamado a executá-la. A não aceitação
irlandeses por não apoiarem a luta anti-escravatura — deste pedido podia significar desde a expulsão do grupo
dado o seu receio de uma potencial concorrência laboral até à morte.
por parte dos escravos libertados —, a sua incapacidade Este truque tornava impossível a identificação dos
de se adaptarem à ética puritana e a sua recusa em subir agressores por parte de eventuais testemunhas. E se,
na escala social. mesmo assim, alguém se atrevesse a identificá-los, os
A instabilidade resultante da desmobilização de milha- restantes molinetes jurariam em qualquer lado e a qual-
res de soldados após a Guerra Civil, a queda dos salários quer pessoa que os suspeitos tinham passado com eles
e dos preços do carvão devido ao fim da guerra e o contí- tantas horas quantas as necessárias para os ilibar. Isto
nuo afluxo de imigrantes também não ajudaram. não era muito comum, uma vez que, através da intimi-
Tudo isto levou os Mollies a atuar mais como gangsters dação e da extorsão, também tinham conseguido colocar
do que como um sindicato clandestino. Como escreve pessoas com a mesma opinião em júris, em organizações
Louis Adamic, «poder-se-ia dizer que, com os Molly mineiras rivais ou nas próprias câmaras municipais.
Maguires, surgiu o crime organizado nos Estados Unidos, Um processo que o escritor Arthur Conan Doyle tomaria
nomeadamente o crime organizado ligado ao mundo como tema central do seu romance O Vale do Medo (1915),
sindical». tendo Sherlock Holmes como personagem principal.
Para compreender o clima de terror instaurado, bas-
ASSASSINATO E EXTORSÃO. Os primeiros distúrbios regis- ta ler a descrição publicada pela American Law Review
tados ocorreram entre 1862 e 1868, com a morte de 16 em 1877: «Dos seus covis sombrios e misteriosos está a
trabalhadores, o espancamento de outros 16 e a sabota- irromper uma série chocante de histórias de assassina-
gem de máquinas mineiras. Desde então, os assassínios tos, incêndios criminosos e crimes violentos de todos os
e as sabotagens não cessaram, envolvendo operários, tipos. Nenhum homem respeitável parece estar seguro
capatazes, patrões de minas, polícias privados, etc. Nem ali, pois as vítimas são escolhidas, em particular, entre as
sempre foram obra dos Molly Maguires, embora se diga classes respeitáveis, e ninguém pode dizer de um dia para
que foram eles os responsáveis. o outro se foi marcado para um fim tão certo quanto re-
Segundo Louis Adamic, as execuções eram decididas pentino. Só os membros de uma profissão têm a certeza
nas salas das traseiras das tabernas geridas por membros do seu destino: os diretores e capatazes das minas podem
do grupo, em reuniões que, como bons católicos, come- ter a certeza de que os seus dias na Terra estão conta-
çavam sempre com orações. Os convocadores contavam dos. Em qualquer lugar e a qualquer hora, esses homens
então as afrontas que tinham sofrido: ser rejeitado para condenados serão atacados, espancados ou baleados, na
um determinado trabalho, discutir com o capataz sobre a via pública ou em suas casas, em lugares solitários ou no
quantidade ou a qualidade do carvão extraído, considerar meio do povo, caindo em um terrível gotejamento nas
que um trabalhador de outra nacionalidade tinha prefe- mãos dos assassinos».
rência em relação a um trabalhador irlandês... Até mesmo
a não contratação de trabalhadores irlandeses podia ser ASCENSÃO E QUEDA. Como salienta Louis Adamic, «o pon-
considerada uma ofensa digna da pena de morte. to alto do poder dos Molly Maguires deve ser situado nos
Após a exposição, o comité discutia a pena a aplicar e, anos de 1873 e 1874», quando 500 a 600 membros da
96 SUPER
AGE
Gravura a cores representando a execução de onze Molly Maguires em Pottsville, Pensilvânia, em 21 de junho de 1877. Os julgamentos
dos Molly Maguires estavam repletos de irregularidades e muitos dos procuradores envolvidos trabalhavam para as empresas mineiras.
organização passaram a liderar comunidades de várias principal não era outro senão Franklin B. Gowen, pre-
dezenas de milhares de pessoas naPensilvâniae já tinham sidente da Reading Railroad».
em vista a vizinha Virgínia Ocidental. O que aconteceu Depois de 15 deles terem sido considerados culpados,
foi que, a partir de 1868, a Reading Railroad assumiu 12 foram executados na prisão em 21 de junho de 1877,
progressivamente o controlo das minas. A isso se opôs a permitindo o acesso a centenas de cidadãos, apesar de as
Workingmen’s Benevolent Association, o primeiro sin- execuções públicas terem sido abolidas em 1834.
dicato americano em que a solidariedade era a base e não
as distinções étnicas ou de qualificação. A imprensa retratou-os imediatamente como crimino-
Os mineiros sentiram-na imediatamente como um sos sem coração, falando de um «perigo irlandês» que
sindicato próximo que defendia os seus direitos, não com pairava sobre a nação, identificando os irlandeses com
violência, mas controlando a produção e a distribuição os grandes inimigos do puritanismo: a pobreza, o álcool,
do carvão para manter o seu preço e, por conseguinte, a preguiça, a corrupção... A mensagem só servia para
os salários elevados. E o resultado desse apoio dos traba- aprofundar os desequilíbrios económicos tão caraterís-
lhadores foi a aprovação, em 1870, do Mining Safety Act. ticos de uma classe trabalhadora dividida em etnias e
Tal força operária constituía um problema para a Rea- nacionalidades, que só beneficiava o capital.
ding Railroad, que definiu a sua estratégia: provar que No entanto,os mineiros irlandeses continuaram a sua
havia Molly Maguires no seio da Workers’ Benevolent luta laboral, sem os Molly Maguires, mas criando ou fa-
Association envolvidos em atos de violência e, assim, ile- zendo parte de outras organizações como a Clanna-gael,
galizá-los. a Liga Agrária ou a Ordem dos Cavaleiros do Trabalho,
Para isso, contrataram a Agência Pinkerton, que conse- que atingiu 703 000 membros em julho de 1886, incluin-
guiu infiltrar dois agentes nos Molly Maguires e, depois, do candidatos às eleições municipais em várias dezenas
com as supostas provas recolhidas, os polícias privados de cidades.
da Reading Railroad prenderam 19 suspeitos. «É possível Organizações para as quais os Mollies foram, por ve-
que tenham cometido assassínios, embora não se saiba zes, uma inspiração, como o atestam as palavras que o
se os que foram condenados à morte eram efetivamente sindicalista e candidato à presidência dos Estados Unidos
culpados», explica Juan Avilés Farré. Eugene V. Debs escreveu no jornal político Appeal to Rea-
O julgamento que se seguiu estava repleto de irre- son, no trigésimo aniversário das execuções: «Todos eles
gularidades, como explica Aurora Bosch: «Os arguidos reivindicaram a sua inocência e morreram sem renunciar
foram detidos por polícias privados e acusados com aos seus valores. Nenhum deles mostrou o mais pequeno
base nas provas de um detetive que, por sua vez, ti- sinal de medo ou fraqueza. Nem um único tinha caráter
nha sido acusado de agente provocador; as provas criminoso. Todos eram ignorantes, brutos e rudes, nas-
do detetive foram complementadas por uma série de cidos na pobreza e fustigados pela maré impiedosa do
informadores que se tornaram provas do Estado; os destino e da oportunidade [...] Resistir aos infortúnios
católicos irlandeses foram excluídos dos júris; muitos que eles e os seus companheiros enfrentavam, ou prote-
dos procuradores trabalhavam para as empresas mi- ger-se da brutalidade dos seus chefes era, do seu ponto de
neiras e para os caminhos-de-ferro; e o procurador vista rude, o principal objetivo dos Mollies». e
SUPER 97
HISTÓRIA DE FICÇÃO CIENTÍFICA POR ÓSCAR CURIESES
AS NOVAS VIGILÂNCIAS
egundo os conspiradores, viviam em silêncio, sem poderem falar inicial de participantes ou aos que ti-
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O QUE VEIO PRIMEIRO,
A GALINHA OU O OVO?
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NÚMERO 303
MENSAL ○ JULHO 2023
ENTREVISTA
NUNO MAULIDE
A QUÍMICA ORGÂNICA
SEM COMPLEXIDADE
PÁG. 42
GUERRA
PORTUGAL NA
1ª GUERRA MUNDIAL
PÁG. 80
TECNOLOGIA
SERÁ QUE ALGUMA
VEZ VEREMOS A
FUSÃO NUCLEAR A
FUNCIONAR?
PÁG. 36
HISTÓRIA
A ÚLTIMA NOITE
DE GIACOMO
CASANOVA
PÁG. 88
CRIMINOLOGIA
PORQUE É QUE
AS CRIANÇAS
MORFOLOGIA
MATAM?
PÁG. 74
GALÁCTICA
N.º 303
PORTUGAL NA
QUE FORMA TÊM AS GALÁXIAS E PORQUÊ? 1ª GUERRA MUNDIAL
39 E/ano 19 E/ano